UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE LETRAS ENTRE O CONHECER E O REPRESENTAR: PARA UMA FUNDAMENTAÇÃO DAS PRÁTICAS SEMIÓTICAS E DAS PRÁTICAS LINGÜÍSTICAS HUGO MARI 2 Hugo Mari Entre o conhecer e o representar: para uma fundamentação das práticas semióticas e das práticas lingüísticas Tese apresentada ao Curso de Pós-graduação em Estudos Lingüísticos, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de doutor em lingüística. Área de concentração: Lingüística Linha de pesquisa: Lingüística Textual e Análise do Discurso Orientador: Prof. Dr. Júlio César Machado Pinto BELO HORIZONTE 1998 3 SUMÁRIO RESUMO................................................................................................... 06 ABSTRACT............................................................................................... 07 ÍNDICE DE FIGURAS ............................................................................. 08 INTRODUÇÃO.......................................................................................... 09 A PRIMEIRIDADE COMO EXPERIÊNCIA COGNITIVA ..................... 15 1.1 Considerações iniciais ................................................................................. 16 1.2 O que é primeiridade em Peirce .................................................................. 16 1.3 O que é uma qualidade de sensação ............................................................. 19 1.4 Primeiridade versus Racionalidade .............................................................. 25 1.4.1 Padrões de racionalidade .................................................................. 24 1.4.2 Primeiridade como modelo de racionalidade .................................... 28 1 1.5 Considerações finais .................................................................................... 34 2 A SEGUNDIDADE COMO FORMAÇÃO CONCEITUAL ....................... 40 2.1 Alguns aspectos da segundidade em Peirce.................................................. 41 2.2 Segundidade e formação de conceitos.......................................................... 45 2.3 Segundidade e modelos de atomização conceitual ....................................... 47 2.3.1 Predicação........................................................................................ 47 2.3.2 51 Composicionalidade......................................................................... 2.4 Segundidade e modelos de categorização conceitual .................................... 62 2.4.1 Teoria dos Conjuntos ....................................................................... 63 2.4.2 Fuzzy Set Theory (FST) ................................................................... 68 2.4.3 Teoria dos Protótipos (TP) ............................................................... 77 4 2.5 Considerações finais .................................................................................... 88 3 91 A TERCEIRIDADE COMO REPRESENTAÇÃO CONCEITUAL............. 3.1 Considerações preliminares ......................................................................... 92 3.2 O conceito de terceiridade .......................................................................... 93 3.3 Estruturação da tipologia dos signos ........................................................... 102 3.3.1 Representação Lingüística x representação semiótica ....................... 103 3.3.2 Determinantes da representação: tipologias x relações lexicais/sintagmáticas. ........................................................................ 114 3.3.3 Determinantes da representação: tipologias x classes, tipos, indivíduos......................................................................................... 125 3.3.4 Determinantes da representação: tipologias x funções proposicionais / discursivas. ........................................................... 131 3.3.4.1 Funções proposicionais........................................................ 131 3.3.4.2 Funções discursivas ............................................................. 143 3.4 Considerações finais ................................................................................... 152 4 156 PRAGMATISMO E ANÁLISE DOS PROCESSOS ENUNCIATIVOS... 4.1 Considerações iniciais................................................................................. 157 4.2 Conceito de pragmatismo........................................................................... 159 4.3 Pragmatismo e processos enunciativos........................................................ 166 4.3.1 Pragmatismo e Teoria dos Atos de Fala .......................................... 170 4.3.1.1 Pragmatismo e direção de ajustamento.................................. 178 4.3.1.1.1 Direção de ajustamento: PALAVRA-A-MUNDO.................. 180 4.3.1.1.2 Direção de ajustamento: MUNDO-A-PALAVRA................... 181 5 4.3.1.1.3 Direção de ajustamento: DUPLA DIREÇÃO.......................... 182 4.3.1.1.4 Direção de ajustamento: DIREÇÃO NULA........................... 184 4.3.1.2 Pragmatismo e características de uma força ilocucional........ 4.3.1.2.1 185 Pragmatismo e pontos de realização de uma força ilocucional .................................................................... 186 Pragmatismo e modos de realização de uma força ilocucional..................................................................... 188 4.3.1.2.3 Pragmatismo e condições de conteúdo proposicional ..... 192 4.3.1.2.4 Pragmatismo e condições preparatórias........................... 195 4.3.1.2.5 Pragmatismo e condições de sinceridade......................... 198 4.3.1.2.2 4.3.1.3 Observações complementares................................................ 202 4.3.2 Pragmatismo e lugares enunciativos.................................................. 205 4.3.2.1 A proposta da semiolingüística ............................................. 206 4.3.2.2 Funcionamento do processo enunciativo: análise de casos...... 210 4.3.2.3 Observações complementares ............................................... 227 4.4 Considerações finais ................................................................................... 228 5 235 CONCLUSÃO ............................................................................................ 5.1 Percepção e estruturação conceitual.............................................................. 237 5.2 Razão e ação ................................................................................................ 248 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 257 6 RESUMO O presente trabalho investiga alguns parâmetros conceituais, desenvolvidos pelas disciplinas semiótica e semântica, sobre estágios de formulação, de representação e de aplicação do conhecimento. Na primeira etapa, o estágio inicial da análise avaliou o papel atribuído ao percepto e à qualidade de sensação, conforme orientação proposta por Peirce na primeiridade, considerando-se a possibilidade de a estrutura e a função constituírem-se em critérios operacionais da percepção. Assim, percepto e qualidade de sensação constituem dois padrões básicos que orientam os sujeitos no domínio perceptual da realidade, os quais, associadas a critérios estruturais e funcionais, podem projetar manifestações conceituais básicas. O estágio seguinte, estimou, na extensão da segundidade, aspectos da construção cognitiva, operados pelo confronto entre objetos. Tais aspectos foram especificados, através de princípios de atomização conceitual − predicação e composicionalidade − e de princípios de classificação conceitual − pertinência clássica, difusa e prototípica. O confronto, em associação com os parâmetros usados para especificá-lo, constituiu-se, então, no fundamento para elaboração dos primeiros contornos de uma experiência, que transita da mera sensação para princípios de formulação e de categorização conceitual. O último estágio contrastou o processo de representação semiótica, erigido na terceiridade, com alguns padrões representativos para produzir a significação lingüística, destacando-se, dentre os padrões, propriedades lexicais e relações sintagmáticas. investigação confirmaram aspectos Os resultados da diferenciais entre representação semântica e representação semiótica , já que o modo pelo qual se concebem efeitos de sentido na semântica, através de relações e propriedades sintagmáticas e lexicais, difere da sua concepção na semiótica, que concebe tais efeitos através de funções-signo. Na última etapa, investigou-se a possibilidade de um avanço na compreensão do pragmatismo, como instância de racionalização de condutas práticas, através do apelo a uma feição instrumental do seu funcionamento. Dois modelos, voltados para análise da construção de atos lingüísticos no processo enunciativo, foram utilizados como caracterização funcional e conceitual do pragmatismo. 7 ABSTRACT We have investigated some conceptual parameters, developed in studies of semiotics and semantics, concerning the construction of knowledge, its representation and its application. First and as in initial step, we have searched for the role of the percept and that of the quality of sensation, according to Peirce’s concept of firstness. We have also added to the discussion the possibility for the concept of structure and the concept of function to set up operational criteria of perception. The percept and the quality of sensation concern themselves with two basic patterns that lead us to a perceptual mastering of reality. Therefore, these two patterns, in association with structural and functional criteria, can produce basic conceptual manifestations. In the next step which deals with secondness, we have considered aspects of the cognitive construction springing out of the object. Such aspects were determined by the principles of conceptual atomization - predication and compositionality -, and by the principles of conceptual classification - classical, fuzzy and prototypical implications. The contrast between objects, associated with parameters to specify them, is at the core of the question of how the perceptual experience works. Moreover, this constrast is responsible for the moving over from sensation to the principles of conceptual formulation and categorization. In the last step, we have contrasted the representational process of semiotics, as it appears in thirdness, with some aspects of the representational process of linguistic, stressing lexical properties and syntactic relations. As the investigation was carried out, semantic representation and semiotic representation were shown to be different. The former builds meaning effects up from lexical and syntactic properties and relations, while the latter builds them up through sign-functions. Finally, we have tested the posssibility of a more accurate understanding of pragmatism, by showing that it has, as a presupposition, a rational set of behaviours and also the way they work. Two models sharing principles of speech acts construction were evaluated to describe pragmatism from a functional and a conceptual point of view. 8 ÍNDICE DE FIGURAS Fig. 1: Quadro de relações sígnicas ......................... p. 105 Fig. 2: Relações interlocutivas básicas ..................... p. 207 Fig. 3: Relações interlocutivas contextuais .............. p. 208 Fig. 4: Componentes do ato de linguagem ............... p. 209 Fig. 5: Ato de linguagem: denúncia ......................... p. 211 Fig. 6: Ato de linguagem: justificativa ..................... p. 215 Fig. 7: Ato de linguagem: reclamação ..................... p. 218 Fig. 8: Ato de linguagem: desprezo ......................... p. 221 Fig. 9: Ato de linguagem: equívoco ......................... p. 224 9 INTRODUÇÃO 10 INTRODUÇÃO A análise que desenvolvemos no presente trabalho visou, como proposta geral, a uma reflexão sobre algumas das formulações conceituais, desenvolvidas por duas disciplinas − semiótica e semântica1 −, em torno de um mesmo objeto de estudo: os processos de significação na sua extensão mais ampla. O suporte conceitual de análise entre as duas disciplinas fundamentou-se, do lado da semiótica, na reflexão de Peirce, da qual destacamos quatro aspectos, a saber, primeiridade, segundidade, terceiridade e pragmatismo, que entendemos constituírem-se num itinerário que recobre a atividade humana da sua forma mais elementar de percepção até padrões elaborados de aplicação. Em relação à semântica, recorremos a formulações básicas que se destacaram em diversas abordagens, a partir do estruturalismo. Retomamos princípios de atomização conceitual − predicação e composicionalidade − na sua forma mais genérica e princípios de classificação conceitual − pertinência clássica, difusa e prototípica − que, em conjunto, retratam parte das alternativas propostas aos desafios de construção de uma teoria semântica. À primeira vista, embora ambas as disciplinas estivessem centradas num formato único de objeto de estudo, nem sempre traçaram o mesmo caminho de análise, ora se distanciando pelas preocupações com fundamentos teóricos, ora se aproximando pela recorrência comum ao aparatus formal de base. Se o objetivo final desse esforço ressalta a necessidade de se explicarem efeitos das práticas simbólicas, erigiram-se padrões formais diferenciados para realizá-lo. Nem sempre, todavia, o cotejo entre um e outro enfoque revelou para nós uma correspondência teórica de simetria. Assim, para viabilizar tal cotejo, caminhos diversos foram traçados na avaliação de exemplos, vestígios alternativos foram 1 Embora em relação à lingüística não existam dificuldades localizadas em termos de um recorte próprio de certo tipo de objeto representativo do campo da semântica, o mesmo não parece claro nos textos que serviram de base para apurar o trabalho da semiótica. Nos textos consultados, Peirce não destaca o termo semiótica: em nenhum desses momentos o termo ilustra qualquer título, subtítulo ou item específico de capítulos e partes dos textos. É evidente que a ausência do termo não significa diretamente ausência do teor conceitual que ele representa. Além do mais, PEIRCE (1977, p. 45) considera a semiótica apenas uma parte da lógica, daí a ausência do termo: “... Em seu sentido geral, a lógica é, como acredito ter mostrado, apenas um outro nome para semiótica (σηµειωτυκη), a quase-necessária ou formal doutrina dos signos.” Por essa razão, mantivemos o termo. Na extensão, porém, em que assumimos o texto do autor, a idéia de uma teoria do conhecimento parece muito mais apropriada. 2 A doutrina é lembrada em favor da segundidade nos seguintes termos: “Qualquer filósofo que negue a doutrina da Percepção Imediata – incluindo idealistas de todas as faixas – corta para sempre a possibilidade de conhecer uma relação.” (PEIRCE, 1980, p. 22) 11 selecionados na tarefa de caracterizar procedimentos capazes de justificar o nosso comportamento diante de um universo de objetos a significar. Se de um lado a semântica buscou uma reflexão específica sobre o problema do sentido, captando aspectos de sua constituição, de sua organização e de sua formalização em sistemas naturais, a semiótica rastreou lugares diferentes para refletir, de forma mais abrangente, instâncias diversas da atividade de compreensão dos objetos. Se as duas abordagens se distanciam, portanto, no alcance do seu método, elas certamente se aproximam pela forma complementar que assumem diante dos objetos-signos que compõem o universo de intervenção de cada uma, isto é, o desafio de justificativa para a percepção e a representação do conhecimento. Pensadas nessa extensão, a atividade semiótica e a atividade semântica convergem para uma relação mais ampla, que pode ser expressa na forma de condições que definem princípios e procedimentos constitutivos de nossa atividade cognitiva. Desse modo, ambas utilizam-se de procedimentos de análise que não são exteriores à nossa atividade cognitiva, mas antes são formas e estratégias que espelham aspectos da construção do nosso entendimento sobre os fatos. As questões que envolvem, portanto, a correlação entre semântica e semiótica, na dimensão acima referida, foram desenvolvidas em quatro capítulos específicos, adotando-se como ponto de partida as categorias propostas por Peirce, selecionadas como um roteiropadrão para os problemas a serem analisados. Em cada um dos capítulos, procuramos, de início, recompor, a partir da formulação desse autor, certos aspectos conceituais da categoria em análise, relevantes para a avaliação a ser desenvolvida. Na seqüência, procuramos introduzir outras dimensões teóricas, outros roteiros conceituais a partir da semântica, ou mesmo outros padrões formais, oriundos de disciplinas diversas, os quais servissem de respaldo, não só para contrastar com as posições de Peirce, como também para completá-las. Na medida do necessário e quando apropriado, apresentamos casos e exemplos como justificativa da análise em questão. Vejamos, então, os parâmetros de avaliação que orientaram cada capítulo. No primeiro capítulo, intitulado A primeiridade como experiência cognitiva, tentamos resgatar a categoria primeiridade, enfatizando os critérios apontados por Peirce como necessários à atividade de percepção. Na sua retomada, destacamos o conceito de percepto e o de qualidade de sensação, como dois procedimentos que comandam a nossa atividade perceptual. O primeiro especifica a forma que define o nosso acesso aos objetos e o segundo caracteriza o que retemos da atividade primeira de agir sobre os objetos. Ao longo da 12 nossa discussão, procuramos investigar o funcionamento desses dois conceitos, indagando sobre a possibilidade de eles, ainda que como princípios de percepção sensorial, virem a se constituir, nas condições primeiras dos processos de formação conceitual. A confluência entre os dois estágios de funcionamento da percepção − a atuação do percepto e a retenção de qualidades de sensação − conduziu-nos a especular sobre primeiridade como um padrão de racionalização, implementada a partir da discussão que Monod propõe para as categorias função, estrutura, repetição e regularidade. Pela análise desenvolvida, avaliou-se a possibilidade de a função e a estrutura representarem dois padrões básicos que orientam os sujeitos no domínio conceitual da realidade, integrando-se ambas, portanto, ao plano da primeiridade, como manifestação conceitual primitiva. No segundo capítulo, ‘A segundidade como formação conceitual’, resgatamos os textos de Peirce, com o objetivo de reconstruir alguns aspectos da segundidade, principalmente aqueles voltados para o problema da formação de conceitos. Ao definir tal categoria, Peirce recorre, sobretudo, ao conceito de confronto (struggle), através do qual procura determinar um modo, relativamente uniforme, de os sujeitos operarem na realidade. O confronto constitui-se, então, o fundamento para elaboração dos primeiros contornos de uma experiência, que deixa de ser mera sensação, para figurar como princípio de formulação e de categorização conceitual. O contraste a que submetemos a segundidade decorreu do uso de diversos formatos de análise conceitual que foram propostos ou implementados no campo da semântica ou em áreas afins, todos orientados como princípios de organização e de estruturação do conhecimento. Os principais modelos de estruturação foram discutidos com base na perspectiva da atomização conceitual, seja na forma da predicação, seja na forma da composicionalidade, e na perspectiva da classificação conceitual, incluindo uma avaliação que transitou da teoria dos conjuntos, passando pela fuzzy set logic, até a teoria dos protótipos, objeto central nessa perspectiva de análise. Verificou-se, portanto, que a abordagem semântica pode contribuir, apesar dos impasses observados, para explicitar critérios de operacionalização formal para a segundidade. O terceiro capítulo, ‘A terceiridade: como representação conceitual’, investigou a construção geral da arquitetura do signo proposta por Peirce, mormente nos aspectos de maior relevância para a análise desenvolvida. Dada a importância e a extensão que o autor atribui à categoria, decidimos, então, pela seleção de alguns aspectos que não apenas preservassem o 13 teor de representação, inscrito nas várias tipologias propostas para o signo, como também assegurassem uma proximidade natural com problemas de sentido. Assim, desconsideramos outra possibilidade de análise da categoria, que implicaria avançar sobre o teor tipológico das classes e subclasses de signos. Ao impormos, portanto, essa restrição à amplitude da terceiridade; optamos por selecionar uma dimensão que nos possibilitasse compreender certa organicidade da representação, a sua forma constitutiva e os seus fundamentos. Depois de explorar a fundamentação conceitual da função de representar, priorizamos algumas categorias lingüísticas como relações e propriedades lexicais e relações sintagmáticas para contrastá-las com valores conferidos aos signos no plano semiótico. No cotejo referido, as categorias usadas não fizeram alusão a nenhuma teoria de modo particular e foram empregadas, na condição de fenômenos recorrentes nos processos lingüísticos. Além do mais, utilizamos proposições e fatos que se prestaram à sustentação do caráter específico de funcionamento da representação em semiótica e em semântica, no corpo desse trabalho. A análise formulada confirmou, então, aspectos de incompatibilidade entre uma e outra disciplina, já que o modo pelo qual os efeitos de sentido são produzidos por funções-signo pode diferir da forma como concebemos esses efeitos no compartilhamento de relações e propriedades sintagmáticas e lexicais. No capítulo quarto, ‘Pragmatismo e análise dos processos enunciativos’, recorremos aos textos de Peirce, objetivando com sua análise determinar especificações teóricas e a extensão operacional da categoria. Numa concepção mais ampla, Peirce pretende que o pragmatismo seja um instrumento capaz de mostrar que a concepção final dos nossos objetos conceituais confunde-se com os efeitos práticos que deles derivamos. Assim, o fundamento essencial do pragmatismo recobre, não só uma dimensão representada pelo conjunto dos efeitos que resultam das nossas condutas, bem como uma dimensão que contém as possibilidades da fixação de critérios capazes de prover justificativas racionais para essas condutas. Esse cenário desenhado como suporte do pragmatismo obriga-nos a introduzir outros padrões conceituais, já que as dimensões de análise lingüística, concernentes ao campo da pragmática, extrapolam, ao menos em parte, o alcance que vínhamos atribuindo a categorias semânticas. Dois modelos, voltados para questões no plano da enunciação, foram utilizados como tentativa para abranger, de modo adequado, as duas exigências que Peirce impôs ao pragmatismo. Por essa razão, acionamos, como suporte para sua explicitação, a teoria dos atos de fala e as propostas da Semiolingüística sobre a estrutura do quadro 14 enunciativo. Pela amplitude das abordagens, optamos apenas por um recorte suficiente para verificar como os enfoques recentes, no campo dos processos enunciativos, podem constituirse em instrumentos necessários à compreensão do pragmatismo. Pela análise realizada, constatou-se que atos de fala e atos de linguagem, na dimensão abordada, podem representar contribuições importantes para justificar o pragmatismo formal e funcionalmente. Registramos, no capítulo final, ‘Conclusão’, uma reflexão geral sobre toda investigação desenvolvida, retomando aspectos complementares, que se ajustaram, em conjunto, a uma visão global da análise realizada. Concebemos, num primeiro momento dessa síntese, ‘Percepção e estruturação conceitual’, a necessidade de aglutinar os procedimentos e as categorias incluídas nos três primeiros capítulos, ressaltando dificuldades na concepção independente dos padrões analisados. Considerações adicionais aos parâmetros desenvolvidos na análise dos capítulos foram desenvolvidas, buscando efetivar a integração sugerida. O segundo momento, ‘Razão e ação’, evidenciou a importância das convenções e das intenções, duas categorias destacadas nos processos enunciativos considerados, como diretrizes efetivas da ação racional. Comentários complementares ressaltaram o valor que ambas devem assumir nas circunstâncias sociais em que mediamos nossas ações através da linguagem. 15 Capítulo I A Primeiridade como Experiência Cognitiva 16 1 A PRIMEIRIDADE COMO EXPERIÊNCIA COGNITIVA 1.1 Considerações iniciais O nosso objetivo neste estudo é retomar alguns aspectos básicos da formulação de PEIRCE (1980) sobre a primeiridade, tentanto avaliá-los como um conjunto de critérios, adequados para a composição de um quadro geral de justificativa do conhecimento, destacando as razões primeiras que levam à percepção e à apreensão de um determinado fato ou objeto. Assim, a partir de parte dos parâmetros que foram utilizados pelo autor para traçar esta etapa da teoria, pretendemos uma avaliação que seja capaz de confrontá-los com outros padrões e concepções recentes, utilizados para justificar o modo pelo qual a percepção dos objetos se efetiva, a maneira pela qual os procedimentos de categorização da realidade são concretizados na prática diária de construção do conhecimento. Neste contraste, estaremos recorrendo a formulações de MONOD (1971), a partir das categorias regularidade, repetição, projeto e função, na tentativa de determinar algum padrão de racionalidade implicado na formulação de Peirce. 1. 2 O que é primeiridade em Peirce Ao caracterizar a primeiridade como suporte original para qualquer processo de conhecimento da realidade, Peirce aponta-lhe, como condição fundamental, o fato de ela operar sem qualquer auxílio de procedimentos de mediação. Infere-se, desta colocação inicial, que a nossa postura diante dos acontecimentos depende mais do modo pelo qual, através dos sentidos, nos expomos a eles, do que de qualquer procedimento de elaboração intelectiva. PEIRCE (1980) comenta: 17 “São três as faculdades com que devemos munir-nos para esta tarefa. A primeira e principal é a qualidade rara de ver o que está diante dos olhos, como se apresenta, não substituído por alguma interpretação...” (p. 17). Esta formulação já localiza a categoria central, a partir da qual a concepção da primeiridade estará sujeita: trata-se de demonstrar que todas as operações afeitas a esta instância da Teoria vinculam-se diretamente à noção de qualidade e excluem, por princípio, qualquer dimensão representativa. Entretanto, o que decorre da prevalência desta qualidade ainda nos parece genérico em demasia, seja pelo teor fenomenista irrestrito “ver o que está diante dos olhos”, seja por um suposto objetivismo”como se apresenta”, seja pela ausência de padrões específicos dentro dos quais nossos sentidos deveriam ser orientados a operar. Diante desse caráter ainda impreciso, é importante recorrer a sua reflexão para buscar elementos que possam precisar formas de operação desta primeira faculdade. Assim, registramos algumas indagações iniciais, em torno das quais estaremos orientando a discussão da primeiridade. O que retemos deste contato incipiente de nossos sentidos (a visão é apenas a mais privilegiada) com os objetos? Para que aspectos do objeto a nossa sensação se dirige no momento de sua apreensão ? Como convertemos os fatos aqui determinados em instâncias operacionais para outras faculdades ? Os fatos aqui levantados têm, certamente, um alcance muito amplo. E, com toda certeza, não se pode supor um único padrão dentro do qual caberiam respostas apropriadas a todas estas questões. O próprio autor (PEIRCE, 1980), todavia, encarrega-se de fixar alguns parâmetros para os problemas aqui levantados: “Em suma, qualquer qualidade de sensação, simples e positiva, preenche a nossa descrição daquilo que é tal como é, absolutamente sem relação com nenhuma outra coisa. ‘Qualidade de sensação’ é a verdadeira representante psíquica da primeira categoria do imediato em sua imediatidade, do presente em sua presentidade. (...)”(p. 18). Aqui temos critérios que estariam, pois, no núcleo desta primeira experiência do saber. Segundo o texto, ainda não manipulamos, neste momento, qualquer forma conceitual mais estruturada; uma forma de conhecimento provida de uma qualidade de sensação expõe nossa atividade perceptiva diante de uma “descrição daquilo que é tal como é”, como ainda 18 expressa no fato de que a validade das nossas sensações ainda se traduz, de forma fragmentada, pelo registro da presentidade dos objetos, isto é, a imediatidade com que somos por eles tocados e surpreendidos, independente de algo mais que deles possa ser extraído. Assim, é em razão do fato de sermos tocados pelos objetos que reside, exatamente, a existência de uma qualidade de sensação (visual, ótica, táctil...), diferentemente de qualquer princípio de elaboração que a compreensão possa determinar. Para se compreender um objeto, torna-se necessário o mínimo de distanciamento, de intervalos temporais entre as fases de um processo cognitivo, como um determinante para que se possa operar na configuração de qualquer padrão estrutural. PEIRCE (1980) ainda reitera, em outras circunstâncias, a importância do tempo presente neste estágio da formulação: “Quando algo se apresenta ao espírito, qual é a primeira característica que se nota (...)? A sua presentidade, certamente. (...) O presente (imediato) é o que é, não determinado pelo ausente, passado e futuro.” (p.18). A presentidade descarta, portanto, uma distância cronológica mínima entre o usuário e o objeto da experiência e, em conseqüência, a sua retenção na linha do tempo, suportes necessários a qualquer forma de elaboração conceitual. Isso não implica supor, porém, que toda experiência sensorial se dilui com a presentidade (a não ser enquanto sensação única do presente); ela acaba por escoar para a segundidade, onde é retida na linha do tempo e onde se torna apta a uma elaboração conceitual. Por seu lado, a imediatidade recusa formas de mediação, simuladas por algo que fazemos intervir entre a atividade de apreender e o seu resultado, isto é, a compreensão. Peirce não usou o termo, mas os fenômenos da primeiridade, assim descritos, pertencem à ordem do acontecimento: eles acontecem e deixam de acontecer numa presentidade que não pode ser retida, a não ser quando registrados ou historicizados numa perspectiva estruturante. Aí, todavia, já não estamos mais na primeiridade, pois a estrutura já nos permite abordar o ausente: com ela reativamos a memória, no recuo ao passado ou na projeção para o futuro. O recurso à memória é estranho à primeiridade, ela não pode ter memória, pois é só imediatidade e só presentidade, dimensões excessivamente efêmeras ao primado do conceito e da estrutura. É neste momento, e em razão do peso que lhe atribui, que o autor se opõe a Hegel, descartando qualquer inclusão dos fenômenos da presentidade na esfera do abstrato, padrão, certamente, relevante para a formação de conceitos. PEIRCE (1980) e parece optar por um certo realismo sensorial, quando afirma: 19 “A palavra dele [Hegel] é imediatidade. Afirmar, contudo, que a presentidade, a presentidade como está presente, a presentidade presente, é abstrata, Ser Puro, é falsidade tão aberrante que apenas se pode dizer que a teoria de Hegel segundo a qual o abstrato é mais primitivo que o concreto tornou-o cego para aquilo que tinha diante dos olhos. Olhemos o céu lá fora como se apresenta à visão do artista. Será o modo poético assim tão abstrato e incolor ?” (p. 18). Neste contraste com Hegel, o autor demarca uma terceira instância onde a primeiridade deva ser inscrita: apesar de sua amplitude, ela descreve fatos da experiência concreta dos sujeitos. O que nela acontece são as sensações que retemos ao experimentar os objetos: aqui tudo é primitivo, pelo caráter sempre inaugural (presente) da exposição ou da surpresa, mas nada é abstrato, em razão do fato de se tratar de uma qualidade de sensação, como um padrão cognitivo, orientador da nossa experiência. Como podemos, então, compreender, de modo mais específico, a idéia de qualidade de sensação ? É possível determinar-lhe algum padrão de funcionamento ? Como pensar um padrão possível de orientação dos nossos sentidos na primeiridade ? Por último, as operações ao nível da primeiridade supõem algum princípio de racionalidade ? 1.3 O que é uma qualidade de sensação O alcance que Peirce dá à qualidade de sensação, de fato, faz dela um princípio de fundamentação da primeiridade, pois é aquela a condição necessária para o funcionamento desta. Além do mais, a qualidade de sensação torna-se um princípio de eficiência perceptiva, em razão das determinações que lhe são importas pela imediatidade, pela presentidade e, até mesmo, pela concretude. Se esta compreensão é válida, precisamos, então, reunir argumentos para justificá-la de modo mais racional, aparando algumas arestas de natureza intuitiva ainda prevalentes. A posição do autor, todavia, é um tanto embaraçosa, mas não absolutamente fechada, a ponto de vir a bloquear qualquer tentativa de racionalização. Assim, ao refutar a crítica de um dos seus interlocutores sobre o teor de ininteligibilidade de suas categorias (primeiridade e segundidade é que estavam em questão), PEIRCE (1980) comenta: 20 “Contudo V. admitiu agora mesmo que a minha chamada sensação de esforço envolve uma peculiar qualidade-sensação. Mas esta também não é inteligível. Ninguém menos que ela. Podemos senti-la, mas compreendê-la ou expressá-la numa fórmula geral está fora de questão. Assim, parece que ininteligibilidade não é suficiente para destruir ou refutar uma Categoria. (...) Pode ainda argumentar-se que a ininteligibilidade da Qualidade-Sensação é de cariz privado muito diferente da nãointeligibilidade agressiva e brutal da ação-desprovida-de-lei - e a réplica será - e que se a inteligibilidade for uma categoria, não é surpreendente mas antes inevitável que outras categorias se achem em diferentes relações com esta.” (p. 20). De início, é importante ressaltar, no trecho acima, o caráter de recusa a qualquer tentativa de formalizar o domínio da qualidade de sensação em termos da estruturação de regras (“Podemos senti-la, mas compreendê-la ou expressá-la numa fórmula geral está fora de questão.”). Esta recusa do seu enquadramento sistêmico marcou, em linhas gerais, o teor assegurado para a ela, como integrante da primeiridade. Pela natureza das operações conceituais impostas a esta instância da Teoria, da qualidade de sensação não se poderia ter uma expectativa muito diversa: afinal, aqui ainda não dispomos de tempo suficiente nem para elaborar racionalmente, nem para reter qualquer forma de elaboração na memória. Todavia, o senti-la aqui lembrado, em contraposição, abriria espaço para o predomínio de uma intuição absoluta, avassaladora sobre uma razão impossibilitada de agir ? Na primeiridade assistiríamos ao domínio das sensações em franco confronto com a razão ? O próprio autor redimensiona os termos do problema, ao lembrar que o domínio da sensação neste campo não pode ser confundido com a ausência total de qualquer princípio regulador. No registro da citação anterior, encontramos: “Pode ainda argumentar-se que a ininteligibilidade da QualidadeSensação é de cariz privado muito diferente da não-inteligibilidade agressiva e brutal da ação-desprovida-de-lei.” Aqui, o autor descarta que o grau de ininteligibilidade da qualidade de sensação possa vir a ser confundido com ausência total de qualquer princípio regulador: ela não se traduz, portanto, na forma de uma ação destituída de padrões normativos. Se ela, portanto, se contrapõe, em essência, a outros padrões de atuação, qualificados como estágios “agressivos e brutais de uma ação desprovida de lei”, logo é possível discutir em que extensão ela, no seu “cariz 21 privado”, se distancia em qualificação dos padrões mencionados. Esta ressalva de Peirce acaba por recolocar os termos em seu devido lugar: afinal, pela importância conferida à qualidade de sensação, no corpo da Teoria, não poderíamos confiná-la aos caprichos de uma intuição desordenada apenas. Impõe-se-lhe algum procedimento ordenador, capaz de estirpála deste território sem lei e de domínio de uma intuição brutal. Que fatos podem, pois, ser aproximados deste aspecto privado de funcionamento que a primeiridade lhe atribui ? Embora Peirce tenha situado a ”doutrina da percepção imediata” no domínio da segundidade2, estende sua importância também à primeiridade. Quando somos surpreendidos por um objeto (ou por objetos), somos levados a extrair dele(s) uma qualidade de sensação que ainda não é do domínio do eu (de uma consciência individual), mas do não-eu: “... é fato notório que nunca atribuímos uma qualidade-sensação a nós próprios em primeiro lugar. Atribuímo-la primeiro a um Não-Eu e só depois a nós, quando motivos irretorquíveis nos compelem a fazê-lo.” Podemos supor, por exemplo, que a nossa percepção seja surpreendida por um objeto que traduza (numa elaboração a posteriori) a sensação de ‘folha verde’. Na primeiridade, a hipótese de acesso a um tal objeto não poderia ser reconstruída a partir da sua totalidade conceitual, porque aqui já não está em jogo apenas uma qualidade de sensação (ao menos, um complexo de sensações e um complexo de qualidades). Até mesmo no âmbito de uma formulação lógica, trata-se de uma predicação, isto é, de uma estrutura logicamente complexa que requer elaboração; aqui torna-se importante a existência de um lapso de tempo qualquer (diferente da imediatez do presente) para associar essência e acidente. A apreensão de ‘folha verde’ não é instantânea, porque nem mesmo poderia ser considerada como uma relação necessária ou analítica: compreender ‘folha verde’ significa, ao menos da parte da sua estrutura lógica, excluir, de um lado, outras possibilidades concorrentes de predicações para ‘folha’, de outro, objetos predicáveis na cor verde. Estas operações, por seu turno, representam instâncias conceituais que não mais pertencem à ordem de um percepto inaugural, primitivo; elas traduzem alguma orientação conceitual que implica formulação, que já requer tempo de processamento. Entretanto, o fato de nos tornarmos aptos para predicações com o termo ‘verde’ e, certamente com muitos outros que o nosso aparelho perceptual comporta, só é possível, 22 porque, em alguma circunstância, a experiência com a qualidade de sensação de verde ‘verdidão’ - tornou-se factível (em razão, por exemplo, de um funcionamento orgânico compatível do órgão da visão com um certo tipo de pigmentação). A nossa argumentação aqui, ainda que orientada para problemas da primeiridade, inevitavelmente tem se deslocado para a segundidade: a razão desta flutuação é a própria natureza dos fatos em questão. A ‘verdidão’ só se configura como uma sensação, enquanto se situa no campo da experiência sensorial, isto é, enquanto ainda intangível e inefável por quaisquer meios. Assim, ela perdura, enquanto sensação, apenas no lapso de tempo de presentidade. Ao dissipar esta propriedade temporal, dissipa-se também o seu caráter de sensação. Logo, já alcançamos a segundidade e estamos no território da formulação, por isso ela se torna tangível e dizível, isto é, predicável sob a forma de ‘ser verde’. A princípio, então, o valor de ‘verdidão’ compreende tudo o que é comum aos objetos que comportam um certo grau de pigmentação, mensurável por reflexos produzidos na retina ou por comprimento de ondas. Da parte de ‘folha’, como podemos ter acesso a uma qualidade de sensação ? De modo mais tópico, podem-se considerar questões semelhantes para ‘folha’. O que pode ser comum a qualquer objeto dessa natureza que seja capaz de constituir-se numa qualidade de folha ? É necessário à qualidade de folha poder abstrair-se de fatos acidentais ligados à cor, à espessura, ao tipo de tecido, ao tipo de ranhuras, ao tipo de fibramento, ao formato geométrico, ao grau de porosidade, ao tamanho, à época de renovação, ao tempo de decomposição, a propriedades protêicas, ao valor comercial (todas propriedades passíveis de predicação ao objeto em análise)? Por onde começamos a qualidade de sensação com ‘folha’ ? Existe uma qualidade primeira de valor universal ? Se um procedimento de captura das propriedades globais de um objeto se mostra vulnerável de um ponto de vista empírico, já que não é racional o controle de uma suposta totalidade do fenômeno, qualquer processo de seleção tornar-se-ia arbitrário, porque seria impossível determinar um padrão criterial de consenso para definir que aspectos perceptivos de ‘folha’ deveriam ser escolhidos e que outros deveriam ser descartados. Além disso, saltar do domínio do global para conveniências do local significaria correr o risco de um relativismo incontrolável: cada sociedade, cada cultura, cada grupo, cada indivíduo poderia fazer emergir uma qualidade de sensação para esse objeto. Todavia, este argumento, grosso modo, não apresenta nada de destoante. É provável que, de cada um desses lugares da estrutura social, 23 decorra uma essência de ‘folha’, uma qualidade de sensação. Hipóteses semelhantes a essa já foram demostradas para muitas circunstâncias, dentro do relativismo. É também provável que o conjunto desses lugares sustente alguma coisa em comum, assegurando uma dimensão nuclear que perpassa todos eles, já que, empiricamente, se constata a existência de uma relativa uniformidade no trato deste objeto. Do contrário, a nossa experiência com ele resultaria absolutamente desordenada, desencontrada, pelo menos até que viéssemos a adquirir a maturidade de ‘folha’; mas aí certamente já não estaríamos mais na primeiridade. De outro lado, uma sensação como qualidade primeira não pode ser pensada em termos da reunião de todos os fatores aludidos: muitos deles só viemos a entender já num processo tardio, que não era mais o da primeiridade; a outros podemos ainda nem ter tido acesso de uma forma total. Com certeza, muitos deles foram assimilados, gradualmente, e o domínio parcial desta gradação não nos impediu de experimentar ‘folha’. É muito provável a existência de pessoas que tenham experiência com ‘folha’ e que desconheçam o seu valor protêico, as propriedades químicas da sua constituição, o teor do seu fibramento. Então, uma proposta de composicionalidade para os acidentes associados a ‘folha’ não garante a expressão da sua essência e, por isso mesmo, não pode constituir-se numa suposta qualidade primeira. Em conseqüência, ela não pode ser também adequada, como orientação, para se pensar a qualidade de sensação de folha, já que seria impossível supor, nos termos em que conhecemos uma abordagem composicional, que a reunião de categorias pudesse ser justificada a partir da sensação, do percepto. Aqui, portanto, o conceito clássico de composicionalidade, como conjunto de propriedades que expressam condições necessárias e suficientes, não pode ser cogitado como argumento que possa validar os fatos contidos na primeiridade, porque nos faz distanciar, completamente, da forma de conceber esta última. Haveria conveniência, então, em selecionarmos algumas dessas propriedades, dizendo que umas são mais aderentes à natureza de ‘folha’ do que outras e que, portanto, umas estariam mais próximas de um indicador da qualidade de sensação de ‘folha’ ? A questão levantada aponta para a possibilidade e a conveniência de uma decisão sobre a precedência de umas propriedades sobre as outras. Uma questão anteriormente formulada também destacava um problema desta natureza. Qualquer critério de precedência, neste caso, coloca em jogo duas dimensões. Podemos supor formas de precedência temática onde, de fato, algumas propriedades dizem mais sobre a natureza de folha do que outras. 24 Estamos supondo uma precedência de algumas sobre outras, admitindo a existência de um leque preferencial sobre o qual atua o nosso aparelho conceitual, responsável por assegurar um grau de uniformidade elevado no reconhecimento deste objeto. O fato de ser ‘parte de uma árvore deve ter um teor genérico maior do que o fato de ser da cor verde (já que tal atributo pode lembrar apenas um estágio da existência de ‘folha’); de outro lado, esta última propriedade é muito mais estável do que o valor protêico específico, associado a um tipo de folha. É possível supor ainda uma precedência temporal: há algumas propriedades que podem ser assimiladas antes que outras, porque são mais emergentes nos contatos com ‘folha’. Aqui a justificativa tem a mesma natureza da anterior: o fato de ‘folha’ apresentar um teor de percepção relativamente uniforme, mesmo considerando faixas etárias distintas, confirmaria a precedência temporal de algumas propriedades sobre outras. Argumentos desta natureza, certamente, ainda têm um caráter muito intuitivo: de fato, não consta que os integrantes de uma dada sociedade apresentem muitas divergências sobre a forma de concepção de certos objetos usuais; mas não sabermos, com clareza, a extensão deste fenômeno e nem temos mesmo uma forma de acesso direto aos fatos que serviriam para justificá-lo. Qualquer tentativa de avaliação experimental seria pouco representativo, para os propósitos de compreensão da primeiridade. É claro, todavia, que apontar tal fenômeno como algo inerente à ordem de qualidade de sensação não chega a ser uma justificativa razoável. Afinal, nem primeiridade, nem qualidade de sensação são conceitos auto-explicáveis. 1.4 Primeiridade versus racionalidade 1.4.1. Padrões de racionalidade Os padrões de racionalidade com que deparamos ao longo daquilo a que poderíamos denominar uma “arqueologia do saber”, usando uma expressão de Foucault, recortam fenômenos de modo distinto. Assim, de formas meramente especulativas, como a preocupação dos pré-socráticos em determinar um elemento básico da constituição do universo (fogo, água), até formas pragmáticas da utilização de minerais, como todo 25 conhecimento físico-químico, posto em função da construção de artefatos; ou ainda de construtos formais como as Máquinas de Turing e os Autômatos Finitos, até sua aplicação na construção de circuitos de processamento; tudo isso mostra, para recortes possíveis da realidade, um esforço racional para compreendê-los. Se o alcance terminal, para qualquer um dos elos que compõe essa diversidade do saber atual, nos é mais sensível, seja pelo seu valor teleológico, seja pelos padrões de certeza conceitual, de controle empírico que oferecem, nem por isso estamos seguros dos aspectos que envolvem a sua fundamentação, isto é, as condições necessárias à sua própria existência e, até mesmo, ao seu devir. Desse modo, apesar de todo o sucesso industrial do conhecimento que nos é provido a partir da Modernidade, de repente estamos voltando a velhas preocupações ao deparar com indagações como O que é conhecer ? Como representamos aquilo que conhecemos ?, Como o nosso organismo incorpora o conhecimento que temos de um objeto ? Estas questões guardam entre si um certo equivalente, ainda que uma e outra possam apontar para dimensões mais específicas. Todas, no entanto, traduzem parte da perplexidade que continua desafiando o homem na tentativa de extrair, das circunstâncias mais fortuitas, das experiências mais dispersas, algum padrão de racionalidade. Provavelmente, não dispomos, para questões deste teor, de respostas diretas e imediatas: quase sempre precisamos recorrer à construção de uma teoria para poder equacioná-las em alguns de seus aspectos. Isolando a sua natureza metalingüística, fatos como estes integram a nossa existência de modo natural. Para cada dia de vida, somos obrigados a acionar inúmeras teorias, a fim de equacionar uma extrema diversidade de tarefas que desempenhamos: umas mais, outras menos complexas, todas, porém, pautadas por algum princípio racional que lhes associamos. Por exemplo, o que há de racional nos procedimentos físicos para locomover-se por diversos planos (escada, rampa, plano não-inclinado), em contraste com os procedimentos mentais para manipulação de axiomas, regras, processos de inferência na resolução de uma equação matemática ? Ninguém negaria o fato de que ambos os procedimentos compõem-se de atos racionais, porque o contrário nos levaria a supor que qualquer experiência vivida num destes campos não pudesse ser determinante para experiências futuras; além do mais, teríamos que reaprender, todas as vezes em que fôssemos executá-los, os atos correspondentes a cada uma das circunstâncias. Diferenças, entretanto, não podem ser desprezadas e elas costumam ser 26 justificadas em razão do esforço mental dispendido na realização de cada uma das tarefas: no primeiro caso, movimentos de angulação do corpo, tensão muscular, quantidade de força física e o padrão de equilíbrio, já contêm um certo grau de previsibilidade orgânica para cada um dos movimentos (daí a suposição de um esforço mental menor); no segundo caso, ainda não seria possível dizer de uma previsibilidade orgânica para a resolução de um problema matemático, ainda que muitos movimentos intermediários ali executados possam ter esta dimensão (daí a suposição de um esforço mental maior). Para os movimentos físicos, em condições normais, dificilmente esquecemos de alguma pré-condição que lhe é imposta; ao resolver um problema, podemos precisar de rever muitas fórmulas e procedimentos que esquecemos. Costuma-se acionar também a discrepância entre processamentos mecânicos (os movimentos físicos do ato de descer escadas, ou a manipulação de algum instrumento na solução do problema) e processamentos elétricos (os procedimentos mentais que recobrem este tipo de movimento, ou esta operação com símbolos). Ambos os processos de justificativa não podem ser tomados como respostas definitivas, são antes uma forma de aprofundar a compreensão dos fatos. De outro lado, há uma perspectiva que vem sendo assumida, cujo objetivo é o de buscar algo de convergente entre estas duas formas de procedimento, isto é, ambas, como processo de conhecimento, implicam a capacidade que temos de categorizar objetos, fatos e eventos. Em outras palavras, a aptidão que temos para locomover por superfícies diversas, sem transtornos, depende da capacidade que temos de categorizar essas superfícies: um plano inclinado (em declive ou aclive) exige tipos de tensão diferenciada com os pés; uma cascata de planos regulares exige processamentos diferentes daqueles exigidos para uma superfície uni-plana. Da mesma forma, precisamos de categorizações singulares para processar os mais diferentes sistemas de signos. Acionamos regras específicas para categorizar quando percorremos sistemas de signos diferentes: quando se alterna de um sistema de semáforos, para uma linguagem binária, e desta para uma lógica polivalente ou uma língua natural, estamos diante de operações cada vez mais complexas. Em quaisquer das circunstâncias, entretanto, estaríamos fadados ao insucesso, se não dispuséssemos de procedimentos gerais para categorizar os objetos e as relações constantes em cada uma das experiências acima, seja no plano material, seja no plano simbólico. 27 O problema fundamental a que questões dessa natureza nos conduzem, em termos da análise aqui proposta, consiste na busca de uma justificativa para o conhecimento que pressuposto, quando acionamos, por exemplo, um sistema de signos qualquer. Se é possível, por força dos princípios de categorização, que conhecer um objeto significa ser capaz de definir-lhe, ao menos, um (ou essencialmente um) domínio do qual esse objeto é membro, podemos, por extensão, inferir que, para qualquer signo, conhecê-lo é ser capaz de determinar, ao menos, um domínio do qual ele é membro. Essa formulação guarda um teor lógico que, no caso de signos, poderia ser convertida, de modo conveniente, para uma formulação pragmática, onde substituiríamos a condição de remembramento num domínio (...determinar ao menos um domínio do qual ele [signo] é membro), por condições de sua aplicação (... determinar ao menos um domínio ao qual ele [signo] se aplica.). Os comentários aqui desenvolvidos nos fazem voltar ao texto de Peirce visando a dois objetivos: primeiro, para avaliar a possibilidade de que princípios de categorização possam ser adaptados e integrados a dimensões de sua Teoria; depois, para, a partir de sua reflexão em cada momento da Teoria, extrair as condições de possibilidades do conhecimento. Interessa, no escopo do presente trabalho, recuperar parâmetros que são fixados para o funcionamento de cada uma das n-idades, contrastando-os com outros parâmetros que expressam formas possíveis de racionalidade. Como avaliar, nesta etapa da reflexão, a importância da sensação, na primeiridade, em contraste com outros padrões concorrentes como intuição, percepção, compreensão, formulação ? Da mesma forma, numa etapa posterior, o que pode representar, em termos atuais, o peso dado, na segundidade, ao confronto ? Como aproximá-lo da intuição, da compreensão, da percepção ou da formulação ? Em alguma extensão, os comentários até agora desenvolvidos cotrastaram com a necessidade de uma justificativa racional para quaisquer parâmetros que venham a determinar formas de conhecimento, e o estatuto cognitivo mapeado por Peirce no território da primeiridade. Se pretendemos que esse mapeamento de categorias seja adequado, como justificativa de um padrão cognitivo inicial, torna-se importante mostrar como princípios de categorização - de formação de conceitos, por exemplo - podem ser absorvidos no âmbito da Primeiridade. Com o objetivo de discutir, de modo mais efetivo, a viabilidade de um reaproveitamento da primeiridade na dimensão mencionada, é que nos propomos a avaliá-la 28 como um padrão de racionalidade, em comparação com alguns padrões iniciais da atividade cognitiva, apontados em outras formulações. 1.4.2 Primeiridade: como modelo de racionalidade No caminho das dificuldades aqui lembradas em termos da concepção de uma racionalidade dos objetos, gostaríamos de ressaltar a análise, conforme argumentação desenvolvida, mais recentemente, por KRIPKE E PUTNAM3 e que será objeto da nossa análise no capítulo sobre a segundidade, que levou à conclusão de uma impossibilidade de formalização de definições analíticas para espécies naturais. O núcleo central desta argumentação aparece em parte refletida, numa outra perspectiva, por MONOD (1971), que procura, através de critérios como o da regularidade e o da repetição, num primeiro momento, reconhecer a diferença entre objetos naturais e objetos artefatos. Como o autor dimensiona o primeiro desses critérios ? “Pelo critério de regularidade procuraríamos utilizar o fato de que os objetos naturais, modelados pelo jogo das forças físicas, quase nunca apresentam estruturas geometricamente simples: superfícies planas, arestas retilíneas, ângulos retos, simetrias exatas, por exemplo; enquanto que, em geral, os artefatos apresentariam tais características, mesmo que fosse de modo aproximado e rudimentar.” (p. 16). O texto de MONOD contrapõe a natureza de modelagem, numa dimensão macro-estrutural, entre dois objetos: um natural, geometricamente mais complexo, porque suas estruturas não se reproduzem dentro de padrões de simetria e de previsibilidade angular; um outro artefato, geometricamente menos complexo, porque sua estrutura tende a ser reprodutora de simetria, de padronização angular e de superfícies não-acidentadas, ao menos numa forma primária. O 3 Não existe uma correspondência direta entre a formulação dos dois autores: Kripke desenvolveu sua argumentação em torno das descrições definidas (KRIPKE, 1972), enquanto Putnam desenvolveu argumentos semelhantes para espécies naturais. (PUTNAM, 1975). Para um confronto entre eles, veja: PUTNAM, 1988, p.129-46. 