Universidade Clássica de Lisboa
Faculdade de Letras
Departamento Filosofia
Mestrado
SEMINÁRIO DE ORIENTAÇÃO I
Ano lectivo 2004-2005
O argumento de Kripke contra
o materialismo identitativo particular-particular
Vitor Manuel Dinis Pereira
O materialismo identitativo particular-particular é o monismo não-reducionista de
eventos: identifica numericamente cada evento mental, cada portador de propriedades mentais
como a propriedade de ser uma dor, com cada evento físico, cada portador de propriedades
físicas como a propriedade de ser uma estimulação das fibras-C.
Se Kawasaki (respectivamente, Dutto) pode ter simultaneamente muitas propriedades
distintas, como a propriedade de ser um cão, a propriedade de ser uma animal doméstico,
então o facto (estado de coisas) de Kawasaki (respectivamente, Dutto) ser um cão é distinto do
facto (estado de coisas) de Kawasaki (respectivamente, Dutto) ser um animal doméstico, mas
o evento de Kawasaki (respectivamente, Dutto) estar num certo estado correspondente a
esses factos pode ser o mesmo.
O caso de x e y terem diferentes propriedades e não se seguir que x e y são distintos
não deve ser confundido com o caso de x e y terem as mesmas propriedades e seguir-se que x
e y são distintos.
A indiscernibilidade de idênticos é: se x = y, então x e y têm as mesmas propriedades
(ou: x e y têm as mesmas propriedades se x = y).
A fim de apresentar o argumento de Kripke contra o materialismo identitativo particularparticular é útil distinguir entre eventos-tipo e eventos-particulares de forma a reter os
segundos como aqueles acerca dos quais é a tese distintiva do materialismo identitativo
particular-particular.
Eventos-tipo são uma certa propriedade de eventos específicos ou uma certa classe
de eventos específicos.
Eventos-particulares são entidades irrepetíveis ou não exemplificáveis e concretas, isto
é, datáveis e situáveis no espaço.
A pretensão do materialismo identitativo particular-particular não é explicar, por
exemplo, como é que uma pessoa tem as sensações corpóreas e experiências visuais
específicas que tem ou como é que uma pessoa está no estado neurofisiológico em que está,
mas defender a identidade numérica entre cada evento mental e cada evento físico seja qual
for a explicação proporcionada pela ciência relevante para as sensações corpóreas e
experiências visuais específicas que uma pessoa tem ou seja qual for a explicação
proporcionada pela ciência relevante para o estado neurofisiológico em que uma pessoa está.
Alega-se, em defesa do materialismo identitativo particular-particular, que o
materialismo identitativo particular-particular dá conta das relações causais entre mente e
corpo de forma mais plausível do que qualquer outra das teses diponíveis.
Suponha-se, por um lado, que mente e corpo são ontologicamente separados e
causalmente estanques.
Ora, a nossa intuição de que há relações causais entre mente e corpo é dificilmente
acomodada.
A intuição de que eventos mentais, como a ocorrência de uma dor neste momento, são
causalmente responsáveis pela ocorrência de eventos físicos, como um grito súbito de dor
neste momento, é dificilmente acomodada.
Se o materalista identitativo particular-particular tiver razão, e o evento do qual são
predicáveis propriedades mentais como a propriedade de sentir uma dor é numericamente
idêntico ao evento do qual são predicáveis propriedades físicas como a propriedade de ser
uma estimulação das fibras-C, o evento mental e o evento físico são um e o mesmo evento e a
ocorrência do evento causalmente responsável pelo grito súbito de dor neste momento é o
evento físico de uma dor ocorrer neste momento.
Não há particulares mentais, há propriedades mentais e propriedades físicas
irredutíveis.
Mesmo um dualista como Descartes não está disposto a negar que há uma interacção
causal entre a substância mental e a substância material.
Pelo menos, não estamos dispostos a negar que há relações causais entre mente e
corpo da mesma forma que estamos dispostos a negar que mente e corpo são
ontologicamente separados.