29 que esse critério revela sobre a nossa percepção da realidade e o que traz de relevante para nossa reflexão ? Suponhamos, numa vitrine, dois arbustos ornamentais, um natural, outro artefato. Se apenas nos restasse a visão como instrumento de avaliação (o olfato, o tato, por exemplo, estariam excluídos pela situação), ela escandiria os dois objetos e decidiria que o artefato é aquele que apresenta o maior número de regularidades, isto é, galhos de tamanhos idênticos dispostos simetricamente, curvatura dos galhos uniformemente proporcional ao seu tamanho, coloração próxima do uniforme para cada tipo de componente, tamanho e disposição das folhas próximas a uma identidade e muitas outras. Da árvore natural, estaremos aguardando singularidades que escapem à geometria previsível de um objeto artefato: ausência de simetria absoluta, cores diferenciadas, dimensões menos regulares. Por mais que o artífice (certamente diferente do artista) se empenhasse em produzir uma árvore com singularidades, ele não resistiria à tentação de deixar que muitos dos seus movimentos se repetissem e se materializassem em escalas diversas do seu artefato. A regularidade, associada aos artefatos, não é um fato meramente contingente, mas uma necessidade, até mesmo por economia na sua produção industrial e por conveniências na sua socialização funcional. É possível ainda que, ao dispormos de apenas um canal de avaliação - a vista -, sejamos traídos no reconhecimento entre um objeto artefato e um natural, seja pelo esmero do artífice em não se deixar reproduzir, seja pela nossa pressa em percorrer os objetos, seja por uma deficiência de luz ambiente para captar detalhes, seja por algum tipo de deficiência do órgão da visão do observador para perceber escalas cromáticas. Entretanto, a presença de uma destas deficiências pode ser sempre compensada, na medida em que nos dispomos a acionar outros canais: o olfato, na medida em que possuímos algum padrão de julgamento para reconhecer também objetos naturais por essa via; ou mesmo o tato, outro critério que poderíamos acionar para esse reconhecimento. Essa discrepância para o reconhecimento de objetos, aqui assinalada em razão da regularidade de suas propriedades constitutivas, pode ser admitida como critério necessário para um primeiro recorte no reino dos objetos. Em outras palavras, a forma mais primitiva de apreensão de um objeto implicaria admiti-lo, então, como uma espécie natural ou como um artefato. Se isso é verdadeiro, podemos supor, portanto, neste processo de reconhecimento, uma intervenção direta da qualidade de sensação, que operaria em função de um esquema de 30 recorrência de regularidades. No fundo, imputar à qualidade de sensação esta atribuição discriminativa significa dotá-la de um padrão mínimo de racionalidade: o de ser capaz de funcionar como um critério de reconhecimento, no domínio em questão, entre dois tipos de objetos. Esta aproximação entre sensação e regularidade decorre, portanto, da natureza funcional que atribuímos a ambas, por se constituírem ainda como formas exploratórias incipientes, se bem que esta última já esteja comprometida com alguma orientação conceitual estruturante. É lógico que essa aproximação não pode ser pensada em termos de uma precisão formal atribuída pelos autores às categorias em questão. Resta, porém, uma dúvida: se não são lícitas aproximações dessa natureza, então só nos resta legitimar uma forma de apreensão, derivada da primeiridade, como um percepto puro, se pensada à revelia de qualquer fator estruturante. Que estatuto confere MONOD (1971) à repetição como um critério de avaliação de formas de conhecimento ? Retomemos uma formulação do autor: “O critério de repetição seria, sem dúvida, o mais decisivo. Materializando um projeto renovado, artefatos homólogos, destinados ao mesmo uso, reproduzem com certas aproximações as intenções constantes de seu criador. A este respeito, a descoberta de numerosos exemplares de objetos com formas bastante definidas seria, portanto, muito significativa.” (p.17). Aqui o critério em questão continua conferindo aos objetos artefatos uma constância que traduz as intenções do seu artífice, quando lhes inscreve uma função de uso determinada. Embora MONOD assinale que a aplicação de ambos os critérios (regularidade e repetição) decorra de uma avaliação estrutural dos objetos em sua dimensão macroscópica, e não microscópica, já que nessa dimensão “estaríamos diante de estruturas atômicas e moleculares”, contendo “geometrias simples e repetitivas”, é, precisamente, na macroscópica, onde se materializa uma “intenção consciente e racional” dos objetos, de acordo com um projeto que lhes é conferido. Portanto, é nesta última dimensão que se dá a nossa experiência direta com a realidade; é nela que, em razão da homologia, reconhecemos classes, seus membros regulares e seus membros anormais. A repetição avança, em termos dos objetivos aqui definidos, numa direção idêntica à da regularidade: as semelhanças que apontamos para o arbusto artificial na vitrine são 31 previsíveis de recorrência em milhares de outros desta classe (mais uma vez, por uma questão de economia). Assim, para um outro exemplo, um artífice, quando produz uma série de ‘mesas’, o faz com base na repetição (e na regularidade) daquilo que constitui uma expectativa de seu uso funcional: a altura (este objeto está destinado a acomodar pessoas numa certa posição, no exercício de alguma atividade), o tamanho (em razão do número de pessoas que deve acomodar, do espaço físico que ocupa numa casa, da disponibilidade de toalhas). Qualquer ‘mesa’ que tivesse que atender a alguma dessas funções fora das expectativas previstas (por exemplo, acomodar 50 pessoas) não deixaria de ser mesa, apenas representaria um exemplar ad hoc da classe. Da mesma forma, se estivesse o artífice a construir cadeiras, a repetição seria prevista, dentro de escalas aceitáveis, no tamanho das peças (assento, encosto), na orientação espacial destas peças (horizontal, vertical), na angulação entre elas (próxima dos 90 graus), na altura dos pés, na espessura das peças (prevendo um certo padrão médio de peso das pessoas) etc. A repetição funciona, assim, como uma espécie de métrica que também regula nossa percepção dos objetos artefatos e é em razão dela, sobretudo, que se torna possível reconhecer uma classe de objetos. É plausível que singularidades se façam presentes também num artefato (afinal, cada cadeira só é idêntica a ela mesma), mas essa não é a característica essencial de sua identidade, nem impede que a nossa percepção falhe no reconhecimento de membros marginais de um domínio. Assim, a partir da importância que se pode conferir à repetição como integrante do nosso desempenho perceptivo, como podemos avaliá-la no âmbito das operações da primeiridade ? Parece evidente que a repetição nos orienta em direção àquilo que é mais saliente na percepção de um objeto. Não seria sensato supor que este critério nos levasse a perceber ‘mesa’ por um aspecto acidental do seu tampo (cor, tamanho, formato, material), porque esta não é, certamente, uma das propriedades salientes de um tal objeto: todo tampo de mesa pode destacar um desses aspectos, mas não há qualquer padrão de repetição previsível na sua constância. Aqui residem, precisamente, as dificuldades de correlação desse critério com princípios que regem uma qualidade de sensação. Para MONOD (1971), a repetição é antes uma operação de racionalização da realidade: aquilo que se repete na existência de um objeto faz parte da sua estrutura conceitual (os acidentes que viessem a se repetir com regularidade teriam de ser incorporados a sua estrutura, com certeza). Assim, ela não só reflete as intenções conscientes e planejadas do artífice que produz um objeto, como também delimita o nosso aparelho perceptivo para uma gama de variações aceitáveis em relação a ele (certamente, 32 aquelas variações que não afetam a sua estrutura). Parece tratar-se, portanto, de uma restrição que se deve impor à forma de operar da repetição. Para Peirce não parece clara a imposição de um limite entre fatos estruturantes e nãoestruturantes na concepção da primeiridade. Se isso é verdadeiro, então, a qualidade de sensação, que nos leva ao (re)conhecimento de ‘mesa’, pode ser concebida por aquilo que for menos essencial a esta classe de objetos, do ponto de vista da sua estrutura, mas que, numa circunstância específica, tenha sido a marca de sua percepção. Aceitar uma formulação desse teor, entretanto, significa conferir à percepção o caráter de “ação desprovida de lei” que o autor recusou, anteriormente, como suporte epistêmico da primeiridade. Há aqui duas dificuldades a serem superadas: ou bem concebemos a primeiridade como um instância de racionalização, ou bem lhe conferimos uma instância de imediatez, de contato, desprovida de qualquer preocupação racional. Ora, se o processo de conceber os fenômenos na primeiridade se dá nesta última perspectiva, então não podemos buscar-lhe uma aproximação com procedimentos que prevalecem na repetição. Aqui, todavia, continuam persistindo dúvidas: se as operações na primeiridade não devem ser concebidas à revelia da lei, (isto é, alguma norma de bloqueio do aleatório, do imprevisível, do acaso ), então, sob que padrão de racionalidade devemos traduzir essa lei ? Buscamos, ao longo desta discussão e até o presente momento, dois padrões que nos pareceram mais próximos das preocupações constantes da primeiridade; outros serão objetos de uma discussão específica no segundo capítulo. Regularidade e repetição, numa visão macroscópica, expressam padrões fenomênicos dos objetos; daí, a opção de assumi-los no encaminhamento desta discussão. Os comentários desenvolvidos não foram ainda decisivos em relação à proposta de avaliação da primeiridade como um padrão de racionalidade. A análise de Monod sobre a importância das duas categorias torna-se mais precisa, na medida em que a completa em razão da introdução de um terceiro elemento nessa relação. Trata-se do conceito de projeto. Vejamos, por fim, como se torna possível uma especificação maior da relevância desta duas categorias, quando avaliadas na dimensão funcional de projeto. Na medida em que Monod avança na análise da oposição entre espécies artefatas e espécies naturais, mostra uma certa difusão entre a natureza específica de membros dos dois domínios. O autor cita, por exemplo, uma colmeia como um exemplar difuso, em algum 33 sentido, entre os dois domínios considerados. A análise de tal objeto, no entanto, revela-o como portador de extrema regularidade na distribuição espacial dos favos, no formato de construção, no seu tamanho; logo, as estruturas se repetem de forma previsível também de uma colmeia para outra. O autor equaciona a questão, expandindo o conceito de agente (que produz artefatos) e não sacrificando os critérios da regularidade e da repetição. Uma colmeia é, portanto, um objeto artefato (como ‘mesa’ e ‘cadeira’), apenas produzido por seres nãohumanos. Aqui, então, entraria um outro critério decisivo na qualificação da natureza dos objetos, isto é, a existência de um projeto para o qual um objeto qualquer é concebido. A uma ‘pedra’, como espécie natural, não está, a priori, associado qualquer projeto (a não ser quando a processamos para atender a um tipo de finalidade: revestimento de parede, componente de concreto ), mas existe ao menos um para colmeia, como existe ao menos um para a ‘teia’ que a aranha tece. Em se tratando de seres humanos, podemos dizer que o projeto é uma forma conceitual de traduzir as intenções que associamos a um objeto, quando o construímos. Nada impede, porém, numa extensão do termo, que ao mencionarmos um projeto possível para colmeia, ‘teia’, ‘formigueiro’, ‘ninho’, admitamos também as intenções dos agentes que produzem estes objetos. Que importância teria este complemento da formulação de MONOD para os problemas da primeiridade em Peirce ? Que conclusões, em razão das objeções já feitas, podemos extrair da correlação entre as duas abordagens ? Nos termos propostos por Monod, regularidade e repetição definem planos estruturais dos objetos; não devem ser confundidos como componentes de uma estrutura, mas apenas como orientação geral e primária para o seu reconhecimento. Certamente, compreender a dimensão estrutural de um objeto, com base em tais categorias, só é possível se esses objetos partilham de uma série qualquer, onde as duas categorias se tornam aptas a operar. Um objeto só apresenta regularidades, se existe, pelo menos, uma possibilidade de contrastá-lo na série (uma relação binária ao menos), em que outros objetos reproduzem o padrão, ou dele desviam. Por esta razão, ela já se torna um princípio estruturante, porque prevê a recorrência nos membros de uma série. De modo semelhante, e mais decisivo, a repetição, para operar, requer a inclusão de membros num domínio, pois é no seu interior que semelhanças e dissemelhanças serão ordenadas para produzir estruturas. Logo, só é possível admitir a repetição, se pudermos reconhecer, na série, o que se repete, seja na totalidade de domínio, seja no agrupamento local de membros em sub-domínios. E aquilo que se repete, em quaisquer das dimensões acima, constitui a estrutura. Se regularidade e repetição só podem 34 ser consideradas em função de domínios a serem determinados para os objetos e se o caráter de pertinência se fundamenta em princípios de estruturação conceitual, então elas não se prestam à compreensão de fatos da primeiridade. Ambos os conceitos exigem elaboração, espaçamento temporal, o que contraria os princípios gerais em que se assenta a primeiridade. Retomando o conceito de projeto, poderíamos, então, supor que a primeiridade pudesse captar apenas aquilo que representasse uma dimensão mais global para membros de um conjunto, ou seja, o seu projeto e não componentes da sua estrutura. Logo, qualidade de sensação manteria uma relação estreita com projeto e o primeiro impulso na direção de um objeto responderia pela tentativa de assumir-lhe a função a que se destina. Ainda que uma tal operação possa parecer viável numa visão utilitária para certos artefatos, a sua adequação à primeiridade exige argumentos mais decisivos. Com certeza, um artefato, do ponto de vista da sua constituição, deve ter um projeto como a dimensão mais determinante, pois é em função desse projeto que será avaliado. Nada valeriam objetos que não estivessem aptos a desenvolver a função específica para a qual tivessem sido construídos, nem um qualquer que fosse incapaz de explicitar esta função. Nada assegura, entretanto, que a sua apreensão se dê em razão de aspectos salientes que lembrem uma função a desempenhar. Para muitos deles costumamos perguntar para que serve ?. Ora, a própria pergunta já requer uma elaboração de segundidade, pois o fato mesmo de ela se tornar possível já implica termos ultrapassado o nível da primeiridade. Só podemos perguntar sobre a finalidade de algum objeto, se dele já tivermos retido algum tipo de propriedade (provavelmente, algo que possa lembrar a qualidade de sensação que desencadeia, ao menos) . Desse modo, as categorias utilizadas por Monod não nos parecem adequadas para justificar as operações sensíveis que são realizadas na primeiridade. 1.5 Considerações finais Procuramos, nas seções anteriores, avaliar algumas formas de racionalidade que poderiam ser pensadas como mais próximas da formulação da primeiridade. Esta avaliação mostrou, entretanto, que os padrões que foram aqui lembrados ainda se distanciam, neste nível de abordagem e por alguma razão, das pretensões que Peirce tinha para sua teoria. Procuramos 35 contrastar, no primeiro momento, apenas formatos mais genéricos4, cientes da configuração que o autor propôs para a categoria. Apesar dos cuidados de ajuste, constatamos, ao longo da toda a argumentação, uma série de incompatibilidades que não puderam ser superadas. Aqui talvez tenhamos nos defrontado com a maior dificuldade, no nosso entendimento, de uma compreensão global da tricotomia de Peirce, como construção de uma metateoria para quaisquer padrões de conhecimento. Se sua formulação tem, de fato, o contorno que lhe foi delineado nesse capítulo, sobressai uma questão crucial: por que razão o ponto de partida para a construção de uma teoria precisa resistir tanto a princípios de racionalidade ? Por que os padrões de racionalidade estruturados a partir da Segundidade precisam originar-se de um apelo a sensações, reunidas sob a forma de um percepto soberano, indiferente aos apelos da razão ? Se não é assim que a teoria, de fato, funciona, que expectativa devemos esperar da primeiridade ? Voltemos a Peirce. A proposta de Peirce, nos termos já analisados, poderia ser compreendida como uma estratégia essencialista, onde alguma primeira essência tivesse que ser fixada. Essa operação se traduz pela captura de uma dimensão primeira do objeto por meio de sensações, o que se torna ainda impossível, no estágio de presentificação dos fenômenos, de uma expressão formal. Há, todavia, dificuldades com este argumento, pois dizer, por exemplo, que a qualidade de sensação de ‘folha’ é uma espécie de ‘folhidão’ (por hipótese, sua primeira essência), ressoa como uma solução pouco significativa. Afinal, se não damos conta do fenômeno, de que adianta nomeá-lo ? Em outras palavras, se não temos garantia daquilo que pode representar uma qualidade de sensação para ‘folha’, que argumentos temos para dizer que ele está contido na variante ‘folhidão’ ? ‘Folhidão’ apenas traduz ‘folha’, numa forma lingüística elaborada, mas nada nos diz sobre sua qualidade de sensação5. Com toda certeza, um problema, cuja validade de sua solução fosse alcançável apenas por um procedimento desta natureza, estaria muito próximo de um certo nominalismo exacerbado (que escapa ao non-sense apenas em razão de conveniências metalingüísticas) 4 e teria de ser validado não por princípios externos de Outros formatos mais específicos de racionalidade, como Teoria dos Conjuntos, Teoria dos Protótipos, Fuzzy Set Theory, Composicionalidade e Predicação serão avaliados na segundidade. 36 argumentação e de demonstração, mas por uma condição interna de transcendentalidade. Em outras palavras, restaria indagar se a qualidade de sensação, aventada por Peirce, não é um princípio transcendental que define condições de possibilidade do saber. Toda a discussão até agora desenvolvida tem apontado para duas direções em relação aos problemas que envolvem a primeiridade. De um lado, movidos pela idéia de sensação, admitimos o teor fenomênico dos fatos nela implicados. A suposição parece-nos ajustar, perfeitamente, à concepção dos fatos confinados nessa dimensão da teoria. É na perspectiva mencionada que pode ser destacada a idéia de um percepto, ainda de natureza pré-categorial, como parece pretender Peirce. De outro, acionados pela idéia de qualidade, supomos algum teor de elaboração conceitual, algum princípio de abstração, ainda que conduzido por sensações. A aproximação destas duas vertentes nos levou a testar alguns procedimentos de racionalização, exatamente, aqueles, cujo apelo a quaisquer princípios de abstração, colocavam em jogo uma dimensão empírica dos objetos. Que outros argumentos, poderíamos ainda adicionar à discussão, no sentido de explorar um pouco mais o caráter conflituoso da teoria, que foi aqui exposto? A controvérsia destacada acima pode ser traduzida pelas dificuldades apontadas na concorrência entre o conceito de função e o de estrutura. Na menção que faz a essa disputa, Monod chega a destacar, para algumas áreas do conhecimento, a preferência pelo conceito de estrutura em detrimento do de função. O primado da estrutura reforça a necessidade de uma afirmação do caráter de racionalidade dos processos cognitivos: a estrutura emerge de relações sistêmicas, avaliadas através de componentes isoláveis e comutáveis numa série de elementos; ela se corporifica pelas relações de disjunção, conjunção e implicação e a partir de processos inferenciais, construídos sem qualquer apelo a uma essencialidade dos objetos. Como se contrapor a essa arquitetura do comutável, do demarcável, cujo teor de racionalidade tornava dispensável recorrer a quaisquer outros recursos, cujos elementos não estivessem integrados às relações entre os próprios objetos ? 5 A conversão de nome-objeto (folha), de nome-propriedade (vermelho) em formas lingüísticas de natureza abstrata (folhidão/vermelhidão) é apenas ilusória, pois nada justifica em termos de qualidade de sensação. 37 É difícil supor que o poder que se conferiu à estrutura, em razão do seu papel numa abordagem científica, pudesse permitir o avanço do conceito de função. Aquela acaba por neutralizar o apelo à última, o que não pode ser entendido como sua exclusão deliberada; ambas conviveram lado a lado em muitas circunstâncias. O contraste entre estrutura e função nos incentiva a indagar novamente sobre uma correspondência destas categorias com segundidade e primeiridade, respectivamente. A estrutura, pelo grau de elaboração conceitual, pela elegância axiomática que possibilitou produzir no interior de muitas abordagens, só pode ser pensada numa dimensão de segundidade. Se à função conferimos mais um teor pragmático, uma extensão do objeto, derivável, com certeza, daquilo que a sua estrutura possibilita, seria possível, então, admitir a função no escopo da primeiridade ? Não há dúvida sobre o descompasso formal entre as duas categorias e ele deve ser, de fato, o responsável pela preferência assinalada por Monod. A função, isolado o seu caráter pragmatista, aproxima-se de um valor fenomênico, na medida em que objeto e função, ao menos para os artefatos, guardam entre si uma biunivocidade implicativa: tanto o objeto (artefato) implica a função, quanto esta implica aquele. É provável que essa dependência mútua possa também descartar dela compromissos formais maiores de elaboração, de formulação. Ela não é um componente do objeto − mas os componentes de um objeto estão dispostos de forma a atendê-la −; ela não o integra de modo orgânico − mas se inscreve nele para poder ser dele uma decorrência. Por isso, a função constitui uma extensão que se agrega ao objeto, sem que essa agregação possa ser pensada como algo que lhe torne irrelevante. É claro, entretanto, que não se pode desprover de quaisquer compromissos mais integrados estrutura e função. Afinal, a estrutura, ao menos nos artefatos, deve ser adequada a exercer a função para a qual o objeto foi criado. A forma intuitiva − e pragmática −, através da qual lidamos com a função − a estrutura tem outras dimensões −, permite projetá-la na região da primeiridade; tal fato, entretanto, como já comentamos para projeto, não constitui qualquer garantia de que ela possa representar uma condição que orienta, de modo decisivo, qualidade de sensação. Outras objeções que poderiam ser aqui descritas, quanto ao seu papel determinante para uma qualidade de sensação, já se fazem presentes na discussão desenvolvida para projeto: o que foi validado para sua discussão pode ser também validado para função. 38 A partir de todos esses confrontos que utilizamos para buscar uma compreensão do alcance que Peirce confere à primeiridade, parece evidenciar-se o fato de que uma qualidade de sensação não pode ser pensada como um princípio passível de uma justificação externa, a saber, fora das condições imediatas e únicas que a percepção exige para funcionar, na forma concebida pelo autor. Assim, não se trata de buscar argumentos que possam consolidá-la no interior de uma teoria, porque estes estarão remetendo a um outro lugar que não é mais o da imediatez perceptiva, portanto, o da primeiridade. Além do mais, pretendíamos, com esta tentativa, admitir que algum recurso à metalinguagem também devesse ser aceitável para a formulação analisada. Em todas as incursões desenhadas acima, usamos argumentos − e metalinguagem − de outros padrões, buscando uma correspondência aproximativa com qualidade de sensação. Acionamos, quase sempre, princípios que exigiam um registro na linha do tempo, por ser esta talvez uma das marcas de qualquer processo de racionalização. A projeção na linha do tempo resultaria na necessidade de se historicizar a primeiridade, pois só assim ela se tornaria passível de uma compreensão analítica; o seu teor de presentidade, todavia, permite que ela reconheca somente o presente (a sua instantaneidade), descartando princípios de ordem temporal. Uma vez mais, já teríamos ultrapassado as suas fronteiras e estaríamos avançando nos domínios da segundidade. Diante das condições que são impostas ao funcionamento da primeiridade resta indagar, então, sobre alguma relevância que ela possa apresentar, em termos da nossa atividade cognitiva para recortar a realidade. Se a questão central aqui colocada apontava para a necessidade de uma justificativa que fosse capaz de fundamentar, com argumentos válidos, a forma pela qual o organismo incorpora o conhecimento, então, os parâmetros que são usados pelo autor para dimensionar a primeiridade − presentidade, imediatez, qualidade de sensação − neutralizam qualquer perspectiva de abordá-la, no quadro de uma racionalidade que inclua o seu funcionamento, num padrão de categorias analíticas. A primeiridade, digamos, não partilha desse formato de racionalidade que, embora criticável e ainda provisório em muitos dos seus aspectos, tem servido de base para uma discussão em torno de duas questões importantes: a formação de conceitos e a categorização. Sua exclusão da esfera da racionalidade dos esquemas aqui lembrados seria suficiente para projetá-la num vasto território de intuições e de eventualidades ? 39 Não seria correto inferir, a partir da estrutura global que o autor propõe, que a primeiridade pudesse estar situada numa faixa de exclusão do racional, conforme já lembramos em citação do próprio autor “ação-desprovida-de-lei”. A sua racionalidade é que precisa ser vista sob um outro ângulo. Inicialmente, ela pode não ser julgada pela validade que confere a outras instâncias de um sistema de tricotomias, onde a sua existência, no conjunto, deve reservar-lhe uma função específica, em contraste com a segundidade e com a terceiridade. O objetivo aqui não foi prover um julgamento da formulação do autor nessa dimensão, mas antes mostrar que ele lhe circunscreve uma instância singular − nem sempre muito clara ! − no processo de cognição. Há dificuldades com a formulação do autor − umas foram vistas ao longo desta discussão, outras serão vistas à frente −, se pretendemos assumir sua abordagem, não apenas como uma Teoria Geral do Signos, stricto sensu, mas como uma abordagem global sobre a forma de estruturação do conhecimento, dimensão que nos interessa nessa reflexão. Desse modo, o que se deduz do seu sistema, no realce até agora atribuído à primeiridade, é a importância de se fixar uma outra região da atividade cognitiva, até então inteiramente desconsiderada, talvez até mesmo pela existência de um alto grau de incertezas e de inconveniências para o domínio da racionalização. Um outro aspecto adicional aponta para uma forma diferenciada de compreensão dos fenômenos: Peirce não parece estar preocupado com uma explicitação nem funcional, nem categorial das questões que envolvem a primeiridade. Não se trata de construir um modelo formal ao qual possamos subordinar a manifestação dos fenômenos nesse nível. A natureza dos procedimentos que estão aí dimensionados respondem a outros formatos epistêmicos e eles não podem, de fato, ser vistos pelos olhos de quem quer enxergá-los de forma categorial, sistêmica, ou funcional. A primeiridade responde, no nosso entendimento, por uma disponibilidade primeira para o conhecimento, o que faz dela um princípio transcendental, na medida em que traduz condições necessárias para qualquer forma de compreensão, para qualquer processamento conceitual. É esse estatuto da primeiridade que a torna um procedimento racional, embora não possa ser justificada por esquemas de categorias, nem por procedimentos algorítmicos. 40 Capítulo II A SEGUNDIDADE COMO FORMAÇÃO CONCEITUAL 41 2. A SEGUNDIDADE COMO FORMAÇÃO CONCEITUAL 2.1. Alguns aspectos da segundidade em Peirce Na proposta de Peirce, se a primeiridade constitui apenas um momento de pura sensação, se nela concebemos apenas percepções primárias que conduzem, de forma incipiente e instantânea, a nossa experiência, já que ela está associada a uma presentidade dos acontecimentos, então é no plano da segundidade que as condições de existência (dos objetos) começam a ser delineadas. Há aqui, na configuração do autor, duas etapas do processo de conhecer: de uma sensação de qualidade saltamos para as condições do existente. O que, então, ele demarca como um padrão de alcance para a segundidade, na medida em que é nela que as condições para o existente estão determinadas ? Na Conferência II, do parágrafo 45 ao 64, PEIRCE (1980, p. 18-24) sugere alguns aspectos genéricos que dimensionam o papel da segundidade como etapa do processo de atividade consciente do homem sobre a natureza/realidade. Os parágrafos não permitem uma compreensão decisiva do alcance da categoria, até mesmo porque o autor está preocupado em refutar críticas de opositores, de marcar posições contrárias a sua formulação diante do nominalismo. De todo modo, entretanto, é possível recolher, ao longo desses parágrafos, algumas exigências e propriedades que são impostas ao seu funcionamento. Como categoria universal, a segundidade circunscreve-se no terreno vasto das condições que julgamos necessárias para o acesso a qualquer forma de conhecimento. Justificá-la, portanto, como universal, requer que a ela associemos outros princípios que tornam a prática cognitiva dos sujeitos de algum modo uniforme. Peirce recorre, inicialmente, ao conceito de confronto (struggle), com que pretende especificar a forma pela qual operamos na realidade. Assim, se a primeiridade nos conduz para um impacto inicial frente à realidade, somente na dimensão da segundidade podemos fazer uso consciente desse conceito, ao elaborar os primeiros contornos de uma experiência, que já não é mais pura sensação, mas um princípio de formulação, de classificação. Aqui, todavia, temos que ressaltar o fato de 42 confronto ser apenas uma qualificação decorrente de algo que ainda lhe é mais primitivo, isto é, o conceito de força, segundo Peirce, no sentido da actio em NEWTON6. Em que o conceito de força se torna aqui relevante ? Por que devemos assumi-la como uma condição de alcance do existente ? A relevância do conceito de força resulta em se fazer dela mesma um determinante da percepção; ela funciona como um agente capaz de afetar toda nossa capacidade sensível. O autor formula a questão do seguinte modo: “Assim acontece quando alguma coisa atinge os sentidos. A excitação produz seu efeito, e nós causamos-lhe de volta um efeito indiscernível; e passamos a chamar à excitação agente, e vemo-nos como o paciente.” (PEIRCE, 1980. p. 19) E mais à frente acrescenta: “Os objetos interiores oferecem de fato uma certa resistência e os exteriores são suscetíveis de serem modificados de algum modo através de esforço inteligente.”(PEIRCE, 1980, p.19) Reunimos, ao conectar estas duas afirmações, alguns aspectos básicos que podem especificar a importância do conceito de força na formulação de Peirce. É no exercitar a relação causaefeito, executada de forma múltipla em direção à experiência sensível, que nos tornamos aptos à transformação dos objetos. Só podemos fazê-lo pelo ato de imprimir força aos objetos que são captados pelas nossas sensações, pela percepção e daí fazermos originar efeitos com base no confronto e “através de esforço inteligente”. A segundidade é, então, o lugar de emergência de uma instância intelectiva onde os objetos podem “ser(em) modificados de algum modo”. Essa possibilidade de se poderem afetar os objetos, na dimensão ainda de um processo cognitivo secundário (já que ele só deverá ser completado sob a forma de representação na terceiridade ), decorre de uma situação em que os sujeitos retêm apenas uma sensação de 6 Newton define actio da seguinte maneira: “A ação impressa é uma ação exercida sobre um corpo para mudar seu estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta.” (NEWTON, 1979. p.6) 43 qualidade dos objetos. A forma mais primitiva que podemos supor, como condição para uma tal transformação, é o fato de se poder classificar um objeto, isto é, reconhecer-lhe um domínio de pertinência, associar-lhe propriedades de classe, enfim, mostrar um primeiro estágio genérico de confronto deste objeto com outros. Quando assim procedemos, estamos, de fato, modificando os objetos externos de algum modo, porque já nos tornamos aptos a predicar sobre algo que, até este momento, tinha sido mera sensação de qualidade. Por sua vez, o conceito de força aqui lembrado impõe à reflexão uma orientação de natureza material, mas não como Newton codificou o valor de ação, pensada na extensão dos fenômenos físicos (“A ação impressa é uma ação exercida sobre um corpo para mudar seu estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta “). Se não evitamos que ambos os conceitos possam convergir na sua natureza (eles representam uma certa atividade exercida sobre objetos), eles, certamente, divergirão nos seus efeitos. Se o resultado de uma ação sobre um corpo é a mudança do seu “estado de repouso ou de movimento uniforme”, o resultado de uma força sobre um objeto é a mudança do estado de seu conhecimento, do seu estatuto na relação com outros objetos. Em outras palavras, conhecer um objeto tal significa aplicar-lhe uma força, cujo resultado será ou a consciência sobre propriedades que lhe tornam predicáveis, ou a explicitação de correlações que ele estabelece com outros objetos. Em uma ou outra possibilidade, produzimos uma mudança no estado de seu conhecimento (aquele estado dado, inicialmente, pela primeiridade). A dimensão material desta força não chega a representar qualquer ameaça às exigências mais elaboradas sobre as condições para conhecer um objeto. Afinal, qualquer forma de conhecimento apresenta a sua condição orgânica, corporificada em diversos estratos do organismo. Aqui as qualidades sensíveis dos objetos impressas nos nossos sentidos visão, tato, olfato ... , podem representar este efeito da força sobre corpos em inércia, mas um efeito sobretudo intelectivo. E PEIRCE (1980, p. 24) também ressaltou esta dimensão do conhecimento, ao concluir que “existe uma maneira de agir sobre os fatos externos que não é apenas ação mecânica.” Outro aspecto que poderíamos destacar, na exposição do autor, é a importância que ele atribui ao papel da surpresa. Indagando sobre o modo de ocorrência da experiência, ele responde que ela se dá “Através de uma série de surpresas.” (p. 21). E mais à frente completa este raciocínio de relevar, no interior da segundidade, o papel da surpresa: 44 “O fenômeno da surpresa é altamente instrutivo em relação a esta categoria por causa da ênfase que empresta a um modo de consciência detectável na percepção - a consciência dupla de um ego e de um não-ego agindo diretamente um no outro.” (p.21)7 A importância que essa categoria pode representar reside no fato de nos mostrar que o processo de conhecimento não pode ser completamente determinado apenas pelo exercício de uma consciência do ego. Ao reservar-nos incômodos do não-ego, a percepção cognitiva, na dimensão da consciência de um ego, não pode ser pensada como a instância ulterior e única da determinação das formas do saber: exige-se “a consciência dupla de um ego e de um não-ego agindo diretamente um no outro”. O alcance do ego estará sempre sujeito a surpresas que o seu duplo possa vir a produzir. Aqui reside, pois, o dinamismo de todo o processo de conhecimento numa instância orientada pelo e para o confronto. Que direção, portanto, pretendemos dar a esta reflexão de Peirce em torno da categoria de segundidade, de tal modo a compatibilizar sua formulação, como já o esboçamos na primeiridade, aos fundamentos de uma abordagem geral sobre processos de conhecimento, em termos das exigências, estabelecidas em reflexões contemporâneas sobre a construção do conhecimento ? A exposição precedente já se mostra contaminada pela orientação que pretendemos dar à segundidade, com o objetivo de avaliar a questão acima formulada. A posição desta categoria, diante das outras duas que compõem sua tricotomia, requer, no nosso entendimento, que tracemos alguns paralelos com outras iniciativas que foram desenvolvidas depois de Peirce, se o alcance desejado é o dar a ela um estatuto de formação conceitual, o que não nos parece atentar frontalmente com a reflexão do autor8. Então, o que nos convida a este desafio 7 O contraste entre ego e não-ego parece representar o formato mais amplo para PEIRCE (1980, p.91), conforme podemos verificar no capítulo As categorias em Detalhe, parágrafo 332, do qual extraímos o seguinte trecho: “Existe a dualidade do agente e do paciente, do esforço e da resistência, do esforço ativo e da inibição, do agir sobre objetos externos e sobre o próprio eu. Ainda mais, há volição ativa e passiva, ou inércia (...).” 8 Seria ingênuo admitir, percorrendo toda a extensão de sua obra, que Peirce tivesse pretensões menores com uma categoria como esta. Afinal, entre primeiridade e terceiridade não pode existir um vácuo que uma interpretação quase literal da segundidade poderia produzir. É lógico que corremos o risco de enviesar em demasia o autor, mas é um risco necessário para fazer valer as suas idéias num ambiente que não seja única e exclusivamente o da sua obra e nem de uma apologia à sua escrita. 45 é também o fato de o autor ter registrado aqui tentativas de responder a condições sobre o existente. A reflexão, a ser desenvolvida, implica assumir o existente numa dimensão nãofenomênica e compreendido a partir de padrões formais e intuitivos que têm sido formulados e repensados como possibilidades de um modelo de formação conceitual. As condições de formulação de um tal modelo ainda têm se revelado de extrema complexidade, diante do que a proposta de Peirce não pode ser assumida, a não ser como um embrião global. Assim, nas seções seguintes, tentaremos avançar com as questões sugeridas pela segundidade, a partir de um número variado de fatos, formulações e abordagens que a ela podem ser associadas em complementação. 2.2. Segundidade e formação de conceitos O que é formação de conceitos ? Quais as exigências que são impostas aos sujeitos sociais no domínio dos objetos ? Em que condições podemos assegurar que conhecemos um dado recorte da realidade ? Em que extensão a segundidade pode ser relevante para equacionar tais problemas? Responder ao conjunto destas questões, certamente, não é uma tarefa possível apenas tomando como base propostas de Peirce, mesmo porque parte daquilo que levantamos aqui como problema não emerge como uma preocupação direta na sua reflexão. O autor, no nosso entendimento, garante, através de um estágio de processamento da informação (dada num momento inicial na primeiridade), os patamares iniciais que asseguram uma reflexão neste campo. Não encontramos, em sua formulação, um modus operandi para falar de formação de conceitos, ao menos na extensão em que a questão vem sendo discutida nos dias atuais. Entretanto, não nos parece, pelo conjunto das questões afetas ao conhecimento e muitas já apontadas pelo autor, que se possa incompatibilizar sua reflexão com problemas que têm sido enfrentados no âmbito da formação de conceitos. Nesta primeira exploração, gostaríamos de associar a segundidade a princípios gerais que lembram a formação de conceitos, dimensão que supomos ser aquela que possibilita um diagnóstico de todo o projeto epistêmico construído pelo autor. A segundidade figura, então, 46 como uma instância da construção do próprio conhecimento: na medida em que os objetos são confrontados, é deste confronto que extraímos as suas propriedades funcionais e descritivas. A formação de conceitos torna-se, portanto, a estratégia essencial para conhecer: só podemos conhecer um objeto, ou só podemos transitar entre classes de objetos, ou entre membros de uma classe, se dominamos, minimamente, o conceito de classe e o conceito de membro de classe. Somente este conhecimento pode-nos garantir uniformidade, racionalização e organização de uma ordem diversa e múltipla que os registros da percepção, na primeiridade, asseguraram, mas que não foram ainda capazes de ordenar. Assim, as exigências primeiras para a formação de um conceito são estabelecidas a partir deste confronto, que nos obriga a reconhecer propriedades essenciais, diferenciais, acidentais, dimensões funcionais, descritivas e tantas outras. Formar um conceito pode ainda significar, por exemplo, a formulação de procedimentos que nos permitem destinar objetos a classes, reconhecer o lugar específico de um membro na classe, determinar configurações fronteiriças para membros de classe. Pode representar, além do mais, a construção de modelos, de algoritmos para a compreensão desses fatos.9 Num segundo estágio de compreensão, destacamos, nesse processo, o papel da mediação que é assegurada à segundidade. Se através da primeiridade, alcançamos o domínio da realidade, do experimentável por uma sensação de qualidade e se, na terceiridade, defrontamos com processos de representação do conhecimento, então só podemos supor que a segundidade seja, de fato, uma instância de mediação, na qual podemos pensar a construção deste conhecimento por meio do exercício de uma racionalidade natural e formal ao mesmo tempo. Essa intuição sobre o texto de Peirce nos parece válida, mas ali a encontramos ainda numa versão genérica e pouco explícita. Não há, de sua parte, uma preocupação localizada sobre a forma pela qual devemos fazer prevalecer uma estrutura do racional para a segundidade. Em resumo, julgamos que as idéias apresentadas por Peirce na segundidade e a dimensão que lhe atribui, na sua formulação, representam patamares fundamentais para uma discussão de questões localizadas sobre a produção e a representação do conhecimento. Na 9 Alguns dos procedimentos aqui lembrados, sobretudo na ordem destes últimos, representam dimensões que já devam ser incluídas não apenas como formação de conceitos, mas também como representação de conceitos, objeto de avaliação da Terceiridade. 47 seqüência, mostraremos diversas tentativas que têm sido empreendidas em torno deste problema, todas elas, na extensão aqui avaliada, compatíveis com a pretensão de se apontar um formato operacional para a segundidade. Procuraremos, pois, mostrar possíveis correlações desse nível da sua teoria, com formulações mais localizadas e disseminadas em outras abordagens. 2. 3. Segundidade e modelos de atomização conceitual O formato mais genérico que conhecemos para construir o conceito de um dado fenômeno/objeto é a possibilidade que temos de defini-lo, isto é, de atribuir propriedades, dos mais diversos teores, a aspectos da sua constituição, do seu funcionamento e do seu valor. Este procedimento de atribuir propriedades a fenômenos/objetos não apresenta, no entanto, uma padronização única, nem definitiva. Identificamos, nas nossas manifestações culturais, padrões diferenciados deste procedimento: as teorias, os dicionários, a prática ordinária da linguagem traduzem, ao mesmo tempo, semelhanças (a forma dos procedimentos lingüísticos) e dessemelhanças (o rigor na formulação destes procedimentos). Tradicionalmente, o critério definicional tem sido expresso, de forma mais estruturada, com base em dois padrões distintos, a predicação e a composicionalidade. Ambos os padrões reportam, em alguma extensão, à idéia de uma categorização vertical, porque se realiza numa relação entre membros e componentes de membros. Vejamos alguns aspectos destes dois padrões. 2.3.1. Predicação O padrão de predicação mais conhecido é dado pela forma lógica do tipo “S ε P”, onde S indica o fenômeno/objeto em questão e P um tipo ou um conjunto das propriedades que definem ou descrevem a natureza de S. De modo menos formal, mas também preciso, podemos adaptar a forma canônica acima a outros padrões lógicos para aceitar formatos como “x serve para...” “x compõe-se de...” “x é um tipo de...”10. Tal padrão, com suas 10 Doravante, sempre que usarmos as variáveis x, y, z, estaremos considerando-as como variáveis presas. Para simplificar tecnicidades, evitando registros locais a não ser quando imprescindíveis, podemos considerá-las presas ao quantificador existencial, já que elas devem aceitar a saturação de pelo menos um objeto. Do ponto de vista lingüístico, porém, a vinculação de variáveis a quantificadores é apenas uma condição genérica: a 48 variações possíveis, apresenta uma difusão bastante variada, pois recobre tanto especificações rigorosas em sistemas formais, como ainda especificações técnico-culturais em dicionários, em enciclopédias, enfim, em quaisquer formatos de expressão cultural que operam com definições e caracterizações de objetos. O que pode significar este padrão de representação em termos da idéia de formação de conceitos no âmbito dessa reflexão ? Podemos, a princípio, postular que toda forma de conhecimento racional, que tenha uma expressão de linguagem qualquer, deve ser, ao menos, assegurada pela predicação. Só podemos afirmar o conhecimento (material ou metalingüístico) de x, se sobre x pudermos predicar, ou seja, atribuir alguma propriedade que lhe seja inerente ou acidental11. Se a vinculação entre o fato de conhecer x e o fato de podermos predicar sobre x é verdadeira, estamos assegurando, de algum modo, que a predicação é um procedimento racional e primário que podemos acionar para compreender a formação de conceitos. A predicação pode representar, pois, um processo de cognição intuitiva que admite duas orientações diferentes. Na primeira, a predicação é o efeito da nossa sensação de conhecer algo, pois é através dos predicados atribuídos a um objeto que podemos falar do seu domínio conceitual. Na segunda, a predicação é a possibilidade de virmos a conhecer um objeto, em razão de predicados que podemos a ele aplicar. Tanto na primeira como na segunda situação, a predicação é um procedimento de implementação da nossa atividade congnitiva, como também um processo de construção teórica, na medida em que, através de procedimentos lógico-lingüísticos, associamos a eles propriedades descritivas e funcionais, atribuímos-lhes valores, conferimos-lhes funções a desempenhar. Esse duplo desempenho funcional da predicação, assegura-lhe um valor necessário ao processo de formação de conceitos, pois é a partir dela, predicação, que estruturamos condições para o (re)conhecimento de um dado objeto. interpretação e a legibilidade de uma expressão dependem, stricto sensu, de condições semânticas próprias, isto é, de restrições seletivas, que determinam a compatibilização de unidades lexicais e construções sintagmáticas. 11 Podemos predicar sobre todo objeto que conhecemos, mas nem sempre o que predicamos sobre um objeto é o que dele conhecemos. É preciso considerar predicações que reportam características e propriedades descritivas, funcionais de um objeto, de predicações que representam apenas atitutudes proposicionais de quem predica. Por exemplo, dizer de um objeto que ele é 'azul', 'retangular', 'áspero' etc. significa manifestar parte do que dele conhecemos. Entretanto, dizer de um objeto que ele é 'chato', 'complicado', 'difícil' etc. representa apenas manifestar atitudes proposicionais sobre ele, já que tais predicações não representam propriedades descritivas e funcionais de um objeto, mas estados mentais do observador. 49 À predicação costumam ser associadas vantagens e desvantagens. Inclui-se, entre as vantagens, o fato de se constituir, ao menos na forma de predicados monádicos, num processo simples de aplicação atributiva12. A princípio, não há padrões lingüísticos específicos que precisem ser determinados para o preenchimento de P na fórmula S ε P , desde que preencha uma certa função descritiva. É, por esta razão, que o critério da predicação tem uma extensão de uso bastante abrangente, já que sua reprodução não requer maior rigor técnico. A essa facilidade de uso associam-se desvantagens de ordem diversa. Se a forma canônica não é suficiente para garantir um padrão de definições, já que nem sempre um elenco de propriedades é o modo mais eficaz para definir um objeto, ela acaba por transformar cada tentativa de definição num caso particular, já que não existem critérios seletivos para decidir, por exemplo, sobre a ordem de um conjunto de propriedades. Esta dificuldade tem sido lembrada por aqueles que defendem a necessidade de princípios ordenadores para as categorias, ao menos quando pensadas em termos de composicionalidade. Desta dificuldade acaba decorrendo uma outra desvantagem: o formato ad hoc das definições não nos permite operações de cálculo posteriores, já que a ausência de uma estruturação evidente barra qualquer tentativa de construção de processos formais de cálculo. Assim, não temos, por este processo, nenhum critério que nos permita formar definições mais complexas de outras mais simples; não temos nenhum procedimento algorítmico que nos permita transitar entre as definições em questão; não há nenhum princípio recursivo de reaproveitamento das categorias em definições ulteriores. Estas são algumas das dificuldades que, num grau de exigência formal maior, poderiam ser lembradas a partir do formato de predicação global. De que modo e em que extensão os fatos aqui relatados guardam alguma correlação com a segundidade ? Afinal, a predicação pode ser vista como um padrão no interior desta etapa de categorização, nos termos delineados por Peirce ? Inicialmente, é importante destacar o fato de muitos estudiosos de Peirce atribuírem a predicação monádica à primeiridade, já que ela representa apenas uma forma primitiva de atribuição de qualidade. É provável que o resultado oriundo desse tipo de predicação, de fato, enquadre-se dentro dos requisitos gerais de construção do conhecimento na primeiridade, isto 12 Esta é uma das razões através da qual alguns autores costumam vincular predicados monádicos à primeiridade (PINTO, 1995. p. 41.). Os predicados monádicos, resultantes de uma operação simples entre um argumento e uma propriedade a ele associada, representariam uma operação básica de primeiridade, onde apenas a qualidade de um objeto (argumento) é reconhecida e não, por exemplo, relações outras que são derivadas de predicados não-monádicos. 50 é, o de mera sensação de qualidade e que, portanto, represente uma etapa pré-reflexiva. Todavia, a questão não pode, no nosso entendimento, ser vista apenas por este ângulo, pois, a princípio, a suposição de que predicados monádicos possam integrar-se à primeiridade implica extrair-lhes todo poder de estruturação lógica e racional que lhes tem sido conferido na história da lógica. Assim, quando dizemos, por exemplo, que x é macio, a primeiridade nos assegura apenas as condições de maciez de x, mas não o procedimento lógico, metalingüístico, que nos permite, dentre muitas predicações concorrentes, formular esta para x. Além do mais, os predicados monádicos não asseguram apenas supostas propriedades primárias: quaisquer propriedades, como já supunha a forma canônica S ε P, comportam este tipo de formulação e nem todas elas podem, certamente, integrar-se à primeiridade. Assim, qualquer modelo de predicação representa uma forma genérica de conhecimento e não mais mera sensação, obtida aquela por operações lógicas que envolvem algum padrão de elaboração metalingüística, por exemplo, a construção do conceito de um determinado objeto, mediante a reunião de um conjunto de propriedades que lhe são associadas. Logo, se na formulação de Peirce caminhamos de uma sensação de qualidade para um confronto, sendo este o primeiro nível de elaboração conceitual, resultante do contraste, ao menos, entre dois objetos, parece adequado admitir que a predicação não possa mais ser atribuída à primeiridade, pois ela já implica um grau de compreensão dos objetos que não pode mais ser resultante apenas de uma sensação de qualidade. Somente podemos conjecturar sobre esta elaboração conceitual, na medida em que ela se define, como parece determinar Peirce, por exigências que são impostas para um processo de predicação, que, cada vez mais, se incumbe de apontar para o existente, de isolá-lo, de reconhecer-lhe um estatuto que a primeiridade não foi capaz de determinar. Independente da sua forma lógica, à predicação caberá sempre a função de reconhecer, num universo ainda disforme, denominado pela sensação de qualidade, aquilo que Peirce denominou de uma modificação pelo esforço inteligente. Provavelmente, a humanidade não conhece nenhum outro mecanismo formal mais natural e socialmente disseminado do que a predicação, para representar este esforço inteligente. 51 2.3.2 Composicionalidade O segundo aspecto do critério definicional, como mencionado, diz respeito ao princípio da composicionalidade. Segundo esse princípio, o significado que atribuímos a objetos, em geral, não representa uma totalidade a priori. mas decorre de um processo de aglutinação de unidades, resultando em matrizes conceituais, com graus diferentes de especificidade, mas capazes de selecionar aspectos da realidade. A base da construção de uma matriz conceitual é um conjunto de categorias atômicas13, de base semântica distinta, que podem ser submetidas a uma forma de organização particular. Composicionalidade não representa também uma compreensão uniforme dos fatos em questão: ainda que princípios gerais venham nortear parte da sua concepção, existem modos diversos de abordagem, que operam a partir de condições diferenciadas e que, em conseqüência, produzem formatos matriciais próprios. Assim, dentro da Semântica Estrutural, a abordagem sêmica apresentou um formato de análise que implicava colocar, lado a lado, os objetos de um dado conjunto e, deste cotejo, formular relações estabelecidas entre os seus membros. Estas relações entre membros eram asseguradas em razão de três conceitos gerais: o classema, que funciona como uma espécie de condição geral para membramento, isto é, uma forma de filtro que decide sobre a pertinência ou não de um dado elemento num conjunto; o semema, princípio regulativo do lugar específico de um membro no conjunto; e o sema, como padrão estrutural genérico, capaz de assegurar um teor de objetividade às operações de conjunção e disjunção, necessárias à construção do classema e do semema. Por sua vez, as relações de disjunção e de conjunção, ao condicionar agrupamentos possíveis de semas, tornavam-se instrumentos adequados à criação de estruturas. Havia ainda uma quarta categoria, o virtuema, com peso formal menos definido, mas com uma função importante neste esquema, ou seja, a de ser portadora de toda transformação possível para estruturas compreendidas no âmbito do classema e do semema. Ainda que pesem críticas severas sobre a forma de operar esse esquema na descrição do significado das 13 No fundo, cada um dos elementos deste aglomerado nada mais é do que um predicado monádico possível, onde a forma lógica já dispensa o papel da cópula, por valer-se de uma forma matricial de composição. 52 línguas naturais, há méritos que devem ser aqui reconhecidos, na medida em que nos dispomos a assumir tal esquema na dimensão de um modelo explicativo para a formação de conceitos (e não como padrão componencial para o significado, forma que lhe foi quase sempre associada). Que aspectos, em razão do tema em análise, podemos extrair da dimensão sugerida ? O esquema de análise acima esboçado pode ser compreendido como um padrão de determinação das condições gerais sobre um formato possível que nos permite conhecer, em etapas diversas, um objeto. Ao definir as condições de pertinência de x num dado domínio, o classema se coloca como condição primeira que é dada para conhecer x, já que quaisquer operações subseqüentes implicam uma dependência desse primeiro passo. Assim, sobre qualquer objeto de alcance do nosso conhecimento, podemos determinar o classema, isto é, o conjunto dos semas que decidem sobre a sua inclusão numa dada classe e não em outra. Quando o nosso conhecimento específico sobre algo é incompleto, costumamos dizer que se trata de “um tipo de...”, “uma espécie de... “14. Tais expressões tipificam, de um modo geral, a função exercida pelo classema. No outro extremo da necessidade de inserção na classe, condição imposta pelo classema, está a possibilidade da sua extensão para outros domínios, função que é desempenhada pelo virtuema, que determina, para um membro qualquer de um conjunto, outras realidades virtuais a que se aplica. Por último, entre estes dois pólos, situamos as condições específicas para reconhecer membros de uma classe. Estas condições permitem a determinação de sub-classes de uma classe, de membros de uma sub-classe, como ainda de idiossincrasias de membros. Esse processo de etapas sucessivas no reconhecimento de recortes de uma realidade é assegurado pelo semema, um conceito com um grau de complexidade operacional muito grande, porque implica a construção de matrizes conceituais para a justificação de cada uma dessas etapas. O semema pode ainda ser aplicado na compreensão de uma certa gradiência entre os membros de um conjunto. Assim, além do critério clássico de remembramento − pertinência ou não-pertinência −, a análise sêmica acentua a importância de uma análise ulterior dos membros de um conjunto, numa tentativa de fixação das correlações existentes entre membros específicos. O funcionamento de cada uma 14 Operadores lingüísticos como estes e tantos outros foram denominados por LAKOFF(1972. p. 183-228) como hedges , por traduzirem uma forma genérica de categorização, apontando apenas para o domínio da classe dos objetos. Assim, asserções como Num certo sentido, baleia é um peixe ou Morcego é um tipo de pássaro não asseguram que baleia e morcego sejam membros da classe de peixes e pássaros, respectivamente, mas apenas mostram que eles partilham de propriedades comuns aos membros destas classes. 53 dessas categorias, em particular e no seu conjunto, está vinculado à objetivação de um cálculo, de uma métrica que devia ser assegurada por operações não só de disjunção de semas, como também de conjunção de semas.15 O segundo aspecto da composicionalidade, que nos importa de modo mais direto, diz respeito à Semântica Interpretativa que será vista aqui como princípio genérico de representação conceitual. Que aspectos desta abordagem têm relevância para a discussão de problemas, relacionados à segundidade ? Passemos a uma caracterização do problema. A Semântica Interpretativa parte do mesmo pressuposto básico da abordagem anterior, assumindo que o significado não é uma entidade atômica, mas um compósito de predicações atomizáveis. Além do mais, e aqui as duas abordagens se distanciam, sua composição seria assegurada por regras de cálculo (um cálculo de segunda ordem, como era a pretensão), capazes de justificar, em cada instância, objetos cada vez mais complexos, como polissemia, sinonímia, implicação, analiticidade, sinteticidade, anomalia. No fundo, esta abordagem apostou na construção de um sistema de regras que traduzisse uma dimensão rigorosa de cálculo do significado, cujo modus operandi deveria implicar uma passagem do simples (leitura primitiva) para o complexo (leitura derivada) e do global (possibilidades virtuais) para o local (realizações particulares). O alcance pretendido por essa abordagem implicou um rastreamento distinto do significado: já não se trata apenas de um cotejo extensional entre signos-objetos, como se procedia na análise sêmica, mas da necessidade de se incorporarem a essa dimensão de análise semântica propriedades lexicais e relações lógico-gramaticais como determinantes do cálculo. Considerando-se a importância da sintaxe nessa nova incursão da análise do significado, outra compreensão dos objetos semânticos tornou-se possível, já que estes passaram a ser concebidos em decorrência de filtros impostos pelas relações gramaticais sobre o amalgamento de unidades lexicais. Quanto à questão restrita ao formalismo lógico, essa incursão resultou na tentativa de se buscar um formato de cálculo que pudesse superar os 15 O outro padrão de análise do significado, dentro do Estruturalismo, está associado à análise componencial. Na extensão do nosso trabalho não vemos, em essência, uma razão maior de sua exploração aqui, pois corremos o risco de repetição, em razão dos aspectos em que se aproxima da análise sêmica, ou de tecnicidades excessivas na análise lingüística, se voltamos para sua intervenção específica. 54 padrões do cálculo dos predicados, desenvolvido pela lógica moderna. A resposta alcançada por essa tentativa apontou para a necessidade de uma outra perspectiva de cálculo, isto é, um cálculo de segunda ordem, de tal modo a permitir predicado atuar sobre predicado. Dessa preocupação resulta, portanto, uma nova concepção de forma lógica: não apenas propriedades lógicas tradicionais (quantificadores, negação, relação sujeito/predicado) devem ser acionadas para o cálculo do significado, como ainda as propriedades que compõem a matriz semântica de qualquer item lexical. Assim, o conceito de cálculo do significado, na dimensão aqui concebida, resulta de operações formais das regras de projeção, destinadas ao amalgamento de propriedades lexicais, com base em leituras lexicais, em unidades cada vez maiores, leituras derivadas, respeitadas as relações gramaticais, determinantes da estrutura sintagmática da proposição. Como podemos entender a presença dessa abordagem nos aspectos concernentes à construção e à representação do conhecimento ? De que modo ela opera, tornando possível uma aproximação com esse problema ? Apesar das dificuldades que foram apontadas para essa abordagem, sobressai, da sua formulação teórica, o fato de ela poder constituir-se num modelo de representação conceitual que possibilita ´calcular´ unidades mais complexas, a partir de uma matriz de predicados atômicos, como abaixo exemplificado: MATRIZ CONCEITUAL: {x, 1. ( [animado] ) ∧ 2. ( [humano] ∨ [não-humano] 16) ∧ 3. ( [macho] ∨ [fêmea] ) ∧ 4. ( [adulto] ∨ [não-adulto] ) ∧ 5. ( [casado] ∨ [não-casado] ∨ [nunca-casado] ∨ [ex-casado] )}. 16 A escolha possível do caminho [não-humano] deveria contar com um filtro que limitasse derivações seguintes, em razão do campo de aplicação do conceito. Do ponto de vista biológico, nada impede que avancemos até a linha 4, inclusive, mas a linha cinco só é aplicável à vida social de seres humanos. Certamente, poderíamos tornar a linha 5 aplicável a animais, substituindo [casado] por [cruzado]. Do ponto de vista da existência de termos disponíveis numa língua, as linhas 3 e 4 já apresentam dificuldades. 55 Com base em certas regras de derivação, podemos obter, como exemplo de aplicação da matriz acima, os seguintes conceitos: 00. { ser vivo, ( [animado] ) } 01. { homem[+genérico], ( [animado] ∧ [humano] ) } 02. { homem[±±genérico], ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ) } 03. { homem[-genérico], ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [adulto] ) } 04. { menino, ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [não-adulto] ) }17 05. { marido, ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [adulto] ∧ [casado] ) } 06. { solteiro, ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [adulto] ∧ [não-casado] ) } 07. { solteirão, ([animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [adulto] ∧ [nunca-casado] ) } 08. { separado, ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [adulto] ∧ [ex-casado] ) }18 Dada a matriz conceitual anterior (certamente incompleta ainda para determinar todos os membros admissíveis numa classe possível de objetos), dadas as derivações apresentadas de 00 a 08 (o mesmo poderia ser feito para conceitos derivados de mulher, com a alteração da matriz conceitual a partir de 02), podemos, então, entender a natureza do cálculo proposto pelos teóricos dessa abordagem. Avaliando realizações da matriz conceitual em derivações específicas, constatamos que a formação de um conceito singular está sujeita a uma restrição geral: um conceito particular é constituído, mediante a aplicação da regra de formação que seleciona, a partir da matriz conceitual, ao menos um traço atômico de cada uma das linhas de derivação, numeradas de 1 a 5, na matriz em análise. Essa regra deve definir as condições de existência Ainda que pelas restrições gerais ([macho] ∨ [fêmea]) devam ser mutuamente exclusivos na formação de um conceito, há categorias na língua em que esta oposição aparece neutralizada, como no caso seguinte: { criança, [animado] ∧ [humano] ∧ ([macho] ∨ [fêmea]) ∧ [não-adulto] }. Assim, a presença de elementos isolados por parênteses na formação de um conceito particular e, por conseguinte, a presença de um conectivo disjuntor, implica a neutralização do traço conceitual em questão. 17 18 Este arranjo de categorias pode também ser usado para expressar outros exemplares: assim, desquitado ou divorciado têm uma representação semelhante, mas devem ser distingüidos com base em informações que convencionam o uso de cada um. 56 de quaisquer membros de um dado conjunto pela aplicação sucessiva de uma operação de adição de traços, como veremos abaixo. Entretanto, sua função primordial é garantir, acima de tudo, o membramento em classe e sub-classe. Desse modo, comparando, progressivamente, a passagem de uma derivação precedente para a sua subseqüente, notamos a existência, na formação de um conceito, de duas operações básicas de cálculo: (i) adição de propriedades: Dada a matriz conceitual abaixo, onde cada etapa da derivação compõe-se de três traços disjuntivos e dada a regra de formação, onde um conceito (C i) é formado pela seleção de, ao menos, um traço numa das linhas de derivação19, o procedimento para a composição de um conceito singular se faz, mediante a somatória de componentes disjuntivos, selecionados no interior dos parênteses, isto é: Matriz Conceitual: {... ( [x] ∨ [y] ∨ [z] ) i ∧ ( [x] ∨ [y] ∨ [z] ) j ... } Regra de Formação: { C i : ( [x] ) i ...} Adição de propriedades: (a) - { C j : ( [x] ) i ∧ ( [x] ) j } (b) - { C k : ( [x] ) i ∧ ( [x] ) j ∧ ( [x] ) k } (c) - { C l : ( [x] ) i ∧ ( [y] ) j ∧ ( [y] ) k ∧ ( [y] ) l } (d) - { C m: ( [x] ) i ∧ ( [x] ) j ∧ ( [x] ) k ∧ ( [y] ) l ∧ ( [y] ) m }; Todas as derivações de (a) a (d) são formas possíveis que podem assumir a regra de formação, depois de uma operação reiterada da adição, que seleciona componentes variados na matriz 19 No fundo, esta seleção de um único elemento, numa linha de derivação, é possível, formalmente, já que podemos falar do conceito de “adulto”, ou do conceito de “macho” de modo independente. Entretanto, o uso que fazemos destes conceitos se dá de forma integrada a outros conceitos, quando falamos de pessoas ou de animais. 57 conceitual para a composição de um conceito. Os limites de sua aplicação dependem, de modo direto, da natureza da matriz conceitual concebida, ou seja, do número de linhas derivacionais nela contidas e dos traços disjuntos incluídos em cada linha. Quanto mais extensas e complexas forem essas duas dimensões de uma matriz, tanto mais a adição terá liberdade de operar.20 Aqui, todavia, reside uma dificuldade para a qual a teoria não apresenta uma solução apropriada: a necessidade de um limite a ser imposto ao número de linhas que deve conter uma matriz conceitual. Vejamos, então, a segunda operação que podemos realizar, com base numa matriz, para formar conceitos: (ii) permuta de propriedades: dadas as possibilidades combinatórias de uma matriz conceitual, dada uma regra de formação (ambas contendo as mesmas especificações anteriores), obtém-se a composição de um conceito singular, mediante a somatória de componentes disjuntos, selecionados no interior de um parênteses (adição) e, subseqüentemente, na troca possível de quaisquer dos componentes do conceito formado, onde quer que haja disjunção nas linhas derivacionais utilizadas. Assim, podemos ter: Matriz Conceitual: {... ( [x] ∨ [y] ∨ [z] ) i ∧ ( [x] ∨ [y] ∨ [z] ) j ... } Regra de Formação: { C i : ( [x] ) i ... } Adição de Propriedades: (e) - { C l : ( [x] ) i ∧ ( [y] ) j ∧ ( [y] ) k ∧ ( [y] ) l } (em (a) anterior) Permuta de Propriedades: (f) - { C l : ( [x] ) i ∧ ( [y] ) j ∧ ( [y] ) k ∧ ( [z] ) l } (em (e) acima) (g) - { C l : ( [x] ) i ∧ ( [y] ) j ∧ ( [x] ) k ∧ ( [z] ) l } (em (f) acima) (h) - { C l : ( [x] ) i ∧ ( [x] ) j ∧ ( [x] ) k ∧ ( [z] ) l } (em (g) acima) 20 Existem restrições complementares a serem feitas nesse processo de adição de propriedades: por exemplo, embora situados em parênteses distintos, não possível é associar [não-adulto] a [nunca-casado], já que proposições como Conheço um solteirão de quatro anos de idade não seriam aceitas, normalmente, pelos falantes, a não ser com vistas a algum contexto específico. 58 A formação de um conceito particular é, portanto, resultado apenas da relação conjuntiva, aplicada a elementos disjuntos (cf. 01-08 acima, p. 56), já que um conceito, na extensão dessa abordagem, é um somatório de propriedades atômicas. Assim, a base de uma especificação conceitual, cada vez mais singular, decorre de uma operação de adição de propriedades atômicas, a partir de alguma seleção inicial feita através da regra de formação. A idéia de uma operação de permuta, como aqui apresentada, é importante apenas na formulação de um contraste conceitual, porque nos permite derivar de formações conceituais complexas, outros conceitos em razão da troca de propriedades incongruentes e mutuamente exclusivas. A permuta, porém, só se justifica em razão deste contraste, uma vez que ela é, no fundo, uma operação de adição também. Assim, se admitimos a existência de ambas as operações para formar conceitos, devemos ordená-las de modo a permitir que a permuta só possa ser aplicada depois de, ao menos, uma aplicação da adição e para os casos de presença da disjunção numa matriz. Todo este conjunto de conceitos acima representa, na concepção da Semântica Interpretativa, leituras primitivas, embora tenhamos mostrado derivações de formas mais complexas a partir de formas mais simples. O alcance das leituras derivadas está circunscrito a um outro padrão de cálculo, que obriga a incorporação de relações/propriedades gramaticais, porque o fundamento destas leituras é determinado por estruturas proposicionais (e não apenas no cálculo de estruturas conceituais para itens lexicais, como destacamos no exemplo). Vejamos um aspecto dessa questão, a partir das frases abaixo, numa interpretação preferencial, orientada para os elementos em questão: (07) O homem está destruindo a natureza. (em contraste com outros animais) (08)Todo homem deve lutar por seus direitos trabalhistas. (em contraste com mulher) (09) Um homem já não tem mais habilidade para isso. (em contraste com criança). Como vimos nas derivações de 01 a 03 (p.56), o conceito homem apresenta-se de três formas distintas, o que resulta em três conceitos diferentes de homem. No primeiro caso, a natureza da predicação que atribuímos a homem (destruir a natureza), como um fato 59 genérico associado à intervenção de toda a humanidade na natureza e em contraste com outras formas animais que não são humanas, nos obriga interpretá-lo como: (07) O homem está destruindo a natureza. ↓ ([animado] ∧ [humano])[+genérico] (Cf. 01. { homem[+genérico], ( [animado] ∧ [humano] ) }) No segundo caso, embora a leitura de [+genérico] seja parte do conceito homem, não está em julgamento aqui um contraste possível com a permuta do traço [humano] para [nãohumano], dado o fato de que a natureza da predicação presente (lutar por direitos trabalhistas) recorta apenas o universo dos seres humanos. Para este universo, no entanto, pode-se, em razão de circunstâncias históricas específicas, apontar duas leituras possíveis para homem: uma que aproveita a dimensão do [+genérico], mostrando que a luta é partilhada tanto por homens, como por mulheres (numa circunstância histórica em que ambos os tipos de força de trabalho fossem institucionalizados); outra que aproveita apenas a dimensão do [± genérico], realçando a luta de seres do sexo masculino (por suposição, uma circunstância histórica em que um contraste entre força de trabalho de homem e mulher estivesse em contraposição). Daí decorre, então, a seguinte interpretação possível, em razão de propriedades semânticas derivadas do predicado: (08) Todo homem deve lutar por seus direitos trabalhistas. ↓ ([animado] ∧ [humano])[+genérico] (primeira leitura) (([animado] ∧ [humano])[+genérico] ∧ [macho])[±genérico] (segunda leitura) (Cf. 02. { homem[±±genérico], ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ) }) 60 O exemplo (09) pode comportar leituras derivadas correspondentes aos três níveis do conceito homem, em razão da natureza semântica do predicado ter habilidade, como propriedade que aplicamos não só a seres humanos, para falar de um adestramento intelectual ou físico na execução voluntária de tarefas, mas ainda a animais, em termos de adestramento físico. A dimensão do [+genérico] permite comparar a habilidade de seres humanos com a de animais: por exemplo, a perda de certas maleabilidades físicas, ocasionadas pelo processo de socialização, de industrialização etc. Por outro lado, (09) pode partilhar a dimensão do [± genérico], porque podemos contrapor esta habilidade (intelectual ou fisicamente), comparando atividades para as quais os homens não estão mais aptos, em contraste com as mulheres. Pode (09) comportar, também, a dimensão do [- genérico], onde o contraste apontado, a partir da natureza da predicação, será entre homens e crianças. À medida que avançamos de uma derivação para outra, a interpretação torna-se cada vez mais restrita, porque leva em conta um percurso derivacional mais longo ou um número maior de traços para que o conceito seja formado. O resultado dessas observações é, portanto: (09) Um homem já não tem mais habilidade para isso. ↓ (animado] ∧ [humano])[+genérico] (primeira leitura); ((animado] ∧ [humano])[+genérico ∧ [macho])[±genérico] (segunda leitura); (((animado] ∧ [humano])[+genérico ∧ [macho])[±genérico] ∧ [não-adulto])[-genérico] (terceira leitura); (Cf. 03. { homem[-genérico], ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [adulto] ) }) As explicações que foram apresentadas como justificativas de leituras possíveis para as três proposições levaram em conta, não o conjunto dos fatos que deveriam ser assumidos como suporte formal para cada uma das leituras (outras relações gramaticais, propriedades semânticas de outros itens lexicais, valor argumentativo de certos operadores ...), mas apenas aqueles fatos que estavam mais próximos de uma fundamentação do conceito homem. Podemos, logo, considerar que a composicionalidade, pode ser justificada como um padrão de 61 predicação descritiva e assumida como um suporte para a formação e a representação conceitual, a partir de modelos de raciocínio como este que acabamos de descrever.21 Em que extensão, portanto, podemos aproximar, em razão da tentativa de mostrar possibilidades para a formação de conceitos, as duas dimensões da composicionalidade, que foram acima descritas, com aspectos da segundidade, na extensão considerada ? Se a segundidade se apresenta como o lugar onde se instaura o confronto, primeiro estágio que Peirce parece conferir à racionalidade, é preciso determinar que tipo de procedimentos somos levados a construir para poder operar com os ‘resultados’ deste confronto. Em outras palavras, se à segundidade conferimos a etapa de uma construção racional (ainda que incipiente), devemos, então, determinar que padrões regem essa construção. A composicionalidade, nos dois formatos aqui discutidos, contém uma dimensão que se aproxima da predicação, na medida em que ela é também uma forma de reconhecer o domínio de um dado objeto. Entretanto, os detalhes nesse reconhecimento seguem um caminho um tanto mais sinuoso: se num enunciado como Isto é um homem, a forma predicativa ser homem determina o domínio imediato do objeto para o qual isto aponta, sabemos, pela análise anterior, que o reconhecimento desse domínio se faz de forma paulatina, já que, dependendo da extensão de homem, muitas etapas sucessivas teriam de ser rompidas (conforme as derivações acima mostraram: [animado] → ... → [adulto]). O grau de pertinência em sub-domínios distintos decorre da aplicação de cada uma das derivações em tela. Tal fato nos mostra que nem todo conceito é obtido, na sua totalidade, de forma imediata: se existe uma escala gradativa de membramento, é possível que exista também, nas mesmas proporções, escalas gradativas de categorização. Fatos dessa natureza parecem adequados à compreensão dos preceitos que regem a segundidade. Se ela se fundamenta pela idéia de confronto e se é a partir dele que começamos a construir um padrão de racionalidade para nossa experiência sensível, é adequado supor, então, que esse confronto não se dê de modo total e único. Certamente, a cada momento a nossa experiência sensível poderá estar recolocando, em novos confrontos, objetos anteriormente experimentados. 21 Muitas objeções foram apontadas em torno deste formato de análise. No fundo, elas traduzem duas dificuldades genéricas: (a) a dificuldade da fixação de um quadro universal de traços atômicos primitivos e (b) a impossibilidade, para muitas circunstâncias, de construção de definições analíticas. Polêmicas entre KATZ (1975) e PUTNAM (1975) mostram grande parte dessas dificuldades. 62 Se é ainda do confronto que surgem as nossas experiências intelectivas, podemos supor ser impossível definir um limite superior dessas experiências, já que, em cada circunstância, um mesmo objeto poderá estar sendo submetido a novas etapas de confronto, pois não existe nenhum limite que possamos imputar às relações de um objeto com outros. A composicionalidade, apesar das dificuldades formais e ontológicas que enfrenta, parece ser, pois, a princípio, um procedimento viável para a compreensão dos problemas discutidos por Peirce no plano da segundidade. A capacidade infinita que temos para confrontar objetos ativa não apenas o nosso dinamismo perceptual frente àquilo que experimentamos, como ainda a nossa capacidade infinita de formar conceitos. Se o nosso organismo não se orientasse por essas duas perspectivas para o conhecimento, estaríamos circunscrevendo um limite superior para o conhecimento e estaríamos impendindo que segundidade e terceiridade se remodelassem continuamente: uma formando conceitos, a outra os representando. Uma compreensão menos genérica dos fatos que compõem a segundidade, na extensão de uma formação de conceitos, possibilita, portanto, uma aproximação ao princípio da composicionalidade, na forma como foi pensada a partir de algumas teorias semânticas. Não se trata de uma explicação derradeira do problema, mas apenas uma forma de tornar mais operacional o que pode, a partir da formulação de Peirce, representar um modo específico de determinar, em termos das exigências de uma epistemologia atual, um padrão de explanação para a segundidade. 2. 4 Segundidade e modelos de categorização conceitual 22 Nesta seção, discutiremos alguns aspectos de três abordagens teóricas importantes − Teoria dos Conjuntos, Fuzzy Set Theory e Teoria dos Protótipos − em termos daquilo que possam representar para uma avaliação mais detalhada da segundidade. Em outros termos, tentaremos mostrar como é possível reinterpretá-las como uma explicação plausível de um 22 Estamos usando o termo categorização como designação genérica para alguns aspectos das formulações elaboradas no interior da Teoria dos Conjuntos, da Teoria dos Protótipos e da Fuzzy Set Logic, certamente aquelas que se aproximam mais da reflexão aqui desenvolvida. 63 alcance mais específico para a segundidade. O princípio básico que norteará toda discussão continua sustentando esta última como um patamar, na tópica peirceana, de formação conceitual. 2.4.1 Teoria dos Conjuntos (TC) Comumente atribui-se a CANTOR (citado por KNEALE & KNEALE, 1980, p. 445) a proposição inicial de uma Teoria dos Conjuntos e é nela que buscamos a definição de conjunto que assumiremos como ponto de partida desta reflexão. Para Cantor, um conjunto é “a reunião num todo de objetos da nossa percepção ou do nosso pensamento que são definidos e distintos e que se chamam elementos do conjunto”. Aqui estamos interessados num aproveitamento de aspectos desta teoria, não no que ela representa de específico para abordar, por exemplo, relações e propriedades lógicas de números, mas no que ela pode prover em termos da formação e da representação de conceitos. E, neste particular, achamos que a teoria tem muito a oferecer, como tentaremos mostrar, em decorrência da definição de conjunto apresentada. O modo pelo qual o autor define conjunto sugere um problema que está no cerne da nossa discussão, isto é, o de apontar para o alcance da percepção e do pensamento como expedientes necessários para reunir objetos num todo, ou em partes constitutivas desse todo, − os sub-conjuntos. Ainda que esses dois parâmetros sejam amplos demais para delimitar as operações de membramento, é possível determinar-lhes uma forma instrumental de operar, a partir dos dois formatos de atomização conceitual, por exemplo, vistos na seção anterior. Afinal, procuramos demonstrar que predicação e composicionalidade são instrumentos formais, através dos quais podemos definir parte da nossa atividade de perceber e de pensar. Além disso, é importante, em razão do nosso interesse teórico, o fato de Cantor destacar as razões da experiência sensível, como possibilidade do reconhecimento de elementos de um conjunto. 64 Na Teoria dos Conjuntos, na sua versão clássica23, o reconhecimento de certo objeto, como membro de um conjunto, pode ser avaliado em função dos critérios que usamos para decidir sobre a sua pertinência ou não em um domínio específico. Por exemplo, dado objeto pode ser considerado membro da classe <vassoura> se pudermos decidir, por alguma forma de avaliação − suas propriedades descritivas, seus traços característicos, ou sua função −, a percepção que temos dele, ou a forma pela qual o concebemos em pensamento. Nesse caso, ele reúne as condições suficientes para integrar-se ao domínio, no qual estão agrupados todos os outros objetos-do-tipo-vassoura, ou objetos que guardem alguma semelhança com ‘vassoura’. Pelo contrário, diremos que tal objeto não pertence ao domínio em análise, se não guarda uma identidade, pelas razões apresentadas, com os outros membros do conjunto. Em linhas gerais, podemos assumir essa abordagem sobre conjuntos, para falar de critérios de decisão sobre o reconhecimento de um objeto qualquer e, nesse sentido, formar-lhe um conceito é definir critérios para decidir o seu domínio de pertinência. E é nessa dimensão que nos interessa resgatar aqui, para uma avaliação que ultrapassa o escopo de objetos e de relações formais em razão dos quais a Teoria dos Conjuntos foi concebida, alguns aspectos da sua organização. Mesmo desconsiderando, neste momento, alguns aspectos formais que serão mostrados à frente, seria importante destacar, de modo genérico, características e dificuldades que estão associadas aos critérios de decisão sobre a pertinência . Assim, ao tentar avaliá-la, em função de circunstâncias específicas, enfretamos o fato de nem sempre ser possível dispor, com clareza, dos critérios que definem sua aplicação. Analisemos alguns aspectos dessa questão, a partir das especificações seguintes: I - Teoria dos Conjuntos Condição geral (CG): (∀x ∈ D); Condição particular (CP): CA : D → {0, 1}. 23 O traço característico dessa versão, que estaremos explorando no texto, relaciona-se à aplicação do esquema binário {0, 1} na avaliação da pertinência ou não-pertinência de um dado elemento num conjunto. Outros aspectos dessa abordagem serão mostrados mais à frente, num comentário sobre a Fuzzy Set Theory, como extensão da versão clássica. 65 Convenções: D = conjunto genérico C = conceito característico A = sub-conjunto de D As condições impostas por (CG) e por (CP) acima determinam que, para todo x, pertencente ao domínio genérico D (CG), se x satisfaz o conceito característico C, então x pertence a A, sub-conjunto de D, podendo assumir o valor {0} ou {1} (CP). Essa regra pretende-se geral, pois é através dela que decidimos sobre a pertinência ou não de um objeto num dado domínio. Assim, por exemplo, se propriedades de um objeto especificado em x partilham do conceito característico C, então o objeto em análise é um membro de A e a ele podemos atribuir o valor {1}. Caso contrário, determinamo-lhe o valor {0}. Há, todavia, dificuldades conceituais de expansão dessas condições, para justificar a compreensão de objetos naturais e artefatos. A maior delas traduz-se pela necessidade de compatibilizar a rigidez do conceito característico com a fluidez das propriedades de alguns dos objetos em questão. A partir das condições acima, existem objetos para os quais uma decisão sobre sua pertinência em um dado domínio pode, de fato, ser confirmada com base no sistema binário em questão, {0, 1}, onde os dígitos representam um valor-verdade atribuível a quaisquer indivíduos candidatos ao membramento em um domínio especificado. Esse procedimento de avaliação da pertinência ou não-pertinência processa-se, de modo geral, numa relação entre indivíduo-classe: há indivíduos aspirantes a membros e há propriedades, associadas a uma dimensão da classe, que operam como critérios de pertinência. Assim, a classe <pessoas> define, como critério geral de pertinência, uma combinação de propriedades como ([animado] ∧ [humano]), que representam o conceito característico C, para um sub-domínio P. Logo, seres nomeados pelos signos ‘pai’, ‘mãe’, ‘carteiro’, ‘motorista’, ‘jogador’ satisfazem a essa condição e, por esta razão, pertencem ao domínio em análise, podendo lhes ser atribuído o dígito {1}, por exemplo. Objetos como ‘cadeira’, ‘livro’, ‘árvore’, ‘cão’, ‘macaco’ não satisfazem essa condição e a eles devemos atribuir, por oposição, o dígito {0}, marca de sua exclusão do conjunto. Para tantos outros campos da atividade humana, o procedimento de conhecer um objeto opera de modo semelhante: para incluirmos um número qualquer no conjunto <números primos> é necessário que ele satisfaça os critérios de inclusão nessa classe, isto é, que admita, como conceito característico, apenas os divisores 1 e x, sendo x o número em questão. Desse modo, {2, 7, 13 e 19} são primos, enquanto {8, 15, 21 e 45} não o 66 são. No segundo caso, qualquer membro admite como divisor, além de 1 e x, outros números como − 2 e 4; 3, 5, 9 e 15 −, considerando-se o primeiro e o último membro listados. A capacidade que temos para incluir ou para excluir objetos de uma classe talvez represente a primeira forma elaborada de conhecimento que temos destes objetos: conhecer um objeto é, ao menos, reconhecer-lhe o domínio de pertinência (ou de não-pertinência), e apontar esse domínio é o primeiro estágio da construção de um conceito do objeto, ou seja, associamos a ele, minimamente, as propriedades que regulam sua inclusão (ou sua exclusão) no (do) conjunto. Quando estamos diante de um objeto desconhecido e indagamos ‘para que serve isso’, operamos, pragmaticamente, com a necessidade de determinação de um domínio funcional para esse objeto. Se a resposta for ‘serve para cortar papel’, incluímo-lo, de imediato, no conjunto de ‘tesoura’, ‘espátula’, ‘estilete’, ‘guilhotina’ ... Então, como vimos anteriormente, conhecer um objeto artefato, nos termos de MONOD (1972), significa associar-lhe um projeto24 para o qual ele foi construído. Aqui vinculamos a esses objetos o projeto instrumento para cortar papel, que também é o seu conceito característico. A natureza, entretanto, nem sempre nos assegura uma linha divisória nítida entre os elementos aos quais podemos atribuir {0} e aqueles a que atribuímos {1}: na diversidade dos fatos da realidade, é mais comum encontrarem-se domínios onde membros centrais convivem com a possibilidade de membros mais ou menos periféricos. Nos dois exemplos analisados, a questão não parece relevante. O fato de ‘8’ admitir quatro divisores e ‘45’, seis divisores, não faz daquele um candidato a membro menos periférico do que este ao conjunto <números primos>. Tal constatação deve-se apenas a uma circunstância associada à posição desses números na escala dos números naturais: quanto mais avançamos na série, se não se trata de um número primo, tanto maior pode ser o número de divisores admitidos. Em outros termos, a matemática controla os membros desse conjunto através de um designador rígido (KRIPKE, 197...), conforme já foi mostrado, fazendo dele um conjunto não-fuzzy. No outro exemplo, a estratificação cultural que temos para o conjunto <pessoas>, de fato exclui, com clareza, os 24 Seguindo Monod, é possível afirmar que todo objeto artefato expressa um projeto, isto ém uma função para o qual ele foi construído. No outro extremo do contraste, estão os objetos naturais, para os quais não podemos universalizar a inexistência de um projeto a eles associados: não saberíamos dizer que projeto deve ser associado a ‘vento’, a ‘água’, a ‘pedra’... Entretanto, quando recortamos uma pedra para servir de revestimento parta pisos ou paredes, acrescentamo-lhe um projeto e, portanto, a transformamos em artefato. Há casos, porém, em que a função de uma espécie natural já está garantida, à revelia de qualquer manipulação: por exemplo, órgãos do corpo – ‘coração’, fígado’, ‘rins’... – são espécies naturais que contêm neles integrado um projeto. 67 elementos citados como não-membros, mas é claro que, ao menos a título de especulação, existem gradações na exclusão, isto é, existe uma distância diferente da não-pertinência entre OS elementos em análise. A possibilidade de ‘macaco’ ser incluído como um exemplar periférico do conjunto é muito maior do que a de ‘cadeira’ e ‘livro’; entretanto, aqui também, ao menos em termos das culturas a que temos acesso, existe um designador rígido para membramento no domínio <pessoas>. Em relação aos dados até agora comentados, o esquema binário {0, 1}, que atribui valor de pertinência ou não-pertinência a elementos pretendentes a membros de uma classe, é suficiente na tarefa de membramento. Como já mencionamos, no entanto, a diversidade da natureza nos impõe, em grande escala, decisões para as quais esse esquema já não é mais suficiente, a saber, casos em que a avaliação do domínio de pertinência de um objeto não pode ser arbitrada por meio de designadores rígidos, no formato binário em questão. Neste momento, já não temos mais clareza sobre a inclusão de um objeto, numa classe ou em outra qualquer. Há elementos que podem, em determinada circunstância, ser membros periféricos de um primeiro conjunto, em outra, ser membros centrais de um segundo, considerando-se maior ou menor aderência de certos traços ao conceito característico. Há elementos que se tornam membros de uma classe, em razão de um tipo de traço e deixam de sê-lo em razão de outro. Na realidade, deparamos com situações onde um objeto pode não satisfazer, em plenitude, os critérios de pertinência a um domínio, como também não contradiz esses critérios a ponto de dever ser dele excluído. A tentativa de se elucidarem questões dessa natureza possibilitou o desenvolvimento da Fuzzy Set Theory, desenvolvida por ZADEH (1966), cujos critérios de membramento são decididos por uma escala de gradiência entre os seus membros, conforme veremos na formulação seguinte. Concluindo, parcialmente, a importância da Teoria dos Conjuntos na discussão que está sendo realizada, seria importante reafirmar que as condições gerais de pertinência são procedimentos válidos na fixação de critérios mínimos que levem a uma compreensão mais precisa sobre a formação de conceitos. É claro que os padrões aqui determinados ainda são vagos numa empreitada mais localizada, mas é claro, também, que a idéia de pertinência, certamente, representa um passo decisivo sobre uma forma de racionalidade possível, aquela que, com certeza, nos possibilita alguma estruturação da realidade. De algum modo, para 68 quaisquer objetos do nosso conhecimento, seremos capazes de determinar, ao menos, o domínio a que eles pertencem. E esse procedimento já é uma condição primeira para a formação do seu conceito. 2.4.2 Fuzzy Set Theory (FST) As motivações principais da FST decorrem, precisamente, da dificuldade maior que se constatou acima, em 2.4.1, isto é, a existência de classes de objetos naturais ou artefatos, importantes como princípios de classificação e de informação humana, cujo critério de membramento não pode ser determinado com precisão, através de uma escala binária. ZADEH (1966, p. 338-9), na tentativa de superar essa dificuldade e ao introduzir os parâmetros gerais de um conjunto fuzzy, contrasta o alcance de sua proposta em sua relação à Teoria dos Conjuntos: “The purpose of this note is to explore in a preliminary way some of the basic properties and implications of a concept which may be of use in dealing with “classes” of the type cited above. The concept in question is that of a fuzzy set, that is, a “class” with a continuum of grades of membership. As will be seen in the sequel, the notion of a fuzzy set provides a convenient point of departure for the construction of a conceptual framework which parallels in many respects the framework used in the case of ordinary sets, but is more general than the latter and, potentially, may prove to have a much wider scope of applicability, particularly in the fields of pattern classification and information processing. Essentially, such a framework provides a natural way of dealing with problems in which the source of imprecision is the absence of sharply defined criteria of class membership rather than the presence of random variables.” (p. 338-9) Desse comentário do autor, podemos destacar dois aspectos importantes a serem considerados numa comparação entre as duas abordagens. Quanto ao alcance de sua aplicação, a FST é considerada uma versão ampliada da TC e, em razão disso, ela altera a concepção de conjunto sobre a qual atua: enquanto a última os concebe numa dimensão descontínua, a primeira reafirma o seu teor de continuidade. Assim, a versão clássica (ordinary sets), na extensão do uso que dela estamos fazendo, define, como objetivo, a 69 determinação de critérios binários para a pertinência ou não-pertinência em domínios descontínuos. A versão ampliada (fuzzy sets) pretende determinar critérios que permitam avaliar “class with a continuum of grades of membership”, descartando, por esse motivo, critérios binários. Do ponto de vista formal, o mesmo padrão de regras construído para TC foi usado para FST, com os ajustes devidos aplicados à ultima. Por exemplo, as condições gerais que permitem atribuir valores a membros de um domínio, comparando-se as duas teorias, já mostram as diferenças pretendidas pela FST: I - Teoria dos Conjuntos (TC) Condição Geral (CG): (∀x ∈ D); Condição Particular (CP): CA : D → {0, 1}. II - Fuzzy Set Theory (FST) Condição geral (CG): (∀x ∈ D); Condição particular (CP): CA : D → [0, 1]. Considerando-se as mesmas convenções vistas para a TC, as duas condições acima, em II, mostram: para todo x pertencente ao domínio genérico D (CG), C representa uma função que atribui propriedades do subconjunto A (de D) a uma especificação qualquer de x, resultando, para x, um valor situado na escala entre [0, 1], (inclusive). Em termos das condições gerais, o fato que distingue FST de TC é o modo de avaliação dos elementos do conjunto: enquanto a forma {0, 1} admite apenas dois valores absolutos, a forma [0, 1] reconhece uma escala infinita de valores, inclusive 0 e 1. Assim, pertinência e não- pertinência são substituídos por gradiência e um elemento qualquer não é mais avaliado em razão de ser ou não ser membro de 70 um conjunto, mas apenas de integrá-lo com maior ou menor aderência semântica, com base no conceito característico. Além da diferença incorporada por essas condições iniciais, seria importante ressaltar o que resulta da sua aplicação, comparando-se ainda outros conceitos básicos entre as duas versões. Inicialmente, mostraremos o funcionamento de cinco conceitos básicos da TC, a saber, interseção, união, conjunto universal, conjunto vazio e conjunto complemento. Na seqüência, faremos uso ampliado deles para a FST. Para a exemplificação desses conceitos, estamos assumindo D, como o domínio <pessoas> e os dois subdomínios de D, A e B, respectivamente, como <jogador> e <filósofo>. Vejamos, então, uma apresentação formal para esses fatos: I - Teoria dos Conjuntos: Domínios: { D = <pessoas> }; { A = <jogador> }; { B = <filósofo> }. Extensões: {A = <jogador>: Cjogador (Platão) = 0}; {B = <filósofo>: Cfilósofo (Platão) = 1} Conceitos básicos (estamos pressupondo as condições iniciais já vistas): Interseção entre conjuntos: (∀x ∈ D) min(C filósofo (Platão) ∩ Cjogador (Platão)) = 0; União de conjuntos: (∀x ∈ D) max(C filósofo (Platão) ∪ Cjogador (Platão)) = 1; Conjunto complemento: (∀x ∈ D) (C não-filósofo (Platão)) = 0 (pois: 1 - (C filósofo(Platão)) = 0); (∀x ∈ D) (Cnão-jogador (Platão)) = 1 (pois: 1 - (C jogador (Platão)) = 1); 71 Conjunto vazio: (∀x ∈ D) (c∅ (x)) = (Cjogador (Platão)) = 0; Conjunto Universal: (∀x ∈ D) (cD (x)) = (Cfilósofo (Platão)) = 1. Numa formulação discursiva para algumas dessas ilustrações de conceitos, podemos demarcar, a partir dos dois subconjuntos de D, isto é, A e B com as características especificadas, <jogador> e <filósofo>, respectivamente, as seguintes explicações: a) Interseção entre conjuntos: considerando as extensões dos dois subconjuntos e considerando ainda que a interseção é determinada pelo operador min, o qual requer a existência de, pelo menos, um membro que partilhe do conceito característico dos dois subconjuntos, pode-se dizer que o valor da interseção é zero, ou que ela não existe na relação de A com B. Em outras palavras, o valor da operação A ∩ B = 0 deve-se ao fato de nenhum membro de A poder partilhar o conceito característico de B, por ser A um conjunto vazio, conforme a extensão que lhe foi atribuída. Inversamente, ainda que B não seja nulo, de acordo com sua extensão, a interseção também não é possível, já que nenhum membro de B pode estar também em A, por ser A um conjunto vazio;25 b) União de conjuntos: com base nas extensões dos dois subconjuntos e considerando as restrições impostas pelo operador max indicando que a união resulta do somatório dos membros contidos nos domínios em questão, pode-se dizer que existe união, uma vez que um dos domínios não é nulo. Assim, no exemplo acima, o valor da operação A ∪ B = 1 decorre do somatório dos membros contidos em A e em B, confirmando a união. Se o valor da operação é {1}, porque se atribui {1} a B e {0} a A, a união torna-se possível, uma vez que a 25 Outro formato para definir interseção pode ser: “ST que é chamado o produto interior (ou interseção) de S e T, contém aqueles objectos que são elementos de S e de T e nada mais.”, (KNEALE & KNEALE. 1980, p. 446). 72 totalidade dos membros de B, ao menos, pode compô-la na relação entre estes dois domínios.26 As fórmulas e as aplicações acima foram descritas para ressaltar, sobretudo, alguns detalhes de compreensão de aspectos da TC, importantes para uma discussão da FST. Selecionamos, apenas, dois domínios contendo um único membro cada um, para ilustrar, razão pela qual ainda mantivemos os valores numéricos dentro do padrão binário {0, 1}. À medida que viermos a ter outros domínios (ou um número maior de elementos para avaliação em domínios), como mostraremos abaixo, as conveniências de aplicação da FST tornam-se mais claras, na descrição dos fatos. No caso dessa última, então, além da modificação inicial já mostrada, os conceitos básicos − interseção, união, complemento... − mantêm-se os mesmos, mas adaptados em relação ao cálculo dos valores numéricos, devido à noção de intervalo introduzida na condição particular para a FST. Além do mais, a FST depende de um princípio genérico de aplicação do conceito característico, que serve para mostrar uma aderência semântica maior ou menor entre os membros de uma classe, conforme formulação de OSHERSON, SMITH (1981, p. 42): “The larger cA (x), the more x belongs to A; the smaller cA (x), the less x belongs to A; 1 and 0 are limiting cases (for all x ∈ D).” Assim, quanto maior for o valor assegurado pelo conceito característico, C, avaliadas as propriedades de um determinado elemento, x, em relação a um domínio em questão, A, tanto maior será o grau de sua inclusão na classe (e tanto mais ele refletirá a natureza do protótipo da classe, com veremos mais à frente). E quanto menor for o valor a ele atribuído, tanto menor será o grau de sua pertinência à classe (e mais distante ele estará do protótipo). Desprezando os detalhes do cálculo funcional para valores específicos, determinados pela grau de aderência de um elemento à classe, expressos pela escala numérica [0, 1] e aplicados aos conceitos básicos, podemos compreender a natureza de um conjunto-fuzzy. Na essência, trata-se de um conjunto, cujo critério de avaliação de seus membros não se faz, necessariamente, pela pertinência e não-pertinência, mas por uma escala gradativa entre os 26 A união, também, pode ser definida do seguinte modo: “S + T que se chama a soma lógica (ou união) de S e T, contém aqueles objectos que são elementos de S ou de T e nada mais. “, (KNEALE & KNEALE, 1980, p. 446). 73 dois valores27, onde os membros não são, nem deixam de ser integrantes de uma classe, mas aderem a ela em escalas variáveis. Podemos, então, para ilustrar efeitos das mudanças resultantes nos princípios acima, reajustar os domínios anteriores com outras extensões: {I = <marciano>: Cmarciano (Platão) = 0; Cmarciano (Sócrates) = 0; Cmarciano (Pelé) = 0; Cmarciano (meteorito) = 1} {J = <jogador>: Cjogador (Platão) = .2; Cjogador (Sócrates) = .5; Cjogador (Pelé) = 1; Cjogador (meteorito) = 0} {K = <livreiro>: Clivreiro (Platão) = .5; Clivreiro (Sócrates) = .6; Clivreiro (Pelé) = .6; Clivreiro (meteorito) = 0; } {L = <professor>: Cprofessor (Platão) = .7; Cprofessor (Sócrates) = .7; Cprofessor (Pelé) = .7; Cprofessor (meteorito) = 0} 27 Ao introduzir o conceito de escala gadiente de pertinência, a FST compromete-se também com um outro padrão de valor-verdade. Se os membros se distribuem numa escala entre [0] - falso – e [1] - venladeiro -, tornase inevitável que tenhamos também gradações para o verdadriro ou para o falso. Muito verdadeiro, um tanto verdadeiro, bastante verdadeiro. quasi-verdadeiro, apenas verdadeiro, pouco verdadeiro, ligeiramente verdadeiro. nada verdadeiro..., para usar apenas um dos valores, seriam, com certeza, componentes dessa escala metalingüística. As dificuldades decorrem dessa tentativa de graduar, através de artifcios sintagmáticos, uma escala lingüística para verdadeiro, dadas as dificuldades de sua percepção intuitiva. Nada nos assegura, ao menos para regiões vizinhas, a ordem de certas gadações: se consideramos verdadeiro um dos pontos máximo da escala, o que estaria mais próximo dele: muito verdadeiro, bastante verdadeiro ou quasi-verdadeiro ? Em algumas circunstâncias experimentais, com valores numéricos apurados através do confronto da intuição de sujeitos-daexperiência, costuma ser sugerido o padrão: '.8 verdadeiro’, '.5 verdadeiro', '.1 verdadeiro' ... 74 {M = <filósofo>: Cfilósofo (Platão) = 1; Cfilósofo (Sócrates) = 1; Cfilósofo (Pelé) = .8; Cfilósofo (meteorito) = 0}28 Estamos propondo agora cinco domínios distintos (I-M) e quatro candidatos a membros (Platão, Sócrates, Pelé, meteorito). Vamos supor que esses dados fossem submetidos a um grupo de observadores que deveriam proceder a uma certa classificação desses objetos em cada um dos domínios. É assim que a FST procede na avaliação concreta na obtenção de padrões de pertinência. O resultado suposto seria o quadro delineado, com gradações diversas para cada um dos membros, o que já não representa mais um padrão de membramento em que os valores binários da TC fossem suficientes. Vamos esclarecer, a título de ilustração da teoria, algumas das organizações propostas para os domínios acima: a) I = <marciano>: aos elementos ‘Platão’, ‘Sócrates’, ‘Pelé’ foi atribuído o valor 0 da escala, porque os observadores não reconheceriam a possibilidade de que a pessoas se aplique o conceito característico do domínio, que descreve ‘algo proveniente de Marte’. Por sua vez, admitem a possibilidade de que objetos que lembrem a idéia de “matéria inorgânica” possam ser incluídos nessa classe, em razão de amostras colhidas, provenientes da superfície de Marte, daí o valor 1, atribuído a ‘meteorito;’ b) M = <filósofo>: a Platão e Sócrates foi atribuído o valor máximo da escala, 1, porque admitiriam que o conceito característico, que descreve ‘pessoas que desenvolvem um certo tipo de atividade intelectual’, pode ser partilhado por eles. A Pelé atribuiu-se um valor menor, .8, porque considerariam que ele pode satisfazer a umas exigências do conceito característico, mas não a outras. Aqui, poderíamos supor uma interferência de certos fatores culturais na discrepância 28 Estes valores estão sendo arbitrados aleatoriamente; na prática experimental, os valores são obtidos através de testes de avaliação de membramento de elementos num conjunto e representam o grau de pertinência que os entrevistados atribuem a eles. 75 desses valores atribuídos. Existe uma avaliação geral das condições de possibilidade, pois todos compõem a exigência primária do conceito <pessoas>. Além do mais, existe um reconhecimento partilhado da parte dos observadores sobre o fato de os dois primeiros serem filósofos e o terceiro, jogador. c) Os demais domínios (J, K, L) refletem, de modo mais decisivo, uma interferência entre condições de possibilidade e fatos culturais29. O valor 0 foi, unanimemente, atribuído a meteorito, pelo fato de cada um dos conjuntos introduzir um conceito característico que representa especificações do domínio <pessoas>. Por outro lado, os demais elementos apresentam um comportamento diferenciado, pois, ora se distanciam entre si, como em J, ora estão muito próximos, como em K, ora se tornam equivalentes, como em L. Esse fato, como já assinalamos, deve-se a um certo confronto entre as condições de possibilidade e a quantidade de informações de que dispomos sobre os objetos. Não há, assim, nenhum padrão específico a ser previsto e as condições reais só podem ser determinadas através da experimentação ou da contextualização. Os comentários sobre a exemplificação da teoria realçam a relação de cada um dos domínios com os membros em questão. Podemos, também, reorientar o raciocínio, mostrando que a FST pode ser aplicada, considerando a relação de um dos elementos em contraste com todos os domínios. A comparação mostraria, para um elemento único, uma escala gradativa de pertinência e é dela que melhor derivamos a idéia de que, para essa teoria, a relação entre os domínios é de continuidade. Podemos agora avaliar os efeitos das modificações em alguns dos conceitos básicos, com base na ilustração que foi desenvolvida. Selecionamos para isso o conceito de conjunto complemento. Conjunto Complemento: (aplicação em J) {J = <jogador>: 29 Cjogador (Platão) = .2; Numa experimentação realista, os testes propostos deverão, de fato, contornar esta dificuldade em alguma extensão, por ser ela determinante da percepção de quaisquer conjuntos de objetos. 76 Cjogador (Sócrates) = .5; Cjogador (Pelé) = 1; Cjogador (meteorito) = 0} Valor dos complementos: (∀x ∈ D) (C não-jogador (Platão)) = .8 (pois: 1 - (C jogador (Platão)) = .8); (∀x ∈ D) (C não-jogador (Sócrates)) = .5 (pois:1 - (Cjogador (Sócrates)) = .5); (∀x ∈ D) (C não-jogador (Pelé)) = 0 (pois: 1 - (C jogador (Pelé)) = 0); (∀x ∈ D) (C não-jogador (meteorito)) = 1 (pois: 1 - (C jogador (meteorito)) = 1); No primeiro caso da exemplificação acima, podemos compreender que o complemento de (C jogador (Platão)), em J, isto é, o subconjunto de todos os objetos que estão fora do domínio J, logo todos pertencentes ao domínio (C não-jogador (Platão)), tem o valor numérico .8, na escala [0, 1], já que qualquer conjunto complemento é calculado subtraindo-se o conjunto em análise do conjunto universal, de valor 1. Temos, portanto, (D - Ji) = ¬ Ji, onde D é o conjunto universal, J o conjunto em análise e ¬J o conjunto complemento. Substituindo, no primeiro exemplo, por valores numéricos correspondentes, obtemos o valor do comjunto complemento: (1 - .2) = .8. Procedendo da mesma forma, podemos calcular o valor do conjunto complemento nos demais casos. A FST constitui-se como uma extensão da TC, estruturando-se, porém, a partir de um outro parâmetro para reconhecimento de elementos numa classe. Ao introduzir escalas variáveis de pertinência, acaba por determinar uma variância conceitual, decorrente do confronto entre diversos objetos numa escala contínua. Se a TC já despontava como um instrumento de racionalização importante, na medida em que se apresenta como um procedimento de organização de objetos naturais e artefatos, a FST se mostra como um instrumento ainda mais eficaz de racionalização, já que possibilita um refinamento maior da 77 estruturação entre objetos. Esse aspecto da formulação é que nos leva, portanto, a pensar, como analisaremos a seguir, a sua relevância para a reflexão que estamos desenvolvendo, no sentido de explicitar a segundidade como um padrão de racionalidade e, em conseqüência, como instância de formação conceitual. 2.4.3 Teoria dos Protótipos (TP) As preocupações formais da TP migraram, diretamente, das propostas teóricas desenvolvidas a partir da FST. Por seu turno, uma vez que a FST deriva, diretamente, da TC, podemos antever que problemas e objetivos afeitos a esta última, os quais estiveram em discussão na primeira, se façam presentes, também, na abordagem prototípica. De fato, questões fundamentais relativas ao membramento, numa qualificação diferente, continuarão sendo objeto de preocupação na TP. Assim, apesar da proximidade conceitual entre as duas abordagens, a TP procurou destacar objetivos próprios, em termos do alcance pretendido com a análise. OSHERSON e SMITH (1981) comentam: “The distinguishing doctrine of the new theory is that entities fall neiher sharply in nor sharply out of a concept’s extension. Rather, an object instances a concept only to the extent that it is similar to the prototype of the concept; the boundary between memberships and nonmemberships in a concept’s extension is thus fuzzy. We’ll call the new theory (really, class of theories) prototype theory. In this paper we consider two aspects of concepts relevant to choosing between prototype theory and its more tradictional rivals. One concerns conceptual combination, that is, the process whereby relatively complex concepts are forged out of relatively simple ones. The other deals with truth conditions for thoughts, that is, the circunstances under which a thought corresponding to a declarative proposition is true. For both aspects, we argue that the new theory of concepts fares worse than the old.”30. (p.38) Na percepção dos autores, devem-se destacar duas tarefas dentre aquelas a serem desesenvolvidas a partir da TP. A primeira lembra, de algum modo, o padrão de raciocínio desenvolvido na composicionalidade, isto é, a construção de conceitos mais complexos, a 30 Além desse autor, utilizamos também o texto de ARMSTRONG, GLEITMAN, & GLEITMAN (1983. p. 263308) para uma discussão específica da TP. Ambos os textos foram escritos a partir das formulações inciais de ZADEH (1966). 78 partir de conceitos mais simples. A segunda assegura a importância das condições de verdade, ou seja, a compatibilidade entre pensamento e conteúdo proposicional, na sua função de descrever algum recorte da realidade. Certamente, o padrão de verdade, que se torna adequado aos princípios da TP, precisa ser ajustado, em razão das características em que se fundamenta o processo de membramento, isto é, “... entities fall neiher sharply in nor sharply out of a concept’s extension.”(OSHERSON/SMITH, 1981) A TP nem sempre se apresenta como um sistema único de conceitos que traduz uma única forma de representação cognitiva dos objetos. Há abordagens diversas em função da especificação de detalhes formais e até mesmo em razão de padrões diferenciados no modo de configurar modelos conceituais. É possível, porém, localizar alguns aspectos centrais dessa abordagem, desconsiderando divergências localizadas, os quais constituem um certo núcleo que perpassa grande parte das suas aplicações. Muitos trabalhos sobre estruturas das línguas naturais apropriaram-se desse expediente conceitual e, a partir dele, compuseram um formato específico de análise. Vamos, então, retomar, de modo resumido, alguns pontos da caracterização da teoria. Numa comparação mais localizada, podemos afirmar que aquilo que vale, em termos das relações entre objetos, para a formulação da FST, também é válido para a TP. Os conceitos básicos − interseção, união, complemento... − (p. 33-4 deste trabalho) , bem como a condição geral e a condição particular (p. 32 deste trabalho) determinam também relações possíveis dentro da TP. Há um detalhe, entretanto, que torna a TP uma teoria diferenciada da FST, a saber, a seleção de um protótipo dentre os membros que compõem uma classe de objetos. Enquanto na FST nenhum membro deve ser destacado do outro, já que todos devem ser dispostos numa escala numérica gradativa, na TP, os membros são confrontados, um a um, com um protótipo, selecionado dentre a totalidade dos membros da classe. Ao assumir a idéia de que, no conjunto dos membros concorrentes numa classe, ao menos um deva ser alçado à condição de protótipo, a teoria abandona a idéia de gradiência universal para membros de uma classe, sustentada pela FST. Isso requer a introdução de um novo conceito, distância métrica, destinado a avaliar a posição relativa de cada membro na classe em relação ao seu protótipo. 79 Formulações correntes da TP, conforme versão de OSHERSON & SMITH (1981)31, na sua aplicação à análise de fatos das línguas naturais, compreendem um esquema geral para representação mental de conceitos que implica relações caracterizadas com base em quatro parâmetros, conforme descrição apresentada na seqüência. Teoria dos Protótipos: Princípio Geral : TP: < A, d, p, c >. Segundo a formulação acima, a TP é constituída com base numa quádrupla, onde ‘A’ representa um domínio conceitual de objetos possíveis; ‘d’ constitui a distância métrica entre os membros de ‘A’, aos quais identificamos através de números positivos; ‘p’ representa um membro de ‘A’, selecionado como seu protótipo; ‘c’ constitui uma função conceitual (ou um conceito característico) que opera em ‘A’, no do intervalo gradiente [0,1], com base em propriedades que são associadas aos membros da classe. De modo mais específico, podemos ilustrar os fatos acima, considerando, por exemplo, domínio < S = calçados >. Podemos conceber, então, a aplicação do esquema geral num domínio particular, resultando: Domínio Particular: <S, dcalçado, pcalçado, ccalçado >. Esse esquema contém indicações fundamentais, o que nos possibilita, com base nos elementos nele contidos, conceber um formato diferente de percepção para as relações entre os objetos do conjunto em foco. Na seqüência, vamos determinar, passo a passo, cada um dos componentes do DP, em quatro operações distintas, destacando como elas se comportam, isto é, que fatos expressam, em relação aos membros do domínio selecionado. Avaliemos, então, os quatro componentes a partir de exemplos ilustrativos: a) <S>: o domínio <S> é o conjunto de todos os objetos imagináveis que partilham de uma descrição que deve ser provida pelo conceito característico <calçado>, incluindo ‘sapato’, ‘chinelo’, ‘sandália’, ‘tênis’, ‘tamanco’, 31 A formulação dos autores nesse texto serviu de base para a exposição aqui apresentada sobre a Teoria dos Protótipos. 80 ‘botina’, ‘bota’, ‘galocha’ ... Substituindo ‘S’, no DP, pelos objetos que ele representa, obtemos: Domínio particular: < sapato, chinelo, sandália, tênis, ..., d calçado, p calçado, c calçado >; b) <ccalçado> : a função <ccalçado> projeta o conceito característico <calçado> em um grupo de objetos, de tal modo a torná-los, descritivamente, aptos a se constituírem em membros de uma dada classe. Assim, podemos esquematizar a projeção do conceito característo sobre os membros do domínio em análise, conforme ilustramos abaixo: Domínio particular: < sapato, chinelo, sandália, tênis, ..., p calçado , d calçado , c calçado >; Resultado da projeção: < sapato calçado, chinelo calçado, sandália calçado, tênis calçado ..., p calçado , d calçado >. c) <pcalçado> : por sua vez, o operador <pcalçado> permite que selecionemos, dentre os membros a que for atribuído o conceito característico, aquele que, mais adequadamente e por razões diversas, se constitui como o protótipo da classe.32 Esta operação pode ser assim esquematizada, considerando-se as operações já realizadas no estágio anterior: Resultado da projeção: < sapato calçado, chinelo calçado, sandália calçado, tênis calçado ..., p calçado , d calçado >; Seleção do protótipo: < p (sapato calçado), chinelo calçado, sandália calçado, tênis calçado ..., d calçado >. 32 Estamos apenas supondo, pela intuição, a possibilidade de que ‘sapato’ viesse a ser escolhido como protótipo da classe. Existem muitos problemas quanto à decisão sobre a escolha de um protótipo, por exemplo, em relação aos fatos que podem ser mais representativos nessa escolha. À frente, comentaremos algumas das dificuldades relativas à questão. 81 d) <dcalçado> : por último, <dcalçado> relaciona o protótipo a cada um dos objetos do domínio, atribuindo, a cada par, um valor numérico. Quanto maior a semelhança entre pares de objetos, isto é, quanto mais próximo um membro estiver do protótipo, tanto menor será o valor da relação e vice-versa. Valores maiores, obtidos no confronto entre pares, tendem a mostrar uma distância métrica maior, ou seja, um grau de dissemelhança maior entre membro e protótipo. Comparando-se os pares <sapato/chinelo>, <sapato/sandália> e <sapato/tênis>, devemos atribuir um valor maior à primeira relação, um menor à última e um valor intermediário à segunda. Assim, o fato de a relação com ‘tênis’ satisfazer os critérios de <calçado>, de modo mais adequado do que ‘chinelo’ ou ‘sandália’, mostra que ‘tênis’ está mais próximo do protótipo do que os outros elementos, na organização sugerida. Esquematicamente, podemos indicar: Seleção do protótipo: < p (sapato calçado), chinelo calçado, sandália calçado, tênis calçado ..., d calçado >; Distância métrica: < (chinelo calçado / sapato calçado) = 3, (sandália calçado / sapato calçado) = 2, (tênis calçado / sapato calçado) = 1 >.33 Nos quatro itens acima, procuramos mostrar o modo pelo qual cada um dos parâmetros da TP aplica-se a fatos de um domínio de objetos particulares. Em cada uma das etapas, operamos apenas com a conversão de um parâmetro, mas projetado sobre o resultado de operações anteriores. O produto final que extraímos de toda a série de operações descritas nos mostra diversos componentes que integram o conceito que formamos de cada um dos membros do conjunto. Assim, a compreensão de cada um dos objetos da classe supõe, na dimensão da TP, que: (i) ‘sandália’, por exemplo, seja um objeto pertencente ao domínio <calçado>; (ii) ‘sandália’ apresente uma diferença perceptual concernente ao protótipo da classe, neste momento caracterizado por ‘sapato’; (iii) a diferença perceptual seja registrada comparativamente em relação aos outros membros da classe, em termos de valores numéricos 33 Paulatinamente, cada um dos parâmetros que compõe o PG foi desaparecendo, em razão da sua atualização no domínio em análise. Aqui nenhum dos parâmetros se faz mais presente na fórmula, uma vez que todos já foram traduzidos em fatos pertinentes ao domínio em questão. 82 (perceptuais). Além do mais, em complemento aos exemplos acima analisados, outros aspectos importantes derivam da exposição de OSHERSON & SMITH, em particular da condição (1.2), como uma proposta para elucidar a correlação entre as duas funções acima mencionadas <dcalçado> e <ccalçado>. Temos, então: “(1.2) (∀x ∈ A) (∀y ∈ A) d (x, p) ≤ d (y, p) → c (y) ≤ c (x)” A fórmula acima determina que para dois membros quaisquer ‘x’, ‘y’, pertencentes a um domínio <A>), a distância métrica <d> entre eles e o protótipo <p> é inversamente proporcional à natureza do conceito característico <c> que define sua integração no conjunto. Por exemplo, seja ‘x’ = ‘tênis’, ‘y’ = ‘chinelo’ e ‘p’= ‘sapato’, a condição acima mostra que: d (tênis, sapato) ≤ d (chinelo, sapato) → c (chinelo[calçado ∪ aberto] ) ≤ c (tênis[calçado ∪ fechado]) Em outras palavras, se a distância entre ‘tênis’ e ‘sapato’ é menor do aquela entre ‘chinelo’ e ‘sapato’, então, o conceito característico <calçado ∪ aberto>, que determina a posição de ‘chinelo’ numa escala do conjunto, é menor do que o conceito característico <calçado ∪ fechado>34, que determina a posição de ‘tênis’. O valor perceptual atribuído ao operador ‘ser menor’ corresponde ao fato de ele ‘ser menos representativo’ ou de ‘conter menos propriedades’ numa comparação direta com o protótico35. A hipótese, em termos de uma percepção cognitiva, para essa comparação, é que as características de ‘tênis’ facilitam o seu 34 Usamos, em complemento a [calçado], os traços [aberto] e [fechado], com a finalidade de mostrar que a fixação de uma escala conceitual para membros de um domínio requer a implementação do conceito característico, além dos patamares fixados para operar a inclusão no domínio. Isso não quer dizer, porém, que a percepção do protótipo da classe se dê em razão da proliferação de traços. 35 A comparação, na verdade, poderia ser aferida em termos da quantidade e da qualidade dos traços de cada um dos membros do conjunto com aqueles pertencentes ao protótipo da classe. O conceito característico é de ‘uso exclusivo’ do protótipo, pois só ele reuniu um padrão quantitativo e qualitativo que possibilitou a sua seleção, a sua ‘superioridade’ conceitual em relação aos outros concorrentes. Os demais pretendentes a membros devem se espelhar nesse ideal de conceito; uns se aproximando mais outros menos. Nenhum, entretanto, poderá equipararse ao protótipo, a não ser nas circunstâncias em que deveremos reconhecer mais de um elemento nesta posição. A igualdade, aludida pelo princípio 1.2 acima, descreve uma correlação possível entre membros e não entre um membro e o protótipo. 83 reconhecimento como membro da classe de objetos, onde o protótipo seja ‘sapato’, contrariamente a ‘chinelo’. Por outro lado, quando a relação for de igualdade, seja para o contraste entre os pares e conseqüentemente para o conceito característico, haveria, simplesmente, uma proximidade conceitual entre os membros em questão e o seu protótipo. Na prática experimental dessa análise, supõe-se que fatos expressos na condição 1.2 sejam capazes de especificar aspectos do processo cognitivo, na medida em que ‘tênis’, pelo fato de estar mais próximo do protótipo, represente um membro de percepção mais imediata, mais uniforme. O formato acima de categorização dos objetos tem sustentado, em larga escala, pesquisas na área dos processos de cognição, incluindo aqui Lingüística e Psicologia. Inúmeros experimentos foram montados, numa tentativa de avaliar questões que envolvem a forma de se operar com os quatro parâmetros36. Embora a TP tenha alcançado um certo avanço nos processos de representação conceitual, em virtude de consagrar a necessidade de uma escala gradiente na avaliação da pertinência, bem como de introduzir parâmetros de aferição da distância conceitual entre protótipo e membros em um dado domínio, não se podem também desconhecer as dificuldades enfrentadas. O fato mais importante a ser destacado dentre as dificuldades da TP diz respeito à natureza dos critérios que devem ser postos em prática para a determinação perceptual do protótipo de uma classe. O que é, afinal, um protótipo ? Como chegamos à sua apreensão? São eles transitórios dentro da classe ? Existe apenas um único protótipo em cada classe ou protótipos também estariam sujeitos à gradiência ? Não existem, no estágio atual da discussão, respostas capazes de exaurir os problemas que são propostos pelas indagações acima. Existe um problema detectado de forma clara, isto é, a ausência de um padrão efetivo que assegure a escolha do protótipo da classe, como existem tentativas, sugestões e alternativas, orientadas para o problema. Retomemos, inicialmente, as dificuldades enfrentadas com a sua definição, com os procedimentos empíricos para distingui-lo do conjunto dos outros membros. ROSCH (1978) especifica: 36 Para uma avaliação detalhada de alguns experimentos para conjuntos padrões nesta abordagem, confira: ARMSTRONS, GLEITMAN, & GLEITMAN. (1983. p. 263-308). 84 “... by prototypes of categories we have generally meant the clearest cases of category membership defined operationally by people’s jugements of goodness of membership in the category.” (p. 36). e acrescenta mais à frente: “... to speak of a prototype at all is simply a convenient grammatical fiction; what is really referred to are judgments of degree of prototypicality. (...) For natural-language categories, to speak of a single entity that is the prototype is either a gross misunderstanding of the empirical data or a convert theory of mental representation.” (p. 37). A caracterização acima apresenta duas questões importantes na concepção do protótipo: Uma refere-se ao fato de eles representarem “clearest cases”, em função de “jugements of goodness of membership in the category” . Outra refere-se ao fato de o protótipo não ser algo materializado numa “single entity” , mas antes implicar “judgments of degree of prototypicality” . A primeira observação parte do princípio de que o processamento de casos típicos não apresenta dificuldades para o seu reconhecimento categorial. A nossa atividade cognitiva, quando orientada para a categorização da realidade, não encontra qualquer dificuldade com aqueles casos que são exemplares dentro dos domínios, pois só assim torna-se possível assegurar alguma unidade conceitual, mesmo considerando-se discrepâncias culturais. O argumento suposto na citação reforça o fato de que uma experiência que não seja assim orientada, isto é, que parta da escolha de exemplos idiossincráticos, corre o risco de tornarse, absolutamente, caótica, impossível de ser partilhada numa comunidade. Além do mais, a escolha de tal membro como protótipo reforçaria ainda mais o teor de facilidade e de rapidez na sua aquisição. A segunda observação refuta as pretensões de admiti-lo como uma entidade mental privilegiada e autônoma. Um protótipo não reina absoluto num domínio onde é membro, mas comporta graus de prototipicidade. Ao contrastá-lo, par a par, com os membros do conjunto, verificamos que ele é mais prototípico para uns do que para outros. Se, em um dos pólos da escala contrastiva, a diferença entre eles for se apagando, podemos ter mais de uma seleção aceitável para o protótipo. Esta avaliação da intensidade de gradiência (diferença/identidade 85 maior ou menor) entre membros de um conjunto e o seu protótipo pode ser apurada, com base na condição 1.2, de OSHERSON & SMITH (1981), acima aludida. Apesar da compreensão geral que esses critérios impõem ao reconhecimento do protótipo, certamente eles ainda não são suficientes para, empiricamente, operar com o conceito. Dois fatos costumam ser associados na tentativa de escolha de um dado membro para essa função. Um, de natureza experimental e de uso mais extenso, aponta-o como o exemplar que mais rapidamente é reconhecido como membro da classe, ou que é o primeiro a ser lembrado dentre os membros, numa avaliação feita através de tempo decorrido na decisão seletiva. Assim, o protótipo seria representado pelo elemento cujo custo temporal na seleção fosse menor, seja num experimento a que sujeitos fossem expostos a diversos exemplares, seja num outro, em que tivessem que lembrar um membro da classe (aqui ainda é o tempo gasto para rememorar o protótipo que serve de indicador). Paralelamente, os exemplares que fossem se distanciando do protótipo iriam requerer um custo de processamento maior, já que suas propriedades e sua adaptação à classe requerem operações mais complexas. Muitos analistas desenvolveram experimentos nessa direção37 com resultados positivos; outros, entretanto, recusam o fato de que testes de rapidez em categorização possam ser assumidos como pertinentes para uma decisão sobre a escolha do protótipo. O segundo fato pretende levar em conta o número de propriedades e o formato assumido pelo conceito característico, para a definição de um elemento como protótipo38. Assim, em experiências desenvolvidas com a classe <pássaros>, por exemplo, o fato de [ser alado], [ter bico], [ter penas], [ser ovíparo] foi usado como justificativa para sugerir ‘tordo’ como protótipo dessa classe39. Na extensão do exemplo, o argumento tem vida curta, porque, ainda que venhamos a confirmar ‘tordo’, de fato, como protótipo, a razão aludida não pode ser a conjunção destas propriedades. Se ‘tordo’ desempenha esse papel no conjunto, deve haver outros parâmetros adequados para justificar a presente escolha, porque tais propriedades 37 Por exemplo, RIPS, SHOBEN, & SMITH, (1973) e ROSCH, (1975). 