Logo, o materalismo identitativo particular-particular é a tese que alegadamente melhor
acomoda as nossas intuições.
O materalismo identitativo particular-particular é alegadamente a melhor explicação
para termos a intuição que temos de que há relações causais entre mente e corpo.
O progresso das ciências físicas, por outro lado, torna natural a assumpção de que
qualquer evento físico, se puder ser explicado, pode ser explicado em termos puramente
físicos. Parece, então, que, uma vez assumido que qualquer evento físico, se puder ser
explicado, pode ser explicado em termos puramente físicos, somos obrigados a identificar
eventos mentais como eventos físicos de forma a dar conta da eficácia causal que
alegadamente eventos mentais têm.
São estes os pontos que a argumentação contra o materalismo identitativo particularparticular não pode deixar de ter em conta.
Mas, alegue-se o que se alegar em defesa do materialismo identitativo particular-particular, os argumentos do materialista identitativo particular-particular só serão efectivos se
o materalismo identitativo particular-particular for coerente.
As alegadas identidades psicofísicas particular-particular são identidades de facto?
O argumento de Kripke contra o materialismo identitativo particular-particular é
apresentado nas pp. 146-148 de Naming and necessity.
A estratégia de argumentação contra o materialismo identitativo particular-particular de Saul Kripke consiste em dizer que, se o materialista identitativo particular-particular tem razão, então terá de dar conta das intuições modais seguintes:
parece (pelo menos logicamente, diz Kripke) possível que o evento físico, o portador
de propriedades físicas como a propriedade de ser uma estimulação das fibras-C,
correspondente ao evento mental, pode ocorrer sem o evento mental, o portador de
propriedades mentais como a propriedade de ser uma dor;
parece possível que o evento mental, o portador de propriedades mentais como a
propriedade de ser uma dor, correspondente ao evento físico, pode ocorrer sem o evento
físico, o portador de propriedades físicas como a propriedade de ser uma estimulação das
fibras-C.
Ora, o materialista identitativo particular-particular não dá conta das intuições modais,
não dá conta das propriedades modais de eventos particulares mentais e de eventos
particulares físicos.
Logo, a alegada identidade psicofísica de particulares não é de facto identidade entre
eventos particulares mentais e eventos particulares físicos.
A réplica do materialista identitativo particular-particular consiste em dizer que só
precisa de dar conta de pelo menos uma das intuições modais, porque, para que eventos
particulares mentais e
eventos particulares físicos sejam de facto distintos, o materialista
identitativo particular-particular não pode dar conta de nenhuma das duas intuições modais.
O argumento que depende da intuição segundo a qual parece (pelo menos
logicamente, diz Kripke) possível que o evento físico, o portador de propriedades físicas como
a propriedade de ser uma estimulação das fibras-C, correspondente ao evento mental, pode
ocorrer sem o evento mental, o portador de propriedades mentais como a propriedade de ser
uma dor, consiste no seguinte género de considerações.
Considere-se o evento mental, o portador de propriedades mentais como a
propriedade de ser uma dor, por exemplo uma dor que João sente no instante de tempo t, e
considere-se o correspondente evento físico, o portador de propriedades físicas como a
propriedade de ser uma estimulação das fibras-C, por exemplo uma estimulação das fibras-C de João no instante de tempo t.
Parece logicamente possível que o evento físico, correspondente ao evento mental,
pode ocorrer sem o evento mental.
Por exemplo, o cérebro de João pode estar exactamente no mesmo estado no instante
de tempo t e João não sentir qualquer dor.
O materialismo identitativo particular-particular não é consistente com a aparente
possibilidade lógica do evento físico, correspondente ao evento mental, poder ocorrer sem o
evento mental.
O materialismo identitativo particular-particular não é consistente com a aparente
possibilidade lógica de F poder ocorrer sem D.
Se D = F, então nem D pode ocorrer sem F, nem F pode ocorrer sem D, pois são uma
e a mesma coisa, pelo princípio da necessidade da identidade.
Se o evento mental e o evento físico são idênticos, a identidade é necessária.