38 Numa comparação superficial entre as duas vertentes, somos levados a admitir um certo antagonismo: grande número de propriedades não parece beneficiar rapidez de reconhecimento. 39 Nas análises desenvolvidas por autores americanos, não existe uma justificativa explícita para a escolha de robin, que traduzimos acima por ‘tordo’, como protótipo e não um outro pássaro qualquer que também reúna estas mesmas condições. Há autores que citam também sparrow. É possível que alguma razão de natureza cultural, pela presença destes pássaros nos experimentos, dispense qualquer justificativa. 86 são, igualmente, partilhadas por ‘galinha’, ‘avestruz’, apenas para citar, por exemplo, os mais distantes. As propriedades referidas não possibilitam a seleção de nenhum dos objetos mais comuns da classe, porque, no fundo, elas não são propriedades de membro, mas condições gerais de pertinência na classe, resguardados desvios categoriais possíveis. Além disso, conjunção de propriedades não resolve a questão cultural que pode ser determinante na seleção do protótipo. Em relação ao domínio do signo ‘tordo’ para designar uma espécie de pássaro40, falantes do português, certamente, teriam dificuldades com um tal protótipo, por não se tratar de um exemplar tão próximo da sua experiência, na classe <pássaros>. Entretanto, com base nas mesmas propriedades, poderiam selecionar ‘pardal’, ‘tico-tico’, ‘canário’ e tantos outros que fossem cognitivamente mais disseminados na sua experiência e culturalmente mais representativos. Aqui residem, pois, duas dificuldades complementares. De um lado, não possuímos um conhecimento global e sistemático das propriedades usadas para se definirem membros de uma classe (e nem sabemos se tal sistema é possível), tornando complicadas as pretensões universais para o protótipo. Para ARMSTRONG et al. (1983, p. ) as dificuldades para a determinação dos traços prototípicos de uma classe são extensivas à determinação de traços que venham a representar condições necessárias e suficientes, para critérios definicionais: “... it is not notably easier to find the prototypic features of a concept than to find the necessary and sufficient ones.”. De outro, não podemos fixar um padrão máximo (ou mínimo) de propriedades que um protótipo deva conter, já que qualquer limite seria arbitrário, pois tanto poderia ser expandido, como reduzido, por força de usos específicos. Além dessas dificuldades, há ainda fatores associados à natureza da compreensão das relações do protótipo com seus membros: essas relações podem alterar-se, se o procedimento é a percepção intuitiva que se tem dos membros de uma classe, ou se o procedimento enfatiza a avaliação experimental. É de se esperar que os instrumentos de avaliação experimental tenham o mérito de constituir-se numa espécie de métrica para registros da intuição. Não temos, entretanto, nenhuma certeza quanto à validação dos procedimentos experimentais, mesmo porque dúvidas na escolha do protótipo continuam ocorrendo. COHEN & MURPHY (1984) comentam sobre alguns aspectos dessas questões: 40 Ainda que usássemos outros signos para a designação alternativa desse pássaro, isto é, ’papo-roxo’, ou ‘peitoroxo’, como também é conhecido, as dificuldades continuariam existindo. 87 “The prototype is usually conceived of as an ‘average member’ of the category. That is, it contains the most frequent attributes of the category members. There may be no real object in the world that corresponds to the prototype, as it is an idealized abstraction of the individuals in the category. People are assumed to use the prototype rather than a category definition in indentifying members and in reasoning about the category.” (, p. 30) O grifo destacado no texto parece indicar uma tentativa de superação das dificuldades discutidas sobre o reconhecimento do protótipo de uma classe. Não há protótipo a ser reconhecido, a ser isolado do conjunto, porque parece não existir qualquer objeto-membro que satisfaça as suas condições. O protótipo é um construto idealizado e, por isso mesmo, comprime, na sua forma de existir, todas as possibilidades dos membros de um conjunto. Se isso é verdade, precisamos rever as estratégias experimentais que objetivaram avaliar, em termos de padrões de rapidez de reconhecimento e de facilidade de memorização, escalas gradativas de membramento. Contudo, apesar dos problemas aqui localizados, lembrando ainda não se tratar de uma proposta inteiramente fechada, a TP constitui um avanço para os processos de representação conceitual. A sua virtude maior está em reconhecer a necessidade de um padrão de membramento que contemple uma escala gradiente de integrantes, possível de ser avaliada com algum rigor. Essa formalização resulta, por sua vez, numa conseqüência importante para os processos de categorização: os objetos, candidatos a integrantes de um conjunto, não são mais considerados como membros ou não-membros, mas são vistos apenas numa escala gradual de membramento. Esse teor de multiplicidade na classificação de objetos, e de diversidade das formas de conhecimento nos remetem a problemas que decorrem da segundidade. Se é o confronto entre objetos que nos leva à apreensão das diferenças, das singularidades, mediante um esforço inteligente, só podemos situar aqui as primeiras manifestações da nossa racionalidade, cujo desafio maior é o de propiciar algum padrão de ordem frente a uma experiência que emerge como absolutamente desordenada. O projeto de estruturação do conhecimento da TP, fundamentado na idéia de um contínuo gradiente entre os objetos, determina uma forma de atividade cognitiva, compatível com os fatos que foram estudados até agora na segundidade. 88 Ela pretende, com os parâmetros de análise que foram expostos, fazer emergir alguma ordem entre objetos. Uma ordem que resulta da intervenção de sujeitos na realidade e não apenas do produto de um mapeamento de categorias formais. 2.5 Considerações finais Ao longo desta reflexão, ressaltamos a importância de situar, dentro da instância da segundidade de Peirce, questões relativas à formação e à representação de conceitos, modo pelo qual associamos sua formulação a diversas abordagens desenvolvidas nas três últimas décadas; com certeza, de outras abordagens poderíamos fazer o mesmo uso. Para tornar relevante essa aproximação, procedemos a uma exposição de modelos, princípios, abordagens, que colocaram, nos seus pressupostos fundamentais, a tarefa de mostrar como processamos objetos e fatos da realidade, como justificamos o conhecimento que deles temos e como os representamos. Analisamos dois modelos genéricos de concepção do conhecimento: um dominado por princípios de atomização conceitual, onde o conceito é pensado em função da predicação a que objetos se submetem , ou em função da composição de traços que a eles se associam; outro dominado por princípios de categorização conceitual, sendo o conceito resultante de operações envolvendo conjuntos e critérios de membramento. Aqui foram destacadas três formas distintas de operar a relação membro-conjunto, cada uma responsável por diagnosticar o conhecimento através de padrões específicos. Nenhum dos dois modelos − e nem as dimensões particulares de cada um − projeta uma resposta satisfatória para a questão do conhecimento, no enfoque em discussão. Entretanto, não se pode negar que, a seu modo e apesar dos limites, cada uma das dimensões aponta para um aspecto particular do problema. Qual delas, porém, reflete melhor as características da segundidade aqui lembradas ? Que forma de expressão de um conceito é mais adequada ao teor de mediação que a segundidade exerce na formulação de Peirce ? Se a formulação de Peirce coloca a segundidade como o primeiro alcance da nossa racionalidade, na medida em que nela pré-configuramos dados da nossa experiência sensível, 89 isto é, damos formato às nossas sensações de qualidade, então, uma decisão pela escolha de uma das abordagens implica determinar qual delas melhor se ajusta a essa tarefa. E aqui, precisamente, qualquer decisão pode tornar-se arbitrária, porque selecionar uma pode significar que aspectos importantes de outras abordagens estejam sendo ignorados nessa reflexão. Além do mais, as abordagens que comportam esses dois modelos mantêm entre si relações diversas: há relações de antagonismo (decomposição em categorias atômicas x comparação entre membros e protótipos), além de relações implicativas (a composicionalidade é uma forma de predicação), de relações extensivas (a FST é uma ampliação e uma qualificação da TC) e de relações cooperativas ( a TP reutiliza padrões da FST). Todas elas, entretanto, convergem num ponto: representam uma tentativa de ‘disciplinar’ a intuição, de propor-lhe um modelo racional de funcionamento em relação a sua forma de atuar sobre os fatos da realidade. Todas, a seu modo, enfrentam o desafio de racionalizar, de disciplinar a intuição, pensada, no plano da primeiridade, sob a forma de sensações de qualidade. Assim, se podemos associar esse desafio à racionalização às perspectivas que o autor cria para a segundidade, podemos supor que quaisquer das abordagens acima traduzem parte da necessidade de prover uma forma teórica capaz de expressar fatos discutidos na teoria. Todas representam, em seu estilo, uma tentativa de fundamentação para os problemas do conhecimento que são aventados em relação à segundidade. Pela abrangência que Peirce atribui a essa categoria, não seria inadequado conjeturarmos sobre o fato de que o próprio autor não supõe uma única forma de racionalidade. Qualquer padrão que venha a ser usado para viabilizar o confronto entre objetos requer uma multiplicidade de enfoques, afinal esse confronto emerge de dimensões históricas, que podem nunca se repetir na extensão do vivenciado. Sua repetição torna-se viável − e até necessária − como uma conveniência para a teoria, permitindo a construção de modelos de interpretação. No fundo, é a nossa atuação cognitiva sobre a natureza que não se dá num único recorte, numa única forma de compreensão. Não existe A FORMA RACIONAL de apropriação lógica dos objetos: existem pluralidades históricas, culturais, mentais, físicas, através das quais expressamos nossa racionalidade em relação a eles. Nenhum dos modelos expostos comporta um padrão de racionalidade decisiva para os problemas propostos: todos contêm defeitos, uns mais graves, outros menos. Todos, porém, revelam estratégias colocadas em prática, na tentativa de compreender, de exercer algum domínio sobre a realidade. 90 Se os fatos se comportam dessa maneira, estaríamos propensos a supor que cada uma das abordagens que vimos fosse capaz de expressar uma fração da totalidade que Peirce configura na segundidade. Se esta se apresenta como padrão de complexidade − e não foi de outra forma que Peirce a pensou −, então, o que nos resta é admitir, até mesmo pela natureza das exigências formais que são impostas à questão do conhecimento, nos tempos atuais, que cada uma das abordagens, apesar das suas dificuldades, dos seus compromissos ontológicos e teóricos, represente uma forma plausível de avançar sobre essa complexidade. Não devemos, por exemplo, impingir a TC à segundidade, mas antes, extrair daquela aspectos que sejam relevantes na demarcação de padrões que tornam nossos movimentos sobre a realidade ordenáveis e racionais; nem também impor à segundidade um padrão de raciocínio composicional, mas antes, extrair deste aqueles princípios gerais que nos permitem avançar na compreensão dos objetos. Poderíamos, portanto, em razão dos modelos estudados, negar que eles representassem esforços na tentativa de construir padrões de estruturação do conhecimento ? As mesmas razões que nos levaram a não partilhar da seleção de um modelo mais afinado com as preocupações da segundidade, levam-nos também a rejeitar uma recusa cética do esforço desenvolvido pelas abordagens citadas, como padrões de formação conceitual. A segundidade, se a ela conferimos estatuto epistemológico, torna-se um território adequado para projetar todo o conjunto de acertos e desacertos, mapeados nas diversas abordagens que discutimos. Trata-se de um território adequado em razão do fato de nada excluir, mas de apenas colocar uma exigência fundamental, ou seja, a nossa capacidade de expressar com inteligência o diverso da natureza, o imediato da experiência e o vivido da história. É, portanto, dentro desse quadro de referência que julgamos relevante pensar uma proposta de extensão e de especificação do pensamento de Peirce em termos de processos de formação conceitual. Se há alguma preocupação formal que possa ser estendida à segundidade, ela, certamente, deverá compor-se de parte dos princípios que foram analisados nas diversas circunstâncias consideradas. Não supomos que uma rejeição a essa possibilidade de se buscarem novos padrões para a segundidade deva ser assumida, pois isso excluiria quaisquer tentativas de reinscrevê-la com outros padrões de alcance teórico-formal, e estaríamos condenados a um circunlóquio de analisar a segundidade apenas nos limites da segundidade. 91 Capítulo III A TERCEIRIDADE COMO REPRESENTAÇÃO CONCEITUAL 92 3 A TERCEIRIDADE COMO DE REPRESENTAÇÃO CONCEITUAL 3.1 Considerações preliminares Vimos, no primeiro capítulo desta tese, as propriedades usadas por Peirce para definir o alcance da primeiridade. Mostramos ali como ela se constrói em razão do percepto que tem, no fema41, o seu interpretante dinâmico, isto é, as condições que tornam possíveis a sua existência. A partir dessas condições iniciais, indicamos ainda como, na primeiridade, reconhecemos objetos e fatos apenas na forma de uma qualidade de sensação, orientada a captar a sua dimensão de presentidade, de imediatez e de concretude. Na seqüência, contrastamos sua proposta com outros padrões de interpelação dos objetos, orientados em razão de algum traço funcional neles incorporado. Analisando, então, a incompatibilidade entre as condições de funcionamento da primeiridade e os conceitos de estrutura, função e projeto, concluímos pela impossibilidade de assumir as operações do percepto como um padrão de racionalidade, embora sejam elas as raízes para uma fundamentação primeira. O percepto, como qualidade de sensação, inaugura a apreensão dos fatos, mas suas operações não se constituem ainda numa instância de compreensão racional, senão numa condição transcendental para o conhecer. Vimos, por sua vez, no segundo capítulo, o desenvolvimento proposto por Peirce no estudo da segundidade e ali, igualmente, contrastamos sua concepção, de modo mais exaustivo, com outras concepções que expressaram, de forma aproximada, os problemas que foram delineados em torno da idéia de formulação. A hipótese básica examinada admitiu que, em razão de alguns aspectos conceituais analisados pelo autor, a segundidade pode ser considerada como um lugar privilegiado para se avaliar a formação de conceitos, porque ali já pressupomos a existência dos objetos . Nessa perspectiva é que pudemos avaliar diversos 41 A idéia de que o fema é o interpretante dinâmico da primeiridade faz dele o ponto de partida para a apreensão, mas ele seria apenas um fluxo energético captado dos objetos a partir de meras sensações visuais, auditivas, táteis... Ele se constitui como condição de operação de percepto. 93 modelos de organização do conhecimento, avançando em parte sobre o tema que será objeto do capítulo presente, isto é, a representação. Tais modelos foram importados das tentativas de explicação formal de alguns aspectos do processo de significação, implementados pelas teorias semânticas e aqui retrabalhados com vistas a uma avaliação de problemas relativos à formação de conceitos. No presente capítulo, vamos avançar numa outra dimensão de análise, focalizando questões relativas à representação, com base na proposta de Peirce, procurando destacar, de início, os aspectos de que o autor se utiliza para mostrar mais um estágio de elaboração do seu trabalho. Trata-se, pois, do plano da terceiridade que se apresenta, no nosso entendimento, como o mais vasto, dotado de ramificações múltiplas, em razão do espaço conferido a uma certa ‘arquitetura do signo’, mas também como aquele sobre o qual, certamente, mais se têm pesquisado detalhes de funcionamento. Aqui, entretanto, seremos restritivos em relação à amplitude da terceiridade; interessa-nos selecionar uma dimensão dessa abordagem que nos faça compreender melhor certa organicidade da representação, a sua forma constitutiva, os seus fundamentos, por se tratar da orientação que melhor se aproxima do conteúdo dos capítulos precedentes. Não estamos aqui preocupados com a dimensão taxinômica do signo, que tem sido o alvo freqüente de uma exploração da terceiridade, mas com aspectos de uma estruturação representativa do signo. Assim, privamo-nos de reportar aos pormenores abundantes de toda uma extensa rede de definições, de classificações e de correlações do signo, para, exclusivamente, contemplar aspectos gerais de sua estrutura conceitual, os quais são elaborados por Peirce na fundamentação desse estágio da teoria. Nesse capítulo, vamos tentar avançar no intrincado território, onde foi construída a terceiridade como uma instância privilegiada da representação, com certeza, um dos estágios mais importantes e mais desenvolvidos na reflexão do autor. 3.2 O conceito de terceiridade A terceiridade, além de contrastar em natureza conceitual e em alcance teórico com dois outros estágios da abordagem peirceana, está, necessariamente, vinculada à representação: aquela emerge apenas como uma instância da teoria destinada a aglutinar 94 ramificações conceituais que compõem esta última. Logo, ao discorrer sobre o conceito de representação, estamos traçando algum tipo de percurso capaz de espelhar o papel a ser desempenhado nesse estágio da teoria pela terceiridade. Comecemos por uma reflexão que mostra, de forma mais determinante, ser a terceiridade uma instância privilegiada para a representação. Vejamos como PEIRCE (1980) situa tal fato: “Mas a proposição geral que estabelece que todos os corpos sólidos caem na ausência de força ascendente ou pressão é uma fórmula de natureza representativa. Os nossos amigos nominalistas seriam os últimos a colocá-la em dúvida. Chegarão até a afirmar que é uma mera representação - a palavra mera significando que ser e ser representado são duas coisas muito diferentes; a fórmula pertence ao domínio do ser representado. Tal é certamente a natureza da representação. Inegável, concedo. E é igualmente inegável que aquilo que tem natureza representativa não é ipso facto real.” (p. 29) A orientação inicial da formulação precedente foi determinada em termos da necessidade de se esvaziarem, na terceiridade, determinantes da experiência sensível, necessários à formulação dos dois planos anteriores da teoria, seja como percepção de uma qualidade, seja como admissão de um existente. Se essa experiência sensível precisa ser esvaziada de um valor determinante, nem por isso os seus vestígios, na forma de possibilidade ou de existência, serão descartados. A demarcação entre aquilo que é determinante e aquilo que é mero vestígio começa a se delinear por força do reconhecimento de uma diferença entre ser e ser representado. Quanto ao ser, assumimos a experiência sensível como determinante; quanto ao ser representado, assumimo-lo apenas como um vestígio. Assim, em decorrência de uma diferença inicial, a saber, a da exclusão de um vínculo necessário entre o ato de representar e aquilo que, de fato, se faz representado, Peirce, no nosso entendimento, não descarta, mas atenua quaisquer compromissos com a dimensão de ser, o essencialismo do objeto, na terceiridade. A instância da representação não se funda, como nos planos anteriores, na realidade do ser - como qualidade ou como existente -, mas numa lógica que lhe confere o estatuto de ser representado, que possui, com certeza, uma extensão maior do que um suposto realismo. Mais à frente, na mesma conferência, PEIRCE (1980) reafirma os termos dessa diferença: 95 “Quando afirmo que ser é diferente de ser representado significo que o ser real consiste naquilo que nos é imposto pela experiência, elemento de compulsão bruta, não é mera questão de razão.” (p. 30) Assim, se “aquilo que tem natureza representativa” não pertence ao domínio do real, mas ao domínio de uma fórmula, ao domínio de uma elaboração racional; o seu conhecimento não pode estar atrelado apenas a operações constitutivas da experiência. Ser representado impõe condições que ultrapassam o plano sensível de “compulsão bruta”, engendrando a necessidade de uma elaboração lógica, sustentada por operações que se encarregam de extrair, da experiência imediata, os padrões determinantes de uma construção do racional. E a racionalidade daí decorrente, por estar inscrita no âmbito da terceiridade, credencia-se a recobrir o domínio da forma, de uma forma apta a representar os objetos, identificando, relacionando e classificando-os, como pretende o autor na construção de toda a gênese do representâmen. Ao enfatizar a disjunção entre dois padrões de apropriação da realidade, um fenomenológico, na forma de ser, afeito sobretudo às instâncias de primeiridade e de segundidade, outro simbólico, na forma de ser representado, Peirce obriga-se à necessidade de examinar o conceito de terceiro, a partir de graus possíveis de distanciamento entre os padrões mencionados. Se o domínio da representação se faz constituir por réplicas do domínio da realidade sensível, réplicas enquanto objetos lógica e racionalmente construídos, é importante considerar que o maior ou menor compromisso entre estes domínios possa ser justificado em razão do grau de deformação na passagem de um para o outro. Com o objetivo de avaliar parte do problema, o autor introduz a categoria degeneração, que desempenha um papel duplo no seu trabalho, pois tanto é utilizada para reportar estágios da percepção/compreensão dos objetos (correlação entre primeiridade, segundidade e terceiridade), como para apontar fatos diferentes na terceiridade. Quanto à primeira concepção de degeneração PEIRCE (1980) formula: “ [O] Primeiro, devido a seu caráter extremamente rudimentar, não é sucesptível de alguma modificação degenerada ou enfraquecedora. O Segundo tem uma Forma Degenerada, na qual existe com efeito Segundidade, mas uma Segundidade Secundária, enfraquecida (...)42. 42 As supressões marcadas por (...) fazem-se presentes no texto-fonte; aquelas marcadas por [...] foram introduzidas por economia nas citações. 96 A categoria do Terceiro exibe duas formas diferentes de degeneração. O Primeiro grau de Degeneração é encontrado numa Pluralidade Irracional, que, na forma como existe, em contradistinção com a forma de sua representação, é uma mera complicação de dualidade [...]. A Terceiridade mais degenerada é quando concebemos uma mera Qualidade de Sensação, ou Primeiridade para representar-se a si própria como Representação.[...].” (p.25) O teor de degeneração, portanto, não é concebido no plano da primeiridade. Como reduto da qualidade de sensação, esta não comporta qualquer dimensão degenerativa e por ser uma experiência singular − ou rudimentar, como afirma o autor − não enfraquece os laços de experimentação com os objetos. Ela vale o que é como sensação presente e imediata e apenas registra a autenticidade de nossos movimentos sensíveis diante da realidade. Em resumo, o percepto atua pela imediatez com os objetos e, ao fazê-lo, dispensa a mediação de algo que se possa fazer de representâmen entre eles. A segundidade, por sua vez, já exibe algum grau degenerativo; como processo de formulação, ela requer algum distanciamento da realidade sobre a qual opera. Se a reação e o conflito são marcas de sua forma de operar, já nos mostramos distantes daquilo que é, por força de uma impressão sensível, para alcançar aquilo que pode ser, por força de uma elaboração conceitual. A terceiridade emerge, então, como um território de presença determinante da degeneração, onde os objetos devem ser modificados em favor de uma expressão de racionalidade. Nela, em relação aos dois planos anteriores, acolhemos, por razões intrínsecas, o ser representado (e não o ser experimentado, nem o ser pensado, embora eles sejam determinantes na compreensão daquele). Numa outra vertente, a da representação do ser − em contraste com a do ser representado −, a degeneração se faz presente por ser um instrumento de avaliação entre objeto e signo, à medida que prescreve formas como ícones, índices e símbolos, como instâncias de relações e de propriedades diversas que determinam a representação do ser. Se na terceiridade, portanto, fazemos convergir o ser representado e a representação do ser, é porque ela se torna o lugar de degeneração por excelência, de distanciamento necessário para uma expressão racional dos fenômenos. Nessa perspectiva, a terceiridade assume, de fato, a função indicativa de uma exterioridade dos objetos − o ser representado −, por neles intervir através de procedimentos de natureza diferente − o signo, isto é, a representação do ser − e por se fazer apresentar, ela mesma, como determinada por dois planos anteriores − 97 primeiridade e segundidade − que têm, por assim dizer, uma proximidade sensível/conceitual com os objetos, por deles fazer emergir sensações, traços e características que possibilitam o seu conhecimento. Outro aspecto, portanto, que devemos destacar na reflexão em torno da terceiridade, leva-nos à compreensão daquilo que é central na categoria, ou seja, a concepção de representâmen ou signo. A orientação com que temos delineado nossa reflexão aponta para a necessidade inicial de consideração dos termos genéricos do problema. Comecemos, então, por sua definição no formato proposto por PEIRCE (1972): “Um signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém.” (p. 46) Embora o autor recorra, em princípio, a uma formulação genérica de signo, duas indicações já são aqui apontadas na sua definição, a saber, o fato de que o signo “representa algo” e que o faz “para alguém”. Na seqüência da reflexão do autor, outras condições importantes serão objetos de discussão e serão detalhadas em razão da necessidade de se configurar parte do seu funcionamento. As condições mais importantes destacam, em função das tricotomias, as relações do signo consigo mesmo, os vínculos entre signo e objeto e as correlações entre signo e interpretante. Todos os casos reportam, em alguma extensão, os meios pelos quais o signo ou o representâmen interpela os objetos, estabelece com eles algum tipo de vínculo analógico, de compromisso conceitual, conforme podemos observar em outra passagem (PEIRCE, 1972): “O signo representa alguma coisa, o seu objeto. Representa seu objeto não em todo os seus aspectos, mas com referência a um tipo de idéias que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen.”(p. 46) A citação precedente serve para situar um aspecto determinante de todo o trabalho de reflexão a ser desenvolvido na terceiridade, isto é, a idéia de que os objetos não se relacionam com seus signos de modo uniforme nem aleatório (ou que os signos não representam os objetos desse modo), mas somente se relacionam com os signos naquela dimensão que diz respeito ao “fundamento do representâmen”. Uma vez que a totalidade dos aspectos de um objeto nunca 98 são recobertos pelo signo43, já que nenhum signo sintetiza o conjunto total dos componentes de um objeto, suas diferentes espécies decorrem da maneira pela qual parte desse conjunto é selecionada na composição do representâmen. Logo, a concepção de que existem fundamentos distintos permitirá produzir também diferentes tipologias de signos. No fundo, a função representativa do signo não se mostra desconectada, de modo determinante, do objeto, como o próprio PEIRCE (1977) assinala: “... todo signo tem, real ou virtualmente, um Preceito de explicação segundo o qual ele deve ser entendido como uma espécie de emanação, por assim dizer, do seu Objeto.” (p.47) Provavelmente, a condição de o signo ser um processo de emanação do objeto, isto é, de a sua natureza ser conseqüência de um aspecto determinante do objeto ao qual se vincula, vai possibilitar a Peirce toda a criação de uma arquitetura intrincada e laboriosa da gênese e da classificação dos signos. Essa empreitada analítica de justificar o signo como emanação do objeto, de apontar aspectos que possibilitam este vínculo causal favorece o surgimento das tricotomias, cada uma pretendendo possuir um alcance conceitual diferenciado, em razão das formas pelas quais o signo se institui como signo, faz-se de objeto, relaciona-se às condições do interpretante. Se a vinculação entre signo/objeto, por exemplo, se justifica mediante um compromisso de emanação, onde o primeiro é uma conseqüência do segundo, já que do objeto “emana” o fundamento do signo, o autor propõe, então, uma das suas concepções, a segunda tricotomia, na qual reconhece três instâncias possíveis para o representâmen. O processo de representação, assim concebido, mostra um desdobramento do representâmen em ícone, índice, símbolo que são, como diz Peirce (PEIRCE (1977), p.47): “ naturalmente meras figuras de retórica, o que, no entanto, não os torna inúteis.”, não chegando, todavia, a se constituírem na única forma de configurar o essencial, em termos de representação do conhecimento. Em outra dimensão tricotômica, por exemplo, o trabalho desenvolvido em termos de lógica das proposições, principalmente a reflexão em torno do dicente e do argumento (PEIRCE, 1977. p.77 e ss), pode ser considerado complemento necessário à função 43 Conforme citação já formulada por PEIRCE (1980) “aquilo que tem natureza representativa não é ipso facto real.”. (p.29) 99 de representar, isto é, a constatação de que o signo, como elemento isolado, não possa desempenhá-la de forma plena. Neste momento, então, preocupou-nos mais enfatizar o essencial à terceiridade, como instância de representação e selecionar apenas o que existe de fundamental no âmbito da presente discussão, ao invés de avançarmos sobre alguns detalhes das tipologias, o que será objeto de nossa análise mais à frente. Assim, o grau de dificuldade que se faz presente na construção conceitual da terceiridade leva-nos a considerar que fatores a ela associados, ainda quando orientados para a representação, não devem ser vistos de modo uniforme: classificações e subclassificações propostas pelo autor são indicativas de uma complexidade crescente no plano da representação. O liame, portanto, entre representâmen e aquilo que é representado, fundamenta-se em razões diversas: cada circunstância específica pode selecionar um aspecto diferencial do objeto, cada relação interpretante pode ser responsável por concebê-lo de modo distinto. PEIRCE, (1980), ao apontar outro uso da degeneração, introduz uma gradiência na tentativa de mostrar diferenças conceituais entre instâncias da terceiridade: “As formas relativamente degeneradas da Terceira categoria não entram numa série como as da Segunda categoria. O que temos é o seguinte. Quando se toma qualquer classe cuja idéia essencial seja Terceiridade, ou Representação, o autodesenvolvimento dessa idéia [...] resulta numa tricotomia que dá origem a três subclasses, ou gêneros, envolvendo respectivamente uma terceiridade relativamente genuína, idem mas reativa, e, mais degenerada de todas, uma terceiridade relativamente qualitativa.” (p. 26) Embora a gradiência aqui exposta não responda, diretamente, pela segunda tricotomia − ícone, índice e símbolo − 44, as outras duas poderiam ser igualmente discutidas, ela constitui a forma de maior divulgação de toda a arquitetura do signo proposta pelo autor, pelo fato de reportar, diretamente, a relação signo/objeto, com certeza, o padrão mais comum de discussão 44 As tricotomias propostas pelo autor recobrem dimensões distintas do signo. A primeira considera o signo em si mesmo, enquanto manifestação de uma qualidade (qualissigno), de um existente (sinsigno) e de uma lei (legissigno). A segunda considera o signo na sua relação com o objeto, enquanto se refere a um objeto por razões intrínsecas ao próprio signo (ícone), através de uma conexão existencial (índice) ou em razão de uma relação com o interpretante (símbolo). A terceira admite o signo enquanto determinado pelo seu interpretante como uma possibilidade (rema), como um fato (dicente) e como uma construção racional - correlação entre fatos (argumento). No presente trabalho estaremos apenas apontando alguns dos aspectos dessas tricotomias, naquilo que recobre a nossa discussão geral sobre representação. Uma menção maior será feita à segunda e terceira tricotomias, pelo fato de serem elas formas de representação importante para a linguagem. 100 das funções do signo. Entretanto, os outros padrões de desdobramento do signo revestem-se de igual importância do ponto de vista teórico e são eles, no fundo, que constituem os aspectos mais originais na sua proposta. Assim, a gradiência tipológica proposta acima para a terceiridade, poderia ser projetada na segunda tricotomia do seguinte modo. Ao símbolo, como um terceiro, atribuiríamos o fato de ser a categoria “mais degenerada de todas”, e, por conseguinte, apenas “relativamente qualitativa”, pelo fato de ser ele o formato mais genuíno de representação, isto é, o de guardar maior distanciamento com o objeto que representa45. Ao ícone, apontaríamos o fato de ser uma categoria “relativamente genuína” e, por ser um terceiro, conflui para o seu objeto devido a um formato análogo, ou ao fato de estar próximo de sua qualidade de sensação. Finalmente, temos o índice, um outro terceiro, que marca a orientação “[relativamente genuína = idem] mas reativa” , por lembrar alguma característica do objeto e com ele se relacionar de forma efetiva. Em outros termos, sendo signo, ele mantém um certo grau de orientação genuína da terceiridade, mas, ao mesmo tempo, torna-se degenerado num grau que o faz distinto de uma degeneração que constitui a classe genuína de representamens. A partir dos comentários e da citação acima, podemos reestruturar as três instâncias da segunda tricotomia em torno de quatro categorias (degenerado, genuíno, qualitativo e reativo) mais freqüentemente mencionadas pelo autor, enquanto dimensões conceituais da representação: (01) símbolo = [+degenerado, +genuíno, - qualitativo]46: trata-se de uma classe de representâmen que guarda o mínimo de correlação analógica com o objeto, daí a classificação [+degenerado] e, por isso mesmo, torna-se o membro mais 45 A caracterização dos fatos da terceiridade, como já mostramos na nota anterior, mereceu de Peirce duas categorias que se compensam também aqui nessa formulação. Assim, o que há de mais (menos) genuíno para a terceiridade equivale ao que há de mais (menos) degenerado. 46 É importante justificar a presença de ambos os traços, na medida em que são utilizados para descreverem um fenômeno em comum, ou seja, o grau de retenção de traços do representado no representâmen. Logo, devemos conceber degenerado como possibilidade de um distanciamento em relação aos traços analógicos do ser na representação do ser. Assim, quanto maior for para o signo o grau de degenerescência entre ser e ser representado, tanto mais legítimo será como instância da terceiridade. Do mesmo modo, devemos admitir o traço genuíno como possibilidade típica de um padrão de representação do ser. Logo, quanto maior for para o signo o grau de genuinidade entre ser e ser representado, tanto mais autêntico será ele como membro da terceiridade. 101 autêntico da terceiridade [+genuíno], já que não se fundamenta em qualquer característica do objeto, senão numa convenção, logo [-qualitativo] 47; (02) ícone = [-degenerado, -genuíno, +qualitativo]: uma classe de representâmen que retém o máximo de correlação de similitude com o objeto, por isso [-degenerado], espelha alguma qualidade do objeto, [+qualitativo] e, em razão disso, torna-se um membro menos legítimo da terceiridade, por isso [-genuíno]48; (03) índice = [-degenerado, -genuíno, +reativo]: uma classe de representâmen que se identifica ao objeto representado, daí [-degenerado], apaga uma divisão nítida entre representâmen e representado (ele pode, geralmente, constituir-se numa parte do objeto), mas também não funciona como um análogo do objeto, isto é, [+reativo] e, por isso mesmo, torna-se uma classe pouco autêntica de representação.49 O que comentamos acima traduz uma orientação para o texto de Peirce que expressa princípios gerais que fundamentam a terceiridade na sua dimensão conceitual. Não estivemos, no momento presente, preocupados em recorrer a certos meandros da formulação do autor que conduziriam a detalhes sobre as três tricotomias e sobre cada uma das suas classes conseqüentes. Abordagens sobre os fundamentos da terceiridade costumam expressar apenas uma genealogia dos signos em termos de classes, de subclasses e de desdobramentos ulteriores. Essa taxinomia de valores, propriedades e operações constitutivos das espécies de signos é, com certeza, importante na reflexão do autor e costuma ser o fator de maior saliência que se aponta em sua reflexão. Entretanto, toda a preocupação com classificações e 47 A reestruturação aqui adotada para o símbolo, a partir dos componentes propostos por Peirce, poderia ser estendida também a outras instâncias da terceiridade: legissigno e argumento. Existem dificuldades adicionais nessa extensão, ao menos quando consideramos o argumento. Não é claro supor que todas as correlações proposicionais possíveis sejam frutos de uma convenção. A noção de causalidade forte, por exemplo, (ter massa/cair, ser menos denso que a água/flutuar) não depende, necessariamente, de uma convenção. 48 Igualmente, poderíamos estender a conceituação de ícone para outros primeiros da terceiridade: qualissigno e rema. O fato de podermos expressar o rema através de uma função, cujas variáveis se apresentam apenas como uma possibilidade, comprar (x, y), mostra que quaisquer objetos que vierem a substituir as variáveis assumirão um aspecto qualitativo de comprar, como uma forma de predicação possível para tais objetos. 49 Ao índice também torna-se possível a mesma correspondência já mostrada: segundos como sinsigno e dicente se adequam à presente reestruturação. 102 subclassificações seqüenciais do representâmen, no nosso entendimento, apenas traduz um indicador daquilo que, de fato, compõe a função que devemos atribuir à terceiridade, como um instrumento de apuração final de todo um processo de percepção, de formulação e construção do conhecimento, a ser materializado em diversas instâncias do signo. Nas seções seguintes, propomo-nos, inicialmente, a avaliar, de modo mais restrito, o funcionamento das tricotomias, e, em seguida, comparar a avaliação com instrumentos que são usados para formalização de aspectos do processo de significação nas línguas naturais. Como no segundo capítulo, a avaliação em pauta será desenvolvida em contraste com algum tipo de exigência conceitual formulado para análise semântica de fatos lingüísticos. 3.3 Estruturação da tipologia dos signos Na discussão que desenvolvemos sobre a terceiridade, procuramos selecionar alguns problemas e propostas que foram trabalhados por Peirce para, a partir deles, tentar mostrar algum contraponto com a questão da análise semântica, a ser desenvolvida mais à frente. O resultado desse confronto quase sempre tem sido pautado pelo parâmetro da tipologia dos signos, do lado da semiótica, e pelo parâmetro das relações lexicais e sintagmáticas, do lado da semântica. Entretanto, a exclusividade conceitual de tais parâmetros não pode ser atribuída a nenhum dos dois campos, uma vez que nem uma tipologia de signos para a semiótica é desprovida de quaisquer compromissos com relações entre signos, de signos com objetos, de signos com interpretantes, nem a linguagem é indiferente às tipologias, por exemplo, o reconhecimento de classes gramaticais ou lexicais distintas no universo lingüístico. No caso da linguagem em particular, noções como estrutura e função50, por exemplo, que serão usadas como parâmetros da nossa discussão, são definidas a partir de unidades lingüísticas, classificadas através de critérios recorrentes em dimensões distintas do sistema. 50 A definição de função, objeto de menção neste capítulo, está sendo retomada de DELATTRE, P. (1992) “A função dum objecto ou dum elemento qualquer está estreitamente ligada ao comportamento deste elemento e ao papel que ele desempenha num contexto dado, contexto este constituído ele próprio por elementos diversos. A noção de função é portanto inseparável da de interacção e, em conseqüência, também da de sistema; a sua explicitação não pode fazer-se sem que intervenham, simultaneamente, o elemento considerado e os outros elementos situados no contexto.” (p. 290). 103 Independentemente da natureza do critério usado para justificar tipologias, elas mantêm um relacionamento estreito com a determinação de estruturas ou com o preenchimento de lugares funcionais nessas estruturas. O reconhecimento da tradição gramatical das nove classes de palavras, embora numericamente próxima às classes de signos, não apresenta, à primeira vista, nem paridade conceitual, nem funcional entre os componentes de um e outro campo. No entanto, ainda que qualquer proximidade possa ser fixada, as condições que determinam uma ordem sistêmica tanto para semiótica, como para semântica estão longe de constituir-se em qualquer referência de aproximação. Se alguma ordem sistêmica puder ser atribuída à semiótica a partir da fundamentação das dez classes de signos, ela o será em razão de critérios como possibilidade, existência e lei que são formulados por Peirce como garantia de uma diferenciação na manifestação dos signos. Ainda que à diferença entre as classes possa ser atribuído um valor estrutural, ele continuará sendo diferente do valor estrutural das unidades de uma língua: nesta as estruturas se constroem pela interação entre elementos, a partir de princípios de identidade e de diferença, operados com base na comutação em diversos níveis. Na semiótica, as estruturas, em termos de classes de signos, compõem-se por padrões distintos: isto pelo contraste na recorrência de certas de categorias conceituais. Na semiótica não há uma sintaxe de seqüenciamento hierárquico de unidades recursivamente produzido; há, quando muito, uma sintaxe de agregação, de substituição e de potencialização de unidades sígnicas ad hoc e não sistêmica. Na semiótica, se existe uma ordem sistêmica, ela é criada pelo uso dos signos, por constraste/semelhança entre os pares da tipologia: não havendo, portanto, uma sintaxe que seja anterior a esse uso. Na linguagem, ao contrário, as unidades já pressupõem uma ordem que prevalece sobre tipologias possíveis. Com base em fatos que a tipologia dos signos pode nos prover e em fenômenos de significação em estruturas lingüísticas, vamos tentar sistematizar, conceitualmente, aquilo que pode expressar um contraste entre padrões de representação, considerado nos dois campos teóricos. 3.3.1 Representação lingüística versus representação semiótica A preocupação central que o texto de Peirce nos revela, ao se propor à construção de uma tipologia das representações, expressa-se através da determinação de um conjunto de critérios, de categorias, de relações, e de divisões que sejam capazes, em conjunto, de 104 conceber os recortes de um universo de fenômenos que emerge, de imediato, em total desordem, ou numa diferenciação nada visível. Os estágios anteriores de sua teoria, acrescidos das questões que estamos discutindo em relação à terceiridade, permitem ilustrar esse esforço continuado do autor, nem sempre suficientemente transparente, de enfrentar os caprichos de uma percepção aleatória com investidas de racionalização, procurando construir uma ordem conceitual para aquilo que se mostra caótico, ao menos, num primeiro exame. As suas hipóteses gerais podem ser evidentes, mas os procedimentos para torná-las operacionais nem sempre são muito transparentes, não apenas pela ausência constante de uma exploração de fatos ilustrativos, mas também por uma construção conceitual nem sempre ‘concluída’, em determinados momentos da reflexão. Nos comentários a seguir, vamos tentar reorganizar, num outro formato, parte dos dados propostos por Peirce para chegar a uma justificativa da existência de dez classes de signos. A compreensão inicial dos fatos em análise, embora certamente não seja o único, pressupõe a formulação de Peirce sobre as relações triádicas, seus componentes e suas características, conforme o registro seguinte (PEIRCE, 1977): “... A título provisório, podemos efetuar uma divisão grosseira das relações triádicas, divisão que, não duvidamos, contém importante verdade, ainda que imperfeitamente apreendida: Relações triádicas de comparação Relações triádicas de desempenho e Relações triádicas de pensamento. Relações triádicas de Comparação são as que fazem parte da natureza das possibilidades lógicas. Relações triádicas de Desempenho são as que fazem parte da natureza dos fatos reais. Relações triádicas de Pensamento são as que fazem parte da natureza das leis.” (p. 49) Podemos fazer uma aproximação das relações triádicas com as tricotomias, que já foram mencionadas, mostrando que aquelas, diferentemente destas, não especificam uma tipologia de signos, senão apontam o domínio de certas categorias em torno das quais se estruturam os componentes de cada uma das tricotomias. É importante introduzir ainda, nas diversas instâncias de compreensão do signo, o papel atribuído aos correlatos51. Poderíamos, 51 Ao isolarmos diversos aspectos que são usados na construção do signo, seria importante registrar o valor que Peirce atribui ao correlato, (PEIRCE, 1977, p. 51): “... Um representâmen é o Primeiro Correlato de uma relação triádica sendo o Segundo Correlato denominado seu Objeto e o possível Terceiro Correlato sendo denominado o seu Interpretante...”. 105 para melhor ilustrar a correlação, supor que as relações triádicas, em toda sua extensão conceitual, fossem linhas que atravessassem as três tricotomias, com seus membros listados em colunas e associados a cada um dos correlatos determinantes, conforme esquema abaixo: função dos correlatos natureza conceitual Correlato 1: Correlato 1: Correlato 3: estrutura conceitual das relações representâmen objeto interpretante das relações ⇓ ⇓ ⇓ ⇓ ⇓ Relações triádicas qualissigno ícone rema ⇐ de comparação ⇒ Relações triádicas possibilidades sinsigno índice dicente ⇐ de desempenho ⇒ Relações triádicas domínio das domínio da existência legissigno símbolo argumento de pensamento ⇒ ⇐ domínio das leis ⇑ ⇑ ⇑ Primeira Segunda Terceira Tricotomia Tricotomia Tricotomia Fig. 1: Quadro de correlações sígnicas Por sua natureza conceitual, os signos colocados no domínio da relação triádica de comparação estruturam-se em função de possibilidades lógicas, especificadas em razão de relações funcionais de cada uma das tricotomias. Em outras palavras, as possibilidades lógicas são definidas, de modo particular, em razão de cada um dos correlatos que interfere na constituição do formato de representação. Assim, por exemplo, o que torna um ícone logicamente possível é o fato de ele conter um alcance de representação, determinado pelo segundo correlato − objeto − que possibilita comparar a natureza do signo com a do objeto que designa, em razão de algum traço analógico. Logo, um ícone é uma possibilidade lógica de um objeto qualquer, na medida em que ele o representa em razão de algum traço analógico que incorpora do objeto. A condição para que um dado traçado seja um ícone para o objeto:casa, é que ele seja capaz de, logicamente, conter algum traço analógico que lembre o objeto em questão: formato físico, contendo porta, janela, telhado... Mutatis mutandis, o 106 mesmo podemos asseverar sobre o rema. Como função proposicional, ele traduz-se como mera possibilidade lógica de poder ser atualizado em função do terceiro correlato − interpretante − que determina as condições de seu uso e os resultados decorrentes. Então, um rema é uma possibilidade lógica, porque estrutura uma condição de uso de uma categoria − ‘emprestar’ −, em função da atualização de variáveis − ‘emprestar(x, y, z)’. O fato de se colocar, portanto, a comparação como um domínio de possibilidades lógicas submete signos à condição de vir a representar em razão de circunstâncias determinadas. Por outro lado, as relações triádicas de desempenho fundamentam-se em razão de serem uma instância representativa da existência fatual dos objetos. O que traduz a existência é o fato de podermos reconhecer, no signo, parte daquilo que é por ele próprio representado. De mera expressão de possibilidades lógicas, chegamos, então, a uma dimensão de signos comprometida com a existência dos objetos. Assim, um sinsigno é a representação de um existente que, em razão da determinação da primeira tricotomia, traduz-se por ser, ele mesmo, um signo. Qualquer palavra de uma língua, enquanto assumida como um objeto existente (para estudo na fonologia ou na morfologia, por exemplo), constitui um sinsigno. Com os devidos ajustes, podemos afirmar o mesmo para o índice, que tem como desempenho o fato de ser um signo que incorpora uma extensão do objeto que representa, isto é, que mantém com o objeto representado uma relação existencial estreita, metonímica. Assim, o objeto:chave pode ser um índice para o objeto:casa, uma vez que o primeiro se estrutura através da função que mantém uma relação de existência com o outro, por constituir uma de suas partes integrantes. O estreitamento da correlação entre o ser e a representação do ser contido nas relações triádicas de desempenho mostra um viés conceitual diferente do precedente. Não se trata de uma representação em potencial, mas de uma representação que supõe um mínimo de um comprometimento material entre o que representa e aquilo que é representado, segundo os padrões determinantes de cada uma das tricotomias. Por último, as relações triádicas de pensamento expressam a concepção mais racionalmente elaborada, porque requerem a intervenção de leis que tornam possíveis os formatos de representação ali presentes. Assim, quando afirmamos o valor estrutural de uma ‘preposição’ como um legissigno, estamos considerando-a em si mesma e a partir de leis gramaticais que fazem dela um instrumento hábil ao desempenho de funções. Somente em razão das leis de um sistema é que podemos determinar o seu valor estrutural. Não existe para 107 a ‘preposição’ uma extensão objetiva na realidade, como vimos em casos anteriores, mas apenas uma condição conceitual de estruturação dessa extensão: o seu valor decorre da força de leis que regem o seu estatuto no sistema. Podemos assegurar uma formulação semelhante em se tratando do argumento: ele não traduz, diretamente, uma parte da realidade − pois este seria o papel do dicente −, mas ele é mais do que isso, pois recolhe partes dessa realidade e dá a elas uma expressão racional, isto é, de correlações expressas na forma de silogismos dedutivos, indutivos e abdutivos. O argumento é assumido como a forma mais elaborada do pensamento por se tratar de uma representação que inclui o domínio das leis, de normas que regem a estruturação do pensamento. Ele sintetiza, portanto, padrões diversos de raciocínio, como a expressão máxima da racionalidade. O quadro de correlações que elaboramos acima ainda não é suficiente, na sua totalidade, para caracterizar, de forma específica, as modalidades de signo. Registramos, nesse momento, apenas aquilo a que poderíamos denominar os ‘radicais básicos’ para a sua construção, exceção feita ao qualissigno e ao argumento. O quadro mostra, então, três dimensões determinantes a que Peirce submeteu o domínio do signo. Nesse domínio, podemos reconhecer uma natureza, uma função e uma estrutura que representam os atributos essenciais do signo. Num dos alcances das relações triádicas, situa-se a natureza do signo, expressa através das categorias comparação, desempenho e pensamento que são determinantes para a sua concepção e que apontam para um primeiro critério de distinção entre formas de representação. Dessa formulação, podemos derivar modalidades que são expressão das categorias mencionadas: signos de comparação, de desempenho ou de pensamento. No âmbito dos correlatos, localizamos a sua função que mostra a interface imediata do signo com o representâmen − isto é, com ele mesmo −, com o objeto e com o interpretante, como instâncias determinantes para uma avaliação de seu comportamento. Nessa dimensão, o valor representacional do signo é inferido face ao elemento que é relacionado no contraste. No outro alcance das relações triádicas, situamos a sua estrutura, que se efetiva em razão de possibilidades lógicas, ou da expressão existencial, ou do ajuste a leis gerais; todos assumidos como parâmetros que determinam estágios diferentes da construção de uma racionalidade no plano da representação. Finalmente, o domínio das tricotomias não constitui, no nosso entendimento, um valor conceitual determinante na concepção do signo, senão num critério exterior de agrupamento das três dimensões conceituais que acabamos de mencionar. 108 Se as três dimensões conceituais que acima apontamos (natureza, função, estrutura), quando combinadas, se tornam responsáveis pela especificação de cada um dos ‘radicais básicos’, indicados no quadro de correlações pelos campos hachurados, e também de duas classes de signos - qualissigno e argumento52 -, podemos supor uma forma de gerar as demais classes remanescentes, a partir das categorias constantes em cada uma das dimensões. Associando, num primeiro momento, as categorias que especificam a estrutura, podemos obter três ‘radicais básicos’: um que se institui no plano da [possibilidade], outro, no plano da [existência] e um terceiro, no plano da [lei], conforme o esquema abaixo: (04) Regra básica: estrutura do signo → {[possibilidade] ∨ [existência] ∨ [lei]}53 Consideremos uma aplicação de (04), a partir de [possibilidade], incluindo, mesmo que de modo redundante, a categoria [comparação], já que uma e outra definem apenas padrões diferenciados − natureza e estrutura, na nossa concepção − para o signo. O resultado é o seguinte: (05) Associações para [possibilidade]: (05a) {[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato1]}, isto é, qualissigno; (05b) {[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato2]}, isto é, ícone; (05c) {[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato3]}, isto é, rema. 52 Qualissigno e argumento constituem as formas de signo que dispensam quaisquer outros complementos através dos radicais básicos: o primeiro associa-se à forma mais primária de representação, por situar-se ainda num plano muito próximo ao da percepção; contrariamente, o segundo constitui o padrão mais elaborado de representação. 53 A admissão da estrutura como ponto inicial da derivação de formas de signo é, relativamente, arbitrária, já que poderíamos atribuir à natureza o mesmo papel, em razão da coincidência que existe entre as duas formas de concepção do signo. Assim, (04) poderia ser reescrita como (04a) Regra básica: natureza do signo → {[comparação] ∨ [desempenho] ∨ [pensamento]}. O que concluímos dessa alternativa é que natureza e estrutura são, de fato, duas dimensões redundantes, porque qualquer signo de possibilidade é um signo de comparação, ou qualquer signo de existência e um signo de desempenho e assim por diante. 109 Enquanto estrutura-possibilidade e natureza-comparação se mantêm constantes, o responsável pela produção diversa de instâncias de signos/radicais é o correlato. Dentre as três instâncias acima, apenas o qualissigno assumirá, na tipologia do autor, um valor de signo genuíno54; as demais serão reaproveitadas como elementos combinatórios na construção de classes mais complexas de signos, como veremos mais tarde. Pelo fato, portanto, de ser um signo que se constitui apenas a partir de condições de um primeiro, o qualissigno torna-se a forma mais degenerada de representação; ele é um estágio de representação menos elaborado, por estar próximo de uma mera sensação do objeto; logo, traduz deste apenas uma qualidade de sensação. Os demais elementos − ícone e rema −, portanto, incorporam-se como parte constitutiva de classes mais complexas de signos, daí a razão de apontá-los como ‘radicais básicos’. Avaliemos agora o comportamento do segundo componente da expansão da regra em (04): (06) Associações para [existência]: (06a) {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 1]}, ou seja, sinsigno; (06b) {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 2]}, ou seja, índice; (06c) {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 3]}, ou seja, dicente. Para o conjunto de derivações acima, enquanto estrutura-existência e natureza-desempenho mantêm-se inalteradas, a diferenciação para o signo é produzida pela presença dos correlatos. São eles, portanto, os responsáveis por garantir graus diferenciados de representação no âmbito das relações triádicas de desempenho. No caso do índice, por exemplo, entendemos que a convergência de dois padrões − existência e o [correlato 2], que supõe o objeto −, indicaria o máximo sobre condições de existência fatual. O índice é, portanto, por essa dupla contaminação existencial, o formato de representâmen que mais se aproxima da essência existencial do objeto, podendo até mesmo integrar uma parte de suas partes componentes. Aqui, todavia, Peirce não isola nenhum signo genuíno, mantendo cada um dos elementos como possibilidade de recomposição de classes mais complexas de signo. Vejamos, então, associações possíveis para o terceiro componente de (04): 54 É claro que a genuinidade do qualissigno não se deve à sua mera designação singular, mas como conseqüência do fato de ser um signo genuíno, que comporta essa denominação por se fazer constituir por elementos primeiros. 110 (07) Associações para [lei]: (07a) {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 1]}, a saber, legissigno; (07b) {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 2]}, a saber, símbolo; (07c) {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 3]}, a saber, argumento. As derivações compostas com base em estrutura-lei, natureza-pensamento também apontam que diferentes formas de representação são obtidas mediante uma variação do correlato. Os três formatos de representação supõem uma organização intelectual, quer os assumamos em relação ao pensamento, quer em relação a normas gerais. Legissigno e símbolo são também considerados como componentes de outras classes mais complexas de signos. O argumento, de outro lado, constitui uma classe genuína de signos, porque constitui o padrão último de representação, a sua forma mais elaborada − um silogismo, por exemplo. Esse fato asseguralhe o motivo de ser, em contraste com o qualissigno, a forma menos degenerada de representação, já que ele interpela os objetos sem uma referência imediata à sua existência, ou a qualidades que lhe são próprias, mas apenas em virtude de leis e de normas gerais que regem seu comportamento e sua existência. A partir da fundamentação dos elementos componentes das três tricotomias, podemos formular o modo pelo qual Peirce elabora as demais classes de signo e que aspectos, no âmbito de uma semiose, elas pretendem recobrir. De início, podemos afirmar que qualquer forma de representação proposta pelo autor pressupõe a intervenção dos três correlatos − representâmen, objeto e interpretante. Entretanto, como já vimos, tanto para o qualissigno como para o argumento, há formas de representação que se orientam de modo mais específico referentemente aos correlatos. Nos comentários abaixo e a partir do agrupamento de certas classes de signos, vamos tentar mostrar como elas podem ser mapeadas no campo da semiose, procurando destacar que a tipologia proposta por Peirce não se sobrepõe, mas recorta, diferentemente, frações distintas do processo semiótico, conforme estipulamos nos agrupamentos abaixo: (08) Grupo 1: orientação para a relação representâmen/objeto: 111 Sinsigno icônico: {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 1]} (sinsigno) {[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato2]} (ícone) Legissigno icônico: {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 1]} (legissigno) {[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato2]} (ícone) As duas classes acima apresentam, em comum, o fato de estarem orientadas para os mesmos correlatos, isto é, o primeiro e o segundo. Face ao primeiro correlato − representâmen −, o sinsigno icônico orienta-se, em sua dimensão estrutural, em termos da [existência], enquanto o legissigno icônico o faz em termos da [lei]. Ambos, por seu turno, recobrem, conceitualmente, o território que diz respeito à relação entre representâmen e objeto, assinalando, para este último, a condição de mera [possibilidade], daí a razão de serem ambos espécies icônicas. Se as duas classes acima refletem a representação do primeiro correlato em termos da segunda e terceira relações triádicas − [desempenho] e [pensamento], respectivamente −, a primeira será recoberta pelo qualissigno, como veremos à frente. (09) Grupo 2: orientação para objeto/interpretante: Símbolo remático: {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 2]} (símbolo) {[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato 3]} (rema) Símbolo dicente: {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 2]} (símbolo) {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 3]} (dicente) A presença do segundo e terceiro correlatos na compreensão das duas classes do grupo acima mostra uma orientação para a relação entre objeto/interpretante. A semelhança está assegurada em função de serem ambos signos de lei, mas que divergem no detalhe complementar de ser um signo de possibilidade e um signo de existência para o terceiro correlato. A terceira tricotomia aparece recoberta em termos da primeira e da segunda relação triádica, enquanto a terceira relação triádica será desempenhada pelo argumento, como veremos a seguir. (10) Grupo 3: orientação para a relação representâmen/objeto/interpretante: 112 Sinsigno indicial remático: {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 1]} (sinsigno) {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 2]} (índice) {[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato3]} (rema) Legissigno indicial remático: {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 1]} (legissigno) {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 2]} (índice) {[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato3]}(rema) Legissigno indicial dicente: {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 1]} (legissigno) {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 2]} (índice) {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 3]} (dicente) As três dimensões do processo semiótico aparecem aqui representadas nas três classes de signos deste grupo. O traço constante dos signos que compõem o grupo se faz representar pela presença da categoria [existência], isto é, todos são signos indiciais, assegurando uma relação direta com domínio dos fatos. No entanto, a forma de assegurar a existência genuína de um segundo acontece em razão do modo pelo qual primeiros e terceiros são combinados. Assim, constatamos: (a) o primeiro correlato contrasta sinsigno indicial remático − em razão da [existência] − com legissigno indicial remático e com legissigno indicial dicente; − em razão da [lei] −; (b) o terceiro correlato contrasta sinsigno indicial remático e legissigno indicial remático − em razão da [possibilidade] − com legissigno indicial dicente. (11) Grupo 4: orientação para o fundamento estrutural do signo Qualissigno: {[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato1]} (qualissigno) Sinsigno dicente: {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 1]} (sinsigno) {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 3]} (dicente) Argumento: {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 3]} (argumento) O grupo acima determina aquilo que é o fundamento do signo, para cada uma das dimensões conceituais anteriormente previstas, ou seja, [possibilidade], [existência] e [lei]. Assim, o qualissigno é o máximo de [possibilidade] que uma forma de representação pode assumir, 113 porque é ainda um reduto da sensação. Em contrapartida, ele incorpora o mínimo de [lei], porque pouco contém de elaboração55. O argumento, por sua vez, incorpora o máximo de [lei], porque é a forma mais elaborada de expressão do pensamento. Por essa razão, nele se faz presente o mínimo de [possibilidade], por já se tratar de um padrão onde grande parte da sensação foi abandonada em favor de uma elaboração56. Resta, pois, avaliar o fundamento da [existência]: deveríamos, por razões óbvias, supor que o índice pudesse exercer essa função, por incorporar apenas constituintes que lembram a idéia de segundo, a saber, [existência], [desempenho] e [correlato 2/objeto]. Entretanto, Peirce fundamenta a representação nesse estágio a partir de uma classe complexa − sinsigno dicente − que reúne, simultaneamente, a condição de existência do [correlato 1] e do [correlato 3]. A representação da [existência] é construída, então, com base na estrutura existencial partilhada pelo representâmen bem como pelo interpretante, e com a exclusão de qualquer referência ao objeto. O máximo de existência contida nos formatos de representação decorre não do objeto, mas da instância existencial presente no representâmen ou no interpretante. É provável que esta questão seja uma conseqüência da necessidade de se distinguir, mais uma vez, o ser do ser representado ou da representação do ser. Procuramos, nesse relato sobre a tipologia dos signos, localizar alguns aspectos que julgamos essenciais a sua compreensão. Isolamos, dentre muitas outras, algumas categorias que nos permitiram uma compreensão do processo de representação conceitual, de forma mais analítica. Considerando-se o alcance conceitual de sua formulação, o texto de Peirce pode constituir-se numa fundamentação importante para a apreensão de fatos relativos ao conhecimento da atividade humana. Nos seus termos genéricos, a proposta em análise parece procedente em se tratando da construção de uma gênese das representações, embora o seu alcance aplicativo nem sempre esteja traduzido de modo imediato. As dificuldades, nesse setor, não devem ser atribuídas ao autor, nem à metalinguagem que propõe para compreendêlas; as dificuldades são mesmo decorrentes da natureza complexa dos fatos e da forma pela qual, para evitar reducionismos, se busca captar esta complexidade. Assim, por tentar 55 Esse teor que estamos atribuindo ao qualissigno, de representar o máximo de possibilidade, encontra-se plenamente justificado por Peirce, quando, ao listar os ‘radicais’ supérfluos na constituição de cada classe de signos, apresenta para o qualissigno apenas componentes da ordem da possibilidade, isto é, icônico e remático. 56 Aqui também constatamos argumentos semelhantes aos desenvolvidos para o qualissigno para justificar o máximo de lei no argumento: a sua composição plena nos daria elementos que apenas lembram a ordem da lei, isto é, simbólico e legissigno. 114 assegurar o comportamento dinâmico de objetos sob a forma de representações, Peirce propõe-se a construir um sistema que, embora se orientando, em muitas circunstâncias, em direção à lógica, contém ramificações e desdobramentos cujo ajuste sistêmico nem sempre se torna muito transparente. Poderíamos minorar o alcance dessa observação em nome de uma lógica do vago, que o autor comenta em diversos momentos. Mesmo assim, a admissão do vago como padrão de comportamento dos objetos de uma semiose social não nos autoriza a incorporá-lo como padrão de metalinguagem. O que resulta, então, de tal situação ? A princípio, não é possível listar objetos específicos, fazendo-os corresponder a classes de signos, como pode ser factível para outras taxinomias. Essa lista seria sempre parcial, não apenas pelo fato de ser logicamente impossível a nomeação de todos os objetos semióticos, mas também pelo fato de a classificação listar apenas algumas das possibilidades de cada objeto. Em outras palavras, uma listagem capta um elemento no tempo e no espaço e esse procedimento, se é válido para muitas práticas sociais, não o é para objetos semióticos; o tempo e espaço escolhidos traduzem apenas uma variação possível, e não uma constante para objetos semióticos. A variabilidade resultante da aplicação contínua dos vetores, tempo/espaço, mostra que a classificação dos signos não pode ser vista como algo estático, porque os objetos da nomeação se encontram em mutações constantes pelo teor flutuante e instável do seu uso. Qualquer objeto semiótico pode ser assumido em dimensões distintas, uma vez que a possibilidade lógica de sua representação traduz-se pela necessidade material de representá-lo como um acontecimento singular. Nas seções seguintes, vamos formular contrastes, a partir da análise de alguns fatos, entre o formato de representação proposto pela autor e algum outro desenvolvido para análise lingüística. 3.3.2 Determinantes da representação: tipologias versus relações lexicais/sintagmáticas O trabalho desenvolvido por Peirce, conforme já demonstrado nos dois capítulos anteriores, pode apresentar-se, com os devidos ajustamentos, como uma reflexão importante para a compreensão de fatos de linguagem, principalmente, aqueles associados à construção de uma teoria semântica, na perspectiva aqui discutida. O alcance definido para a terceiridade ressoa também, com certeza, como algo absolutamente familiar ao desenvolvimento da 115 semântica, em particular, e dos estudos da linguagem, em geral. A idéia de representação nunca escapou à reflexão lingüística em quaisquer de seus níveis: fonema, morfema, sintagma, sema, por exemplo, foram categorias postuladas com o objetivo de representar, num plano metalingüístico, algum tipo de fenômeno que faz parte do objeto de alguma de suas áreas. Independentemente de formas de representação como essas, a de signo, no entanto, parece ter sido aquela, pela sua natureza, que melhor encarna a questão da representação, devido a sua estreita relação com objetos de um ‘mundo real’. Assim, a necessidade de convivência entre linguagem e realidade acabou por tornar a representação uma categoria não só necessária como recurso de mediação, como também emblemática, em razão do fato de todas as dificuldades de compreensão desse relacionamento recaírem sobre deficiências de alcance do seu conceito. Como registro, é suficiente que nos reportemos a três orientações que marcaram uma convivência (turbulenta) e que resultaram em concepções diferentes de representação. No primeiro caso, definiu-se a representação como um reflexo, onde a linguagem se torna um locus apropriado ao mapeamento de fatos da realidade; no segundo, ela se define como uma refração, registrando-se na linguagem aquilo que se mostra como um desvio da realidade; no terceiro caso, a representação se reveste de um teor projetivo, tornando-se a linguagem uma condição para representar mundos possíveis. A identidade terminológica entre semiótica e semântica, em torno da representação, entretanto, não parece garantir uma migração ou uma simbiose natural de aplicações: a própria dimensão apontada para a categoria nos estudos lingüísticos funciona como entrave a uma transcodificação imediata. Assim, ainda que o valor genérico da reflexão de Peirce seja compreensível na avaliação de fenômenos lingüísticos, a instrumentalização que respalda sua reflexão não nos parece adequada aos objetivos pretendidos. Enquanto uma certa gênese de tipologias fundamenta, na formulação do autor, todo exercício racional da terceiridade, a linguagem está a requerer outros padrões que justifiquem, minimamente, qualquer pretensão racional para a produção do sentido. Em que extensão, portanto, podemos situar algumas das dificuldades de um intercâmbio entre semiótica e semântica em termos de representação ? Existe uma incompatibilidade, de fato, entre os modelos de funcionamento de uma e outra ? Há requisitos que devem compor uma representação semântica e que a fazem distinta de uma representação semiótica ? 116 As três questões acima já pressupõem uma certa diferença de comportamento para a representação nos dois campos. É claro que esse pressuposto não exclui a possibilidade de uma aproximação, ainda que ela seja concretizada apenas em razão de princípios genéricos, como parece revelar esta análise. Não há nada de destoante em considerar um patamar de questões envolvendo uma teoria semântica, o qual esteja circunscrito no plano da terceiridade, na forma como foi concebida anteriormente. A natureza da significação lingüística, no entanto, impõe a necessidade de reescrever a terceiridade para que possa abrigar outro tipo de fenômeno. Assim, por mais provisória que ainda seja a compreensão teórica dos processos de significação lingüística, não conseguimos escapar da determinação de propriedades e de relações lexicais e sintagmáticas. Qualquer pretensão conceitual sobre objetos semânticos que a história da lingüística ou da lógica registra foi construída com base, ao menos, em um dos dois níveis de determinação acima mencionados. Qualquer possibilidade de demonstração de formas possíveis para a representação do sentido exige que passemos por estes dois planos dos fatos lingüísticos e que sejamos capazes de fazê-los convergir de modo decisivo. Com certeza, situa-se, no núcleo dessa discussão, um dos grandes problemas para a construção de uma teoria semântica, isto é, a possibilidade de amalgamar fatores destas duas ordens, pois propriedades e relações lexicais sozinhas resultariam em mera lexicologia, da mesma forma que propriedades e relações sintagmáticas isoladas redundariam em mera sintaxe. Apesar das diferenças assinaladas, a linguagem pode ainda ter acolhida no interior da terceiridade, no seu plano mais genérico; este acolhimento, todavia, requer que façamos ajustes profundos no conceito de representação, em razão da natureza daquilo que constitui o ser a ser representado. Se esse ser para a semiótica origina-se de uma qualidade de sensação, validada pela percepção fenomênica de concretude e materialidade exposta diante dos olhos, por exemplo, para a semântica o ser contém um estatuto diferenciador, pois, além de incluir essa dimensão, contempla também um outro tipo de fenômeno, constitutivo da significação (ou da percepção do sentido). Trata-se, como já mencionamos, de relações (e também de propriedades) que decorrem de um mundo conceitual, que se forja a partir da estruturação lexical e da criação de sintagmas. Se os ‘objetos semióticos’ já se mostram complexos na concepção de Peirce, esta complexidade tende a crescer em se tratando de ‘objetos 117 semânticos’. Vejamos, por exemplo, o que seria a nossa percepção de um objeto complexo como ‘abajur de Maria’. Como objeto semiótico, podemos ter as seguintes hipóteses57: (12) ‘abajur’: símbolo remático, porque aponta, ao mesmo tempo, para um existente (o objeto material) e para uma qualidade que ele representa (a função a que se destina); (13) ‘de’: legissigno icônico, porque se fundamenta numa lei (a de ser, por convenção, uma partícula de conexão entre unidades lingüísticas), e porque cada um de seus usos atualiza uma qualidade específica (posse, determinação, origem espacial...)58 (14) ‘Maria’: legissigno indicial remático, porque se funda numa lei − logo, legissigno −, aponta um existente (a pessoa em questão) − daí o fato de ser indicial − e porque representa algum tipo propriedade que o associa à pessoa que permite designar, em circunstâncias apropriadas − por isso, remático59; (15) ‘abajur de Maria’: sinsigno indicial remático, como réplica assumida de um símbolo remático. Por mais que pudéssemos conceber outros desdobramentos para os signos precedentes, o procedimento ainda continuaria mostrando deficiências quanto à explicitação do que, de fato, a expressão representa conceitualmente, pela razão exata de não traduzir efeitos de sentido decorrentes de correlações entre suas unidades. Por outro lado, como objeto semântico e sem entrar em detalhes exaustivos, no momento, sobre a leitura lexical (Ll) de cada um dos itens isolados, podemos supor, ao menos, cinco leituras derivadas (Ld), decorrentes de propriedades 57 A classificação apresentada tem um caráter provisório, porque cada circunstância de uso específico de cada um dos termos pode afetar diretamente sua classificação, pois o fator decisivo para a tipologia em análise é, de fato, a função específica que o signo está destinado a exercer num dado contexto. 58 Potencialmente, podemos reescrever uma preposição como uma função proposicional, isto é, como um rema. Por exemplo: de[posse] (x, y), de[atributo] (x, y), de[origem espacial](x, y). A ilustração ainda é muito geral e requer que restrições adicionais sejam acrescidas às variáveis em razão de cada uso. 59 A tradição filosófica sobre a questão dos nomes próprios não é unânime em relação ao fato de eles poderem expressar ou não uma qualidade, isto é, de terem ou não um sentido. O argumento principal daqueles que lhes reivindicam um sentido assegura que só usamos um nome próprio porque conhecemos alguma propriedade do objeto a que ele se aplica (SEARLE, 1984. p. 214-31). 118 lexicais e de relações sintagmáticas presentes na expressão e dependendo de uma especificação maior ou menor de contextos apropriados: (16) ‘abajur de Maria’: Ld1: [um abajur que serve para um tipo de pessoa, metonimicamente, representado por Maria]; Ld2: [um abajur que se presta ao recolhimento espiritual, metaforicamente, lembrando a santa]; Ld3: [um abajur com desenhos de Maria (a santa ou alguma representação popular de mulher]; Ld4: [um abajur que pertence a alguma Maria];60 Ld5: [um papel envolvendo uma lâmpada, produzindo sombras, nos moldes de um abajur popular]. O conjunto das leituras acima decorre, certamente, não apenas daquilo que podemos configurar para objetos particulares, representados pelos nomes − ‘abajur’ e ‘Maria’ −, mas também por relações lexicais e sintagmáticas que são estabelecidas entre eles. No primeiro aspecto, podemos afirmar que todas as leituras respeitaram o conceito característico de ‘abajur’: preservou-se o projeto do objeto em análise, isto é, [FINALIDADE: redução da claridade produzida por lâmpada] que está nele incorporado. E mesmo no caso de L5, continua existindo o projeto, pois a expressão ‘nos moldes de um ...’ funciona como uma espécie de hedge preservando o valor funcional do objeto em tela. Nada, entretanto, nos impede de uma extensão de leituras, que pudesse mesmo obliterar, em alguma medida, o valor funcional do objeto, preservando dele apenas um traço analógico, como, por exemplo (entre tantas outras possíveis): (17) ‘abajur de Maria’: Ld6: [um tipo de chapéu popular que guarde alguma analogia com a forma de um abajur] ou Ld7: [um tipo de flor comum que mantenha um certo traço análogo à forma de um abajur] ou 60 A idéia de posse, em relações como esta e independentemente de um contexto mais específico, é mais clara quando o segundo nome se faz acompanhar do artigo definido, por exemplo: livro de menino [L1: livro que menino possui] ou [L2: livro para menino usar], em contraste com livro do menino [L1:livro que pertence a um dado menino]. 119 Ld8: [qualquer tipo de objeto que mantenha um traço análogo à forma de um abajur]. É importante ressaltar como as leituras derivadas acima tornaram-se aceitáveis, porque também se fundamentam em leituras lexicais possíveis para, por exemplo, o segundo nome da expressão - ‘Maria’, justificável de duas maneiras distintas: (18) ‘Maria’: Ll1: [NATUREZA: uma pessoa particular que passou a ser assim denominada a partir de uma cerimônia batismo]; Ll2: [NATUREZA: a santa designada em razão de uma circunstância histórica qualquer]; A tais características lexicais associam-se muitas outras de natureza sintagmática, tornando possível compatibilizar as leituras derivadas com as primitivas. Podemos admitir um primeiro nível de sintagmatização, considerando-se efeitos de sentido resultantes da expressão ‘de Maria’, conforme esquema seguinte: (19) ‘de Maria’: Ld9: [ATRIBUTO: algum tipo de qualidade genérica, metonimicamente indicado pelo teor popular do nome]. Ld10: [ATRIBUTO: algum tipo de virtude associado, metaforicamente, à santa]; Desse modo, a expressão ‘de Maria’ produz dois efeitos de sentido, como resultado da sintagmatização das leituras lexicais, Ll1 e Ll2, do nome ‘Maria’, associado a um dos valores da função proposicional ‘de[atributo] (x, y)’, conforme descrito anteriormente. A escolha desse valor funcional, e não de outro concorrente, justifica-se pelo contraste entre ‘de Maria’ e ‘da Maria’. Para a segunda expressão, seria mais natural supor o valor funcional ‘de[posse] (x, y)’ que nos permite derivar leituras, com outros efeitos de sentido, no caso presente, restritas às propriedades contidas apenas em Ll1, ao menos, sem uma especificação mais precisa de contextos. Assim, grande parte dos efeitos de sentido, conforme demonstrado 120 nas leituras derivadas que foram acima lembradas, decorre da conjunção dos fatores que acabamos de mencionar. Comparando-se, com base na análise que foi desenvolvida, algumas exigências impostas a objetos semióticos e a objetos semânticos, podemos verificar que a oposição entre ser e ser representado comporta-se de modo diferente nos dois campos em discussão. No plano semiótico, a possibilidade de um ‘cálculo’ que nos permita passar, por meio de alguns princípios gerais, de unidades simples a unidades complexas, não se mostra tão evidente, embora tenha sido o nosso propósito reescrever alguns aspectos da tipologia dos signos num formato que expusesse padrões de cálculo. Não fica claro, também, em que extensão uma estruturação de relações sígnicas impõe restrições ao leque de contextos possíveis de atualização. No plano lingüístico, percebe-se um certo padrão de cálculo, em razão da recorrência dos traços e das propriedades em níveis diferentes de organização. Além do mais, a relação de proposições lingüísticas com contextos específicos não é vista apenas na perspectiva da determinação destes sobre aquelas, uma vez que a estruturação lingüística pode impor restrições ao contexto de uso. Em resumo, há muitas expressões lingüísticas para as quais nos vemos na contingência de implementar contextos para poder justificar-lhes interpretações específicas. Dessa forma, o paralelo entre relações e propriedades lexicais/sintagmáticas, de um lado, e relações sígnicas, do outro, se não contém o caráter de uma necessidade orgânica, ao menos pode vir a ser fixado em termos de uma analogia. É possível, pois, que as propriedades que foram vinculadas ao nome ‘Maria’ venham a representar relações sígnicas distintas como um fato contingente. A representação de uma propriedade em Ld9 − pela extensão metonímica da expressão ‘de Maria’ − seria equivalente a um rema, como uma função a ser saturada ‘de Maria[atributo] (x)’. A representação de um objeto em Ll2 − a santa que o nome ‘Maria’ designa − tornaria o nome equivalente a um símbolo, se o assumíssemos na dimensão convencional de sua codificação, ou a um índice, se o fizéssemos em termos do objeto singular que nomeia. É evidente que relações como estas, dentre muitas outras, não podem ser desconsideradas, quando justificamos nossas intuições interpretativas. Resta saber, todavia, o que devemos situar como razão primeira neste processo interpretativo: as relações léxico-sintagmáticas ou as tipologias sígnicas ? Em outras palavras, o que fundamenta a 121 polissemia designativa de termos como ‘(de) Maria’ numa expressão como a que estamos analisando ? Poderíamos renunciar a um certo conflito entre semiótica e semântica, nos termos em análise, admitindo alguma forma de coexistência entre o conjunto das relações léxicosintagmáticas e o das tipologias sígnicas. O desafio que se impõe aqui é buscar uma justificativa que dê conta da precedência de um conjunto sobre o outro, ou de localizar fatos onde um ou outro deixam de prevalecer. Assim, enquanto para a semiótica, a atividade sensível (sobre objetos, natureza...) se apresenta como condição inicial para a representação, a partir da experiência dos dois planos distintos que precedem a terceiridade, para a semântica, de forma equivalente, a atividade cognitiva sobre a realidade funciona como a base para o cálculo dos seus objetos (as leituras mencionadas), embora na história da semântica nem sempre esse fato tenha sido ressaltado. Se o fundamento básico dos dois campos implica uma captura de dados primários numa mesma fonte, ainda que com feições distintas, o modo de processar tais dados deve ser aferido em função das especificidades de cada um dos campos. Em outros termos, enquanto para a semiótica a natureza ou o comportamento dos objetos é uma condição para a existência de relações e de tipologias sígnicas, para a semântica, além dessa dimensão, acrescentamos o fato de que relações e propriedades lexicais/sintagmáticas são uma condição para o reconhecimento de alguma forma de existência de objetos. Assim, as relações léxico-sintagmáticas determinam algumas possibilidades do reconhecimento de ‘Maria’, em uma das dimensões acima apontadas, como um objeto semântico factível, ao mesmo tempo que detêm o poder de neutralizar outras. A interpretação de ‘Maria’ depende das relações que são estabelecidas com outros termos do contexto lingüístico de sua ocorrência e não pode ser assumida, aprioristicamente, em razão das relações sígnicas que podem ou não ser consagradas por contextos específicos. Enquanto as relações tipológicas asseguram uma relativa autonomia aos signos, as relações léxicosintagmáticas os tornam interdependentes. O que nos permitiu admitir as leituras derivadas acima, por exemplo, decorreu da existência de propriedades lexicais de itens isolados combinadas entre si em razão de vínculos estruturais: se tivéssemos ‘para’, formando a expressão ‘abajur para Maria’, ao invés de ‘de’, o número de leituras seria reduzido ou, ao menos, seriam outras as leituras, pois as propriedades lexicais de ‘para’ e os vínculos estruturais com as outras unidades da expressão inibem a existência de alguns objetos 122 semânticos antes factíveis com a presença de ‘de’. É provável que apenas Ld1 e Ld5, com algum esforço suplementar, sejam aceitas com naturalidade. Em resumo, não se trata de fixar aqui uma precedência temporal sobre um e outro procedimento (relações léxico-sintagmáticas versus relações sígnicas), até mesmo pelas dificuldades de separá-los em termos dos efeitos terminais alcançados: afinal, das leituras determinadas por relações léxico-sintagmáticas, podemos isolar relações sígnicas específicas; partindo destas, porém, nada indica que possamos chegar àquelas. As observações apresentadas levam, portanto, a inferir que, embora as relações sígnicas pareçam ser mais primitivas, elas, necessariamente, não determinam as relações léxico-sintagmáticas. O termo ‘abajur’ poderia ter sido introduzido na expressão em análise com um valor intencional de índice, para um existente determinado (uma ‘alcova’, por exemplo), mas isso não teria servido para impor qualquer limite que viesse a bloquear interpretações à revelia desse valor, como mostramos acima. O teor de interdependência das relações léxico-sintagmáticas pode ainda ser aferido, quando substituímos um dos termos componentes de uma expressão. No caso presente, podemos demonstrar como o exemplo pode tornar-se restritivo, em relação às possibilidade polissêmicas geradas pelo termo ‘Maria’, quando o substituímos por ‘mesa’. Consideremos, inicialmente, o valor polissêmico de ‘mesa’: (20) ‘mesa’: Ll1: [NATUREZA: objeto artefato...; FUNÇÃO: utensílio doméstico... ] (símbolo remático); Ll2: [NATUREZA: conjunto de pessoas; FUNÇÃO: reunidas para tomar decisões] (legissigno indicial remático). Dadas as possibilidades contidas em Ll1 e Ll2, a expressão em análise vale-se da função proposicional ‘de[atributo] (x, y)’ para relacionar as duas unidades nominais componentes, apenas considerando a primeira leitura lexical de ‘mesa’. A compatibilidade conceitual entre os membros que preenchem as variáveis da função proposicional ‘de[atributo] (abajur’, ‘mesa’) torna-se possível em função de ‘abajur’ conter traços, na sua descrição {‘abajur’: [NATUREZA: objeto artefato...; FINALIDADE: redução da claridade produzida por lâmpada]...}, 123 que se compatibilizam com a descrição de mesa, em Ll1. O bloqueio para uma leitura com Ll2 acontece devido à inexistência dessa compatibilidade. Entretanto, é possível supor, ao menos por hipótese, uma outra possibilidade de leitura para Ll2 , por força da utilização de um dos desdobramentos possíveis para ‘de’, a saber, ‘de[posse] (x, y)’ que, ainda assim, requer uma especificação do objeto ‘mesa’, exigindo a conversão de ‘de mesa’ em ‘da mesa’. Por hipótese, poderíamos supor as leituras seguintes: (21) ‘abajur de mesa’ Ld1: [NATUREZA: objeto artefato; FINALIDADE: redução da claridade produzida por lâmpada; TIPO/ATRIBUTO: Ll1 de mesa]; Ld2: [NATUREZA: objeto artefato; FINALIDADE: redução da claridade produzida por lâmpada; TIPO/POSSE: Ll2 de mesa]. Ainda que viéssemos a considerar Ld2 como uma leitura natural, com o ajuste proposto, é provável que a sua justificativa não fosse estabelecida apenas supondo a existência de um atendimento a pessoas reunidas para tomar decisões, o que, na verdade, parece obliterar, em parte, o conceito característico do objeto ‘abajur’. Ld2 seria, portanto, uma extensão de Ld1, pois ainda continuaria a significar a adequação do objeto para ser sobreposto a mesas, provavelmente, mesas onde se reúnem pessoas. Aqui, portanto, as relações léxicosintagmáticas filtram a possibilidade de um aproveitamento natural de ‘mesa’ em sua função indicial. As relações que determinamos resultam como essenciais à compreensão dos fatos discursivos, já que não parece ser possível avançar numa compreensão analítica desses fatos desconhecendo as relações semânticas aí presentes. A recorrência de elementos lingüísticos tem um caráter determinante na configuração de leituras, de forma mais natural, do que uma suposta classificação de um mesmo elemento em tipologias sígnicas diferentes. Vejamos ainda o contraste entre fórmulas como, ‘prato de cachorro’, ‘prato do cachorro’, ‘prato de Lulu’61 e ‘prato do Lulu’. Vamos considerar para efeito de uma 61 Estamos admitindo Lului como um nome próprio de cachorro, determinado por circunstâncias específicas que possam lhe assegurar a designação de um único objeto da classe. 124 análise comparativa apenas uma única leitura lexical para ‘prato’ − Ll1:{[NATUREZA: objeto artefato; FINALIDADE: recipiente para pôr comida...]} − e uma única relação sígnica − símbolo remático −. Da mesma forma e com os devidos ajustes, admitamos as mesmas condições para ‘cachorro (Lulu)’. Existe, portanto, uma escala gradativa entre as expressões acima, que pode ir do [-específico], ou seja, a indicação de que ‘prato de cachorro’ traduz apenas um tipo de objeto genérico, adequado a uma certa função - servir a cachorro -, ao [+específico], isto é, a indicação de que ‘prato do Lulu’ reporta um objeto particular, pertencente a um indivíduo, assegurado pela presença do artigo, do nome próprio e da relação de posse estabelecida pela função proposicional ‘de[posse] (prato, Lulu)’. Uma e outra asseguram o valor de uma referência absoluta: a primeira aponta a classe de todos os objetos-do-tipo e a segunda, um objeto individual, nas condições que fixamos para o funcionamento do nome próprio ‘Lulu’. O estágio intermediário da escala precisa ter uma outra ordem: ‘prato de Lulu’, apesar de conter um nome próprio indicializado, pode ser, metaforicamente, indicativo de objetos de uma subclasse, por exemplo, pratos para cachorro que tem a cara do ‘Lulu’ e deve ser analisado como [-específico]; ‘prato do cachorro’, ainda que uma referência absoluta só possa ser validada para algum tipo de contexto determinado, onde um único e mesmo cachorro seja do conhecimento do falante e do ouvinte, aproxima-se do [+específico]. Assim, a viabilidade de uma tipologia para as expressões acima não nos parece impossível, já que, em termos da gradação do [+específico] para o [-específico], poderíamos sugerir: legissigno indicial dicente, símbolo dicente, agrupando as expressões duas a duas. Esse arranjo dos fatos nos leva a constatar também o comportamento diverso que existe na escala, em termos de uma tipologia de signos. Todavia, o resultado da escala não depende, como vimos, apenas do contraste entre valor indicial (nome próprio) e simbólico (nome comum), mas ainda da presença do artigo na expressão. Se o campo da semiótica deve apurar, gradativamente, uma diferença entre o símbolo e o índice, desdobrando-os em instâncias diferenciadas, não fica evidente que uma migração automática do resultado desse procedimento venha a se constituir em parâmetros determinantes para a análise semântica. Classificações ulteriores e cada vez mais complexas dos signos devem ser relevantes na determinação de objetos no campo da semiótica, mas daí não podemos deduzir a sua relevância para a semântica. O processo de classificação proposto por Peirce é uma forma analítica de conhecimento dos objetos, mas o que ela pode revelar ainda é insuficiente, em se tratando de exigências para uma avaliação dos processos de significação lingüística. Dado o 125 fato acima de que ‘mesa’ possa ser índice ou símbolo e dado o conhecimento da estrutura conceitual dessas formas de representação, podemos assegurar uma diferença nocional entre os dois usos do termo ‘mesa’. No entanto, as categorias que nos possibilitam o conhecimento dessa estrutura conceitual, como vimos na seção anterior, não são suficientes para atender a exigências no campo da linguagem. É claro que essa conclusão precoce contém uma validade nos limites dos dados que foram até aqui analisados. Outros aspectos da correlação entre os dois campos serão avaliados na seção seguinte, tendo em vista um confronto entre certas classes de signos e o comportamento semântico de algumas espécies de palavras. 3.3.3 Determinantes da representação: classes, tipos, indivíduos Nesta análise vamos considerar como seria possível, então, examinar alguns aspectos da classificação dos signos e sua repercussão no entendimento de alguns problemas de ordem semântica. A discussão de Peirce sobre as formas de classificação de signos não reporta, de modo direto, a questões relativas ao signo lingüístico. Existem, entretanto, referências e exemplificações esparsas que podemos utilizar como ponto de partida para a avaliação pretendida. Vejamos duas citações iniciais: “...Todas as palavras, frases, livros e outros signos convencionais são Símbolos. Falamos em escrever ou pronunciar a palavra “man”, (homem) mas isso é apenas uma réplica ou corporificação da palavra, que é pronunciada ou escrita. A palavra, em si mesma, não tem existência embora tenha um ser real que consiste no fato que os existentes se deverão conformar a ela. É, uma forma geral de sucessão de três sons ou representamens de sons, que só se torna um signo pelo fato de que um hábito, ou lei adquirida, fará com que suas réplicas sejam interpretadas como significando “man”. A palavra e seu significado são, ambos, regras gerais;: porém, dos dois, apenas a palavra prescreve a qualidade de suas réplicas em si mesmas. A “palavra” e seu “significado” não diferem em nenhum outro aspecto, a menos que algum sentido especial seja atribuído ao “significado””. (p. 71) “... Qualquer palavra comum, como “dar”, “pássaro”, “casamento”, é exemplo de símbolo. O símbolo é aplicável a tudo o que possa concretizar a idéia ligada à palavra: em si mesmo não identifica essas coisas. Não nos mostra um pássaro, nem realiza diante de nossos olhos, uma doação ou casamento, mas supõe que somos capazes de imaginar essas coisas, e a elas associar a palavra.” (p.73) 126 Os textos acima mostram o traço mais importante, dentro da sua taxinomia, que Peirce atribui às palavras de uma língua, isto é, o fato de serem elas comandadas por “hábito” ,”lei adquirida”, “regras gerais”. É evidente que cada um dos parâmetros aplica-se a justificar a existência e o uso de palavras, mas essa observação apenas ratifica um princípio geral, como o da convencionalidade, e diz muito pouco sobre o funcionamento das palavras como membros solidários de um sistema que requer uma gama de especificações, ampla e diversa. O critério de classificação precedente contém ainda um caráter geral, pois a afirmação tem validade para “Todas as palavras...” ou, de maneira um pouco restrita, “Qualquer palavra comum ... é um exemplo de símbolo.”, excluindo-se, pois, os nomes próprios.62 Como valor lingüístico, a classificação dos exemplos − “dar, casamento, pássaro “ − apresenta uma operacionalidade ainda limitada, porque, nos termos aqui propostos, não opera com um padrão que permita o seu reagrupamento em conjuntos relevantes para a análise semântica. Assim, do ponto de vista lingüístico, podemos agrupá-los: (a) numa orientação sintática {[dar]verbo, [pássaro/casamento]nome}; (b) numa orientação de natureza lexical {[dar/casamento]ato, [pássaro/casamento]objeto}; ou ainda (c) numa dimensão lógica com funções proposicionais próprias {[dar (x, y, z)], [casamento (x, y)], [pássaro (x)], [casamento (x)]}. No fundo, tais agrupamentos não parecem ser, absolutamente, indiferentes ao trabalho da semiótica na dimensão de Peirce, pois a idéia de um símbolo remático, a propósito, supõe o aproveitamento conjugado da dimensão lexical - por operar uma correlação entre signo/objeto − e da dimensão lógica − por operar uma relação signo/interpretante, a partir de funções proposicionais. Em compensação, a interpretação semântica ainda requer outras informações para poder efetivar-se. A função proposicional [casamento (x, y)] impõe restrições ao alcance das variáveis: tanto ‘x’, como ‘y’ são restritas ao domínio de objetos marcados com os traços {[+animado], [+humano]}, por exemplo. Logo, a função proposicional deve ser formulada de modo mais específico [casamento (x{[+animado], [+humano]} ,y{[+animado], [+humano]}), pois a omissão apenas do segundo traço da restrição nos levaria a uma outra função proposicional, isto é, [acasalamento (x[+animado] , y[+animado])], ou [cruzamento (x[+animado] , y[+animado])]. 62 Sobre a natureza dos nomes próprios, PEIRCE, C. (1977, p.85) comenta: “No entanto, o substantivo próprio se aproxima tanto da natureza de um Índice que isto deveria bastar para dar idéia de um Índice informativo.”. 127 É verdade que, quando atribuímos ao conjunto das palavras de uma língua o fato de serem signos lingüísticos, também estamos operando com uma generalização de pouca relevância operacional. Há, no entanto, uma diferença: o signo, nesse caso, apenas especifica uma relação funcional entre significante e significado e não tem o alcance ontológico de constituir-se numa taxinomia de percepção e de representação dos objetos, como parece apontar a categoria símbolo, por exemplo, no âmbito da abordagem de Peirce. Por outro lado, o mesmo argumento que podemos acionar para explicitar desdobramentos do signo em classes de palavras, num padrão qualquer lingüisticamente reconhecido, poderia ser acionado para justificar a possibilidade de desdobramentos ulteriores do símbolo, ou seja, símbolo remático e símbolo dicente. Classes mais específicas como essas seriam, pois, de valor para uma fundamentação no campo da linguagem, isto é, existiria uma ontologia das representações lingüísticas associadas a particularidades dos objetos representados na língua? Retomando algumas características para delimitar o alcance de um símbolo remático (PEIRCE, C. 1977, p. 56), o autor o define como um “ signo ligado a seu Objeto através de uma associação de idéias gerais”. Peirce arrola o substantivo comum ou termos gerais como exemplares dessa classe de signos, o que nos permite assumir, portanto, “casamento” e “pássaro” como símbolos remáticos, pelo fato de apontarem classes de objetos que partilham da idéia geral de [ser da natureza do pássaro], de [ser da natureza do casamento] − se o termo é assumido na sua dimensão de designador de objeto − ou ainda de [ser qualidade partilhada por dois objetos], em se tratando de uma função proposicional de dois lugares. O fato de formularmos uma predicação do tipo [ser da natureza de +OBJETO] leva-nos a creditar aos exemplos em análise mais do que meras funções proposicionais, situação que caracteriza a existência de um rema, que apenas traduz uma possibilidade qualitativamente genérica, senão também a possibilidade de uma referência objetiva. Um símbolo remático refere-se, portanto, não apenas à possibilidade de atualização de objetos ideais − [casamento de x com y] −, como também a indivíduos de um mundo possível, [casamento de xi com yi]63. Nesse último caso, 63 Podemos, na análise dos substantivos comuns e concretos de uma língua, considerá-los como funções proposicionais, na medida em que, como nome de um conjunto de objetos (e não como nome de um indivíduo), eles nada mais expressam do que uma condição geral de pertinência num dado domínio. Assim, [pássaro (x)] mostra que, para qualquer ‘x’ candidato a pertinência à classe de ‘pássaros,’ é necessário atender a descrição daquilo que representa a idéia de ‘ser pássaro’. No caso dos substantivos comuns e abstratos, o fato de representarem funções proposicionais é mais comum, porque, no geral, eles apenas reportam propriedades de um objeto, isto é, são meras qualidades dos objetos: [beleza (x)], ou [naturalidade (x)]. Aqui nem’ beleza’, nem ‘naturalidade’ determinam um domínio de objetos, mas apenas qualidades que podemos associar a indivíduos de domínios diversos. 128 quando atualizamos uma variável indicializada, estamos produzindo aquilo que Peirce chamou, lato sensu, de uma réplica, a qual, nas circunstâncias atuais, traduz-se por um legissigno indicial remático, pelo fato de indicar um existente (xi e yi, quando atualizadas), através de um terceiro que é determinado por lei. A distinção acima apresentada constitui-se num parâmetro de relevância para a compreensão de fatos semânticos, isto é, a alusão a fatos relativos a propriedades de classe em contraste com fatos relativos a tipos de membros da classe ou a indivíduos em particular. Consideremos a distinção semântica entre as frases seguintes: (22) Pássaros constroem ninhos. (23) Ninhos são construídos por pássaros64. (24) (Há) Pássaros (que) constroem ninhos com gravetos. (25) (Estes) Pássaros constroem ninhos com linhas, folhas e capim. Em (22), podemos afirmar que ‘construir ninhos’ é uma propriedade da classe de pássaros, porque todos os seus membros (ou o macho, ou a fêmea ou ambos) executam tarefas, ainda que diferenciadas, que se incluem no rol geral de uma predicação como [construir ninhos]65. Por outro lado, apesar da conversão ativa/passiva entre (22) e (23), ‘serem construídos por pássaros’ não é uma propriedade da classe:ninho, já que existem ‘ninhos’ que, efetivamente, não são construídos por pássaros, mas por outros animais (ratos, cobras...). Logo, [ser construído por pássaros] não representa uma propriedade de classe, mas de uma parte dos membros da classe:ninho: apenas alguns tipos são, de fato, construídos por pássaros, outros não. Assim, deveremos interpretar estes dois símbolos remáticos, nas frases em discussão, do seguinte modo: 64 A tradição lingüística usou, amplamente, exemplos nesse formato para tratar da não-correspondência semântica entre estruturas ativas e passivas. Aqui não vamos entrar em detalhes sobre a orientação sintática que a questão assumiu. 65 Existe uma longa discussão se podemos considerar propriedades de classe como propriedades analíticas. Há dúvidas, mesmo no caso de pássaros, se construir ninhos é, de fato, analítica, porque existem tipos de pássaros que reaproveitam ninhos já construídos por outros, ou até mesmo põem ovos em ninhos alheios (godero, chopin, por exemplo). Se analítico é irrestritamente universal, então a predicação mencionada não poderia ser, analiticamente, atribuída a pássaros, já que existem espécies anormais na classe que comportam de modo diferente. De toda forma, pode ser que certos pássaros não venham construir seus próprios ninhos, mas é verdade também que a existência deles continue a depender de ninhos. 129 (22a) Pássaros [classe] constroem ninhos[classe]. (23a) Ninhos[tipo] são construídos por pássaros[classe] 66. No caso de (22a), o fato de ‘pássaros’ representar uma classe de objetos permite que interpretemos ‘ninhos’ também numa dimensão de classe, pois, no fundo, o que estamos asseverando é o fato de existir uma propriedade [ser construído] que se aplica aos membros de uma classe. Na concepção de Peirce, estaríamos diante de dois símbolos remáticos, uma vez que representam funções não saturadas, isto é, ‘pássaros (x)’ e ‘ninhos (x)’ e toda a proposição já representaria um símbolo dicente, ou seja, um função saturada − ‘construir (pássaros, ninhos)’ −. Em (23a), como [ser construído por pássaro] não é uma propriedade de ‘ninho’, na extensão vista para (22a), devemos assumir ‘ninhos’ como tipos de objetos da classe. Assim, já não estamos mais no âmbito de um símbolo remático, mas ainda não alcançamos sua réplica, por não se tratar de objetos efetivos, mas de um tipo de objeto ao qual associamos uma propriedade. Os exemplos (24) e (25) contrastam com os anteriores pela razão específica de mostrarem não mais uma referência à classe de objetos, mas a objetos-do-tipo ou a indivíduos em particular. O fato de termos, então, formas cada vez mais determinadas de ‘ninho’ − ‘com gravetos’ e ‘com linhas, folhas e capim’ − nos impede de considerar ‘pássaro’ na dimensão de classe. Em (24), independente do registro existencial da frase, anotado entre parênteses, ‘pássaros’ aponta objetos-do-tipo, a saber, somente aqueles a que podemos atribuir a propriedade [construir ninhos com gravetos] − ‘joão-graveto’, por exemplo − o que, certamente, não constitui a totalidade da classe. Assim também (25), em decorrência do uso da propriedade [construir ninhos com linhas, folhas e capim], não se refere mais à classe geral de ‘pássaros’, mas apenas a objetos-do-tipo − ‘bem-te-vi’, ‘sanhaço’, ‘pingo-de-mel’ ... −. É importante, todavia, registrar um outro fato: a presença do demonstrativo ‘estes’ seleciona indivíduos, ou seja, exemplares que são deiticamente atualizados numa dada circunstância enunciativa. A partir das considerações apresentadas, podemos apontar dois traços importantes na interpretação de ‘pássaros’ nesses casos: 66 Não estamos utilizando aqui a oposição tradicional entre type / token, em razão do fato de estarmos trabalhando com outras categorias mais específicos de token. Assim, estamos construindo uma gradiência entre ‘classe’, ‘tipo’, ‘indivíduo’. 130 (24a) Há pássaros[tipo] que constroem ninhos com gravetos. (25a) Estes pássaros[indivíduos] constroem ninhos com linhas, folhas e capim. Embora o contraste entre símbolo remático e sua réplica, isto é, o sinsigno indicial remático possa expressar parte dos fenômenos que apontamos na análise do termo ‘pássaro’, parece-nos que a forma de proceder na apuração de certos efeitos de sentido ainda mantém um distanciamento considerável entre uma abordagem semiótica, na forma em estudo, e uma abordagem semântica, nos formatos desenvolvidos no interior da lingüística moderna. Assim, na segunda abordagem, a ênfase, na avaliação dos efeitos de sentido, associados a um termo ‘pássaros’, recai não só sobre uma rede de correlações que se estabelece entre o conjunto das unidades da estrutura proposicional, como também sobre a natureza dos elementos que partilham dessas correlações − a diferença conceitual entre os predicados que foram atribuídos a ‘pássaros’, por exemplo. Na primeira abordagem a ênfase, da qual deduzimos classes diferentes de signo, aponta para uma correlação do símbolo ‘pássaro’ com o objeto designado − uma classe ou um exemplar −, em se tratando da segunda tricotomia. O seu valor, seja como símbolo remático, seja como sinsigno indicial remático, decorre da natureza da relação que mantém com o seu objeto: logo, a classificação semiótica pode tornar-se independente, em alguma instância, da correlação com outros signos. Para a semântica é relevante não só o que se mostra como conceito ‘autônomo’ de um termo67, como também toda a contaminação que sobre ele se projeta a partir da correlação com outros signos. A interpretação semântica, mesmo quando orientada para aspectos localizados, não se pode circunscrever a uma dimensão tipológica dos signos a que se atribui alguma autonomia. Sabemos, até mesmo por economia, que semântica e semiótica, como processos de significação, estão submetidas à ordem da sintaxe, mas, certamente, de sintaxes diferentes. Por mais integração entre os signos que essa tipologia produza, por mais que ela se constitua nas bases de uma sintaxe, será sempre uma sintaxe diferente, será sempre uma integração diferente daquela que descrevemos em termos de alguns princípios lingüísticos. Embora uma 67 De um modo geral, o conceito básico de pássaro permaneceu inalterado, ao longo dos exemplos analisados. Para cada um dos usos, todavia, este conceito era acrescido de outras informações, através da contaminação produzida pela presença de outras unidades da proposição. 131 análise semântica possa prover-se de alguns parâmetros que já foram lembrados na terceiridade, não julgamos que a transposição de um campo para o outro seja natural. Uma teoria semântica decorre da especificação de relações e de solidariedades sintáticas e lexicais, que não se fazem presentes na abordagem semiótica, ao menos na extensão em que delas fazemos uso nas língua naturais, o que, porém, não equivale a afirmar a existência de uma irreconciliação decisiva entre semântica e semiótica, no plano da representação. 3.3.4 - Determinantes da representação: tipologias versus funções proposicionais e funções discursivas 3.3.4.1 - Funções proposicionais Ao compararmos semiótica e semântica, na dimensão acima proposta, fizemo-lo considerando, em termos da formulação de Peirce, objetos e conceitos ainda relativamente simples. Nesse momento, exploramos apenas uma das divisões do representâmen, sem acolher, na discussão, desdobramentos ulteriores que compõem o percurso de todo processo de representação no interior da teoria. Se o nível da análise apresentada já mostra, por si mesma, dificuldades na consideração de uma passagem de objetos semióticos para objetos semânticos, elas tendem a avolumar-se, à medida que avançamos num grau de complexidade68 maior, como propõe o autor. Para ilustrar outras divergências que se estabelecem nos dois campos em análise, selecionamos, então, alguns aspectos da terceira tricotomia e, em particular, o dicente, provavelmente, uma das classes de signos mais complexas69 e com a qual supomos uma vinculação natural com a semântica, em razão de 68 A complexidade da formulação de Peirce não está apenas no teor das categorias de análise que referendam sua teoria, está também na forma como as apresenta ou como relaciona umas às outras. Vejamos, como exemplo, o papel que PEIRCE (1977) atribui ao ícone: “Um ícone, entretanto, é, estritamente, uma possibilidade envolvendo uma possibilidade, e assim, a possibilidade de ele ser representado como uma possibilidade é a possibilidade da possibilidade envolvida.” (p.79). 69 Na organização geral da teoria, o dicente constitui o segundo elemento da terceira tricotomia a qual se compõe ainda pelo rema e pelo argumento. Os três componentes convergem, na instância de representação funcional, isto é, do [correlato 3], mas divergem entre si pelo padrão que a função assume em cada uma das circunstâncias. Para o rema, trata-se de uma função não-saturada − f (x, y), com a atualização apenas da constante predicativa −; para o dicente, uma função saturada − f (x, y), onde variáveis e a constante predicativa são preenchidas −; para o argumento, uma função de uma outra ordem − f (x, y), onde os lugares são saturáveis por proposições simples (ou dicentes). Um paralelo possível com estruturas lingüísticas pode ser formulado: para o rema, [venda (x ,y)], [necessidade (x, y)], ou [livro (x)], onde existe apenas a especificação de um item lexical sem levar em conta 132 apresentar uma estrutura funcional ‘paralela’ às estruturas proposicionais. Embora enfatizando o dicente, estaremos, ao longo da nossa discussão, resgatando fatos relativos ao rema e ao argumento, categorias que completam a extensão conceitual da tricotomia em análise. Iniciemos com uma citação (PEIRCE, 1977), onde o conceito de dicente aparece associado ao de proposição: “... Foi assim suficientemente demonstrado que todas as proposições se conformam à definição do Dicente e aos corolários extraídos dessa definição. Uma proposição é, em suma, um Dicente que é um Símbolo.” (p. 85) Assumindo-se a correlação acima, ou seja, a correspondência entre proposição e dicente, poderíamos supor um estreitamento entre os dois campos de conhecimento, ao menos em termos deste elemento que integra a terceira tricotomia. Entretanto, esse estreitamento não é assim tão imediato, na proporção em que avaliamos certas exigências específicas que são atribuídas ao funcionamento do dicente, conforme aponta o autor (PEIRCE 1977): “... Concluímos, então, que, se conseguíssemos, abrir nosso caminho através do labirinto dessas abstrações, um Dicente, definido como um Representâmen cujo Interpretante o representa como um Índice de seu Objeto, deve ter as seguintes características: Primeira: A fim de ser compreendido, deve ser considerado como tendo duas partes. Destas, uma que pode ser chamada de sujeito, é ou representa um Índice de um Segundo existente independentemente de ser representado, enquanto que a outra, que pode ser chamada de Predicado, é ou representa um Ícone de uma Primeiridade (ou qualidade, ou essência); Segunda: Estas duas partes devem ser representadas como conectadas; e de uma tal forma que, se o Dicente tiver algum Objeto, ele (o Dicente) deve ser um Índice de uma Secundidade que subsiste entre o Objeto indicado e uma Primeiridade representada na outra parte representada do Dicente a ser Iconizado.” (p.79) Seguindo o seu raciocínio, a existência de um dicente submete-se ao atendimento de duas condições gerais. A primeira requer a necessidade de se considerá-lo como integrado de duas partes: uma é o sujeito que tem a função de ser índice da existência de um objeto; logo todo nome pode ser o índice do seu objeto, embora a existência desse objeto independa da função indicial do seu nome; outra é o predicado que indica uma qualidade do sujeito, e, por isso desdobramentos do seu valor funcional; para o dicente, [venda (Paulo, carro)], [necessidade (Paulo, dinheiro)], ou [livro (matemática)], onde as variáveis são saturadas; para o argumento, { CAUSA [venda (Paulo, carro)], [necessidade (Paulo, dinheiro)]}. 133 mesmo, constitui a condição de sua iconização, a saber, de vir a ser uma possibilidade qualitativa para um objeto. A segunda condição requer que essas duas partes − sujeito e predicado − sejam conjugadas uma à outra, de forma tal, que a existência de um objeto para o dicente faz dele, dicente, um equivalente do índice, por ser capaz de apontar um existente, numa outra instância de segundo. Essa passagem do dicente para o índice torna-se possível, em razão da aplicação de uma qualidade − uma instância de primeiro − a um sujeito, que serve para representá-lo em alguma de suas extensões. A correlação entre as duas condições para a existência de um dicente mostra a necessidade primeira de um signo de possibilidade − um rema − aplicável a um certo conjunto de objetos. Vamos, então, supor um rema no formato ‘perder (x, y)’70, onde ‘perder’ possa ser uma qualidade predicável aos objetos ‘x’ e/ou ‘y’. É evidente que, por se tratar de formações da terceira tricotomia, já estamos supondo a presença de algum interpretante que sirva para nos indicar, por exemplo, tipos de objeto ‘x’ que possam realizar a ação de perder e de ‘y’ que comportam a ação de serem perdidos. Analisemos, então, três possibilidades de saturação das variáveis acima: (26) perder (Napoleão, batalha de Waterloo); (27) perder (Nixon, batalha de Watergate); (28) [poder] perder (Clinton, batalha de Whitewater); A saturação das variáveis nos três exemplos acima faz deles dicentes, de acordo com as condições que são impostas a sua existência. A possibilidade de expressão qualitativa dos sujeitos se faz com base no predicado ‘perder’ (considerado, para evitar maiores detalhes, como uma forma complexa, incluindo os complementos específicos). A conexão entre sujeito/predicado reúne a condição final para termos um dicente que, segundo o autor, tornase, numa outra instância tricotômica, um índice por assinalar uma relação existencial entre signo − a expressão − e o objeto − fatos acontecidos na vida de seres específicos −71. Como 70 Para efeito de uma apresentação formal das categorias da terceira tricotomia, além de registros do texto de Peirce, estamos também contemplando a formulação desenvolvida por RANSDELL, J. ( 1983, p. 59-72). 71 Nada impede que também fizéssemos sua equivalência, na extensão da primeira tricotomia, com o sinsigno que atesta também a dimensão do existencial. 134 dicente, portanto, cada uma das expressões se torna um signo de fato, já que reporta acontecimentos historicamente testemunhados que, na realidade, são determinados por interpretantes específicos − a condição histórica de cada personagem, os fatos em que se acham envolvidos −, através dos quais podemos saturar as expressões na forma em que o fizemos. Se quiséssemos outros dicentes com o mesmo predicado e os mesmos sujeitos, teríamos de romper com os interpretantes consensuais (e culturalmente admissíveis) que nos levaram a essas configurações. Os interpretantes usados além de apontar, para cada um dos dicentes, mera hipótese de interpretação, apontam também situações referenciais autônomas. Se, no conjunto acima, a possibilidade de dicentes, isto é, funções saturadas, dependia da existência de remas − funções não saturadas − como uma condição primeira de sua admissão, podemos agora mostrar que a existência dos dicentes torna-se uma condição de possibilidade para a existência de argumentos, ou seja, um signo decorrente de uma elaboração racional, ou um signo de razão, como sugere o autor. Se ‘ascendemos’ na escala de um signo de possibilidade − rema −, passando por um signo de fato − dicente − até um signo de razão − argumento − é porque a este último, como um terceiro, atribuímos um papel decisivo para representar a essência da terceira tricotomia, a saber, a presença do interpretante. Logo, quaisquer referências à racionalidade na existência de um argumento depende do papel decisivo de interpretantes que serão utilizados na ‘costura racional’ dos fatos decorrentes de dicentes. Assim, uma correlação entre os exemplos (26), (27) e (28) acima, fundada a partir de interpretantes do tipo causa-efeito, ou do tipo concessão, por exemplo, poderia nos levar aos seguintes argumentos: (29) Clinton pode perder a batalha de Whitewater, porque Napoleão perdeu a batalha de Waterloo e Nixon, a batalha de Watergate. (30) Embora Napoleão tenha perdido a batalha de Waterloo e Nixon, a batalha de Watergate, Clinton não perderá a batalha de Whitewater. É claro que (29) e (30) são argumentos por força de uma correlação racional atribuída aos dicentes integrantes e que decorrem, certamente, da presença de dois interpretantes distintos. Existe um com valor de uma ‘convenção histórica fraca’, onde se pode postular alguma similitude entre os sujeitos envolvidos, como: (a) são três representantes do poder de estado, 135 daí uma dedução correlata e inclusiva no plano das ações; (b) trata-se de dois governantes que, de fato, perderam batalhas, logo, um terceiro também pode vir a fazê-lo. Existe um outro interpretante, com valor de uma percepção lingüística, devido à semelhança episódica no plano do significante dos atributos de batalha (Waterloo, Watergate, Whitewater) (e também histórica, valendo as observações já apontadas), e daí uma dedução excludente, contrastiva (ainda que dois governantes tenham ‘naufragado’ em duas batalhas, não se segue daí de que o mesmo se sucederá a um terceiro). As circunstâncias interpretativas que acima apresentamos, a partir da correlação entre os componentes da terceira tricotomia, apontam fatos de importância direta para uma teoria semântica: nada do que foi discutido pode ser desconsiderado no âmbito da semântica. Entretanto, os dados contemplados ainda refletem uma certa generalização (ou mera classificação) que não é ainda suficiente como um padrão de análise semântica para as línguas naturais. Vamos avaliar aspectos dessa diferença, comparando-se a análise desenvolvida acima a uma necessidade ulterior de desdobramento da análise do verbo ‘perder’. Na discussão presente, contrastaremos o verbo ‘perder’ com o verbo ‘ganhar’ (e ainda ‘vencer’) em contextos lingüísticos determinados, fundamentando a correlação entre eles a partir da idéia de [posse]. Formalmente, tentaremos demonstrar que a semântica de tais verbos se estrutura a partir de variáveis funcionais, [x], [y], [z], dos meta predicados [ter] e [disputar], do sinal de negação [∼] e de uma variável temporal [t], a ser indicializada. Consideremos, então, um primeiro conjunto de proposições: (31) Ele perdeu/ganhou a casa no jogo. (32) Muitos perderam/ganharam dinheiro na Bolsa. (33) Um dos passageiros perdeu/(?)ganhou a mãe no acidente. Podemos supor a compreensão do contraste verbal acima, com base nas seguintes definições: (34) PERDER: {[ x tem y em t1 ] [ x ~tem y em t2 ] [ t1 anterior a t2 ]}; (35) GANHAR:{[ x ~tem y em t1 ] [ x tem y em t2 ] 136 [ t1 anterior a t2 ]}; As duas defições acima recobrem, sem qualquer outro artifício enunciativo, o contraste entre as duas formas predicadas, em se tratando de (31) e (32), conforme ilustramos abaixo para o exemplo (31):72 (31a) Ele perdeu a casa no jogo {[ x tem y em t1 ] = ele tem a casa em t1 [ x ~tem y em t2 ] = ele não tem a casa em t2 ......