O
materialista
identitativo
particular-particular
não
pode
admitir
a
aparente
possibilidade lógica do evento físico, correspondente ao evento mental, poder ocorrer sem o
evento mental e continuar a partir daqui.
O materialista identitativo particular-particular pode argumentar que o evento mental e
o evento físico são idênticos, mas a propriedade de ser uma dor é uma propriedade
contingente do evento mental.
Segundo Kripke, dificilmente o materialista identitativo particular-particular pode
argumentar que a propriedade de ser uma dor é uma propriedade contingente do evento
mental, pois a propriedade de ser uma dor é uma propriedade necessária de cada dor.
O materialista identitativo particular-particular pode argumentar que o evento mental e
o evento físico são idênticos, mas a propriedade de ser uma sensação é uma propriedade
contingente do evento mental, pois parece logicamente possível que o correspondente evento
físico pode ocorrer sem qualquer sensação com a qual seja plausivelmente identificado.
No entanto, alega Kripke, considere-se o evento mental ocorrente no instante de tempo
t, ou outra sensação. O evento mental, ocorrente no instante de tempo t, ou outra sensação,
não pode ocorrer sem ser uma sensação, da mesma maneira que um certo inventor (por
exemplo, Franklin) pode existir sem ser um inventor.
Logo, segundo Kripke, a estratégia adoptada pelo materialista identitativo particular-particular, que consiste em dizer que a propriedade de ser uma dor e a propriedade de ser
uma sensação são propriedades contingentes do evento mental, ocorrente no instante de
tempo t, não é bem sucedida.
Kripke menciona esta estratégia por lhe parecer ser a estratégia que melhor
caracteriza a argumentação materialista identitativa particular-particular.
A suposta identidade numérica entre o evento mental e o correspondente evento físico
é, segundo o materialista identitativo particular-particular, para ser analisada segundo o
paradigma da identidade contingente entre Benjamin Franklin e o inventor das bifocais.
O materialista identitativo particular-particular argumenta que, tal como é a actividade
contingente que faz Benjamin Franklin ser o inventor das bifocais, é alguma propriedade
contingente do evento físico que faz o evento físico ser o evento mental.
A propriedade contingente do evento físico, que faz o evento físico ser o evento
mental, não é uma propriedade não-física irredutível postulada pelo materialismo identitativo
particular-particular, é, geralmente, para o materialista identitativo particular-particular, uma
propriedade estável em termos físicos ou, ao menos, tópico-neutral.
Analisar a propriedade de ser uma dor, propriedade do evento físico, em termos de
papel causal do evento físico, em termos dos estímulos característicos (por exemplo, uma
picada de alfinete) que o causam e dos comportamentos característicos que causa é típico do
materialismo identitativo particular-particular (por exemplo, Armstrong e Lewis).
O materialista identitativo particular-particular não deixa, no entanto, de defender,
através da análise da propriedade de ser uma dor, propriedade do evento físico, em termos de
papel causal do evento físico, que o papel causal do evento físico é uma propriedade
contingente do evento físico e, logo, não deixa de supor que o papel causal do evento físico é
uma propriedade contingente do evento físico que é o evento mental.
Ora, é absurdo supor que a dor que eu sinto agora pode ocorrer sem ser um evento
mental. É absurdo supor que o evento físico não é um evento físico, pois é um evento mental e
é absurdo supor que o evento mental não é um evento mental, pois é um evento físico.
A análise da propriedade de ser uma dor, propriedade do evento físico, em termos de
papel causal do evento físico reduz-se a um absurdo, independentemente do que de erronéo
possa encontrar-se em termos específicos na análise da propriedade de ser uma dor em
termos de papel causal do evento físico.
O argumento que depende da intuição segundo a qual parece possível que o evento
mental, o portador de propriedades mentais como a propriedade de ser uma dor, pode ocorrer
sem que o evento físico, o portador de propriedades físicas como a propriedade de ser uma
estimulação das fibras-C, que corresponde ao evento mental, o portador de propriedades
mentais como a propriedade de ser uma dor, ocorra consiste no seguinte género de
considerações.