} (31b) Ele ganhou a casa no jogo {[ x ~tem y em t1 ] = ele não tem a casa em t1 [ x tem y em t2 ] = ele tem a casa em t2 ....} Em (33), entretanto, a situação é diferente: ‘perder’ pode ser interpretado a partir da definição proposta, mas isso não é possível para ‘ganhar’, que requer alguma especificação enunciativa. A informação [x ~tem y em t1], em se tratando de [mãe natural], não pode ser recuperada no intervalo temporal seguinte, no sentido em que operamos com o contraste nos casos anteriores. A frase pode, todavia, tornar-se interpretável, desde que façamos os seguintes ajustes suplementares: (a) admitir ‘ganhar‘ com um valor adicional de [descoberta] e não apenas de [posse]; (b) enfraquecer o conceito de ‘mãe’, transformando-o num objeto-do-tipo, isto é, [alguém que dá proteção], procedendo ainda à troca de ‘a’ para ‘uma’; (c) restringir o sentido de ‘ganhar’, substituindo-se a idéia geral de [posse] pela de [ter adesão] ou [ter apoio]. Alternativamente, os três ajustes acima podem ser usados para redefinir ‘ganhar’ e podem ser extensivos também ao verbo ‘perder’, em se tratando de (b) e (c), que passará a conter oposições correlatas aos significados 72 Estamos considerando, na atual reflexão, apenas o contraste entre perder/ganhar, de modo genérico e sem levar em conta outros detalhes importantes para a compreensão da frase. Por exemplo, a definição de tais itens lexicais é tão ampla que outras formas verbais poderiam ser definidas pelas mesmas matrizes: as definições são válidas também, numa certa extensão, para contrastes como vender/comprar, por exemplo. Para uma distinção entre os dois grupos é importante acrescentar um operador de MODO, que indicará, necessariamente, a presença de dinheiro para o segundo grupo. 137 propostos. Conforme podemos ilustrar, ‘perder’ conteria a seguinte representação conceitual, no caso de (c): (c’) restringir o sentido de ‘perder’, substituindo-se a idéia geral de [posse] pela de [não ter adesão] ou [não ter apoio], ajustando o contexto enunciativo. Conclui-se, então, que a oposição predicativa em (33) não apresenta o mesmo alcance semântico daquela mostrada para (31) e (32), porque não pode ser justificada em razão das definições propostas em (34) e (35). De outro lado, o fato de podermos interpretar (33) nas dimensões sugeridas acima, para o predicado ‘ganhar’, pode nos levar ao estabelecimento de outros pares de contrastes com ‘perder’. Vejamos agora um outro conjunto de proposições: (36) Napoleão perdeu/ganhou mais uma batalha; (37) O Brasil perdeu/ganhou o jogo de ontem. Os exemplos (36) e (37) mantêm apenas uma aparência de identidade semântica com os anteriores, considerando-se, principalmente, o contraste entre os verbos em análise. No caso de ‘perder’, a condição inicial [x tem y em t1], na dimensão em que a usamos para analisar (31) e (32), não pode representar uma condição necessária, porque nem ‘Napoleão’, nem ‘Brasil’ [tem y] antes de ‘perder mais uma a batalha’ e ‘perder o jogo de ontem’73, respectivamente. Logo, essa condição precisa ser revista, sem que seja, entretanto, apenas refutada, porque, se comparamos os dois casos, podemos intercambiar diferentes condições para a sua interpretação: em (36) pode ser que, ao ‘perder a batalha’, ‘Napoleão’ tenha (ou não tenha) perdido algum território74 que antes conquistara ou que pertencera à França, por exemplo; em (37), ao ‘perder o jogo’, o ‘Brasil’ pode estar (ou não estar) deixando de ter alguma vantagem que antes conquistou ou que tinha numa tabela de classificação. Raciocínio semelhante pode ser usado para justificar ‘ganhar’ nos dois exemplos: a condição inicial [x ~tem y em t1] não pode ser também considerada essencial, porque tanto ‘Napoleão’ pode ter ganhado uma batalha, para manter a posse de um território - ele já detinha a sua posse -, como 73 É possível argumentar contra essa afirmação, dizendo que y, por pressuposição, equivale a ‘honra’, ‘dignidade’, ‘prestígio’. Logo, uma derrota, em qualquer circunstância, representa minimamente a perda da ‘honra’, por exemplo, que, no caso presente, pode ser associado, independentemente da extensão conceitual, tanto a ‘batalhas’ - em campos de exercício, ou em tribunais - quanto a ‘jogos’ - uma partida oficial ou amistosa. No entanto, ‘honra’, em ambos os casos, parece corresponder mais a um pressuposto e menos a um objeto da extensão de y. 74 Nos exemplos em análise, os termos batalha e jogo são apenas rótulos metonímicos para aquilo que, de fato, se perde ou se ganha numa batalha ou num jogo, ou seja, territórios, poder, pontos, campeonato, troféus... 138 o ‘Brasil’ pode ter ganhado um jogo para se manter à frente na tabela - ela já estava à frente na tabela. Assim, deveríamos reconstruir a primeira parte das definições (34) e (35) acima, indicando a possibilidade de uma escolha, como condição primeira para um e outro verbo, entre [x tem y em t1] e [x ~tem y em t1]. Reformulando as regras anteriores, obtemos: (34a) PERDER: {[ x (~)tem y em t1 ] [ x ~tem y em t2 ] [ t1 anterior a t2 ]}; (35a) GANHAR:{[ x (~)tem y em t1 ] [ x tem y em t2 ] [ t1 anterior a t2 ]}. O registro de [x (~)tem...], em ambas as fórmulas acima, mostra que podemos derivar, para uma e outra, tanto [x tem...], quanto [x ~tem...]. Essa duplicidade de derivações, todavia, gera um paradoxo, pois, dependendo da escolha feita por um desses caminhos que a definição permite, no primeiro passo da derivação, podemos correr um duplo risco: (a) em (34a), escolher duas formas negativas nos dois intervalos de tempo, indicando que é possível que se perca algo [x ~tem y em t2] sem antes possuí-lo [ x ~tem y em t1] e (b) em (35a), escolher duas formas positivas nos dois intervalos de tempo, indicando que é possível que se ganhe algo [x tem y em t2] que antes já se possuía [x tem y em t1]. Do ponto de vista formal, o paradoxo não pode ser resolvido no âmbito dessas definições; é preciso acrescentar outros fatos, como veremos abaixo, para contornar o impasse descrito. Entretanto, tal impasse formal não invalida o esforço interpretativo que podemos produzir para justificar sua aplicação natural a certas frases. Por exemplo, Napoleão pode ter pretendido conquistar um território [ x ~tem y em t1], sem ter alcançado êxito [ x ~tem y em t2]; logo, ele perdeu a batalha. Da mesma forma, Napoleão pode ter pretendido manter a conquista de um território [ x tem y em t1] e, de fato, conseguiu êxito [ x tem y em t2]; logo, ele venceu a batalha. É importante, então, recorrer a um outro acerto nas definições, introduzindo-se uma outra variável concorrente com [x], isto é, [z], e uma outra informação que permeie a disputa entre [x] e [z], num intervalo de tempo intermediário. As definições teriam, pois, a seguinte forma: (34b) PERDER: {[ x e/ou z (~)tem y em t1 ] 139 [ x e z disputam y em t1’] [ x ou z ~tem y em t2 ] [ t1 anterior a t2 ] [ t1’ posterior a t1 e anterior a t2 ]}; (35b) GANHAR:{[ x e/ou z (~)tem y em t1 ] [ x e z disputam y em t1’] [ x ou z tem y em t2 ] [ t1 anterior a t2 ] [ t1’ posterior a t1 e anterior a t2 ]}; As definições acima agora se aplicam também ao exemplo (37) que estamos reproduzindo com um adendo − ‘contra a Itália’ − para tornar mais clara a função da variável [z] e o traço [disputa]: (37a) O Brasil perdeu/ganhou o jogo de ontem contra a Itália. Recompondo aspectos do sentido das duas proposições contidas em (37a) e com base nas definições (34b) e (35b), podemos agora obter uma descrição semântica mais clara, superando parte das dificuldades que haviam sido levantadas na constatação do paradoxo acima mencionado. Analisemos, então, as duas proposições: (37b) O Brasil perdeu o jogo de ontem contra a Itália. {[ x e/ou z (~)tem y em t1 ] = Brasil não tem y e Itália não tem y... ; [ x e z disputam y em t1’] = Brasil e Itália disputam y...; [ x ou z (~)tem y em t2 ] = Brasil não tem y e Itália tem y75....; [...]}. (37c) O Brasil ganhou o jogo de ontem contra a Itália. 75 O funcionamento desta regra ainda requer uma precisão de modo a permitir que se [x tem y...], então [z ~tem y...] e vice-versa. Um filtro aqui é necessário para impedir que uma das predicações seja aplicável às duas variáveis ao mesmo tempo. 140 {[ x e/ou z (~)tem y em t1 ] = Brasil tem y e Itália não tem y... ; [ x e z disputam y em t1’] = Brasil e Itália disputam y...; [ x ou z tem y em t2 ] = Brasil tem y e Itália não tem y...; [...]}. Os esquemas de interpretação para (37b) e (37c) apenas traduzem uma das possibilidades que podemos associar ao seu sentido, aquela que havia permanecido como problema na discussão anterior, isto é, o fato de o ‘Brasil’ perder sem antes possuir e ganhar já antes possuindo. A dificuldade se estabelece em função do fato de ‘jogo’ ser quase sempre uma roupagem metonímica para o que, de fato, se perde ou se ganha. Podemos supor em (37b), por exemplo, que, ao afirmar que ‘Brasil’ e ‘Itália’ [ ~tem y em t1], [y] possa significar um número de pontos que se traduziria pelo objeto da disputa. A interpretação seria, portanto, absolutamente natural em toda a seqüência da derivação, ainda que o ‘Brasil’ tivesse perdido pontos que não possuísse.76 Em (37c) a situação é um pouco diferente: vamos supor que o objeto da disputa fosse o primeiro lugar de uma classificação e o ‘Brasil’ já estivesse na ponta. Assim, teríamos ‘Brasil’ [tem y em t1] e ‘Itália’ [ ~tem y em t1] e o restante da interpretação seria adequado às circunstâncias, pois, ao ganhar, o ‘Brasil’ estaria mantendo o que já tinha e a ‘Itália’, ao perder, estaria ‘mantendo’ o que não tinha. O propósito desse arranjo formal é tentar justificar, mais do que um mero sentido imediato, parte das inferências interpretativas que são feitas a partir de proposições como essas. A princípio, pode parecer ad hoc a decisão de incluir a idéia de [disputa] nesse conjunto de dados. A sua inclusão, todavia, faz-se necessária, pois o segundo contraste entre ‘perder/ganhar’, em análise, contém particularidades semânticas que não são extensivas a outros grupos de exemplos. O que surge como singular é o fato de, somente em oposições semelhantes a (36) e (37), ser possível substituir-se o verbo ‘ganhar’ por ‘vencer’, mantendo a mesma estrutura de significação, o que não é válido para outros casos já comentados, como se pode observar numa comparação entre os exemplo (37) e (31), respectivamente: 76 Por seu turno, a interpretação é também coerente do ponto de vista da ‘Itália’ que pressupostamente ganhou o jogo (já que o ‘Brasil’ perdeu): ‘Itália’ [ ~tem y em t1] e [tem y em t2]. 141 (37d) O Brasil venceu o jogo de ontem contra a Itália. *(31c) Ele venceu a casa no jogo.77 A legibilidade de (37d) torna-se evidente e a estrutura de significação de ‘vencer’ pode ser explicada pelo mesmo esquema de ‘ganhar’ em (35b). Contrariamente, (31c) não parece ser aceitável num contexto em que casa seja interpretável como um [objeto artefato], sem qualquer extensão metonímica, pois a noção de [disputa] tornar-se-ia completamente obliterada. Entretanto, uma extensão metonímica do termo ‘casa’ para [conjunto de pessoas] ou para [estabelecimento sob a guarda de pessoas] parece recompor o conceito de [disputa], com alguma especificação de contexto, resgatando possibilidades de interpretação para (31c). Deixamos o registro do problema, mas não vamos, neste momento, nos estender a fatos dessa natureza, pois eles já implicam ajustes semânticos que ultrapassam o campo dos verbos em análise. Finalmente, há ainda uma outra oposição que compensa ser destacada em se tratando das relações entre ‘perder’ e ‘ganhar’. Trata-se de um conjunto de frases em que o verbo ‘perder’ se faz apresentar com objetos que lembram meio de transporte, espetáculo entre outros, conforme os exemplos seguintes: (38) Ele perdeu/(?)ganhou o ônibus (avião, trem) da noite. (39) Perdemos/(?)ganhamos o filme (jogo, a luta) de ontem. Uma tentativa de avaliação para (38) e (39) implica resistências, quando nos deparamos com uma das formas da condição inicial apresentada nas definições anteriores, como por exemplo, [x (~)tem y em t1]. Enquanto nos casos anteriores, discutiu-se em detalhes o aspecto formal que a categoria [posse] deveria assumir, estamos certos de que, no caso presente, ela precisa ser removida da definição, considerando-se o verbo ‘perder’. A exigência fundamental, requerida para a interpretação das proposições de (38) e (39), implica a substituição de [posse] por [presença], resultando na seguinte definição: 77 A proposição pode ser interpretável, mas alguns ajustes devem ser assinalados, como o de introduzir um valor de [superação] para ‘vencer’. 142 (34c) PERDER: {[ x ~está em y em t1] [ x ~ se faz presente em y em t2 ] [ t1 imediatamente anterior a t2 ] [ t2 período de transcurso do evento]} O conceito de ‘perder’ aqui se apresenta de forma diferenciada em relação aos casos anteriores já comentados: [y] não deve ser interpretado como um objeto que pode ser afetado pelo verbo, mas deve ser visto numa dimensão espaço-temporal. Assim, ‘perder o trem’, numa enunciação usual, não quer dizer, ao final da derivação, [x ~tem o trem] (embora a proposição possa ser descrita, conforme definição (34), em se tratando de uma circunstância onde a condição inicial é satisfeita [x tem y em t1] ), mas significa [não se fazer presente no local e hora de embarque]. De outro lado, ‘perder a luta (o jogo, o filme)’ pode, naturalmente, recobrir não apenas a dimensão espaço-temporal, isto é, [não se fazer presente no local e hora de exibição], direta ou indiretamente, como ainda assumir o significado descrito em (34b), no caso de ‘luta’ e ‘jogo’, já que alguém pode ser derrotado numa disputa, e (34), no caso de filme, já que alguém pode perder um filme que antes havia comprado (ou visto). Nessa interpretação de exemplos como (38) e (39), o contraste com ‘ganhar’ torna-se inadequado, para algumas das situações mencionadas. Em resumo, ‘ganhar’ só pode ser analisado contrastivamente a ‘perder’ em (38) e (39), quando este se traduzir pela acepção descrita pelas definições (34) e (34b), o que possibilitará ‘ganhar’ ser descrito em função das definições (35) e (35b). A discussão que apresentamos acima desvela uma parte das dificuldades que enfrentamos ao confrontarmos alguns critérios que definem padrões conceituais para a semiótica e para a semântica. O cotejo aqui almejou colocar uns frente aos outros para se analisarem as condições de uma interação múltipla que, até o momento, se não se mostrou integrada de modo decisivo, também não se apresentou na forma de um divórcio absoluto. A classificação de Peirce pode servir de parâmetro para uma compreensão geral de alguns problemas inseridos na discussão semântica, no caso específico a passagem entre rema, dicente e argumento, mas ainda fica a requerer um trabalho mais específico e muito minucioso, como acabamos de discutir, sobre relações e propriedades lexicais e sintagmáticas. É claro que as relações sintagmáticas, em alguma extensão, aparecem contempladas na 143 estruturação lógica, o que permite transpor cada um dos estágios da terceira tricotomia. Ainda assim, o processo continua sendo muito generalizado, pois não chega a inscrever nos predicados, por exemplo, restrições que governam a escolha de certas constantes em contraposição a outras. Em resumo, ao apontar a terceira tricotomia, em algumas de suas dimensões, como um modelo complexo de interpretação, fizemo-lo em comparação com alguns requisitos necessários à compreensão de certos fatos de sentido e com base em certas propriedades lexicais e em alguns aspectos das relações sintagmáticas. Nem na dimensão semiótica, nem na semântica fizemos uma demonstração exaustiva do que pode representar as exigências para uma demonstração formal completa. Estivemos preocupados em demonstrar certas diferenças na forma pela qual esses dois campos operam com questões relativas à representação do conhecimento. Na seqüência, vamos continuar apontando um outro conjunto de fatos, a partir dos quais podemos ensaiar novas correlações e novos distanciamentos. 3.3.4.2 - Funções discursivas A importância a ser atribuída ao argumento relaciona-se ao fato de ele constituir-se no padrão de representação que melhor expressa a idéia de uma racionalidade, pois é nele que as formas de pensamento materializam, de modo decisivo, uma estrutura lógica completa. Todo o percurso de discussão de formas de representação − as dez classes de signos, por exemplo − espelha, em alguma extensão, o trabalho de Peirce com o esforço de integração de uma experiência que é fragmentada, nos seus estágios mais diversos. Assim, tanto qualissigno, quanto argumento78, incorporando apenas os dois extremos de sua taxinomia, testemunham, ao mesmo tempo, o que há de diverso e o que há de complexo na sua formulação. Assim, damos conta do diverso que constitui a nossa atividade cognitiva, quando incorporamos ao nosso organismo os dados decorrentes da atividade exercida pelo percepto, seja ao segurarmos um objeto, seja ao assistirmos a um acidente e quando, igualmente, concebemos a esses dados uma estruturação lógica, uma expressão racional da nossa atividade. Dessa 78 Na presente seção, estamos considerando a análise do argumento do ponto de vista das dez classes de signo e não, como anteriormente o fizemos, no interior apenas da terceira tricotomia. Os resultados não são diferentes; a diferença faz-se pela presença de categorias que serão contrastadas. 144 percepção imediata e instantânea de dados pelo organismo, exposto a algum fenômeno, até a organização lógica desses dados em formas socialmente aceitas, avançamos também no campo da complexidade. Classes e subclasses de signos que se ramificam conceitualmente, tricotomias e categorias que se combinam mutuamente, toda essa arquitetura laboriosa do autor está montada com um propósito singular: o de compensar um prejuízo inevitável que emerge nos momentos em que colocamos a representação em jogo. E o argumento, por assim dizer, deve ser a expressão máxima de todo o trabalho cognitivo, contemplando, a um só tempo, as sensações vividas e a convenções estabelecidas. O desafio a que o argumento está exposto, e de resto toda taxinomia dos signos, é o de ser capaz de conter e de sintetizar todas as formas de juízo possíveis para a experiência. São duas ordens de questões que se completam: de um lado os fenômenos primários vivenciados, de outro a sua elaboração conceitual e social. Ao buscar formas de conciliação para esse contraste, Peirce evita o lugar comum de que a representação oblitera a realidade, mas assume a hipótese de que a realidade escapa à representação; daí, num esforço compensatório, todo o seu investimento nas etapas sucessivas de construção da terceiridade. Se pudéssemos, como instrumento de representação, dispor apenas do signo79, lato sensu, os prejuízos em termos de captação de fenômenos experimentados seriam evidentes. No limite, a questão em análise colocaria a nossa capacidade de categorização e de organização da realidade numa relação de assimetria absoluta com os meios disponíveis para representar: produziríamos grandes estoques de dados sem dispor de mecanismos adequados para expressá-los. Entretanto, os fatos inscrevem-se numa ordem diversa e a necessidade de ordená-los conduz Peirce a essa formulação. Na verdade, dispomos de meios intuitivos e incontáveis de representação conceitual, mas não dispomos, teoricamente, de uma forma racional de fundamentá-los e nem de estruturá-los de modo orgânico. É nessa dimensão, portanto, que entendemos o esforço do autor na fundamentação da terceiridade. Embora a formulação de um padrão de racionalidade nem sempre se mostre ostensiva, como seria desejável, consideramos ser esse o grande tributo que lhe devemos render em termos de sua reflexão. 79 Esse fato seria equivalente a existência, numa língua, apenas de palavras como coisa, trem, treco para especificar todo o conjunto dos objetos materiais. Embora os termos não contenham em si nenhuma descrição a priori dos objetos, o simples fato de nomeá-los, de forma diferente, já é uma garantia da sua diferenciação. 145 A partir das considerações acima, vamos analisar um outro conjunto de dados, destacando o contraste entre uma concepção de análise do processo de percepção da realidade, na dimensão da terceira tricotomia, e uma concepção de análise que leva em conta padrões de estruturação lingüística da significação. Intencionalmente, selecionamos um conjunto de proposições com um padrão de estrutura diferente daquele que foi visto nas frases anteriores. O objetivo aqui é mostrar, nesta comparação, que tanto a concepção semiótica como a semântica exigirão uma reconstrução lógica das proposições, em função das circunstâncias enunciativas em que forem utilizadas. (40) Fogo ! (41) Cuidado! Fogo ! (42) Socorro! Fogo ! (43) Preparar! Apontar! Fogo! Numa classificação imediata, a partir das classes de signos, atribuiríamos a (41), (42) e (43) o valor de um argumento e a (40) o de um símbolo dicente, ou, em circunstâncias específicas, de um legissigno indicial dicente. As questões que decidem uma tal classificação decorrem, de um lado, da possibilidade de correlações lógicas entre as proposições, nos três últimos exemplos, e da existência de uma proposição que expressa, isoladamente, um certo estado de coisas, em (40). Os fatos assim concebidos circunscrevem-se, sem qualquer discrepância, na formulação de Peirce. Assim, uma análise desse teor, ainda que de valia na concepção genérica de estruturação de certos objetos conceituais, pouco representa em termos do que, de fato, pode significar, para os falantes do português, a interpretação de cada uma delas. Nesse caso em particular e, provavelmente, em muitos outros, poderíamos reverter o raciocínio, até então desenvolvido, afirmando que o conhecimento de fatos lingüísticos levaria a uma compreensão efetiva de tais objetos, ainda que concebidos semioticamente. Como os exemplos não apresentam uma estrutura proposicional canônica, vamos precisar reconstruir cada um deles, de forma a poder melhor localizar as questões. Vejamos, então, uma primeira estrutura proposicional: (44) Fogo ! = {[PONTO80[assertivo]] queimar[t, presente] (x, y)}81 80 Na descrição desse exemplo e de outros seguintes, o termo PONTO refere-se à forma pelo qual o seu uso foi consagrado pela Teoria dos Atos de Fala, conforme veremos no capítulo seguinte. 146 A descrição proposta em (44), isto é, a função proposicional [queimar (x, y)], realizada no tempo presente [t, presente] e numa modalidade assertiva [PONTO[assertivo]], pode ser usada para caracterizar, diretamente, o significado da proposição ‘Fogo !’ em todos os casos acima, excetuando (43), onde a idéia geral de [queimar] já aparece como um resultado de outras ações realizadas. Embora sendo uma função de dois lugares, já que é possível considerar [x, agente] ou [x, instrumento] e [y, objeto afetado], é comum reduzi-la a uma função de um único lugar, evitando, assim, uma redundância descritiva em que [x, instrumento] fosse atualizado por ‘fogo’. Ao invés, portanto, de termos proposições como (45), teríamos, mais comumente, (46): (45) O fogo[instrumento] está queimando a casa[objeto afetado]. (46) A casa[objeto afetado] está queimando. Enfim, a função proposicional em discussão pode ser atualizada em formas semelhantes às acima descritas, onde quer que (44) possa servir como estrutura de significação válida. De outro lado, retomando a questão da inadequação de (44) para descrever ‘Fogo !’, no exemplo (43), podemos, em complemento, caracterizar uma ação possível que, combinada ou não a (44), expresse a estrutura do seu significado: (47) Fogo ! = {[PONTO[diretivo]] disparar[t, presente] (x, y)} A descrição de (47) é mais apropriada a expressar o significado da proposição contida em (43). Claro está, entretanto, que (47) não é uma descrição indiferente à proposta em (44), já que esta pode ser assumida como o resultado daquela. Em outras palavras, o efeito de [disparar o gatilho] pode ser, em conseqüência, o de [queimar pólvora]. A contraposição de sentido que mostramos para a presença de ‘Fogo !’, em correlações distintas, mostra a necessidade de uma análise da sua estrutura de significação que seja capaz de responder aos efeitos que produz em cada um de seus usos. Esses efeitos só podem ser computados à medida 81 Na descrição formal desses exemplos, estamos considerando funções enunciativas, todos os parâmetros relativos ao modo, ao tempo e a particularidades sobre o papel dos interlocutores. Aspectos da estrutura proposicional, contendo o predicado e seus argumentos representam funções gramaticais. 147 que apontamos relações estreitas que se estabelecem entre unidades concorrentes. Logo, enquanto a dimensão semiótica reconhece uma estruturação global dos exemplos analisados (símbolo dicente e argumentos), a abordagem semântica fundamenta-se numa análise da estruturação interna, pois somente através dela podemos chegar à diferenciação apontada. Vamos avaliar os casos remanescentes: (48) Cuidado ! = {[PONTO [diretivo]] alertar[t, presente] (x, y)} (49) Socorro ! = {[PONTO [diretivo]] estar em perigo[t, presente] (x)} As duas descrições acima caracterizam, respectivamente, ‘Cuidado!’ e ‘Socorro!’ como valores proposicionais nos contextos em análise. Como funções proposicionais, elas traduzem os mesmos ingredientes dos casos anteriores, com a diferença que não havia sido comentada ainda em (47) e que reside no fato de se introduzir uma nova modalidade na sua atualização. Assim, o modo assertivo, antes mencionado, orienta-se para o mundo e atesta um certo estado de coisas, assumido como verdadeiro pelo locutor; o modo diretivo orienta-se para o alocutário, interpelando-o na consecução de certas tarefas. Quando articulamos, em (41) e (42) acima, as duas modalidades em análise, asseguramos à asserção − o estado de coisas que está sendo asseverado − o valor de causa que justifica uma interpelação do interlocutor a quem confiamos algum tipo de desempenho. Podemos reagrupar os fatos em questão da seguinte maneira: (41a) Cuidado! Fogo ! {{[PONTO [diretivo]] alertar[t, presente] (x, y)} COND [causal] {[PONTO[assertivo]] queimar[t, presente] (x, y)}}; (42a) Socorro! Fogo ! {{[PONTO[diretivo]] estar em perigo[t, presente] (x)} COND [causal] {[PONTO[assertivo]] queimar[t, presente] (x, y)}}. A descrição apresentada busca estruturar uma correlação entre os dois conteúdos proposicionais, mas ainda deixa escapar uma diferença essencial entre os dois exemplos: em (41a) a interpelação do alocutário pelo locutor favorece aquele, pois é ele, alocutário, o objeto da alerta do locutor; em (42a), todavia, a interpelação do alocutário visa a favorecer o locutor, 148 pois é ele, locutor, que está clamando por ajuda, ainda que os beneficiários imediatos possam ser outros. Embora sabendo que a questão em análise contenha uma amplitude maior do que os fatos que se traduzem em termos de uma estrutura da proposição82, podemos, no momento, acrescentar-lhe uma solução ad hoc, propondo uma restrição no alcance da variável [x], conforme descrição abaixo: (48a) Cuidado ! = {[PONTO [diretivo]] alertar[t, presente] (x, y)}, sendo x[não-beneficiário]; (49a) Socorro ! = {[PONTO [diretivo]] estar em perigo[t, presente] (x)}, sendo x[beneficiário]. A solução apresentada poderia assumir outro formato, para representar, de modo mais direto, um contraste entre ‘Cuidado!’ e ‘Socorro!’. As duas expressões poderiam ser descritas com o mesmo valor lexical, mostrando que a diferença entre elas se deve ao fato de haver uma orientação sobre o beneficiário da ação. Intuitivamente, parece ser essa a diferença que relacionamos uma à outra: ‘Cuidado!’ alerta para o perigo de modo a indicar o alocutário como principal beneficiário da ação; ‘Socorro!’, alerta também para perigo, mas inclui o locutor como o seu principal beneficiário. Analisemos agora os dois outros componentes do exemplo (43): (50) Apontar ! = {[PONTO [diretivo]] orientar a visão para[t, presente] (x, y)} (51) Preparar ! = {[PONTO[diretivo]] estar atento[t, presente] (x)} A princípio, a descrição de (50) e (51) não registra maiores dificuldades, considerando-se as relações de sentido contidas em (43) na sua correlação com (47). No entanto, (51) pode ser descrita de maneira alternativa à apresentada, utilizando não uma categoria genérica como [estar atento], mas uma categoria como [posicionar], que orienta para ações mais precisas e localizadas em relação a instrumentos inseridos em situações convencionais de seu uso. A escolha de uma ou outra não altera, substantivamente, o resultado final da análise, porque os mesmos fatos teriam de ser especificados em termos de relações entre as proposições. Quanto 82 Fatos dessa natureza, como outros que já foram incluídos neste trabalho, extrapolam parte das informações que, de um modo geral, são abordados no plano do enunciado. Ao trabalharmos os exemplos de (40) a (43), já estamos operando no plano da enunciação, pois representam atos de fala e não apenas proposições, no sentido tradicional. 149 às correlações semânticas entre proposições de (43), é importante ressaltar uma diferença: na discussão anterior, a relação fundamentou-se em termos de uma condição de causalidade. Na discussão seguinte, vamos destacar uma seqüência temporal em (43), onde uma ação precedente é condição para a realização da subseqüente, conforme descrição abaixo: (43a) Preparar! Apontar! Fogo! {{[PONTO [diretivo]] estar atento[t, presente] (x)} COND [temporal] {[PONTO [diretivo]] orientar a visão para[t, presente] (x, y)} COND [temporal] {[PONTO[diretivo]] disparar[t, presente] (x, y)}} Desse modo, a natureza da predicação usada para representar cada uma das proposições, isto é, [estar atento], [orientar a visão para], [disparar], já se torna um indicativo de ordem temporal. Ainda que certas ações precisem ser realizadas antes que outras, isso não impede que possamos produzir correlações alternativas, mantendo-se, basicamente, o mesmo sentido. Deve-se essa flexibilidade ao fato de a condição temporal não apresentar o mesmo vigor, comparando-se os componentes de todo o argumento. Sabemos, pois, que entre ‘Apontar!’ e ‘Fogo!’ existe uma condição temporal forte, porque não seria razoável supor que uma ordem para atirar pudesse ser dada antes mesmo da de mirar − ou, ainda pior, que a ordem de mirar fosse dada depois da de atirar −, supondo que ambas devessem ser proferidas. Entretanto, sobre ‘Preparar!’ projetam-se condições relativamente fracas, porque ela tanto pode figurar como antecedente de ‘Apontar!’, como de ‘Fogo!’. Ambas as proposições aceitam o fato de que as ações contidas em ‘Preparar!’ possam figurar como seu antecedente. Tal observação parece ser válida para quaisquer das duas descrições conceituais que lhe for atribuída, conforme apontamos acima − [estar atento] ou [posicionar]. Se, todavia, traduzíssemos [posicionar] por uma ação específica, ou seja, o início do manejo de armas, então ela seria mais adequada como antecedente de ‘Fogo!’. Se as observações sobre o comportamento de ‘Preparar!’ são verdadeiras, podemos admitir um outro arranjo para (43): (43b) Apontar! Preparar! Fogo!83 {{[PONTO [diretivo]] orientar a visão para[t, presente] (x, y)} COND [temporal] 83 Além da flexibilidade de ordenação entre esses componentes, a sua escolha não exclui a possibilidade de outros, ou por troca - ‘Atenção! Apontar! Fogo!’ -, ou por acréscimo - ‘Atenção! Apontar! Preparar! Fogo!’. 150 {[PONTO [diretivo]] posicionar/estar atento[t, presente] (x)} COND [temporal] {[PONTO[diretivo]] disparar[t, presente] (x, y)}} Outras inversões, porém, não seriam aceitas em relação aos componentes desse argumento. Logo, não seria possível deslocar ‘Preparar!’ para o final da seqüência, − ‘*Apontar! Fogo! Preparar!’ −, nem ‘Fogo! para o seu início − ‘*Fogo! Preparar! Apontar!’ − e nem antepor os dois últimos elementos da seqüência original − ‘*Preparar! Fogo! Apontar!’. O resultado final dessa avaliação mostra que quaisquer arranjos que não considerem ‘Fogo!’ como ação derradeira da seqüência, e até mesmo como conseqüência das ações precedentes, não podem ser aceitos como estruturas de significação adequadas, para o caso em análise. Por outro lado, a ordenação temporal que estamos apontando para as proposições não pode ser vista sem alguma contaminação que leve à exclusão de quaisquer outros vestígios além da seqüência no tempo. A restrição geral que foi feita acima, admitindose apenas Fogo! como a última das proposições, decorre também da natureza do conteúdo implicado nas outras proposições: as relações que [disparar] mantém com [orientar a visão para] e [estar atento] não são necessárias, portanto, não têm o valor de uma causalidade forte, mas também não são fortuitas, porque são contingentes na sua dimensão semântica, conforme já apontamos pela estreita dependência entre o conteúdo de atos contidos em cada uma das proposições. Além do mais, é preciso relativizar tais aproximações, preservando uma certa interdependência entre causalidade e temporalidade, ao menos para circunstâncias em que artifícios da troca de conectivos, da ordem entre as proposições se encarregam de gerar sentidos diferenciados84. Os efeitos da inversão que constatamos, com alguns exemplos, para formulações das condições temporais apresentam um outro caráter complementar, em contraste com as condições causais. Para estas não existem restrições na sua ordem de ocorrência, pois podemos inverter as proposições sem que se produzam prejuízos ao seu sentido original. Assim, podemos obter, a partir de (41) e (42) acima: 84 É comum registrar o exemplo histórico “Vim, vi, venci” como ilustrativo da seqüência temporal, onde a ação subseqüente está sempre a exigir a presença daquela que lhe antecede como condição espaço-temporal: só é possível ver o lugar a que se veio e só é possível vencer o lugar (inimigo) a que se veio e que se viu. É claro, porém, que nada impede a possibilidade de gerar outras estruturas de significação com esse conjunto de proposições. 151 (41b) Fogo! Cuidado! { COND [causal] {[PONTO[assertivo]] queimar[t, presente] (x, y)} {[PONTO [diretivo]] alertar[t, presente] (x, y)}}; (42b) Fogo! Socorro! { COND [causal] {[PONTO[assertivo]] queimar[t, presente] (x, y)} {[PONTO [diretivo]] estar em perigo[t, presente] (x)}}. As alternativas possíveis para as relações causais típicas, como (41) e (42) revelam, em contraste, a existência de um outro tipo de relação que não se sujeita, com evidência, às circunstâncias de uma ordenação única. Assim, relações causais mais ou menos implícitas podem ser contagiadas por estruturas temporais e mesmo considerando casos onde uma relação de causalidade parece evidente, o teor de uma relação temporal também não pode ser excluído. Podemos argumentar aqui que uma justificativa possível para um locutor [alertar] o seu alocutário, ou para a sua manifestação de [estar em perigo] depende da existência prévia de ‘fogo’, no âmbito dos exemplos em análise. Se alguém clama por meio de apelos em seu benefício ou em benefício de outrem, ele o faz em razão da precedência temporal de algo que lhe pode ser nocivo, em alguma extensão. Por último, as razões pelas quais a reflexão de Peirce destaca o argumento como uma classe de representâmen que manifesta um padrão elaborado de expressão do pensamento justificam-se, em relação às práticas de linguagem, quando confrontadas com os exemplos analisados. Embora na forma de padrões sintagmáticos não-canônicos, mostramos como as proposições se estruturam e como se relacionam entre si por razões lógicas. Os procedimentos da análise lingüística, ainda que parciais, descreveram como, de forma restrita, é possível conceber um estatuto lógico no percurso que se estende do rema ao argumento. Eles podem ainda constituir uma justificativa suplementar, em outras bases, da racionalidade reivindicada pelo autor em relação aos desdobramentos no formato de raciocínio que o argumento representa. Há uma compreensão mais decisiva da sua importância para a organização do pensamento, se avançamos nas possibilidades de estruturação lógica que Peirce admite: tratase da tricotomia para os argumentos simples, concebidos na forma de − deduções, induções e 152 abduções. Não discutimos esses formatos de raciocínio, porque tal discussão estaria além do que foi desenhado para esta pesquisa. Nesta seção procuramos enfatizar apenas alguns aspectos que seriam objeto de uma compreensão semiótica do argumento e outros que seriam objeto de sua compreensão numa abordagem semântica. Ao longo da nossa discussão, demonstramos diferenças e aproximações entre os dois campos, que resguardam padrões próprios no trato da relação entre ser e ser representado. A classificação dos signos na semiótica fundamenta-se em bases fenomenistas, a partir de categorias como a qualidade, o existente, a lei, enquanto na lingüistica, o fundamento é de base estrutural, sustentado por propriedades e relações léxico-sintagmáticas. É possível, porém, que a semiótica extraia de sua base fenomenista conseqüências estruturais, ao implementar alguns aspectos da organização das tricotomias, bem como conseqüências funcionais, considerando-se o papel desempenhado pelos correlatos de quaisquer relações triádicas. A lingüística, por seu turno, deve conviver, em sua base estrutural, com padrões fenomenistas, seja pela absorção cognitiva dos dados de uma realidade, seja pelos efeitos de interpretação de um certo estado de coisas de um mundo possível. Assim, ainda que a incompatibilidade operacional, as divergências instrumentais entre os dois campos de estudo no processamento da representação, conforme procuramos avaliar no transcorrer desse capítulo, anulem as tentativas metodológicas de uma sobreposição entre semiótica e semântica, pressupostos filosóficos e padrões conceituais continuam sustentando o partilhamento pelo dois campos, senão das soluções, ao menos dos desafios impostos pela representação. 3.4 Considerações finais Na discussão acima fizemos uma reflexão sobre um outro estágio da proposta de Peirce − a terceiridade. Analisamos alguns aspectos da questão, procurando delinear um quadro geral e indicativo do seu alcance conceitual. Abordar a terceiridade significou não apenas retomar parte dos problemas conceituais que foram discutidos na segundidade, como ainda avançar na direção à questão que lhe é central, isto é, o conceito de representação. Nesse particular, discutimos algumas dimensões da tipologia dos signos, tentando atribuir a ela um tratamento específico para casos em que mantém, de forma mais localizada, um relacionamento estreito com fenômenos de representação afeitos às línguas naturais. O 153 propósito não foi meramente de enfocar unidades lingüisticas para tentar ilustrar tipos de signo. Um procedimento assim configurado correria o risco de reduzir a proposta de Peirce a uma classificação estática. No entanto, na condição de reduto da representação, tivemos a oportunidade de selecionar, na terceiridade, alguns indicadores construídos pelo autor e compará-los a certas condições de análise, necessárias a uma compreensão de fatos lingüísticos. Destacamos, na nossa perspectiva, indicadores − tipos de signos − que se mostravam mais próximos a uma discussão de fatos específicos de linguagem. Desse modo, a proposta de análise procurou avaliar certas condições impostas à construção de uma gênese da representação e a sua extensão para os processos de representação do processo de significação lingüística. Assim, ao analisar o que havia de mais específico na terceiridade, procuramos fazê-lo com base em duas orientações básicas. De um lado, analisamos propriedades que aproximavam os dois campos de estudo: nesse particular, semântica e semiótica operam ambas com a perspectiva de desenvolver sistemas que sejam cada vez mais eficazes na tarefa de representar. Ainda que de importância para os dois campos, a preocupação em torno da construção de uma metalinguagem das representações foi discutida, de modo mais efetivo, para a semiótica: o papel atribuído à terceiridade no corpo da teoria e a proposição de uma tipologia dos signos constituem dois fatores decisivos na sua construção. Apesar de evidências gerais em favor de uma aproximação entre as duas abordagens, ou seja, o teor genérico das operações relacionadas à representação e os objetivos pretendidos em torno dela, procuramos, de outro lado, destacar parte daquilo que serve como indicador de uma diferença entre um e outro campo. Depois de explorar a fundamentação conceitual da representação, selecionamos uma amostragem de fatos lingüísticos específicos, para os quais propusemos alguns contrapontos com uma análise semântica específica. No contraste referido, relações e propriedades lexicais e relações sintagmáticas, como fenômenos gerais e não contendo alusão a nenhuma teoria de modo particular, serviram de sustentação para uma análise ilustrativa do caráter específico de funcionamento dos objetos semânticos. Alternamos, em nossa reflexão acima, entre a necessidade de se declararem incompatíveis os procedimentos de análise das duas abordagens, e a possibilidade de fazê-los semelhantes em razão de objetivos a serem alcançados. A vacilação, no nosso entendimento, é natural, pois semiótica e semântica discrepam por recobrirem domínios de extensão diferente, mas convergem ao selecionar a representação como um padrão de intervenção nos domínios. Entretanto, em todos os 154 momentos de aproximação que propusemos, sempre restou a sensação de que algo de mais específico devia ser imposto ao funcionamento dos objetos semióticos para que deles pudéssemos extrair uma contribuição mais determinante para a análise dos processos de significação lingüística. Por último, se as duas etapas iniciais propostas por Peirce − primeiridade e segundidade − constituem fatores importantes para a compreensão de todo o processo de significação, podendo serem assumidas como duas instâncias de fundamentação dos objetos semânticos, isto é, percepção sensível e formulação conceitual , alcance diferente estamos reconhecendo para a terceiridade. Por isso, se os planos iniciais se evidenciaram determinantes para a concepção dos objetos semióticos e, em tese, para os objetos semânticos85, o mesmo não podemos afirmar para o plano da terceiridade: a representação semântica contempla outros detalhes que não se fazem nele presentes. Nessa dimensão, os objetos semânticos não só exigem um padrão diferente de representação − as condições sintáticas a que se submetem, por exemplo − como ainda requerem uma flexibilização do nível de detalhamento das relações lexicais em razão de ocorrências circunstanciais. Classes gramaticais e classes lexicais − uma dimensão de análise paralela à tipologia dos signos −, embora relevantes para o processamento dos objetos semânticos, estão sempre sujeitas a desdobramentos e a especificações ulteriores, a fim de atender a exigências no campo da interpretação. Ainda que não exista um consenso sobre a estrutura de uma metalinguagem apropriada à expressão dos fatos de sentido, conhecemos, ao menos, certos parâmetros de que qualquer modelo necessita ser constituído. Não obstante o descompasso que possa existir entre os modelos de análise semântica, duas constatações parecem-nos consensuais, por ocasião da avaliação proposta: (a) a insuficiência de uma grade generalizada de denominações para ‘disciplinar’ os fenômenos da representação lingüística e (b) a inadequação de padrões de relativa autonomia das unidades, em detrimento de exigências sobre correlações solidárias e mutuamente determinantes. Reavaliemos cada uma dessas constatações. 85 A exceção mais notada sobre esse fato pode ser registrada na formulação de JACKENDOFF (1983) sobre a existência de quatro domínios conceituais que expressam a relação entre linguagem e realidade: “Thus we adopt within the theory a metaphysics that embraces four domains: the real world, the projected world, mental information and linguistics expressions. Among the goals of the theory is to explicate the relatioships of these domains to each other.” (p.31). 155 Concernente ao item (a) acima, preocupações com a fixação de uma terminologia, sobretudo quando orientada em termos da organicidade de um sistema, devem ser respeitadas, mas elas estão longe de se constituírem em soluções para grande parte dos problemas detectados. Se pudéssemos assumir o ajustamento de uma terminologia como um parâmetro para superação de dificuldades, a semântica estrutural, em razão da arquitetura terminológica que construiu, deveria ser resguardada como um valor inestimável para a análise lingüística da significação, ainda que a ela devam ser atribuídos muitos méritos nesse empreendimento. Quanto ao aspecto da autonomia de significação das unidades lingüísticas, conforme anunciado em (b) acima, podemos afirmar que todo avanço sobre o conhecimento dos objetos semânticos tem se tornado mais efetivo, à proporção que somos capazes de, cada vez mais, avaliar correlações e dependências entre as unidades de um sistema. Todo o desenvolvimento da sintaxe86, nos últimos tempos, permitiu um conhecimento melhor dos fenômenos de sentido, porque, ao invés de concebê-los como entidades autônomas, vinculadas a itens lexicais, foram submetidos ao filtro das relações sintagmáticas. Tal vinculação, antes de representar uma restrição para unidades lexicais, possibilitou, no nosso entendimento, avançar não só na direção de uma especificação maior dos fatos de significação, como na sua potencialização, em razão de novos significados partilhados nas relações sintagmáticas. Em resumo, as condições de representação impostas aos processos de significação, construídos a partir de um sistema lingüístico, não podem desconhecer as regras de funcionamento desse sistema como um todo. Por outro lado, se grande parte dos objetos semióticos se faz representar à revelia dessa determinação, os parâmetros de análise não podem seguir um mesmo receituário. Semiótica e semântica, em termos de representação, alimentam-se de preocupações distintas, porque se utilizam de padrões distintos para responder à questão: como representamos o que conhecemos. 86 Podemos destacar, em particular, diversos trabalhos que tiveram como objetivo o desenvolvimento de papéis temáticos (JAKENDOFF, 1983), por exemplo, ou de relações de caso (FILLMORE, 1982), como um instrumento de análise fundamental para uma aproximação decisiva entre sintaxe e semântica. 156 CAPÍTULO IV PRAGMATISMO E ANÁLISE DOS PROCESSOS ENUNCIATIVOS 157 4 PRAGMATISMO87 E ANÁLISE DOS PROCESSOS ENUNCIATIVOS 4.1 Considerações iniciais Nos capítulos precedentes, procuramos desenvolver uma análise avaliando a correlação entre semântica e semiótica, com base em três orientações distintas e procurando demarcar convergências e divergências possíveis entre os dois campos. No primeiro capítulo, avaliamos os princípios que Peirce utiliza para definir a primeiridade, destacando o papel que atribui ao percepto e suas condições de funcionamento no processamento da experiência. Na seqüência, discutimos as possibilidades de extensão desse modus operandi como um fundamento para a formação de conceitos, um parâmetro essencial na discussão atual da semântica. No segundo capítulo, retomamos alguns fundamentos da segundidade, sobretudo aqueles determinantes na avaliação do modo pelo qual a experiência sensível, captada na primeiridade, assume uma forma existencial. Discutimos alguns parâmetros básicos que o autor propõe como princípios de ordenação e de racionalização da experiência perceptual. No desenrolar dessa análise, confrontamos os resultados com diversos padrões de formação conceitual que se fizeram presentes, muitos de forma velada, no desenvolvimento da semântica, a partir do estruturalismo. Finalmente, no terceiro capítulo, a nossa preocupação foi selecionar alguns parâmetros mais pertinentes, na terceiridade, para discutir problemas relativos à representação, destacando os aspectos referentes à construção de uma arquitetura do signo em contraste com propriedades lexicais e relações sintagmáticas, base de construção das teorias semânticas. Pela extensão das questões envolvidas nessa tópica, procuramos destacar apenas aquelas propriedades que se mostraram, comparativamente, mais próximas da construção metalingüística das teorias semânticas. Neste capítulo, vamos resgatar uma outra pragmatismo88, 87 instância da formulação de Peirce, o procurando desenvolver o mesmo tipo de procedimento utilizado nas PEIRCE (1980) descartou o uso do termo pragmatismo em favor de pragmaticismo pelas duas razões seguintes que encontramos registradas no seu texto (a) “... a palavra começa a aparecer nas revistas literárias, violentada daquela forma impiedosa a que estão sujeitas as palavras quando caem em garras literárias”; (b) “Os costumes britânicos censuraram a palavra por ser mal escolhida, quer dizer, por designar um significado que devia antes servir para excluir.”(p. 116). Adotamos o termo original − pragmatismo − por continuar sendo o de uso mais corrente. 158 instâncias anteriores. Entretanto, o quadro comparativo precisa ser ajustado, pois os objetos conceituais que se configuram no pragmatismo ultrapassam o que se concebe como semântica, ao menos no interior das abordagens que serviram de suporte, até então, nesse processo de análise. Em se tratando do campo da linguagem, até mesmo uma denominação padronizada parece estar ainda por se definir nesse território: historicamente pragmática parece ter sido a denominação de mais amplo aceite. De modo mais restrito, o termo recobre uma preocupação original com a análise dos atos de fala e das expressões indiciais (STALNAKER, 1982)89, mas contém uma extensão mais abrangente, incluindo leis conversacionais, processos interativos. O avanço que a lingüística alcançou nas últimas décadas, nesse panorama traçado além do domínio da sintaxe e da semântica, propiciou, às vezes, o aparecimento de outras denominações para avaliação dos mesmos fatos. Assim, análise do discurso, análise conversacional, processos enunciativos, processos discursivos, análise da enunciação, mesmo quando portadoras de objetivos próprios, de uma metodologia singular, costumam recortar objetos que se sobrepõem ao campo da pragmática. Para evitar uma ressonância muito próxima entre cognatos e também por representar uma extensão mais ampla dos fenômenos em análise − por exemplo, fenômenos de interação verbal − estaremos usando análise dos processos enunciativos, como uma intervenção sintático-semântico-pragmática, para correlacionar discutir as bases do pragmatismo. Além do mais, em razão da proliferação dos procedimentos de análise implementados por abordagens distintas nesse campo, estamos centralizando dois aspectos que consideramos fundamentais e complementares e que representam uma seqüência natural para o pragmatismo, na análise a ser desenvolvida. Trata88 A formulação do presente trabalho organizou o pragmatismo como o aspecto ‘derradeiro’ da teoria de PEIRCE. A organização do trabalho, porém, não corresponde à proposta original do autor; nesta o pragmatismo é uma doutrina mais abrangente (ou talvez o método) dentro da qual se acham estruturadas primeiridade, segundidade e terceiridade, conforme se pode observar em PEIRCE (1980, p. 5-60). Na presente estruturação estivemos preocupados em fazer emergir uma certa gênese da nossa atividade sobre os objetos, o que nos levou a conceber o pragmatismo como instância final de um processo que inclui, gradativamente, sensação > formulação > representação > ação. Tal escala, porém, não contradiz a formulação de Peirce, pois ela ainda nos mostra sensação, formulação e representação, ou as tópicas correspondentes, como integrantes da ação, ou seja, do pragmatismo. 89 O autor assim expressa sobre o problema: “A pragmática é o estudo dos atos lingüísticos e dos contextos nos quais eles são executados. Há dois tipos principais de problemas a serem resolvidos dentro da pragmática: primeiro, definir tipos relevantes de atos de fala e produtos de fala; segundo, caracterizar os traços do contexto de fala que ajudam a determinar qual a proposição que é expressa por uma dada sentença. A análise dos atos ilocucionários é um exemplo de problema do primeiro tipo; o estudo das expressões indiciais é um exemplo do segundo tipo. (p.64). 159 se, portanto, de buscar, no pragmatismo, uma justificativa para o funcionamento dos atos de fala e da análise quadro enunciativo proposto pela semiolingüística, como um complemento para os atos de fala. É claro que a razão da busca desse fundamento deve-se à suposição de que os dois fatos, em análise, se mostrem ancorados, com certeza, a uma concepção lingüística. 4.2 Conceito de pragmatismo A construção do pragmatismo em Peirce contém uma amplitude que muito ultrapassa a dimensão que se fez, na lingüística, do cognato pragmática90, definida, no geral, como “... a ciência da relação dos signos com os seus intérpretes.” (MORRIS, 1976). Essa apropriação distributiva, em relação às outras partes da linguagem − sintaxe e semântica −, mostra, todavia, sua conexão com o objetivo que Peirce acaba por conceber para o pragmatismo, isto é, “...a doutrina segundo a qual toda concepção é a concepção de seus efeitos práticos.”, (PEIRCE, 1980, p. 57). A reflexão do autor, entretanto, registra um quadro amplo de formulações, onde devemos situar as condições que devam viabilizar a doutrina. Assim, supor uma orientação para efeitos práticos exige a recomposição de alguns parâmetros que fundamentam, de modo racional, uma compreensão do pragmatismo, a partir de duas dimensões complementares. A primeira coloca-o a serviço da necessidade de uma avaliação experimental de hipóteses, voltadas, de preferência, para o entendimento de uma prática científica restrita. A segunda dimensão indica, de modo mais genérico, um apelo a condutas ordinárias, circunscritas às atividades do cotidiano, às práticas sociais dos sujeitos. Separar as duas dimensões não chega a constituir-se num fato determinante para a sua formulação, razão pela qual, no geral, elas se mostram mescladas. No fundo, o pragmatismo comporta uma e outra orientação, seja como método de verificação de hipóteses formalmente construídas, seja como um simulador 90 da experiência cognitiva ordinária. Desse modo, as preocupações Na concepção de MORRIS (1976), “O termo pragmática foi obviamente cunhado em referência a ‘pragmatismo’. É ponto de vista plausível que a importância permanente do pragmatismo repousa no fato de que ele dirigiu uma atenção mais cerrada para a relação dos signos com os seus usuários do que já se tinha feito e afirmou a importância dessa relação para se entender as atividades intelectuais.” (p. 50) 160 conceituais inseridas no pragmatismo procuram recobrir uma e outra orientação91, conforme podemos verificar no trecho seguinte (PEIRCE, 1977): “Portanto, qual é o objetivo de uma hipótese explanatória? Seu objetivo é, apesar de isto estar sujeito à prova da experiência, o de evitar toda surpresa e o de levar ao estabelecimento de um hábito de expectativa positiva que não deve ser desapontada. Portanto, qualquer hipótese pode ser admissível, na ausência de quaisquer razões especiais em contrário, contanto que seja capaz de ser verificada experimentalmente e apenas na medida em que é passível de uma tal verificação. É esta, aproximadamente, a doutrina do pragmatismo.” (p. 233). A aproximação conceitual que Peirce propõe, na citação acima, localiza o pragmatismo na perspectiva de um método de verificação de hipóteses explanatórias, isto é, aquelas que estão aptas a se submeterem à prova da experiência e que possam garantir hábitos na experimentação dos objetos. Ora, se o pragmatismo é uma doutrina que estipula parâmetros adequados para admissibilidade de uma hipótese, então, é necessário especificar, como o autor o faz, o modo pelo qual devemos proceder na avaliação de uma hipótese, isto é, “...que seja capaz de ser verificada experimentalmente...” . Por outro lado, as bases sobre as quais Peirce estrutura o pragmatismo compreendem ainda outros fatores (PEIRCE, 1977): “ ... [o autor] arquitetou a teoria de que uma concepção, isto é, o teor racional de uma palavra ou outra expressão reside, exclusivamente, em sua concebível influência sobre a conduta da vida: de modo que, como obviamente nada que não pudesse resultar de um experimento pode exercer influência direta sobre a conduta, se se puder definir acuradamente todos os fenômenos experimentais concebíveis que a afirmação ou negação de um conceito poderia implicar, ter-se-á uma definição completa do conceito, e nele não há absolutamente nada mais. Para esta doutrina o presente autor inventou o nome de pragmatismo.” (p. 284). A segunda dimensão assinalada − que não exclui a anterior − evidencia-se na citação acima: o interesse traduz-se pela possibilidade de que o “teor racional de uma palavra”, o uso de um “conceito” devam ser avaliados sob o prisma de sua “influência direta sobre a conduta”. Além do mais, tudo que pudermos avaliar sobre um conceito refere-se a “... fenômenos 91 Posteriormente, na seqüência da análise a ser desenvolvida, estaremos nos ocupando, de modo mais enfático, da questão do pragmatismo associado à prática ordinária de ações, através do uso de formas lingüísticas apropriadas. Daí a extensão a ser feita do pragmatismo como um fundamento das estruturas enunciativas e da 161 experimentais concebíveis..”, com base em sua afirmação ou em sua negação. Compreendemos, então, que essa formulação constitui apenas uma continuidade do que fora antes discutido, destacando um aspecto que parece essencial para Peirce: o teor realista que a experiência sensível pretende conferir às hipóteses não pode ser dissociado do valor utilitário que devemos atribuir à metalinguagem92. O realismo incipiente da experiência incorpora-se, racionalmente, na linguagem (“... o teor racional da palavra...”) que o traduz, em seu estágio derradeiro, em fatos, em condutas, em objetos experimentados. É claro, entretanto, que ao admitirmos essa ‘interpretação’, não estamos supondo uma imediatez de signos associados à experiência sensível. Os padrões determinantes da primeiridade e da segundidade, principalmente, continuam prevalecendo nessa formulação, conforme podemos comprovar na afirmação abaixo de PEIRCE (1977): “O pragmatismo não pretende definir os equivalentes fenomenais das palavras e das idéias gerais, mas, pelo contrário, elimina o elemento sensório destas e tenta definir o propósito racional, e isto ele descobre na conduta utilitária da palavra ou proposição em questão.” (p.294) Definidos os propósitos e o alcance conceitual do pragmatismo, podemos passar agora a avaliar o modo pelo qual toda essa racionalidade, sustentada pelas dimensões precedentes da teoria, pode ser consagrada em termos de efeitos práticos. Vamos considerar, para início de discussão, aquilo a que PEIRCE (1980) denominou máxima do pragmatismo: “Considerar os efeitos práticos que possam pensar-se como produzidos pelo objeto de nossa concepção. A concepção destes efeitos é a concepção total do objeto.” (p. 5) A concepção da máxima, se a assumimos em um sentido restrito de dois eixos que parecem ser os responsáveis pela construção do pragmatismo, − a explicitação do significado dos signos e/ou das hipóteses e a sua extensão a condutas práticas − não apresenta uma clareza imediata. A máxima destaca, porém, dois fatos: o objeto concebido e os efeitos práticos. O teoria dos atos de fala. 92 Se podemos compreender o pragmatismo por esse esforço estratégico que objetiva traduzir, de modo racional, intuições, experiências sensíveis em efeitos práticos, podemos também compreender que as categorias primeiridade, segundidade e terceiridade nada mais são do que etapas de construção da racionalidade de nossa experiência cognitiva. É claro, como já comentamos, que cada uma das categorias comporta dimensões absolutamente distintas de racionalidade, no percurso que vai do ‘pré-racional’ ao racional. 162 desafio para que esses dois fatos se façam necessários à construção do pragmatismo requer, por sua vez, que os coloquemos numa relação de causalidade, de tal forma que o segundo seja produzido pelo primeiro. Inversamente, segundo o autor, o que concebemos na esfera dos efeitos corresponde ao conhecimento que temos do objeto. Tentaremos aqui, senão interpretála, ao menos buscar uma justificativa capaz de ilustrar circunstâncias a que ela se aplica. Suponhamos, então, a formulação de um conjunto de instruções a serem seguidas, visando a que o seu destinatário execute certa tarefa: (1) Remova os parafusos e desconecte todos os cabos da unidade. Empurre o suporte direito para trás para soltar a trava e depois levante e remova o suporte93. O objeto da nossa concepção em (1) pode ser entendido como recomendação, ou ordem, resultante do conteúdo proposicional obtido pela composição de significados de itens lexicais, associados à realização de tarefas no futuro e a convenções de uso que regulam interações entre um locutor − o manual − e um alocutário − o usuário. No caso presente, o valor hierárquico de tal interação faz-se representar pelo caráter de autoridade técnica, conferida àqueles que elaboraram o manual. Assim, uma vez concebido como mera recomendação, o objeto projeta a realização de uma tarefa, orientada a partir da descrição do conteúdo ‘P’, de (1) acima e que pode vir a ser negligenciada pelo seu usuário. Supondo, entretanto, que (1) possa ser realizado como ordem, devemos, então, revigorar a dependência hierárquica entre as instâncias interlocutivas, tornando-se inevitável a realização de ‘P. Por fim, admitindo-se que exista uma clareza sobre o significado dos signos componentes do conjunto das proposições, a recomendação/ordem registrada estipula para o usuário em pauta a execução de afazeres que implicam a necessidade de que certos cuidados − [remoção de parafudos] e [desconexão de cabos]... − sejam realizados como pré-requisitos a tarefas subseqüentes para remoção e instalação de componentes. Aqui poderíamos dizer que o efeito prático decorrente do objeto-ordem, por exemplo, é, minimamente, a execução da tarefa nos termos descritos. Poderíamos ainda, nos termos da Teoria dos Atos de Fala, denominar tal efeito de ilocucional, entendendo-se o fato de o 93 Instrução constante da seção Instalação e remoção de disco rígido, do Manual do Hardware-IBM/Aptiva. Campinas: IBM, 1995, p.102. 163 alocutário, em circunstâncias apropriadas, tornar-se responsável pela execução da tarefa descrita. Poderíamos assumir, além do mais, que a “...concepção deste(s) efeito(s) é a concepção total do objeto...”, já que um efeito, como o caracterizado acima, responde pelo que há de mais completo no uso de uma ordem, a saber, o fato de que ela, quando enunciada em condições apropriadas, seja cumprida pelo seu destinatário, porque quem a enuncia, também em circunstâncias apropriadas, espera que ela seja, de fato, realizada. Essa correspondência consensual entre a concepção do objeto e a concepção do efeito, parece ser essencial na discussão da máxima, conforme podemos atestar numa outra citação (PEIRCE, 1977): “Pois a máxima do pragmatismo é que uma concepção não pode ter efeito lógico algum, ou importância a diferir do efeito de uma segunda concepção salvo na medida em que, tomada em conexão com outras concepções e intenções poderia concebivelmente modificar nossa conduta prática de um mundo diverso do da segunda concepção.” (p. 232). Voltando ao exemplo em discussão, é evidente que uma ordem pode ter outros efeitos, quando nela mesclamos outras intenções, ou quando violamos alguma convenção, além daquelas que regulam o seu uso. Se o alocutário percebe que a relação com o locutor não se estrutura na base de uma hierarquia que confere a este superioridade, o objeto resultante, quando existir − pois até mesmo a possibilidade de sua recusa está em jogo −, já não mais se configura como ordem executada, senão como um outro efeito atenuado, segundo o novo diagnóstico da relação. Assim, se o efeito lógico do objeto-ordem é o fato de que alguém deve cumpri-la de modo irrestrito, nenhuma outra concepção pode estar, logicamente, a ela vinculada, nem dela diferir, a não ser que outras intenções possíveis de alterar o seu padrão funcional sejam a ela acrescidas. O resultado de uma intervenção sobre o fluxo lógico entre objeto e efeito, no caso de uma ordem, implica “...modificar nossa conduta prática de um mundo diverso do da segunda concepção” . Em resumo, uma primeira concepção de ordem pode não representar nenhum efeito lógico resultante, a não ser − e em comparação com uma segunda concepção que produziria esse efeito −, que sobre ela façamos atuar outras intenções, suficientes para alterar o nosso comportamento sobre ordens. Em outras palavras, a concepção sobre os fatos difere em razão de alterações impostas por nossa conduta prática diante desses mesmos fatos. 164 A exposição desenvolvida recobre uma ilustração possível para a máxima proposta, nos limites de algumas correlações que foram exploradas em particular. Há, todavia, outros aspectos a serem considerados em sua formulação, de tal maneira a nos permitir conceber efeitos que se ajustem, de modo mais adequado, a uma referência do autor à “concepção total do objeto”. No exemplo anterior, analisamos, em relação a uma ordem, condições lingüísticas e condições interacionais de sua estrutura, e comentamos que o rompimento de uma condição qualquer pode resultar num efeito atenuado, não representativo de uma ordem legítima, isto é, uma ordem que contenha o cumprimento pronto e completo das tarefas prescritas. No caso presente, podemos assumir uma certa ‘concepção parcial do objeto’, já que existiu um descompasso entre locutor e alocutário. A quebra da expectativa de um consenso entre eles, seja pela infração a convenções, seja pela incompatibilidade de intenções, introduz, assim, uma parcialidade na concepção do objeto. Se a parcialidade pode ser concebida em razão das distorções que estamos apontando, o que, no caso particular, pode representar a possibilidade de uma “concepção total do objeto” ? Duas considerações podem ser destacadas em conexão com a questão em análise. A primeira supõe, conforme comentamos acima, que um certo ato de fala, por exemplo, seja realizado de forma plena. Assim, para se realizar uma ordem de forma plena, o alocutário precisa submeter-se a um conjunto de condições que a execução de tarefas decorrentes da enunciação do locutor implica. A transgressão de normas convencionadas ou a introdução de intenções desviantes altera a rotina de execução de um ato e redunda, como já o mostramos, numa alteração conseqüente da conduta prática esperada. A segunda consideração, que pretendemos desenvolver, implica que a totalidade do objeto seja aferida a partir do conjunto dos aspectos que podem ser incorporados, ainda que convencionalmente não previstos, num determinado ato. Esses aspectos, já que não são previstos, só podem ser admissíveis por meio de intenções: intenções que se acrescentam às convenções não que as diminuem. O proferimento de uma ordem submete-se a um ritual, governado por convenções que regem a relação locutor alocutário, como analisado. Nada impede que esse ritual seja acrescido de intenções da parte do locutor, resultando em exemplos como: (a) uma ordem com intenção de humilhar o alocutário; (b) uma ordem com a intenção de embaraçar o alocutário; (c) uma ordem com a intenção de promover o alocutário... Existe também a possibilidade de o alocutário acrescentar intenções próprias na realização de uma ordem: (a’) sua execução com a intenção de mostrar uma eficiência acima da exigida; (b’) sua execução com a intenção de 165 ameaçar o locutor; (c’) sua execução com a intenção de mostrar displicência. Esses apêndices intencionais que acrescentamos aos atos é que podem produzir o efeito de totalidade do objeto; uma totalidade circunscrita a uma instância enunciativa própria. Ao traçarmos essa totalidade do objeto − ainda que limitada −, devemos admitir que uma estratégia de acréscimo de intenções não pode ser confinada em termos quantitativos: tratamos, nos exemplos acima, sempre da admissão de uma única intenção, mas esse número é arbitrário. Uma intenção que lembra ‘humilhar’ pode também apontar para acréscimos ou qualificações como ‘embaraçar’, ‘atropelar’, ‘aborrecer’, ‘tripudiar’, ‘ridicularizar’, mas certamente é incompatível com ‘elogiar’, ‘promover’, ‘homenagear’94. Formas diretivas como ‘perguntas’ comumente preenchem a sua totalidade com seqüências compatíveis de intenções. Em resumo, a “concepção total do objeto”, o resultado final da execução de um ato, no nossa exemplificação a partir da Teoria dos Atos de Fala, requer uma associação necessária entre o ilocucional e o perlocucional.95 Ao avaliarmos um contorno geral do pragmatismo que incluiu não apenas a sua conceituação restrita, mas ainda o alcance conferido por Peirce à categoria, constatamos que os problemas considerados superam as abordagens semânticas, nos padrões desenvolvidos no capítulo precedente. Muitas das questões ressaltadas podem constituir-se, em relação às teorias semânticas, numa espécie de extensões pragmáticas, pelo fato de representarem aspectos relativos ao processo de significação, submetidos a uma clivagem das práticas de linguagem. Desse modo, se o pragmatismo, na dimensão teórica do autor, se apresenta como uma doutrina geral à qual submetemos categorias particulares como primeiridade, segundidade e terceiridade, ele se torna uma espécie de instrumento catalisador e, ao mesmo tempo, de território limite para o desenvolvimento de cada uma das categorias. Nenhum fato 94 Se a concepção de um ato pode ser admitida como o conjunto dos efeitos práticos a ele vinculados, então, as condições que usamos para definir possibilidades de sua aplicação − como nos casos em análise − não devem ser entendidas como limite superior para as condutas práticas. A descrição que apresentamos é sempre parcial e só pode ser invalidada na ausência de um efeito prático qualquer. A esse respeito PEIRCE (1980, p. 57) afirma que: “... se o pragmatismo é a doutrina de que toda concepção é uma concepção de efeitos práticos concebíveis, isto faz com que a concepção tenha um alcance muito além da prática. Permite qualquer vôo da imaginação, contanto que esta imaginação se depare, em última instância, com um efeito prático possível, assim, à primeira vista pode parecer que muitas hipóteses são excluídas pela máxima pragmática, quando não o são.” 95 O problema de determinação do lugar da intenção num ato de fala não é uma questão fechada para a teoria. Há autores que preferem situar intenções como fonte original de todo ato; para outros a intenção é apenas uma conseqüência do uso de atos. 166 circunscrito na esfera de cada uma delas pode ser indiferente aos propósitos do pragmatismo; todos os fatos exibem o valor de etapas fundamentais na sua construção. O desenho conceitual desse quadro mantém, por sua vez, correlações válidas com o processo lingüísticodiscursivo. Não existe ainda, na lingüística (STOP – NOTA SOBRE O ROULET), esse desenvolvimento integrado que Peirce elabora, mas sabemos, perfeitamente, que todas as preocupações sobre o processo de significação, desenvolvido no interior de diversas abordagens semânticas, podem ser aglutinadas em favor de um espaço destinado às extensões pragmáticas. Entretanto, faremos um corte específico e começaremos a avaliar a extensão dos problemas de sentido, considerando-se, inicialmente, a possibilidade de uma aglutinação entre o pragmatismo e a Teoria dos Atos de Fala e, na seqüência com o quadro enunciativo proposto pela Semiolingüística. Em que dimensão, portanto, podemos extrair da formulação de Peirce elementos que nos permitam uma aproximação com os atos de fala e com outros aspectos do processo enunciativo ? 4.3 Pragmatismo e processos enunciativos Como mencionamos em 4.1, o território de estudos da linguagem, dominado pelo termo genérico ‘processos enunciativos’96, acolhe inúmeras abordagens que especificam métodos e padrões de análise da atividade discursiva em torno de três objetos específicos: (a) o estatuto dos usuários na atividade discursiva; (b) as formas de inserção desses usuários na atividade descrita e (c) os efeitos práticos decorrentes de sua inserção no processo discursivo. Nenhum dos objetos pode ser concebido de modo autônomo, pois todos integram uma problemática em comum, de tal forma que a avaliação do alocutário, como um componente do processo enunciativo − (a) acima −, precisa ser determinada em função do papel que lhe cabe desempenhar nesse processo − (b) − e dos efeitos que pode produzir − (c). A integração dos 96 A escolha da expressão, para abranger os fatos que estaremos analisando neste capítulo, não é definitiva. Outras poderiam alcançar o mesmo efeito, isto é, o de indicar um certo número de fenômenos da linguagem situados no campo da enunciação. A escolha deve-se ao fato de ‘processos enunciativos’ (mais do que ‘análise do discurso’, por exemplo, que apresenta diversos padrões teóricos e tendências internas desses padrões...) dispensar quaisquer justificativas adicionais ou restritivas, por não ser uma expressão nomeativa de nenhuma teoria e nem estar comprometida com nenhum padrão metodológico de análise, a ponto de nela poder habitar os fatos que vamos analisar. 167 três aspectos, contidos nos itens acima, representa uma condição mínima para análise da enunciação, conforme destacaremos na seqüência. O primeiro aspecto − o estatuto dos usuários na atividade discursiva − responde pela composição de uma estrutura da enunciação, evidenciada pela necessidade de isolamento dos componentes, do papel que conferimos a cada um e da correlação entre eles. A estrutura em questão responsabiliza-se por determinar a construção do processo de interação verbal nas suas formas mais diversas, seja considerando EU e TU como instâncias indecomponíveis, seja desdobrando-os em instâncias múltiplas. Há, portanto, concepções desse processo que estruturam o circuito da fala, na formulação preferencial de instâncias únicas de locução, seja no lugar do locutor, seja no lugar do alocutário97. Esse modelo de enunciação não assume como necessária a emergência da polifonia, mas também não a bloqueia; considera-a contingencial, na forma de fragmentos de discurso de um outro locutor determinável (ou do senso comum), que não integra a estrutura da enunciação, mas que a ela adere, como um acontecimento importado para circuito da fala. Há outras concepções, entretanto, em que o processo de interação se faz, considerando-se o desdobramento de cada um dos lugares enunciativos98. Nesta abordagem, EU e TU são instâncias únicas na estrutura do processo enunciativo: ambos comportam o seu ‘outro’ e a possibilidade de consenso ou de dissenso, no lugar do locutor ou do alocutário, viabiliza efeitos práticos diferenciados no processo discursivo. Nesse modelo, a polifonia emerge como necessária, porque nele está, estruturalmente, configurada, ao menos em termos das intenções que regem o jogo 97 Podemos localizar essa distribuição dos lugares enunciativos, por exemplo, na formulação de BENVENISTE (1987) “Mas imediatamente, desde que ele se declara locutor e assume a língua, ele implanta o outro diante de si, qualquer que seja o grau de presença que ele atribua a este outro. Toda enunciação é, explícita ou implicitamente, uma alocução, ela postula um alocutário.”(p. 84). Embora seja um indicador importante para a fundamentação do processo enunciativo, exatamente por introduzir o confronto entre as duas instâncias interlocutivas, interessa-nos também um modelo que apresente outras alternativas − ainda que para os atos fala tenha sido esse o padrão assumido −, como veremos na seqüência. 98 A fundamentação desse modelo aparece de modo explícito na formulação de PÊCHEUX (1969, p. 18-9): “Notre hypothèse est que ces places sont représentées dans les processus discursifs où elles sont mises en jeu. Toutefois, il serait naîf de supposer que la place comme faisceau de traits objectifs fonctionnne comme telle à l’interieur du processus discursif; elle y est représentée, c’est-à-dire présente, mais transformée; en d’autres termes, ce que foncitionne dans le processus discursif, c’est une série de formations imaginaires désignant la place que A e B s’attribuent chaun à soi et à l’autre.”. Uma outra versão desse modelo, foi descrita por DUCROT (1984, p.368-93) que aponta um desdobramento para os lugares do locutor e do destinatário, ao menos em se tratando dos verbos performativos. O modelo, que será utilizado mais à frente, como parâmetro para discussão, foi proposto por CHARAUDEAU (1983, p. 37-57). 168 enunciativo entre os participantes. À frente, vamos discutir, de modo detalhado e ilustrativo, o funcionamento desse modelo. O segundo aspecto − as formas de inserção dos usuários na atividade de fala − permite qualificar certos padrões de intervenção do locutor/alocutário no processo discursivo. Ao compararmos modelos diversos, não vamos encontrar consenso sobre o papel a ser atribuído ao usuário; existem alternativas que transitam de uma autonomia relativa a uma dependência quase absoluta. A alternância, compreendida nessa escala, constitui o ponto central em torno do qual a divergência foi construída em relação ao papel do usuário. Uma certa tradição da análise comunicacional, por exemplo, ora é estruturada em termos da simetria entre locutor e alocutário, ora confere certa autonomia ao locutor no processo da fala, até mesmo para estruturar o código em atenção ao interlocutor.99 Assim, o emissor, portador de propósitos e de intenções comunicacionais, ajusta o código, de tal modo a torná-lo partilhável pelo recebedor. Os ruídos decorrentes nesse processo ideal de comunicação são aferidos através de disfunções, ou da má codificação da mensagem por parte da fonte, ou da má decodificação da parte do recebedor. Ainda que esse processo seja capaz de propiciar respostas para questões no âmbito do processo comunicativo, ele se mostrou inoperante para justificar grande parte de efeitos discursivos que decorrem de uma manipulação dos lugares enunciativos. O processo expõe suas fraturas, seja na percepção daqueles que apostaram numa determinação dos lugares enunciativos, seja na percepção daqueles que consideraram os lugares como um fazer de efeitos discursivos. Os entraves mencionados e o interesse pelas perspectivas de análise no plano da enunciação contribuíram para firmar outra postura, isto é, a socialização ou, como muitos preferem, o descentramento dos lugares enunciativos. Uma referência direta ao problema remete a formulações de BAKHTIN (1981): “A enunciação enquanto tal é um puro produto da interação social, quer se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada comunicação lingüística.” (p. 121). 99 O esquema presente lembra, em parte, a formulação de JAKOBSON (1969) e suas extensões na análise das funções da linguagem. Para o autor, o locutor escolhe o código, orienta a forma que dá a esse código, centraliza a mensagem sobre si mesmo ou sobre o seu interlocutor etc. O arranjo proposto, ainda que eficaz na avaliação de certas estruturas da mensagem, mostra dificuldades no trato do processo enunciativo, pois se torna insuficiente para explicar grande parte dos efeitospráticos que emergem do plano enunciativo, quando locutor e alocutário se vêem face a face. 169 Nenhuma fala pode ser concebida como projeto de um locutor individual e isolado do seu meio social, nenhuma fala é o resultado do seu estado mental exclusivo: o locutor é um ser social múltiplo, ou, ao menos, um duplo do qual é mero porta-voz. Ele encena ter a propriedade da voz que tece o seu discurso, mas no fundo apenas aluga a sua voz ao seu duplo. O mesmo, mutatis mutandis, podemos conceber para o alocutário. O seu lugar é também descentrado e socializado: nenhuma leitura é propriedade de um indivíduo, senão uma mesclagem de outros indivíduos, de outras vozes ressonantes na sociedade, de outros acontecimentos que ele importa para aquela circunstância. Esse modelo reafirma o teor social da enunciação − “A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social.” (BAKHTIN (1981, p. 127) −. Ninguém fala apenas em razão do próprio nome, senão em razão do lugar social que ocupa; ninguém interpreta apenas em razão de uma consciência individual, senão de uma consciência social. A proliferação de instâncias nos lugares enunciativos tornou-se uma espécie de antídoto contra o solipsismo − “O ato de fala individual (no sentido estrito do termo ‘individual’) é uma contradictio in adjecto” (BAKHTIN (1981, p. 127) −. Assim, EU e TU agora se vêem obrigados a dividir um território onde reinaram soberanos. O terceiro aspecto − os efeitos práticos decorrentes da inserção dos usuários na atividade discursiva − abrange um conjunto bastante amplo de efeitos de sentido, incluindo: (a) formatos de discurso − humorístico, eleitoral, ensaístico... −; (b) atos de linguagem − mentira, ironia, provocação... −; (c) atos de fala − promessa, ordem, declaração. A possibilidade de uma avaliação analítica desses efeitos vem se tornando viável, à medida que o estudo sobre os processos enunciativos alcançou o estágio que dele conhecemos hoje. Em se tratando dos diversos formatos de efeitos que apontamos, por exemplo, há outros componentes que intervêm de modo decisivo, que não apenas o formato estrutural da enunciação. Para todos eles, seguramente, é necessário fixar alguns padrões sintáticosemânticos que os tornem viáveis: uma promessa, como veremos mais à frente, impõe certas restrições de conteúdo que o locutor precisa compatibilizar na relação com o seu interlocutor; mentiras só serão bem sucedidas − ainda que por pouco tempo − se o seu conteúdo atender a condições fatuais mínimas. Nesse caso particular, o processo enunciativo aproxima-se de aspectos já discutidos nos capítulos anteriores, revelando a importância de uma integração entre processo enunciativo e processo de significação. A existência de efeitos discursivos, em 170 quaisquer dos formatos que apontamos, implica uma conjunção de fatores que reúne, em essência, os dois processos. Na análise subseqüente que desenvolveremos para alguns desses efeitos, mostraremos detalhes dessa integração. Avaliadas algumas características importantes do processo enunciativo, podemos, então, implementar as duas dimensões particulares sobre as quais nos deteremos com detalhes ilustrativos. Iniciemos pela análise da Teoria dos Atos de Fala e, na seqüência, completaremos com a análise do quadro enunciativo proposto pela Semiolingüística. 4.3.1 Pragmatismo e Teoria dos Atos de Fala (TAF)100 As raízes da TAF emergem onde quer que situemos correlações entre linguagem e ação. Alguns momentos nessas correlações, entretanto, costumam ser identificados de modo mais efetivo, como uma contribuição direta para a teoria, porque, além de identificarem a questão central, ainda apontam para algum aspecto qualitativo que acabou sendo incorporado no seu desenvolvimento conceitual. Assim, é comum, na história da TAF, a identificação de suas raízes aos jogos de linguagem, a partir da formulação de WITTGENSTEIN (1979).101 Mais recentemente, certos autores têm derivado de Moore outros aspectos que lembram alguns fundamentos da teoria, sobretudo aqueles que apontam para condições de sinceridade e 100 Não vamos, no presente capítulo, fazer uma apresentação sistemática da TAF. Grande parte dos seus preceitos, do seu alcance e de suas críticas é amplamente conhecida. À medida que avançarmos na exposição, deveremos, todavia, descrever alguns aspectos do seu funcionamento que se fizerem necessários. 101 O autor, nos parágrafos 2 e 7, mostra a importância de uma linguagem primitiva (uma linguagem onde uma enunciação produz uma ação (cf. parágrafo 2) na sua correlação imediata com jogos de linguagem. Sobre este segundo conceito ele escreve: “(7)... Podemos também imaginar que todo o processo do uso das palavras em (2) é um daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem uma língua materna. Chamarei esses jogos de jogos de linguagem, e falarei muitas vezes de uma linguagem primitiva como de um jogo de linguagem. E poder-se-iam chamar também de jogos de linguagem os processos da denominação das pedras e da repetição da palavra pronunciada. Pense os vários usos das palavras ao brincar de roda. Chamarei também de jogos de linguagem o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada.”(p. 10 e 12). A correlação linguagem primitiva/jogos de linguagem reflete parte das preocupações que estão incorporadas na TAF, ainda que de forma rudimentar. Em ambas as formulações o que está em questão, de modo primordial, é a relação entre linguagem e ação. A nossa preocupação com as raízes da TAF será considerada a partir de Peirce; por essa razão, apesar da importância, o registro sobre Wittgenstein assume esse formato documental. 171 que se relacionam ao chamado “paradoxo do Moore”, conforme citação de WANDERVEKEN (1991). 102 Não vamos aqui, no entanto, reconstruir detalhes desse itinerário, porque nossa preocupação com o traçado histórico sobre a teoria é a de buscar, na formulação peirceana do pragmatismo, alguns elementos que sirvam para uma correlação com a TAF. Se alcançamos uma proximidade conceitual entre as duas abordagens, asseguramos, em alguma extensão, que a TAF possa vir a constituir-se como uma orientação operacional no campo do pragmatismo. Em outros termos, o desafio de converter a concepção de um objeto em efeitos práticos poderia ser efetivado por meio de mecanismos disponíveis no corpo da TAF. Nada, em princípio, nos impede de ensaiar essa aproximação, mesmo porque, em função do que já comentamos sobre o pragmatismo, ele parece figurar como uma região propícia ao desenvolvimento dos atos de fala. Vejamos, pois, uma citação inicial de PEIRCE (1980), feita a propósito de uma das afirmações − “o significado de efeitos práticos” − sobre a máxima pragmática: “31. Qual a diferença entre fazer uma asserção e estabelecer uma aposta ? Em ambos os atos o agente se submete a conseqüências prejudiciais se uma certa proposição não for verdadeira. Só que ao apostar espera que o adversário se torne responsável pela verdade da proposição contrária; ao que, ao fazer uma asserção, sempre (ou quase sempre) deseja que a pessoa a quem se dirige aceite o que ele diz. Assim no vernáculo “Apostarei” isto ou aquilo, é uma frase que expressa uma opinião privada que não esperamos que os outros compartilhem , enquanto que “você aposta” é uma forma de asserção que busca fazer com que o outro acompanha o exemplo.” (p. 12) O trecho acima nos introduz, diretamente, em diversas dimensões dos atos de fala, a começar pela pergunta sobre a diferença entre fazer uma asserção e fazer uma aposta. Vamos tentar esclarecer aspectos dessa questão, considerando algumas observações que Peirce apontou no 102 O autor assinala o seguinte fato sobre a importância do paradoxo de Moore: “Other examples of analytically unsuccessful sentences which are not illocutionarily inconsistent are instances of Moore’s paradox, such as “John, please come, I do not want you to come”. Utterances of such sentences are analytically unsuccessful because a speaker who performs an illocutionary act expresses eo ipso the mental states corresponding to the sincerity conditions. He cannot deny in the context of his utterance that he has the mental states that he expresses in that very context without contradicting himself.” (p. 107). A importância de Moore, porém, não se resume unicamente a esse fato, isto é, o da violação das condições de sinceridade, mas no geral à questão do vínculo entre linguagem e ação. 172 trecho anterior e princípios da TAF. Não devemos tratar a pergunta formulada pela autor apenas como uma especulação sobre o significado lexical de signos. A questão refere-se às condições de realização dos dois atos mencionados − o próprio autor usa o termo atos na seqüência − o que pode implicar enunciações, marcadas por algum tipo de conteúdo proposicional de asserção ou de aposta. Essa primeira afirmativa propicia um discurso sobre os diversos registros que aparecem no texto em análise. Vejamos cada um deles, em particular. a) “Qual a diferença entre fazer uma asserção e estabelecer uma aposta ?” Essa pergunta aponta para a necessidade do reconhecimento de dois atos, cada um com um ponto de realização103 particular. Assim, fazer asserção, independentemente do uso de um verbo específico − ‘asseverar’, ‘asserir’... −, implica um ato do locutor que reporta um certo estado de coisas e que o supõe verdadeiro. Por outro lado, fazer aposta indica o ato de um locutor que se compromete com um alocutário ao desempenho futuro de uma ação − a de pagar ou de receber uma certa quantia, se o padrão contratual da aposta for moeda −, relativa aos efeitos práticos decorrentes da concepção do objeto da aposta (por exemplo vitória/derrota de um time). Comparando-se os dois atos em termos do seu ponto de realização, podemos afirmar que o primeiro realiza-se no ponto assertivo e o segundo no ponto comissivo. b) “... Em ambos os atos o agente se submete a conseqüências prejudiciais se uma certa proposição não for verdadeira.”. Essa observação aplica-se de modo semelhante, mesmo considerando-se a diferença entre os atos descritos: no primeiro caso, o locutor é ‘penalizado’ pela sua insinceridade quando reportar um estado de coisas passível de ser contrariamente verificável pela observação do alocutário; no segundo caso, o locutor será também ‘penalizado’ pela sua insinceridade se se constatar uma discrepância entre o estado mental no momento de fazer a aposta e a sua disposição subseqüente de não resgatar a dívida, caso venha perder (mutatis mutandis, as mesmas condições devem ser impostas ao 103 Os termos técnicos pertencentes à TAF estarão sendo usados na exploração do texto de Peirce. Todos eles foram descritos, de forma sistemática, nas seções ‘4.3.1.1 - Pragmatismo e direção de ajustamento’ e ‘4.3.1.2 173 alocutário, já que apostar é um ato comissivo que também compromete o alocutário). As conseqüências a que Peirce se refere podem ser expressas, no âmbito da TAF, pelo atendimento às condições de sinceridade que regem a interlocução dos atos. c) “...ao apostar espera que o adversário se torne responsável pela verdade da proposição contrária;...”. Essa observação pode representar, em linhas gerais, o que é denominado de condição preparatória104 na TAF. Assim, quando um locutor, ao fazer uma aposta, diz ‘Aposto que o time x vai vencer’ as condições preparatórias asseguram que o fato afirmado seja passível de realização num grau razoável de probabilidade105, da mesma forma que, para o locutor, seria melhor que ele, de fato, se realizasse. Contrariamente, para um alocutário, envolvido nesse ato, as condições preparatórias precisam ser vistas de modo um tanto diverso: o alocutário espera que uma probabilidade de não realização do ato seja factível e que para ele seria melhor que não se realizasse106. Assim, a responsabilidade do alocutário pela “verdade da proposição contrária” mostra, pela ilustração sugerida, que, se proposição ‘P’ equivale a ‘...o time x vai vencer’, a proposição contrária, ‘contra-P’, deve corresponder a ‘...o time x vai perder’, pois é nessa proposição que o alocutário aposta. De fato, para o alocutário a única verdade que lhe é benéfica é justamente aquela que implica a Pragmatismo e características de uma força ilocucional’. 104 Apesar de termos optado por considerar a observação de Peirce como relativa à condição preparatória e não à condição essencial, julgamos que um aposta seja viável porque os desafiantes pressupõem, no caso em análise, que o seu time possa vencer. Tal suposição seria melhor caracterizada como condição essencial da aposta. Essa condição, todavia, tem sido abandonada em favor da condição preparatória e da condição de sinceridade. Por outro lado, o fato de o autor mencionar “... tornar-se responsável pela verdade...” abre a possibilidade de um ajuste em termos das condições de sinceridade, por já estar apontando também para suas conseqüências e não só para suas pré-condições. 105 O teor probabilístico das condições preparatórias de uma aposta ainda requer uma acuidade maior: o desafio de uma aposta deve ser encarado pelo locutor, responsável imediato pela locução, somente quando as suas chances de sucesso superam, digamos, os 50% ? E como fica o alocutário ? Aceita o desafio com probabilidades mínimas ? Na prática, a discrepância numérica da chance de sucesso costuma ser administrada pelo pagamento de quantias compensatórias: quanto menor a chance de cotação, maior o valor e vice-versa. 106 Comumente, as condições preparatórias são fixadas, com uma ênfase maior, para o locutor que é o responsável imediato pela locução, sobre a qual pesa, de modo mais direto, essas condições. Aqui mostramos como poderiam funcionar da parte do alocutário, para justificar a observação de Peirce. 174 realização do conteúdo de ‘contra-P’ e não do conteúdo de ‘P’, que interessa como verdade ao locutor. d) “Assim no vernáculo....exemplo.” As afirmações contidas nesse período precisam ser ajustadas, em relação ao que foi comentado nos itens anteriores: os dois exemplos citados “Apostarei” e “Você aposta” são ambos atos que se realizam no ponto assertivo (embora apenas o segundo seja classificado pelo autor como uma asserção). Não se trata, portanto, nas duas enunciações, do uso do verbo apostar para fazer uma aposta − construir o ato comissivo da aposta − mas tão somente do seu uso para descrever um estado mental (de coisas) que lembra o conceito de aposta, por isso tratar-se de um ato assertivo. Ao comentar os três primeiros itens acima, mostramos que o texto de Peirce aponta algumas preocupações importantes para a compreensão de um ato de fala. Isolamos, em particular, o ponto de realização de um ato, suas condições preparatórias e suas condições de sinceridade. Cada um desses parâmetros contém na TAF um perfil conceitual que o faz componente de uma totalidade que é a compreensão conceitual de um ato. No texto de Peirce, se não encontramos uma especificidade teórica desses parâmetros, deparamos, ao menos, com o registro intuitivo da sua presença como condição para práticas de linguagem. O valor que atribuímos à aproximação entre as duas abordagens não consiste, por conseguinte, na expectativa de um mapeamento conceitual de categorias; mas consiste em arregimentar, em Peirce, as condições básicas que o autor coloca como condição para se construírem ações com a linguagem. Nesse particular, seria importante arrolar dois outros momentos (entre muitos outros), registrados pelo autor e ilustrativos dessa interação entre entre linguagem e ação. No primeiro momento, ao discutir o alcance do pragmatismo como um instrumento para dirimir certas controvérsias filosóficas, o autor completa (PEIRCE, 1980): “O pragmatismo sustenta que ambos os adversários lavram no equívoco. Atribuem sentidos diferentes às palavras, ou usam-nas sem qualquer sentido definido. O que se deseja, então, é um método capaz de determinar o verdadeiro sentido de qualquer conceito, doutrina, proposição, palavra, ou outro tipo de signo. O objeto de um signo é uma coisa; o sentido outra. O objeto é a coisa ou ocasião, mesmo indefinida, à qual o signo se há de aplicar; o sentido é a idéia que ele liga ao objeto, tanto por via de mera suposição, ou ordem, ou asserção.”( , p. 6) 175 O único método capaz de superar dúvidas, quando estas se fundam num uso inadequado de signos, repousa nas virtudes do pragmatismo, isto é, na possibilidade de converter a concepção de um objeto na totalidade dos efeitos que ele produz. Para justificar essa correlação, Peirce sugere o desdobramento do signo em objeto − “...a coisa ou ocasião (...) à qual o signo se há de aplicar...” − e em sentido − “...a idéia que ele liga ao objeto...” Essa diferença entre o objeto de aplicação de um signo e seu sentido aproxima-se do aspecto geral da estrutura de um ato de fala. Ajustando parte das informações de uma e outra abordagem, poderíamos compará-las, a partir do seguinte esquema: SIGNO = objeto (conteúdo do signo) sentido (modalização desse objeto) ATO = proposição (conteúdo do ato) força ilocucional (modalização dessa proposição) Assumindo a equivalência de um signo como um ato de fala, o exemplo analisado da aposta pode ser usado para ilustrar essa aproximação: podemos admitir que o conteúdo ‘... o time x vai vencer’, tanto representa o objeto de um signo como o de uma proposição. Quanto ao sentido do signo, podemos dizer que ele assume o teor de uma aposta por ser a idéia que adicionamos ao objeto em questão; esse mesmo sentido, em relação ao ato de fala, nada mais é do que a força ilocucional, adicionada à proposição, devido ao uso de um performativo − ‘Aposto...’ −. Muitos outros sentidos poderiam ser atribuídos ao objeto em análise, caso, por exemplo, usássemos outros performativos, avaliadas circunstâncias específicas para o seu funcionamento em relação às condições de conteúdo proposicional, às condições preparatórias, dentre outras107. 107 A correlação desse conteúdo proposicional com outras forças ilocucionais requer uma análise mais específica em torno das condições preparatórias e das condições de sinceridade. Por exemplo, a enunciação ‘Prometo que o time x vai vencer’ representa, certamente, uma promessa defeituosa (ou não chega a ser uma promessa), porque os atos que supõem uma ação bem sucedida não estão, na sua totalidade, ao alcance do locutor (violação das condições preparatórias), o que demonstraria sua disposição de prometer sem poder cumprir o que foi enunciado (violação das condições de sinceridade), a menos que tudo estivesse ‘combinado’ com o adversário e com o juiz. Para conteúdos proposicionais muito restritivos apenas a força ilocucional expressiva, que mostra uma atitude proposicional do locutor frente a um estado de coisas, apresenta uma flexibilidade maior: ‘Acho que o time x vai vencer’, ‘Espero que o time x vença’ etc. 176 No segundo momento, o texto de Peirce revela uma outra interface com a TAF no que se refere à suposição de que um ato de fala seja a menor unidade significativa do processo enunciativo e que, apesar de menor, concentre um número complexo de pressuposições, de ações e de conseqüências incorporadas numa prática discursiva. O ato de fala é assim uma unidade complexa, onde se concentram todas as condições lingüísticas (as condições de conteúdo proposicional) e todos os detalhes contratuais da interlocução (convencionais ou intencionais), que regulam as práticas discursivas. Refletindo sobre uma parte desse processo, PEIRCE (1980) comenta: “Qual é a prova de que os efeitos práticos de um conceito constituem a soma total do conceito ? O argumento sobre que se apoiava a máxima que ‘crença’ consistia em estar deliberadamente preparado para adotar a fórmula crida como guia da ação. Se esta for a natureza da crença, a proposição em que se crê é uma máxima de conduta. Creio que é bastante evidente.” (p. 11). Na pergunta inicial do trecho acima, poderíamos supor uma equivalência do conceito (de um signo) com a dimensão conceitual de um ato de fala. Assim, em se tratando de uma ordem, a sua dimensão conceitual contém os efeitos práticos decorrentes de uma tarefa, executada sob ordem. Se a mesma tarefa for executada sob um modo de realização que não o da ordem, as implicações dos efeitos decorrentes dessa execução determinam um outro quadro conceitual. A propósito, a comparação entre uma ordem e uma súplica pode ilustrar a questão: elas convergem quanto ao ponto de realização − ambas realizam-se no ponto diretivo −, mas divergem quanto ao seu modo de realização, pois a ordem pressupõe uma relação hierárquica superior do locutor frente ao alocutário, enquanto uma súplica inverte essa relação e ainda requer uma condição adicional – a humildade do locutor na formulação do ato –, mesmo que se trate do desempenho de uma mesma tarefa. Os efeitos práticos podem indicar uma série de fatores que fazem uma diferente da outra: a morosidade/rapidez na execução, a realização completa/incompleta das tarefas ... Por outro lado, a idéia de um estado mental determinante para aspectos das condições preparatórias, das condições essenciais e das condições de sinceridade na execução de um ato pode ser aproximada à função que Peirce atribui à crença. Assim, se a “fórmula crida” é o “guia da ação” e “se a proposição em que se crê é uma máxima de conduta”, então, o desempenho de uma ação requer esse estado mental que determina atitudes do locutor e do 177 alocutário. Analisemos certos padrões de uma promessa: ao proferi-la, o locutor comprometese com a obrigatoriedade das tarefas nela implicadas (condição de sinceridade) e só pode fazêlo porque ele, locutor, julga factível realizar o conteúdo descrito na proposição (condição preparatória). O locutor só pode cumprir essas duas condições, se ele crê na proposição contida no ato e assumi-la como “máxima de conduta”, na execução do ato de promessa. Numa dimensão interativa, uma promessa requer ainda do seu alocutário uma condição preparatória: ele precisa ‘crer’ que o conteúdo proposicional lhe será benéfico. Os fatos que foram acima reconstruídos com relação à promessa podem ser estendidos a outros pontos de realização de uma força ilocucional, com características próprias. Na configuração precisa dos componentes de uma força, entendidos por Peirce na dimensão de uma crença, por exemplo, situam-se as maiores dificuldades de formulação conceitual de um ato de fala, tal como da avaliação dos seus efeitos. A razão disso é que um ato de fala não se compõe apenas de elementos lingüísticos, mas de elementos outros, muitos situados no território da crença, como um conhecimento tácito e intuitivo dos locutores, nem sempre captáveis, com a precisão teórica desejável, nos modelos formais disponíveis. O empreendimento da TAF em procurar sistematizar esses outros elementos como, por exemplo, desdobrando uma idéia geral de crença em componentes integrantes das condições de sinceridade e das condições preparatórias, faz dela, TAF, um modelo relevante para assegurar algum avanço sistemático, isto é, conceitual, formal, operacional, da concepção de pragmatismo de Peirce. Se o grande desafio que a TAF enfrentou (e enfrenta) é o de construir um modelo que expresse, com algum grau de racionalidade, as condições relativas ao ‘fazer coisas com palavras’, isto é, ao conhecimento que temos da língua e a sua transformação em ações ordinárias, podemos admitir que não existe qualquer descompasso entre a abordagem dos atos e os propósitos reivindicados por Peirce para o pragmatismo, conforme evidencia a observação seguinte (PEIRCE, 1977): “Ora, o traço mais notável da nova teoria [pragmatismo] era seu reconhecimento de uma conexão inseparável entre a cognição racional e o propósito racional: e foi essa consideração que determinou a preferência pelo nome pragmatismo.” (p. 285) Peirce confirma, pois, a idéia de que o pragmatismo é o locus que acolhe as conexões que abrangem desde a cognição racional até o propósito racional. Resta apenas saber, no 178 conjunto da formulação do autor, que categorias devemos atribuir à cognição racional: certamente ela deve incluir parte do processo que se estende da primeiridade à terceiridade; enquanto propósito racional, por sua vez, deve responder pelo pragmatismo. Na seção seguinte, vamos avaliar, através de alguns aspectos da TAF, como seria possível conjeturar sobre um entendimento racional das nossas ações e dos nossos comportamentos. Que elementos podemos, então, extrair dessa teoria, de modo a compreender uma forma de organização possível, quando usamos palavras para agir ? 4.3.1.1 - Pragmatismo e direção de ajustamento Na seqüência, vamos selecionar alguns momentos da TAF para dicutir parte dessa racionalidade que foi construída como tentativa de explicar a relação entre linguagem e ação. Para alguns adeptos da teoria, o fato primordial na compreensão entre linguagem-ação resulta na possibilidade de se poderem especificar formas de orientação que regulam a intervenção de uma sobre a outra. De início, descarta-se uma possibilidade unidirecional, situando ou linguagem ou ação como origem de um processo de causalidade. Logo, é preciso isolar certas circunstâncias em que a linguagem molda a existência de padrões de ação e outras em que a ação determina formas de construção lingüística. Para avaliar essa relação de causalidade, SEARLE & VANDERVEKEN (1983.) ressaltam a importância do conceito de “direção de ajustamento”, como capaz de justificar quatro padrões distintos de direcionalidade. Segundo os autores: “There are four and only four directions of fit in language: 1.The word-to-world direction of fit. In achieving success of fit the propositional content of the illocution fits an independently existing state of affairs in the world. 2.The world-to-word direction of fit. In achieving success of fit the world is altered to fit the propositional content of the illocution. 179 3.The double direction of fit. In achieving success of fit the world is altered to fit the propositional content by representing the world as being so altered. 4. The null or empty direction of fit. There is no question of achieving success of fit between the propositional content and the world, because no general success of fit is presupposed by the utterance. The five different illocutionary points exhaust the different possible directions of fit between the propositional content and the world.” (p.53-4) Para os autores, a relação entre linguagem e ação pode ser ajustada em apenas quatro direções, cada uma das quais qualificando a orientação que devemos atribuir aos componentes da relação. É claro que as relações determinadas, antes de mais nada, traduzem-se (e saturam-se) por possibilidades lógicas do arranjo causal entre os componentes: ou a linguagem, ou a ação assumem precedência causal − itens 1 e 2 acima − , ou ambas assumem, reciprocamente, um valor causal − item 3 −, ou inexiste uma relação causal entre elas − item 4 −108.Essas quatro possibilidades lógicas acabam incorporando valores ontológicos que se fazem expressar pelos pontos de realização de uma força ilocucional. Vejamos, portanto, cada um dos itens acima, transcritos na forma de uma direção de ajustamento e nela incorporando forças ilocucionais correspondentes: 108 A noção de realidade aqui preconizada pelos autores não parece ser discordante daquela assumida por Peirce. Ao discutir a doutrina do pragmatismo em relação ao idealismo hegeliano, PEIRCE (1977) escreve: “Ora, o motivo de aludir àquela teoria aqui é que deste modo podemos iluminar acentuadamente a posição que o pragmaticista mantém e que deve manter (...), a saber, a posição de que a terceira categoria − a categoria do pensamento, representação, relação triádica, mediação, terceiridade genuína, terceiridade enquanto tal − é um ingrediente essencial da realidade, e todavia por si mesma não constitui a realidade, uma vez que esta categoria (...) não pode ter um ser concreto sem a ação, como um objeto separado sobre o qual operar seu controle, assim como a ação não pode existir sem o ser imediato do sentimento sobre o qual atuar. A verdade é que o pragmaticismo está intimamente ligado ao idealismo absoluto hegeliano do qual, no entanto, se separa por sua vigorosa negação de que a terceira categoria (...) baste para constituir o mundo ou, mesmo, que seja auto-suficiente.” (p.298). 180 4.3.1.1.1 - Direção de ajustamento: PALAVRA-A-MUNDO Na direção de ajustamento PALAVRA-A-MUNDO109, o conteúdo proposicional de uma enunciação ajusta-se a um estado de coisas existente de forma independente da enunciação utilizada para representá-la. Em outras palavras, por essa direção, um estado de coisas préexiste ao ato de enunciá-lo e este funciona apenas como um instrumento para reportar aquele. A realidade é, pois, relativamente autônoma, já que se mostra com uma feição acabada, e apenas usamos palavras para representá-la. Assim, na direção PALAVRA-A-MUNDO é a linguagem que se orienta para ações, já que estas existem como um estado de coisas independente. Inserem-se nesta discussão os atos de fala produzidos com a força ilocucional assertiva, fazendo com que uma asserção seja dependente de um estado de coisas, que ela em geral representa. Apliquemos parte das observações acima no seguinte exemplo:110 (01) “Eu já fui imbatível e perdi” 111 Embora o ato não registre um verbo performativo, podemos admitir que se trata de um ato assertivo, por retratar um estado de coisas − o fato de o locutor ter sido considerado imbatível e ao mesmo tempo ter perdido (uma eleição para presidente) − que independe da sua enunciação. Em outros termos, o valor que era atribuído ao locutor e o fato de ter sido derrotado transcorreram num período anterior ao proferimento do ato, logo uma direção de ajustamento PALAVRA-A-MUNDO, já que são palavras que se ajustam a um estado de coisas do mundo. No quadro da análise do pragmatismo, podemos admitir que a concepção do objeto é a asserção feita pelo locutor acerca de uma situação por ele vivenciada, enquanto efeitos práticos dele correntes, além da indicação da revista, podem ser aferidos: (i) como mera 109 A relação proposta pelos autores para os termos PALAVRA e MUNDO, ao menos na versão que demos para o português, pode ser entendida, sem prejuízo conceitual, de duas formas: (a) ou são as PALAVRAS, emergência representativa, que se orientam na direção do MUNDO, pré-existência ontológica, ou é o MUNDO que provoca uma estruturação de PALAVRAS; (b) ou é o MUNDO, emergência existencial, que se orienta na direção de PALAVRAS, pré-existência representativa, ou são as PALAVRAS que provocam uma estruturação do MUNDO. 110 Como afirmamos, anteriormente, não vamos fazer uma análise exaustiva dos atos que serão exemplificados ao longo dessa exposição. Estamos apenas fazendo um traçado que seja mais representativo das questões em análise, no caso, para mostrar os atos como um instrumento de operacionalização do pragmatismo. 111 Excepcionalmente e para não sobrecarregar o corpo do texto com documentações e descrições datadas, estamos fazendo indicações, quando necessárias, sobre os exemplos em notas de rodapé. Aqui se trata de uma afirmativa de Luís Inácio Lula da Silva sobre as perspectivas eleitorais de FHC (VEJA: 24-12-97, p. 39). 181 constatação do autor da frase que, embora estando na frente em duas eleições, tenha perdido as duas; (ii) como uma autocrítica do autor por ter confiado em pesquisas; (iii) como uma verdade reportada pelo locutor, por se tratar de um fato de conhecimento público; (iv) como uma observação do autor sobre o fato de que eleição não se ganha na véspera; (v) como uma crítica do autor ao favoritismo conferido a algum candidato, que não ele próprio... 4.3.1.1.2 Direção de ajustamento: MUNDO-A-PALAVRA Na direção de ajustamento MUNDO-A-PALAVRA, um estado de coisas é criado ou modificado pela ação do conteúdo proposicional de uma enunciação. Em outros termos, o mundo é alterado de modo a adequar-se ao conteúdo proposicional que é proferido. A enunciação independe do estado de coisas e até mesmo pode ser usada para fomentar uma expectativa sobre sua existência. Uma força ilocucional qualquer que se realize no ponto comissivo ou no ponto diretivo possui uma direção de ajustamento MUNDO-A-PALAVRA, porque, respectivamente, nem uma promessa, nem uma ordem, por exemplo, existem, sem que antes exista uma enunciação que tenha tornado uma e outra possíveis. De modo mais efetivo, podemos dizer que uma ordem e uma promessa são bem sucedidas se o mundo é alterado, de tal modo a se ajustar ao conteúdo proposicional que os atos respectivos anunciam. Vejamos, na seqüência, um primeiro exemplo que servirá para ilustrar os fatos acima, relativos a uma promessa: (02) “Num prazo de 120 dias, não haverá mais buracos.” 112 O proferimento acima constitui um ato realizado com uma força ilocucional comissiva e no modo de realização de uma promessa.113 Como ato de fala, pela direção de ajustamento que implica, o seu sucesso pressupõe a necessidade de uma alteração no mundo, isto é, que ‘os 112 Proferimento feito por Fernando Henrique Cardoso, por ocasião do lançamento de projeto de recuperação de rodovias federais (VEJA, 24-12-97, p. 38). 113 A condição de sinceridade de uma promessa implica que o locutor ao proferir o ato se responsabilize pelas ações conseqüentes de sua realização. Em se tratando, porém, de ações inseridas no rol de atividades públicas, o locutor é apenas o porta-voz dessa responsabilidade assumida. 182 buracos da realidade para a qual ele aponta sejam consertados’. A importância da direção de ajustamento MUNDO-A-PALAVRA, no proferimento de tal ato, é o fato de ele primeiro instituir a realidade discursiva para possibilitar que venha ser um fato a alterar o mundo. Quanto a uma correlação com o pragmatismo, o objeto concebido faz-se representar pelo conteúdo proposicional − ‘tapar os buracos em 120 dias’ −, associado a um sentido que damos a ele, o de promessa. Os efeitos práticos decorrentes desse ato, além da possibilidade de uma crença/descrença nos fatos prometidos, só podem ser aferidos em termos da alteração ou não do estado de coisas, a partir do proferimento do ato. Um outro ato a ser comentado, refere-se à aplicação das propriedades da direção de ajustamento MUNDO-A-PALAVRA a uma força com realização no ponto diretivo, conforme exemplo abaixo: (03) “Ninguém desliga essa moça da tomada ?”114 A força diretiva em (03) contém o modo de realização de uma pergunta, que prevê uma ação futura a ser desempenhada pelo alocutário. A existência de tal atitude, isto é, a disponibilidade de se desligar a moça, só passou a existir depois que o ato foi proferido; em outras palavras, o proferimento de (03) cria condições para que um estado de coisas seja alterado no mundo possível da esfera dos interlocutores. O ato ainda institui uma realidade discursiva para que, na seqüência, a alteração de uma estado de coisas seja factível. A inserção desses fatos numa dimensão do pragmatismo acontece de modo semelhante ao comentário referente à promessa, fazendo-se os devidos ajustes. 4.3.1.1.3 Direção de ajustamento: DUPLA DIREÇÃO Na DUPLA DIREÇÃO de ajustamento, um estado de coisas de um mundo possível é alterado para se ajustar ao conteúdo proposicional de um proferimento que o anunciou − MUNDO-A-PALAVRA −, da mesma forma que o conteúdo proposicional desse proferimento representa o mundo como já estando assim alterado na perspectiva do seu locutor − PALAVRA114 O exemplo reporta um comentário de Antônio Skarmeta, escritor chileno, depois de assistir a um show de Elba Ramalho (VEJA, 24-12-97, p. 53). 183 A-MUNDO −. Assim, anula-se a precedência de linguagem sobre ação e vice-versa, antes considerada como fundamento para direções de ajustamento precedentes. Uma força ilocucional que se realiza no ponto declarativo representa instâncias de aplicação da DUPLA DIREÇÃO. No geral, as marcas mais visíveis de seu funcionamento fazem-se presentes em situações de linguagem sob as quais pesam convenções institucionalizadas de usos da língua. Tomadas de depoimentos, de juramentos, fórmulas rituais para abertura de sessões de trabalho, proferimentos de consagração de cerimônias, no geral, materializam a existência de um ato de fala com DUPLA DIREÇÃO de ajustamento. Consideremos o ato de fala abaixo, onde o locutor define , sem utilizar a forma performativa, um ecocidadão: (04) “Ecocidadão é o cidadão internetizado, celularizado e globalizado” 115 Toda definição, como um ato declarativo, destina-se a legislar ou sobre o universo da linguagem, ou em particular sobre um universo de coisas. A partir da definição de um termo, uma realidade conceitual torna-se a ele associada e pode ser considerada, do ponto de vista do locutor, como se já existisse. Assim, ecocidadão, na seqüência do proferimento do ato, assume para os alocutários, como definição, o valor proposicional expresso. Os efeitos produzidos representam a possibilidade de uma regulamentação do termo em análise, por se tratar de uma autoridade pública, com algum poder de intervenção e de normatização de conceitos afeitos à sua área de atuação. Um outro exemplo que reproduz, de modo mais cerimonial, a importância do ato declarativo pode ser ilustrado da seguinte forma: (05) “Havendo quorum regimental, declaro aberta a sessão. Passo a palavra ao senador...”116 Os atos acima, quando anunciados por uma autoridade, investida de direitos para deles fazer uso, tanto altera um estado de coisas − até antes do seu proferimento não havia sessão aberta 115 116 Ato proferido pelo ministro do meio ambiente, Gustavo Krause (VEJA: 24-12-97, p. 46). Ato proferido pelo presidente do Congresso Nacional, Antônio Carlos Magalhães, em sessão realizada no dia 08-01-98 (TV-Senado, 1998). 184 −, como também o faz pelo fato de o universo já poder ser assim alterado na perspectiva do locutor − que supõe a existência do fato sessão aberta para dar início aos trabalhos. Raciocínio semelhante pode ser desenvolvido para o ato seguinte, quando a possibilidade de outros discursarem depende do ato geral (sessão aberta) e de atos singulares que continuarão instituindo o lugar da fala do outro. Os objetos conceituais que os dois atos criam − sessão aberta e cessão da palavra −, permitem derivar todo um conjunto de efeitos decorrentes de proferimentos individuais, de apartes, de discussões que só se tornaram possíveis em razão de uma realidade objetivamente criada pelos atos inaugurais. 4.3.1.1.4 Direção de ajustamento: DIREÇÃO NULA Na DIREÇÃO NULA de ajustamento não se coloca em questão qualquer dúvida sobre o sucesso ou o fracasso entre o conteúdo proposicional e o estado de coisas representado: a verdade deste é pressuposta pelos interlocutores integrantes do ato. Forças ilocucionais que se realizam no ponto expressivo não se submetem ao fato de o conteúdo proposicional dever adequar-se à realidade, nem ao fato de que a realidade deva ser modificada para ajustar-se a ele, conteúdo proposicional, mas expressam, geralmente, atitudes proposicionais do locutor diante de um estado de coisas. Atos representativos para desculpas, agradecimentos, congratulações, bem como atitudes proposicionais, para qualquer forma de conteúdo, materializam a DIREÇÃO NULA de ajustamento. Consideremos os fatos expostos na análise do exemplo abaixo: (06) “É mais fácil o Corcovado voar do que o câmbio ser mudado.” 117 A atitude proposicional, contida no ato acima, − “É mais fácil (o Corcovado voar)...” −, descarta qualquer possibilidade de avaliação da verdade do fato que ele reporta, isto é, a mudança do câmbio. É lógico que o inusitado da atitude proposicional − comparando a mudança de câmbio com a possibilidade de o Corcovado voar − recusa a mudança de câmbio, mas isso não está em julgamento para os alocutários, por se tratar de uma impressão do 117 O ato acima foi anunciado por Francisco Dornelles, ministro da Indústria e Comércio, a propósito de o governo mudar o câmbio em razão da crise asiática (VEJA: 24-12-97, p. 36). 185 locutor sobre o fato em pauta. No exemplo seguinte, podemos notar uma situação um tanto diferente: (07) “E a rainha que receba o meu beijo.” 118 O ato de agradecer explicitado em (07) representa a DIREÇÃO NULA de ajustamento, porque o conteúdo proposicional nele contido − um beijo como agradecimento − não vale como parâmetro de julgamento para o seu sucesso ou insucesso. Nem ele reporta, nem engendra um estado de coisas passível de avaliação, isto é, qualquer um pode agradecer sem que esteja em julgamento a autenticidade ou não do ato. Ele apenas traduz o estado mental do locutor; daí a realização da força expressiva, de fazer uso de uma forma convencional de agradecimento. É claro que, embora sendo corriqueira, a conveniência do ato pode ser questionada em razão de alguma quebra de protocolo, em se tratando do destinatário em questão, se bem que o locutor o tenha feito de forma indireta “receba...”. Todos os efeitos que podemos admitir para a força expressiva decorrem do caráter de suspensão de qualquer orientação entre linguagem e ação: o ato ressalta o efeito maior de se assegurar a expressividade do locutor; o que vale é a forma como ele encara uma realidade qualquer. 4.3.1.2 Pragmatismo e características de uma força ilocucional 119 As observações que acabamos de desenvolver permitiram mostrar como podemos, no vasto campo do pragmatismo, definir alguns instrumentos capazes de justificar os objetos e os efeitos tal como concebidos por Peirce. A princípio, não podemos supor o pragmatismo como uma instância indiferente ao teor conceitual desenvolvido nas três tópicas, descritas nos capítulos I, II e III . Ao contrário, o pragmatismo absorve os princípios conceituais supostos e pretende que as ações sejam compartilhadas pelo mesmo teor de racionalidade admitido. Resulta desse compromisso, a necessidade de o pragmatismo mostrar, conforme sugere 118 Ato proferido por Pelé, agradecendo a rainha Elizabeth II pelo título de cavaleiro do império britânico recebido (VEJA: 24-12-97, p. 44). 119 O conceito central da TAF pode ser representado pela força ilocucional, simbolizada por F(P), onde F é uma força ilocucional e P um conjunto de proposições sobre as quais a força atua. Além do mais, uma força contém seis componentes básicos, a saber: ponto de realização, modo de realização, condições de conteúdo proposicional, condições preparatórias, condições de sinceridade e grau de intensidade das condições de sinceridade. 