Considere-se o evento mental, o portador de propriedades mentais como a
propriedade de ser uma dor, por exemplo uma dor que alguém sente no instante de tempo t, e
considere-se o correspondente evento físico, o portador de propriedades físicas como a
propriedade de ser uma estimulação das fibras-C, por exemplo uma estimulação das fibras-C de alguém no instante de tempo t.
Parece possível que o evento mental, correspondente ao evento físico, pode ocorrer
sem o evento físico.
O materialismo identitativo particular-particular não é consistente com a aparente
possibilidade do evento mental, correspondente ao evento físico, poder ocorrer sem o evento
físico.
O materialismo identitativo particular-particular não é consistente com a aparente
possibilidade de alguém sentir alguma dor sem o correspondente evento físico.
O materialismo identitativo particular-particular não é consistente com a aparente
possibilidade de D poder ocorrer sem F.
Se D = F, então nem D pode ocorrer sem F, nem F pode ocorrer sem D, pois são uma
e a mesma coisa, pelo princípio da necessidade da identidade.
Se o evento mental e o evento físico são idênticos, a identidade é necessária.
O
materialista
identitativo
particular-particular
não
pode
admitir
a
aparente
possibilidade do evento mental, correspondente ao evento físico, poder ocorrer sem o evento
físico e continuar a partir daqui.
O materialista identitativo particular-particular pode argumentar que o evento mental e
o evento físico são idênticos, mas a propriedade de ser um evento físico é uma propriedade
contingente do evento físico.
O materialista identitativo particular-particular não pode, segundo Kripke, argumentar
que a propriedade de ser um evento físico é uma propriedade contingente do evento físico,
pois a propriedade de ser um evento físico é uma propriedade necessária do evento físico, é
(evidentemente, diz Kripke) uma propriedade essencial de F.
Não só a propriedade de ser um evento físico é uma propriedade essencial do evento
físico, como a propriedade de ser um evento físico de um tipo específico é uma propriedade
essencial do evento físico.
A configuração das células cerebrais cuja presença num dado instante de tempo t
constitui a presença do evento físico, de F, é essencial ao evento físico, uma vez que na
ausência da configuração das células cerebrais cuja presença num dado instante de tempo t
constitui a presença do evento físico, de F, o evento físico não ocorre.
O materialista identitativo particular-particular precisa de argumentar que o evento
mental, D, não pode ocorrer sem um tipo específico de configuração de moléculas.
Se a relação entre o evento mental e o evento físico é a relação de identidade
numérica, então o materialista identitativo particular-particular precisa de argumentar que a
relação de identidade é necessária, que qualquer propriedade essencial do evento mental tem
que ser uma propriedade essencial do evento físico.
O materialista identitativo particular-particular não pode aceitar simplesmente a intuição
cartesiana de que o evento mental pode ocorrer sem o correspondente evento físico, de que o
evento mental pode ocorrer sem que o evento físico, que corresponde ao evento mental,
ocorra.
O materialista identitativo particular-particular não pode aceitar simplesmente que a
presença correlativa de alguma coisa com propriedades mentais com o evento físico é
meramente contingente e não pode aceitar simplesmente que a presença correlativa de
alguma coisa com propriedades físicas específicas com o evento mental é meramente
contingente.
A estratégia a adoptar pelo materialista indentitativo particular-particular para a defesa
da identidade numérica entre o evento mental e o evento físico ser bem sucedida consiste,
segundo Kripke, em explicar as intuições modais, as intuições cartesianas, mostrando que são
ilusórias.
Bibliografia
FOSTER, John, “The Token-identity Thesis”, WARNER, Richard and SZUBKA, Tadeusz
(ed.), The Mind-Body Problem-A Guide to the Current Debate,
Blackwell Publishers Inc., 1996, pp. 299-310.
KRIPKE, Saul A., Naming and necessity, Cambridge, Massachusetts, Harvard University
Press, 1980. Em particular, pp. 146-148.
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