186 PEIRCE (1890, p. 5), “a maneira como o conhecimento (saber racional) está relacionado com a ação humana ou conduta (finalidade racional)”. É por essa razão que buscamos, até o momento, justificar a construção dessa “finalidade racional”, através da TAF, porque supomos ser ela um modelo que tem demonstrado preocupação em estruturar um quadro de categorias conceituais, capazes de estreitar a correlação entre a linguagem e a experiência humana, conforme aponta VANDERVEKEN (1990, p. 5) “The conclusions of the book are transcendental. They state universal laws of language use and comprehension that reflect the a priori forms of thought and of experience of human speakers. Desconsiderando, no momento, as dificuldades com que a própria TAF se confronta, podemos apontar, além dos já mencionados, alguns outros aspectos dessa teoria que fazem dela um modelo a ser contemplado na discussão do pragmatismo. O desafio pressuposto, nesse cotejo entre as duas abordagens, decorre da afirmação de Peirce, considerando o território do pragmatismo como o lugar de emergência de condutas, de comportamentos que expressam uma finalidade racional, resultante de todo um processo de construção do conhecimento. Perceber, formular e representar constroem uma racionalidade capaz de moldar todo o nosso processo de condutas e os efeitos dele derivados. Se a nossa preocupação nos capítulos precedentes foi justamente estreitar uma conexão entre os fatos considerados por Peirce e algumas questões formuladas pela lingüística, especificamente no campo da semântica, julgamos que essa aproximação com a TAF, ainda que não seja ela uma abordagem lingüística restrita, torna-se natural, pois nela vamos encontrar componentes discursivos desejáveis para nossa discussão complementar. Vamos selecionar apenas cinco aspectos fundamentais da teoria: 4.3.1.2.1 Pragmatismo e pontos de realização de uma força ilocucional A nossa experiência com a linguagem, numa dimensão interativa, compõe-se de um conjunto muito extenso de formas discursivas que ora reportam fatos, ora comprometem o locutor com o desenvolvimento de tarefas, ora compelem o alocutário à realização ações. Se o conjunto dessas atividades, apesar de sua diversidade, se faz constitutivo do campo do pragmatismo, então, admiti-lo numa dimensão racional significa determinar uma organização 187 objetiva do nosso comportamento discursivo. Este parece ser um dos méritos fundamentais da TAF, ou seja, propor critérios para uma estruturação possível de toda a atividade fundamental de uso da linguagem por um falante, diante de um conjunto de procedimentos, à primeira vista, desordenado e caótico e classificando essa atividade em cinco pontos de realização. Alguns detalhes desses pontos já foram focalizados, quando desenvolvemos as quatro direções de ajustamento, não havendo necessidade de reproduzi-los na seqüência. 120 Numa perspectiva mais geral, todavia, podemos dizer que a estruturação que os pontos de realização de uma força ilocucional permitem organizar fundamenta-se na seleção alternativa de dois enfoques: a saber, o enfoque do estado de coisas e o enfoque dos interlocutores. No primeiro caso, quando a organização enunciativa centraliza-se num estado de coisas, podemos ter duas orientações: uma que pretende ser uma intervenção objetiva, reportando para a linguagem um estado de coisas, representado como supostamente verdadeiro; outra que possibilita marcar a posição do locutor frente ao estado de coisas, no qual pretensões à verdade devem ceder lugar a pretensões à expressividade. O primeiro caso expressa o ponto assertivo e o segundo alude-se ao ponto expressivo. Por outro lado, quando a ênfase recai sobre os interlocutores, podemos também estabelecer duas orientações: uma em que o locutor se responsabiliza pela execução de tarefas futuras que o seu ato postula; outra em que o alocutário é que se responsabiliza pelo cumprimento de ações futuras. No primeiro caso, temos um ato de fala realizando-se no ponto comissivo e no segundo, no ponto diretivo. Finalmente, ressaltamos uma circunstância discursiva em que o ato é utilizado, por um locutor, instituído às vezes de um poder de legitimação, para construir certo estado de coisas, a partir do qual outras ações subseqüentes tornam-se possíveis. Trata-se de um ato de fala com realização no ponto declarativo. 121 Pensamos que essa organização, ainda que possa apresentar dificuldades operacionais pelo teor de desdobramento que devemos conceber para alguns atos, constitui um padrão importante para justificarmos o que se pode, na formulação de Peirce, entender por uma 120 Embora tenhamos utilizado, em alguns momentos, os conceitos básicos da TAF, não pudemos tratá-los de modo particular. Na seqüência, estaremos desenvolvendo, numa forma analítica mais apurada, o seu valor específico na teoria. 121 Análise de exemplos e situações representativos de cada de um desses pontos de realização, já foi mostrada na seção 4.3.1.1. 188 “finalidade racional” associada às ações humanas. Grande parte das interações que produzimos, visando a objetivos associados à realização de um ponto, possui um padrão de aceitação relativamente estável e, onde quer que haja dificuldade, estamos sempre aptos a sugerir ajustes necessários. Uma ordem implica compromissos éticos na sua realização, o que não impede que muitas ordens sejam antes avaliadas nos seus aspectos constitutivos pelas partes integrantes do processo, muitas podem vir a ser até mesmo repelidas. É também nessa possibilidade de ajustamento prático de sua execução, se ela não for consensual, que reside a importância da TAF que, ao propor critérios básicos, faculta também algum tipo de acomodação, acordada pelos interlocutores. Na extensão, portanto, das conseqüências estruturais que o ponto de realização pode representar para nossas ações, é que pensamos ser a TAF um instrumento adequado a justificar o “propósito racional” ou a “finalidade racional” que Peirce circunscreve ao pragmatismo. 4.3.1.2.2 Pragmatismo e modos de realização de uma força ilocucional O quadro acima delineado para o ponto de realização projeta uma visão muito genérica do comportamento lingüístico: o nosso universo de práticas de linguagem distribui-se por cinco pontos, englobando uma pluralidade inominável de formas que usamos para intervir em diversas circunstâncias. Se o ponto de realização responde apenas por esses cinco agrupamentos de atos, o modo de realização de um ponto se responsabilizará por uma abertura que possibilita contemplar e classificar essa pluralidade de usos refletidos na fala. De fato, quando nos aventamos a desempenhar alguma tarefa, não o fazemos de uma forma única, ou seja, podemos nos comprometer com o alocutário de modo efetivo, ou podemos apenas acenar-lhe com a expectativa de execução de um ato, ou ainda podemos fundamentar esse compromisso numa perspectiva do próprio locutor. Da mesma forma, podemos mostrar a nossa convicção com a verdade de um estado de coisas de modo mais ou menos seguro; como podemos esperar uma credibilidade maior ou menor da parte do alocutário... Essa variabilidade de nuanças e detalhes que podemos agregar a um conteúdo proposicional qualquer, no momento da execução de um ato num ponto de realização específico, denominamos de modo de realização de uma força ilocucional (naquele ponto). O modo de realização nada mais é, portanto, do que uma especificação, uma especialização, em razão de 189 circunstâncias próprias, da maneira pela qual o ponto de realização de uma força ilocucional deva ser desempenhado, para assegurar o sucesso de um ato de fala. O modo de realização, pela pluralidade de formas com que pode ser executado, decorre de particularidades que se relacionam aos integrantes do processo enunciativo, ao conteúdo proposicional e à utilização de formas lingüísticas próprias. Considerando-se, por exemplo, o primeiro aspecto − integrantes do processo enunciativo −, podemos conceber que a especificação de um modo para o ponto diretivo requer uma avaliação direta do grau de hierarquia entre locutor e alocutário: a superioridade hierárquica do locutor sobre o alocutário determina o modo-ordem; a superioridade hierárquica do alocutário sobre o locutor possibilita o modo-súplica122; uma relação equiparada entre ambos produz o modo-pedido.123 Em relação ao segundo aspecto − conteúdo proposicional −, a determinação do modo para o ponto comissivo, em muitos casos, pode exigir uma avaliação sobre os fatos descritos pela proposição. A diferença entre um modo-promessa e um modo-desejo implica uma restrição maior para o que se pode prometer; no entanto, não é importante determinar qualquer limite no conteúdo proposicional para o modo-desejo do falante, embora nem todo desejo possa ser convertido no modo-promessa. Uma promessa, para ser bem sucedida, requer que o conteúdo proposicional seja passível de desempenho pelo locutor, requer também que esse mesmo conteúdo seja favorável a quem o ato se destina. Em contraposição, nenhum dos dois fatos é relevante para julgar adequação de um desejo. Quanto à questão da forma lingüística, podemos afirmar que ela se torna importante para o modo, por ser ela o seu instrumento material de representação. Assim, todos os exemplos acima podem ser traduzidos por formas verbais como: ‘ordeno P’, ‘suplico P’, ‘peço P’, ‘prometo P’, ‘desejo P’, que são tradicionamente conhecidas como verbos performativos.124 Além disso, existe ainda uma multiplicidade de outros padrões lingüísticos (advérbios, expressões adverbiais) que 122 O modo-súplica implica também uma condição preparatória adicional, isto é, a forma humilde com que o locutor dirige-se ao alocutário, como complemento dessa inversão hierárquica de papéis. 123 Mencionamos apenas os dois extremos determinados pela relação hierárquica e um caso intermediário. Entretanto, cada um dos intervalos comporta inúmeras outras possibilidades de especificação do modo. Igualmente, os termos que usamos para apontar essa escala de realização dos modos não tem um caráter normativo; outros como ‘comando’, ‘solicitação’, ‘imploração’ poderiam ser usados. 124 Na história dos atos de fala, houve um momento em que os verbos performativos foram considerados essenciais à sua análise. Eles continuam sendo importantes, mas um ato de fala não pode ser estruturado a partir da sua presença, porque existem atos sem a presença do performativo (provavelmente a maioria é assim construída) e quaisquer desses verbos podem apresentar usos não-performativos. 190 contribuem para a demarcação do modo. Avaliemos alguns detalhes sobre o funcionamento do modo de realização, a partir de exemplos: (08) “Se a emenda passar, prometo fazer roleta-russa com um revólver carregado com seis balas.” 125 A enunciação acima ilustra um ato de fala que, em razão da presença do verbo ‘prometer’, na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, credencia-se como representativo de uma força ilocucional que se realiza no ponto comissivo e no modo-promessa, com a restrição imposta pela condicional “Se a emenda passar..” . Vejamos, então, de forma sumária, condições adicionais que podem fazer de (08) um ato de promessa bem sucedido ou não:126 a) condição de conteúdo proposicional: uma promessa requer, como condição de conteúdo proposicional, que o fato relatado expresse tarefas a serem desenvolvidas num tempo futuro em relação ao da enunciação. De fato, ‘fazer roleta-russa...’ descreve uma ação futura a ser desempenhada pelo locutor, o que satisfaz a promessa na condição em análise; b) condição preparatória: toda promessa exige, como condição preparatória, o atendimento a dois preceitos: (i) que a ação a ser desempenhada esteja ao alcance do locutor e não faça parte do curso normal das atividades que desempenha; (ii) que os fatos conseqüentes da sua execução sejam favoráveis aos destinatários em questão. No caso em análise, podemos assumir que (i) aparece como plenamente atendido, porque “fazer roleta-russa...” é passível de execução por um locutor e não se inclui entre os seus hábitos comuns; igualmente, (ii) podemos supor também alcançado, por se tratar, digamos, de uma autocrítica do locutor, de tal forma que as tarefas prescritas sejam mesmo favoráveis a algum alocutário; 125 O ato acima foi proferido por Paulo Maluf, a respeito da perspectiva de aprovação da emenda eleitoral sobre reeleição, em janeiro de 1997. (VEJA: 24-12-97, p. 38). 126 O fato histórico de a promessa não haver se efetivado não é relevante para uma análise das suas condições de possibilidade. Afinal, o papel da teoria não é o de prover atestados documentais da realização histórica de um ato qualquer, mas apenas fixar condições para que ele seja bem sucedido (ou apontar defeitos que levariam ao seu insucesso). 191 c) condição de sinceridade: todo ato de fala associa-se a uma condição de sinceridade, representada pela correspondência entre estado mental, manifestado pelo locutor, e o estado de coisas expresso na proposição. Em se tratando de uma promessa, o estado mental do locutor deve expressar o fato de que ele realmente pretende cumprir aquilo que prometeu. O exemplo em análise, mostra que o locutor é insincero, não necessariamente por se arriscar a por fim a sua vida, mas em razão das contradições do conteúdo proposicional apresentado. Assim, a idéia de praticar ‘roleta-russa’, que pressupõe a possibilidade de algo acontecer ou não em razão do acaso, é contraditória com a de ‘revólver carregado com seis balas’, considerando-se um padrão de tambor comum a esse tipo de arma, porque elimina o acaso, isto é, a incerteza de que ação venha a se concretizar. 127 Os fatos que apontamos acima, como integrantes de uma força ilocucional, expressam as tentativas da TAF de demonstrar como o conjunto das nossas ações ordinárias pode ser justificado de uma forma racional. É claro que nem todos os componentes de uma força apresentam ainda o mesmo estatuto formal na teoria: alguns comportam-se de forma mais estável, outros são mais vulneráveis a certas interferências de contexto, ou a artifícios dos locutores. Apesar do descompasso no grau de precisão das categorias, pensamos que elas representam uma contribuição importante para abordar uma racionalidade das atitudes humanas. Nesse caso, mais do nunca, ao avaliar a compatibilidade entre ação, conteúdo proposicional e estado mental, estamos, em alguma extensão, mostrando o que pode representar a seguinte formulação de PEIRCE (1890, p. 5), já citada anteriormente “a maneira como o conhecimento (saber racional) está relacionado com a ação humana ou conduta (finalidade racional)”. Certamente, muito ainda há para ser determinado em termos de uma “finalidade racional”, mesmo porque ainda resta um vasto arsenal de fatores a ser explorado em termos do papel de convenções e de intenções em todo esse processo. 127 Para maiores detalhes sobre as condições de sinceridade, confira a seção 4.3.1.2.4, à frente. 192 4.3.1.2.3 Pragmatismo e condições de conteúdo proposicional O quadro de categorias que apontamos, até o presente momento, na compreensão de um ato de fala, recobriu duas dimensões diferentes: (i) uma dimensão funcional − a estruturação de certo conteúdo, possibilitando o desempenho de uma função destinada a recortar a enunciação/realidade −; (ii) uma dimensão enunciativa − a determinação de padrões diferentes para compromissos entre locutor e alocutário, a partir da seleção de formas lingüísticas apropriadas à expressão do modo. As condições de conteúdo proposicional permitem destacar uma dimensão lingüística, ao imporem à forma proposicional contida num ato restrições de ordem sintática, determinantes para o seu desempenho. Assim, como o ponto ilocucional é determinante para as condições de conteúdo proposicional, uma proposição torna-se imprescindível para o desdobramento das tarefas nele implicadas, se ela atender a certos padrões sintáticos, como a especificação do tempo verbal e do agente da ação. Por exemplo, o ponto comissivo e o ponto diretivo impõem que o conteúdo proposicional tenha uma expressão de futuro128 em relação ao momento da enunciação; para o ponto assertivo, verificamos uma condição inversa: a forma verbal precisa conter uma expressão de passado em contraste com o instante da enunciação.129 Outros detalhes sobre o conteúdo proposicional precisam ser avaliados em função da escolha de um modo de realização: um testemunho (ponto assertivo), por exemplo, requer que o conteúdo tenha uma expressão de passado na dimensão do locutor, enquanto uma repreensão (ponto assertivo) exige que o conteúdo tenha uma expressão de passado na dimensão do alocutário; um pedido (ponto diretivo) implica uma ação futura do alocutário, enquanto um desejo (ponto comissivo) impõe uma ação futura ao locutor. As condições de conteúdo proposicional, como vimos, são um reflexo direto do ponto de realização e, em conseqüência, do modo de realização de um ato. No caso do ponto, as 128 A expressão de futuro em relação à enunciação permite que a forma verbal seja morficamente representada, para o ponto comissivo, por exemplo, no presente do indicativo (Prometo que vou a sua casa), no futuro do presente (Prometo que irei a sua casa) ou no infinitivo (Prometo ir a sua casa). Por outro lado, formas como (Prometo que fui a sua casa), ou (Prometo que iria a sua casa) são inaceitáveis no português corrente. Além do mais, o ajustamento de prometer em uma forma de passado, nos dois últimos casos, nada acrescentaria à dificuldade em questão; teríamos apenas atos realizados no ponto assertivo. 129 A expressão de passado em relação ao momento da enunciação possibilita que o verbo esteja morficamente representado no presente do indicativo (Aviso que está chovendo), no presente do subjuntivo (Nego que esteja chovendo) − em condições especiais − ou no pretérito perfeito/imperfeito (Afirmo que esteve/estava chovendo). 193 condições têm um caráter genérico e somente podem ser especificadas pelo modo, que adiciona detalhes quase sempre relativos a restrições temporais e à origem de sua realização. Vejamos uma avaliação do exemplo seguinte: (09) “Eu lamento que tenha sido aprovada a reeleição. Uma renovação seria muito boa para o Brasil.”130 Podemos avaliar condições de conteúdo proposicional, considerando alguns aspectos internos de sua construção. Em (09), os dois atos consecutivos realizam-se no ponto expressivo, porque ambos mostram atitudes proposicionais do locutor - ‘lamento’ e ‘muito bom’ - frente a um certo estado de coisas − ‘aprovação da reeleição’ −. Entretanto, cada um dos atos realiza-se num modo particular, o que implica também condições específicas de conteúdo: (i) o performativo ‘lamento’ determina o modo de realização, qualificando de reprovação o estado mental do locutor diante de fatos que aconteceram (condição preparatória), bem como a expressão de passado do conteúdo, anterior ao de sua enunciação; (ii) o modo de realização do segundo ato, mesmo sem presença de um performativo, pode ser qualificado de suposição, ou de hipótese , o que se justifica pela forma verbal ‘seria’ que apresenta uma expressão de futuro, relativamente ao passado do conteúdo proposicional do ato anterior. Analisemos um segundo exemplo: (10) “Eu contratei jogadores, sim. E, se for presidente do clube de novo e tiver cargos de confiança, eu contratarei de novo.” 131 O exemplo acima mostra também dois atos sucessivos: um realiza-se no ponto assertivo, porque representa um estado de coisas, presumivelmente verdadeiro para o locutor; outro realiza-se no ponto comissivo, porque retrata um compromisso do locutor com ações a serem desempenhadas no futuro. No primeiro caso, como 130 Ato proferido por Dom Luciano Mendes de Almeida, ex-presidente da CNBB sobre a aprovação da emenda da reeleição. (VEJA: 24-04-97, p. 18). 194 assertivo, o estado de coisas ocorre num momento anterior ao da enunciação, daí o conteúdo proposicional fazer-se representar pela forma ‘contratei’; no segundo ato, como comissivo, as ações acontecem num período posterior ao de sua enunciação; daí o conteúdo proposicional apresentar a forma ‘contratarei’. Em ambos os casos, o modo de realização não se faz representar por nenhuma forma performativa própria. Podemos, entretanto, afirmar sobre o modo as seguintes observações: (i) no caso do ponto assertivo, não se trata do modo primitivo da força, porque a presença da expressão ‘sim’, não só enfatiza a verdade do fato, como projeta o modo numa escala superior de realização; (ii) no caso do ponto comissivo, também sem forma performativa explícita, sabemos que não se trata de uma promessa, mas de uma ameaça, em razão não das condições de conteúdo proposicional − para ambas vale a especificação de futuro − que compõem uma e outra, mas das condições preparatórias, como veremos à frente. O conteúdo central − ‘contratarei (novos jogadores)’ − não é (eticamente) favorável ao(s) alocutário(s), logo não pode representar senão uma forma de ameaça. 132 As condições de conteúdo proposicional não demonstram uma relação direta com questões próprias do pragmatismo, pois existe um distanciamento substantivo entre a especificidade lingüística das primeiras em contraste com hipóteses genéricas do segundo. No entanto, não podemos desconhecer o fato de que a especificação lingüística é uma instância necessária para qualquer empreitada que considere a transformação da linguagem em ação. E mais ainda, se, como afirma PEIRCE (1980, p. 6), “ ... ao construir a doutrina do pragmatismo, são analisadas as propriedades de todos os conceitos indecomponíveis e seus processos de composição possíveis . (...)”, então nada parece mais indicativo do fato de que o processo de transformação de enunciados em ações seja avaliado também em razão de componentes lingüísticos. Se nesse particular continua sendo desejável admitir a racionalidade dos nossos propósitos como um objetivo a ser alcançado pelo pragmatismo, julgamos que todo o esforço realizado pela TAF, em relação a condições de conteúdo proposicional que 131 Pronunciamento de José Gomes da Rocha, deputado do PSD goiano, confirmando o fato de haver contratado jogadores para o Itumbiara Esporte Clube, com verba de gabinete. (VEJA: 24-09-97, p.18). 132 É claro que o enunciado contém outros vestígios que o colocam na esfera do desafio, da ameaça. Por exemplo, a reiteração de aspectos da situação passada, considerados incorretos, no futuro (ser presidente, ter cargo de confiança), além da presença repetida da expressão ‘do novo’. 195 regulam o uso de performativos, por exemplo, represente um avanço considerado nesse campo (VANDERVEKEN, 1990). Assim, se as nossas ações podem assumir uma feição de indecomponibilidade, pois um ato só pode ser concebido nessa totalidade em que ele se faz, o esforço da TAF, no nosso entendimento, tem sido o de mostrar os processos de sua composição. 4.3.1.2.4 Pragmatismo e condições preparatórias A efetivação de uma força ilocucional decorre da realização de um complexo de fatos, reunidos todos no processo enunciativo. Dentre esses fatos, uns contêm presença material nesse processo, outros, porém, representam apenas uma espécie de base de sustentação que possibilita a funcionalidade daqueles. As condições preparatórias de uma força ilocucional implicam, precisamente, o caráter de sustentação, porque não contêm uma emergência material, mas se valem de pressupostos que asseguram legitimidade a forças desempenhadas com adequação. Assim, todo ato de fala requer um conjunto de proposições de base que são pressupostas na sua execução. A natureza conceitual dessas proposições ainda precisa ser demarcada com mais evidência. De todo modo, ela aponta para duas direções: a primeira fundamenta-se em propriedades conceituais dos itens lexicais que figuram numa proposição, pois só assim podemos considerar que algo seja nocivo, favorável, inadequado, benéfico...; a segunda destaca a capacidade de o locutor ou de o alocutário desempenhar as ações prescritas − haveria uma terceira, provavelmente, aglutinando as duas anteriores. Se uma pressuposição compõe a base de execução de um ato, ela se faz necessariamente verdadeira para a sua consecução, embora seja sempre possível assumir pressuposições falsas e produzir, na seqüência, atos que serão, com certeza, defeituosos. Por exemplo, a especificação de uma força ilocucional no modo-lamentação requer a pressuposição de que o locutor desabone o conteúdo proposicional ou dele reclame. Assim, embora vitória e derrota tenham valores lexicais contrários, todo ato de ‘lamentar sobre a vitória/derrota de x’ implica uma única atitude proposicional, isto é, a de desabono de uma e outra categoria, por ser essa a condição preparatória determinante da força ilocucional em questão. Por outro lado, seria paradoxal um falante lamentar um fato e, ao mesmo tempo, assumi-lo como gratificante, pois isso contradiz a condição preparatória. 196 Como no caso anterior, o ponto e, conseqüentemente, o modo de realização continuam sendo determinantes na concepção do conjunto de proposições que constituem as condições preparatórias de uma força ilocucional. No caso presente, o modo parece desempenhar um papel decisivo na especificação das condições preparatórias, quando avaliamos o seu efeito na realização de um ato. Por exemplo, podemos admitir que a condição preparatória geral para o ponto diretivo resida no fato de o alocutário ser capaz de executar a ação e para o ponto assertivo seja o fato de locutor admitir, como verdadeiro, o estado de coisas reportado. Essas condições, todavia, requerem condições especiais que são determinadas pelos diversos modos de sua realização tais como: uma ordem (ponto diretivo) adiciona a condição especial de que a tarefa a ser desempenhada seja favorável ao alocutário, enquanto uma súplica (ponto diretivo) implica acrescentar à condição geral o fato de que a tarefa a ser desempenhada não seja nociva ao alocutário (em alguma extensão poderia ser até desfavorável, mas não nociva), ou que locutor se dirija ao alocutário de forma humilde; um testemunho (ponto assertivo) adiciona à condição geral o fato de o locutor ter presenciado o acontecimento sobre o qual depõe, enquanto um relato (ponto assertivo) não adiciona qualquer condição especial. Vejamos a análise do seguinte caso: (11) “Ele é o equivalente robótico de Neil Armstrong.”133 Em (11) temos exemplo de uma força ilocucional representativa do ponto declarativo e, no caso específico, no modo-definição, embora aqui também não tenhamos a presença de um verbo performativo explícito. A condição preparatória geral do ponto declarativo pressupõe que o locutor esteja investido de autoridade, lato sensu, para a execução do ato, de maneira a permitir que, a partir do seu proferimento, o mundo seja alterado e que o falante o assuma com as alterações decorrentes. A autoridade em questão é o pesquisador da Nasa, Henry Moore, que comparou, pela definição dada, o robô Sojourner com o astronauta Neil Armstrong. O ato presente permite compreender que, a partir do seu proferimento, o robô Sojourner assumiu a função que lhe é atribuída pela definição. Pelo atendimento das 133 Fala do pesquisador da Nasa, Henry Moore, comparando o robô Sojourner, em missão em Marte, ao primeiro homem a pisar na lua. (VEJA, 16-06-97, p. 13). 197 condições em análise, temos um ato bem sucedido. Condições complementares como garantia para o sucesso de um ato podem ser avaliadas no exemplo seguinte: (12) “O crime, muitas vezes, é inevitável.” 134 A força ilocucional de (12) realiza-se igualmente no ponto declarativo e no modo-definição e, por isso mesmo, implica a mesma condição preparatória do caso anterior, isto é, que o locutor esteja investido de autoridade para o seu desempenho apropriado. Como a autoridade investida refere-se a um ministro da justiça indicado, de quem se espera o mínimo no combate ao crime, o seu ato acaba por instituir uma realidade onde o crime deve ser considerado no curso normal dos acontecimentos, já que é ‘inevitável’ pela definição atribuída. As dificuldades, então, que o ato mostra decorrem de uma incompatibilidade entre o atendimento à condição preparatória e uma discrepância no conteúdo proposicional. Supõe-se que uma autoridade valha-se dessa condição, no uso da força ilocucional declarativa, até mesmo por ser a mais ritualística das forças, para produzir uma “totalidade dos seus efeitos práticos” que espelhe, adequadamente, o poder e a função que lhe são conferidos. Quanta insensatez não haveria, portanto, em extrair os efeitos práticos de uma realidade instaurada por tal definição ? À medida que avançamos na avaliação dos componentes de uma força ilocucional, vista aqui numa visão ainda panorâmica, avançamos também na compreensão de certas aspectos incluídos por Peirce na doutrina do pragmatismo. Não se trata de um território absolutamente marcado por um espontaneismo solipsista, por eventualidades circunstanciais, enfim, por um acaso desprovido de qualquer padrão racional. O esforço do autor, ainda que sem uma correspondência categorial direta, foi precisamente o de mostrar que havia dificuldades na elaboração formal de hipóteses que devessem dotar de critérios racionais a compreensão da atividade prática. Assim, é o próprio autor que afirma (PEIRCE, 1980, p. 58) “O pragmatismo cumpre duas funções.... Em primeiro lugar, desembaraçar-nos ativamente de todas as idéias pouco claras. Em segundo lugar, deve apoiar, e tornar distintas, idéias em si claras, mas de apreensão mais ou menos difícil;...” . Havia clareza em relação às dificuldades presentes no vasto terreno do pragmatismo: “idéias pouco claras” e “apreensão 134 Fala do ministro Íris Resende, um dia antes de assumir o cargo, sobre operação policial que resultou em morte de três pessoas num conjunto habitacional em São Paulo. (VEJA: 28-05-97, p. 14). 198 mais ou menos difícil” servem para ilustrar parte das dificuldades que continuam prevalecendo até para a TAF, como já ficou registrado para alguns dos parâmetros acima e como veremos ainda mais à frente. 4.3.1.2.5 Pragmatismo e condições de sinceridade O último parâmetro básico que discutiremos, como componente de uma força ilocucional, refere-se às condições de sinceridade,135 com certeza, um dos aspectos mais controvertidos da teoria em razão das bases em que está fundamentado. Suas dificuldades se fazem representar, na maioria dos casos, pela impossibilidade estrutural de se isolarem, nos enunciados que representam os atos, vestígios de sua presença. Assim, elas raramente podem ser identificadas pela presença de um marcador lingüístico,136 o que, no entanto, não reduz a sua importância na composição de uma força ilocucional. As condições de sinceridade podem ser descritas como atitudes proposicionais que expressam estados mentais, no momento de execução de um ato. Cada estado mental caracteriza-se por modalidades que incorporam intenções de que o alocutário realize algo ou desejos do próprio locutor em fazêlo. Assim, por exemplo, o locutor que desempenha uma força ilocucional, no ponto declarativo e no modo-autorização, manifesta a intenção (sincera) de investir o alocutário de poderes apropriados ao desempenho de certas tarefas. Da mesma forma, o ato de depor, realizado no ponto de realização assertivo e modo-depoimento, requer da parte daquele que o executa o registro de um estado mental em que o depoente assevera conhecimento dos fatos em questão. Como já vimos para outros componentes, o ponto de realização e, por conseguinte, o modo são determinantes para o estado mental que representa as condições de sinceridade. Logo, o estado mental necessário à consecução de uma força, no ponto assertivo, requer que o locutor acredite naquilo que está a proferir; do contrário ele estaria sendo insincero ao afirmar 135 Existe ainda um sexto componente que integra uma força ilocucional − graus de sinceridade − que não iremos, por economia, discutir de forma destacada; mas, quando necessário, faremos algum comentário nessa seção, já que ele se integra diretamente às condições de sinceridade. 136 Não são comuns, embora possam existir, assumindo sobretudo o valor de ênfase, marcas lingüísticas relativas às condições de sinceridade, como, por exemplo: Prometo sinceramente ir visitá-lo. Peço honestamente que faça isso para mim. 199 um conteúdo proposicional e acrescentar, na seqüência, sua descrença nesse mesmo conteúdo. Essa condição geral precisa, entretanto, ser acrescida de condições especiais, quando da realização de modos particulares do ponto assertivo. Modos como testemunhar, confessar, supor e sustentar, por exemplo, requerem, todos, o acréscimo de condições particulares que reflitam outros estados mentais, além do da crença na verdade dos fatos. Para cada um desses modos, podemos determinar condições adicionais: (i) testemunhar implica o estado mental de crença em algum fato que foi presenciado pelo depoente; (ii) confessar, uma crença na verdade de algum fato pelo qual se responsabiliza; (iii) supor, uma crença atenuada na verdade dos fatos e (iv) sustentar, uma crença argumentada na verdade dos fatos. Se a diferença entre os estados mentais pode aqui ser assegurada pela realização de modos distintos e pela presença de performativos próprios, não temos nenhuma garantia do que seja a especificação de novos estados mentais para alguns padrões performativos concorrentes. Um contraste entre testemunhar/depor, supor/admitir, sustentar/assegurar pode não alcançar uma expressão clara nas condições especiais de sinceridade.137 Vejamos a análise dos exemplos seguintes: (13) “Acho que o país continua uma droga.”138 (14) “Foi um pequeno lapso.”139 A força ilocucional de (13) realiza-se no ponto expressivo por representar um estado de coisas sobre o qual o falante manifesta uma atitude proposicional, −'acho'−. Já (14) reporta uma força com realização no ponto assertivo, porque reporta um estado de coisas que o locutor representa como verdadeiro. No primeiro caso, o locutor manifesta sinceridade em relação ao estado mental de suposição − a atitude proposicional materializada por 'acho' − sobre o conteúdo proposicional manifestado, mesmo tratando-se de um ato expressivo. A justificativa O sexto componente − representando graus de sinceridade para uma força ilocucional − pode conter uma interferência direta em questões dessa natureza. Assim, um acúmulo de modos de realização muito próximos não resultaria em condições de sinceridade distintas, senão em graus distintos dessas condições. Por exemplo, para realizações do ponto assertivo, quando realizado através de formas performativas como 'afirmar', 'assevera', 'assegurar', 'confirmar'..., seria mais apropriado determinar graus diferenciados da crença do locutor no conteúdo proposicional. 137 138 Ato enunciado por Maria Tereza Goulart, ex-primeira dama. (VEJA, 10-12-97, p. 14). Justificativa dada pelo porta-voz da Presidência da República, sobre o fato de Jacques Chirac, Presidente da França, haver chamado Fernando Henrique Cardoso de presidente do México, alegando que ambos estavam, pouco antes, conversando sobre o México. 139 200 é não haver o registro de nenhuma forma que venha contradizer essa condição, isto é, um segundo estado mental (que não seja o rancor, ou a crítica, até mesmo pela sua situação história do locutor) que revele uma disposição contrária para o conteúdo em pauta. No segundo exemplo, o estado mental manifestado pelo locutor poderia comportar duas perspectivas: (i) uma de confirmação de um estado mental sincero em relação ao conteúdo proposicional (afinal nada impede o locutor de acreditar na verdade dos fatos que ele reporta através desse ato); (ii) outra, contrária à anterior, comporta, em razão do julgamento que os alocutários fazem do seu locutor e das funções que este exerce, a manifestação de um estado mental insincero por não se acreditar na maneira pela qual o locutor descreve um estado de coisas. Nessa última interpretação, o ato de fala poderia ser mais adequadamente analisado como realização de uma força ilocucional no ponto expressivo, por se tratar de uma atitude proposicional do locutor que lembra mascaramento, atenuação. A dificuldade para se determinarem as condições de sinceridade para exemplos como (14) expõe um aspecto emblemático da TAF, agora explicitado em razão do presente parâmetro: afinal devemos ou não considerar parte dos componentes que definem uma força ilocucional numa dimensão interativa ? Se não existe uma clareza sobre esse ponto na teoria, parece-nos importante destacar a impossibilidade de certos componentes serem avaliados face à ausência dessa dimensão interativa. Se um ato, em muitas circunstâncias, constitui uma forma de interpelar o outro, como a teoria pode desconhecer a expectativa do outro nas condições que definem possibilidades de um ato ser bem sucedido ? O processo histórico, muitas vezes cenário para a conversão de linguagem em ação, exige que contemplemos o diverso da experiência de forma a permitir inferências partilháveis. Nada adianta a um porta-voz, como no exemplo (14), crer na verdade de um fato, isto é, ser sincero no seu estado mental de crença, se o público a que se dirige reconhece para o portavoz o direito e a obrigação, impostos ao cargo, de 'encenar' estados mentais de sinceridade. O esquema enunciativo, centrado num locutor único e num alocutário único, que a TAF aciona ainda se mostra restrito e impede que questões como essa sejam avaliadas de modo mais preciso. Assim, condições de sinceridade tornam-se mais difíceis de serem determinadas, quando optamos, conceitualmente, por isolá-las dos outros componentes de uma força, pelas dificuldades operacionais de se abordarem estados mentais no âmbito da teoria. Nenhum dos componentes, como vimos nessa exposição, apresenta autonomia em relação aos demais: eles 201 compõem uma totalidade, cuja fragmentação tem validade apenas como um esforço explicativo. Assim, vejamos um outro conjunto de atos: (15) “O Itamar é um perfeito idiota.” 140 (16) “Muito cedo durante a sua atuação na Presidência, percebi tratar-se de um canalha”. 141 (17) “Ele continua sendo um bandido ignóbil.” 142 Podemos considerar os três atos acima como realização específica de uma força ilocucional no ponto assertivo143 e no modo-injúria. Em cada um dos casos, o modo considerado determina a condição preparatória de que o conteúdo proposicional asseverado tenha uma natureza depreciativa: de fato, 'perfeito idiota', 'canalha' e 'bandido ignóbil' traduzem-se como algo injurioso para os destinatários. Por outro lado, a condição de sinceridade geral estabelece apenas a necessidade de que o estado mental do locutor corresponda ao conteúdo de cada uma das proposições: por exemplo, para o locutor de (16) o seu estado mental reflete a verdade do fato, representado pelo conteúdo 'canalha' e direcionado ao destinatário imediato. Se nenhuma condição de sinceridade especial puder ser acrescentada a um dos exemplos, podemos concluir que, em termos da análise desenvolvida, os locutores atuam de modo semelhante um ao outro, por reproduzirem, em termos da TAF, o mesmo ponto de realização, o mesmo modo, as mesmas condições preparatórias, idênticas condições de conteúdo proposicional e finalmente uma única condição de sinceridade. Entretanto, como existe uma seqüência histórica para o conjunto, podemos admitir que, no caso de réplicas, se o modo de realização é mantido (modo-injúria), torna-se importante alterar parte das condições preparatórias acima descritas, pois os replicantes tendem a intensificar o teor do conteúdo 140 Observação do ex-presidente, Fernando Collor, sobre o seu vice, Itamar Franco. (VEJA, 10-12-97, p. 15). 141 A frase representa a réplica feita por Itamar Franco a Fernando Collor em relação a acusação que este lhe fizera, conforme exemplo (15). (VEJA, 10-12-97, p. 15). 142 A frase representa comentário feito por Ciro Gomes sobre Fernando Collor em relação a críticas que este lhe fizera. (VEJA, 10-12-97, p. 15). 143 Embora o formato de definição de cada um dos exemplos possa sugerir o ponto de realização declarativo, não nos parece tratar-se do ato-definição com valor próprio, senão de uma asserção. Assim, quando uma teoria define um termo, a definição tem o valor de uma lei, de uma regra que vale universalmente para a teoria; além disso, aquele que define precisa estar investido de autoridade (condições preparatórias) no campo conceitual da teoria, para proceder à execução de tal ato. 202 proposicional; no caso presente, tendem a aumentar o grau de sua natureza depreciativa. Em outros termos, se admitimos essa observação como correta, estamos propensos a entender que os replicantes tendem a demonstrar que a imagem que fazem do autor da injúria é sempre pior do que aquela imagem que antes lhes fora atribuída. Assim, 'canalha' e 'bandido ignóbil' parecem representar uma intensificação do conteúdo proposicional de 'perfeito idiota'.144 Os comentários que foram desenvolvidos, considerando sobretudo o teor conceitual das condições de sinceridade, constituem um esforço adicional na tentativa de se caracterizar um quadro conceitual, onde fatos supostamente aleatórios da conduta prática assumem um caráter relativamente sistemático. É claro que o teor de sistematização das condições de sinceridade, como de resto de outros aspectos da TAF, ainda exige uma elaboração mais efetiva. Ainda assim, por pouco que a teoria tenha avançado nesse território, ela deixa um rastro fundamental a ser explorado numa orientação interativa: as condições de sinceridade apontam para a necessidade de uma avaliação de padrões éticos para as práticas discursivas. A idéia de se assegurar um compromisso da fala do locutor com as suas ações, através da sinceridade, constitui um fator importante em termos de uma fundamentação prática para o discurso, mas devemos admitir que sinceridade é um conceito transitivo e, por isso mesmo, não devemos cerrá-lo numa relação do-locutor-para-o-locutor, ela precisa chegar ao outro. O trajeto desse último componente da teoria, apesar das dificuldades notadas, credencia-o a constituir-se num instrumento importante em favor das pretensões do pragmatismo sobre a racionalidade das nossas atividades práticas. 4.3.1.3 Observações complementares Ao desenvolvermos uma explicação resumida da TAF, fazendo-a aproximar-se de alguns princípios gerais propostos por Peirce, para a construção do pragmatismo, selecionamos dois aspectos fundamentais, a saber, direções de ajustamento e componentes de 144 Há uma tréplica nesse episódio que, se não representa uma intensificação da calúnia, pode transferir o seu teor para outros estados de coisa: "Peço-lhes que introduzam nos seus aconhegos as agressões que me fazem." Fala de Fernando Collor rechaçando os comentários de Itamar Franco e de Ciro Gomes (VEJA, 10-12-97, p. 15) 203 uma força ilocucional.145 Na discussão dos dois parâmetros, procuramos enfatizar a sua dimensão conceitual, a partir da análise de alguns casos específicos. A razão desse recorte deveu-se à necessidade de selecionarmos o que, de fato, fosse mais representativo para a correlação que foi desenvolvida e, nesse particular, os parâmetros escolhidos compõem os fundamentos constitutivos da teoria. Algumas observações complementares tornam-se necessárias ao caráter de funcionamento desses componentes. Uma primeira observação, válida como um princípio básico de seu funcionamento, reitera o fato de que os componentes não são autônomos, e por essa razão não devem ser considerados como independentes um do outro. Assim, o modo de realização de uma força só pode ser concebido como uma instância particular de realização no interior de um ponto. Mutatis mutandis, o ponto só pode ser entendido numa dimensão genérica para orientar a relação linguagem/ação, em razão da pluralidade dos modos de realização disponíveis. As condições preparatórias têm, na sua feição geral, o funcionamento determinado pelo ponto, mas o modo é sempre o responsável por adicionar-lhe aspectos particulares. As condições de conteúdo proposicional submetem-se a uma determinação direta do ponto de realização, por ser ele, em última análise, o padrão distributivo entre as formas lingüísticas e suas possibilidades de aplicação. Um dos autores (VANDERVEKEN, 1990, p. 122) a que temos recorrido, assim se manifesta sobre o problema: “Thus, whenever an illocutionary force has a component of one type, it also has all the components of the other types which are determined by that component.” Outra observação a ser considerada alude-se à importância de determinar uma diferenciação no estatuto dos diversos mecanismos que convergem para a realização de uma força ilocucional. Para o autor citado acima, há uma dimensão transcendental a ser considerada na concepção de certos mecanismos, enquanto há outros que integram a imanência particular de realização de um ato. Por exemplo, o fato de definirmos que a condição de conteúdo proposicional de uma promessa seja representada por uma ação futura pertence a uma dimensão transcendental, já que uma promessa só pode ser concebida como um ato futuro em relação ao momento de sua enunciação. Por outro lado, quando 145 Esse recorte proposto na explicação da teoria excluiu da reflexão acima outros aspectos importantes para o seu funcionamento, como a definição de forças primitivas, o conceito de sucesso e satisfação de uma força, a questão da identidade entre forças ilocucionais e toda a discussão dos ajustes formais da sua construção. 204 representamos esse ato futuro, como se faz no português, ou por uma forma verbal de infinitivo, ou por uma de presente, ou por uma de futuro, estamos determinando apenas uma dimensão imanente do ato de prometer nessa língua. O mesmo podemos dizer da especificação do modo de realização de uma força ilocucional: o modo-injúria que analisamos pode, mesmo com escalas diferentes, conter um caráter transcendental, pois é possível supor que o contraste elogiar/caluniar tenha uma extensão universal nas línguas. No entanto, ao menos em princípio, a realização lingüística do modo-injúria poderá ser diversamente representado, considerando-se línguas particulares. A sua expressão em português, por exemplo, se faz por formas gradualmente distintas através de verbos como 'caluniar', 'injuriar', 'denegrir', 'acusar', 'censurar', 'criticar', 'escrachar', 'esculhambar', 'esculachar', cuja correspondência pode não ser mantida de uma língua para outra, de uma cultura para outra. 146 A análise comparativa que procuramos desenvolver entre TAF e pragmatismo ilustra, ainda que de forma parcial, como podemos conceber a primeira como uma forma de especificação do segundo. De fato, o cenário desenhado por Peirce contém apenas diretrizes e propósitos gerais que apontam para a condição de que a racionalidade das palavras seja um instrumento para a nosso comportamento, isto é, "...o teor racional de uma palavra ou outra expressão reside, exclusivamente, em sua concebível influência sobre a conduta da vida..." (PEIRCE, 1980, p. 284). A partir de um cenário traçado com propriedades dessa natureza constrói-se a TAF, cujo grande desafio já vinha problematizado no título do texto inaugural da teoria "How to do things with words" (AUSTIN, 1962). O fato de as duas abordagens se mostrarem ainda distanciadas uma da outra não significa, no nosso entendimento, que os princípios do pragmatismo sejam indiferentes aos padrões conceituais da TAF. Tentamos, na reflexão presente, partilhar desse desafio de confrontar parte dos princípios do pragmatismo com padrões construídos pela TAF, reavaliando conceitos e instrumentos de análise. Assim, o desenvolvimento teórico empreendido pela TAF nas duas últimas décadas representa, no nosso entendimento, uma forma decisiva de conceber, aos propósitos de Peirce sobre o 146 É discutível se todas essas formas verbais contêm um uso performativo, pois não é certo que possamos submeter cada uma delas ao padrão que conhecemos sobre o funcionamento performativo para alguns. Assim, podemos, com certeza, obter 'Acuso-o por ter se comportado indevidamente." (plenamente aceitável também com censurar e criticar), mas pouco natural para os demais. Assim, se exemplos como 'Denigro-o pelo comportamento apresentado.' ou 'Escracho-o por ter feito isso.' não parecem naturais na língua, pois tais verbos teriam apenas um valor proposicional, isto é, o de reportar escalas diversas de calúnia. 205 pragmatismo, um padrão de análise das nossas condutas práticas.147 Outras preocupações contemporâneas sobre a questão da linguagem também podem ser vistas como um complemento ao quadro geral de formulação do pragmatismo, conforme avaliaremos na seqüência. 4.3.2 - Pragmatismo e lugares enunciativos Todas as propostas desenvolvidas no plano da análise do discurso,148 da produção social do sentido colocaram em discussão a questão da estrutura do processo enunciativo ou as condições gerais do seu funcionamento. As novas orientações, conforme mostramos no item 4.3, mostraram a necessidade de descentramento do lugar do EU e do TU. Na análise que desenvolvemos sobre os atos de fala, mantivemo-nos distante dessa discussão pela razão precisa de que, historicamente, a TAF mantém uma postura alheia ao enfrentamento do problema de forma mais direta, embora seja possível encontrar traços que o lembre de forma indireta.149 Essa talvez seja uma das dificuldades que a teoria enfrenta e, com certeza, a adoção de um esquema mais flexível para a relação falante-ouvinte poderia enriquecer as possibilidades de compreensão de alguns aspectos dos atos de fala. Por exemplo, as condições de sucesso e de satisfação de um ato poderiam também ser medidas em razão do consenso e do dissenso entre as vozes componentes de cada um dos lugares enunciativos. O nosso objetivo, todavia, não é avançar em direção a críticas e a soluções para a TAF, senão de tentar mostrar, a partir de uma das alternativas propostas para funcionamento do quadro 147 Um aproximação entre a formulação de Peirce e a TAF é mais do que mera coincidência. Não nos preocupamos em justificar o trabalho de Peirce sobre o pragmatismo na perspectiva de um fundamento para a TAF. O objetivo do nosso trabalho não foi o de reconstruir as raízes dessa teoria. É importante salientar, entretanto, que componentes essenciais à TAF aparecem de forma explícita no texto de PEIRCE (1977), por exemplo: "A asserção consiste no fornecimento de evidência pelo elocutor ao ouvinte de que o elocutor acredita em algo, isto é, acha que uma certa idéia é definitivamente compulsória numa certa ocasião." (p. 90). O fato citado equivale ao que a teoria define por condições de sinceridade para uma asserção. 148 149 Confira PÊCHEUX (1969, p. 18-9), conforme citação na nota 98 anterior. Em linhas gerais, VANDERVEKEN (1990) tem se referido às dificuldades que conduziram, precisamente, ao desdobramento dos lugares enunciativos: "Of course, in our human linguistc games and other forms of life, there are certain features which are pervasive and essencial for the use of language, such as (....) the speaker and hearer of a context of utterance, (...) the relative status of the protagonists of the utterance, what is against and in their interest (...)." (p. 123). 206 enunciativo, como podemos progredir na compreensão de muitos fenômenos situados no plano da relação entre linguagem e ação, isto é, como eles se circunscrevem na problemática do pragmatismo, formulada por Peirce. Em particular, estaremos fazendo uso específico da proposta de CHARAUDEAU (1983), na análise de alguns exemplos. 4.3.2.1 A proposta da semiolingüística O ponto de partida da proposta de Charaudeau resume-se na questão de se redefinir o papel dos interlocutores no processo enunciativo, a saber, o modo pelo qual se relacionam na combinação de um jogo de intenções, e de um cenário marcado por instâncias empíricas e instâncias imaginárias de todo o universo discursivo. O parâmetro central da discussão é o conceito de ato de linguagem150 que incorpora os componentes que serão objeto da sua reflexão. Num primeiro momento, CHARAUDEAU (1982) registra: "L'acte de langage devient alors un acte inter-énonciatif entre 4 sujets (et non 2), lieu de rencontre imaginaire de deux univers de discours que ne sont pas identiques. (...) l'acte de langage est une totalité qui subsume les processus de production e d'interpretation.". (p. 38-9). Os traços essenciais de um ato de linguagem incluem: (i) o fato de ser um ato interenunciativo que envolve a relação entre quatro sujeitos; (ii) o encontro imaginário de dois universos de discurso; (iii) uma totalidade que inclui processos de produção e processos de interpretação e os componentes listados em (i) e (ii). O primeiro traço − (i) o fato de ser um ato inter-enunciativo que envolve a relação entre quatro sujeitos − dissolve as possibilidades hegemônicas dos lugares enunciativos, além de introduzir o teor de assimetria entre os seus diversos integrantes. Em cada um deles competem, ao menos, dois sujeitos que se articulam num jogo de sentidos implícitos e explícitos, de intenções e de convenções, de relações imaginárias e empíricas. Seguindo o 150 Mantivemos aqui a tradução literal do termo l'acte de langage, até mesmo para confrontar com o conceito de ato de fala (speech act), anteriormente analisado. Parâmetros usados para definir um e outro conceito, no interior das duas abordagens, diferem entre si, mas o resultado final pode ser compatibilizado, isto é, podemos melhor especificar as circunstâncias enunciativas de atos de fala, a partir do esquema proposto para análise de atos de linguagem. 207 padrão do autor, podemos representar essa duplicidade dos lugares enunciativos no seguinte esquema: EUc 151 EUe TUd TUi Fig. 2: Relações interlocutivas básicas A relação de assimetria entre os componentes acima, diferentemente de relações simétricas concebidas nos processos comunicacionais, apresenta características próprias e necessárias a uma explicação sobre a natureza do processo enunciativo, na sua dimensão produtiva ou interpretativa. Assim: (a) EUc (sujeito comunicante) / EUe (sujeito enunciador): EUc é o sujeito que produz a fala e que também projeta a existência de um EUe como suporte imaginário de sua fala. EUe, ao representar a imagem de um enunciador criada por EUc, transforma-se num emissor ad hoc, incumbido de dar curso ao processo enunciativo; EUe é um ser de discurso, resultante de projeções intencionais de EUc, e se faz sempre presente no ato de linguagem. O esquema de produção da fala, decorrente dessa bifurcação enunciativa, convive com a possibilidade de uma integração, se os dois sujeitos se identificam; ou com a de um fracionamento, se os dois sujeitos não se identificam. Da possibilidade de identificação ou não entre as duas instâncias decorrem, como veremos adiante, justificativas para fundamentar a existência de atos de linguagem distintos. (b) TUd (sujeito destinatário) / TUi (sujeito interpretante): TUd é um interlocutor que um EU produz como um destinatário ideal de sua fala. Como um ser de 151 Substituímos a designação original do autor pelos seus correspondentes em português. Assim, EUc e EUe substituem suas formas originais, JEc, JEé, na sua formulação. Nos lugares do alocutário (TUd e TUi) existe coincidência entre as fórmulas. 208 discurso, a sua existência só pode ser reconhecida no circuito da fala e, por isso mesmo, se faz integrante de todo ato de linguagem. TUi, por sua vez, é um ser fora do circuito de fala produzida por EU, pois é um sujeito empírico que se responsabiliza pelo processo de interpretação. Enquanto TUd é o resultado das intenções de EU, TUi é indiferente a elas e sua existência depende dele mesmo, TUi, à medida que formula uma interpretação. A assimetria entre destinatário e interpretante comporta também as duas possibilidades: integração, quando ambos se fazem equivalentes, fracionamento, quando se fazem distintos. No processo interpretativo, no entanto, mesmo quando houver uma identidade entre TUi e TUd, este pode não corresponder ao conjunto das intenções de EU, quando o projetou. A aproximação entre essas duas instâncias interpretativas também produz efeitos distintos sobre os atos de linguagem. O segundo traço − (ii) o encontro imaginário de dois universos de discurso − que compõe o quadro enunciativo proposto por Charaudeau − pode ser incluído no esquema anterior, produzindo dois espaços distintos de articulação do discurso: EUe TUd EUc TUi Md 152 = circuito interno Mo = circuito externo Fig. 3: Relações interlocutivas contextuais O circuito interno constitui-se de dois sujeitos que representam apenas seres do discurso por materializarem projeções do sujeito comunicante. Além do mais, esse circuito representa um universo de discurso que pode, ao mesmo tempo, ser um simulacro de um mundo psicossocial, ou um instrumento de acesso a ele. O circuito externo faz-se constituir por dois sujeitos que atuam sobre um universo psicossocial, um como responsável pela processo de 152 Convertemos também os termos originais usados por Charaudeau para indicar o circuito interno e o circuito externo dos atos de linguagem. Assim, Md (mundo do discurso) e Mo (mundo dos objetos) são equivalentes a ILx e ILo, respectivamente, no formulação original do autor. 209 produção do discurso e outro pelo processo de sua interpretação. Os dois universos, na formulação original do autor (CHARAUDEAU, 1982), foram codificados pelo signo IL e aparecem assim correlacionados: “À quoi il faut ajouter que le monde qui est parlé para ces sujets - et que nous désignons par IL - a une double représentation selon qu’il est considéré dans le circuit de parole (ILx), ou dans le circuit externe à celui-ci comme témoin du réel (ILo).” (p. 47) O último aspecto − uma totalidade que inclui processos de produção e processos de interpretação − apenas introduz a categoria ato de linguagem como aglutinador de todos os componentes presentes. A incorporação dessa categoria, no esquema anterior, resultaria numa visão completa de funcionamento do processo enunciativo, a partir da singularidade de cada um dos componentes descritos: ato de linguagem EUe TUd EUc TUi Md = circuito interno Mo = circuito externo Fig. 4: Componentes do ato de linguagem Ressaltando a diferença desse modelo − em razão do teor assimétrico de comportamento dos seus integrantes − com a de outros recorrentes nos modelos comunicacionais, CHARAUDEAU (1982) enfatiza a importância do ato de linguagem, construído a partir dos parâmetros que acabamos de descrever: “a) L’acte de langage ne peut être considéré comme un acte de communication: il n’est pas le fait de la seule intention de l’émetteur et il n’est pas le résultat d’un double processus symétrique entre Émetteur et Récepteur. Tout acte de langage résulte d’un jeu entre l’implicite et l’explicite qui naît dans des circonstances de discours particulières , que se réalise au point de 210 rencontre des processus de production et d’interprétation, qui est ‘mis en scène’ par deux entités dont chacune est dédoublée en sujet de parole et sujet agissant (JEc / JEé et TUd / TUi les 4 sujets de l’acte de langage), ...” (p. 47). 4.3.2.2 Funcionamento do processo enunciativo: análise de casos A formulação acima descrita mostra alguns detalhes de funcionamento do processo enunciativo na forma como foi proposta por Charaudeau. A descrição visou retomar aqueles aspectos essenciais para caracterizar alguns exemplos de atos de linguagem, como mostraremos a seguir. Os traços selecionados são também representativos para a correlação que estamos avaliando com o pragmatismo, pois o próprio PEIRCE (1977) demonstra preocupação com a questão, ao menos quando se refere à necessidade de reconhecimento da asserção: “ Em toda asserção podemos distinguir um elocutor e um ouvinte. Este último, é verdade, necessita ter apenas uma existência problemática, como é o caso durante um naufrágio, quando um relato do acidente é fechado numa garrafa e jogado ao mar. O ‘ouvinte’ problemático pode estar na mesma pessoa do ‘elocutor’, como sucede quando mentalmente registramos um juízo a ser mais tarde lembrado. Se houver um ato qualquer de juízo independente de qualquer registro, e se este tiver qualquer significação lógica (o que é questionável), podemos dizer que, nesse caso, o ouvinte identifica-se com o elocutor.” (p. 90). A reflexão de Peirce, embora restrita à asserção, recobre, igualmente, outras formas de estruturação enunciativa; o autor não discute os detalhes que acabamos de discutir em torno dos componentes do processo enunciativo, mas já destaca, por exemplo, dificuldades relativas ao alocutário. Apesar do seu teor ainda genérico, os problemas suscitados projetam, com certeza, um quadro de orientações na busca de uma justificativa racional para efeitos práticos. Podemos reiterar tais efeitos como provenientes da relação entre linguagem e ação, expressos, então, pelo jogo interlocutivo entre (e)locutor e ouvinte. Retomando, portanto, os elementos conceituais que foram trabalhados neste item, numa abordagem restrita do processo 211 enunciativo, vamos analisar alguns atos de linguagem, mostrando como o projeto de Charaudeau opera em termos da compreensão de fatos a que nos temos referido como efeitos práticos. Para cada exemplo, estaremos remontando o quadro enunciativo proposto, acompanhado de algumas explicações vinculadas ao ato em análise. (18) “Água, sabão e vergonha na cara.” 153 ato de linguagem: denúncia EUe EUc TUd Md = circuito interno: cuidados ‘sanitários’ no combate a surtos de infecção TUi Mo= circuito externo: existência de surtos de infecção (que têm matado recém-nascidos em hospitais) 154 Fig. 5: Ato de linguaguem: denúncia Os fatos expressos em (18), considerando-se sentidos pressupostos a partir da situação que o gerou, constituem um ato de linguagem-denúncia, que apresenta a seguinte caracterização, considerando-se o papel dos seus interlocutores e as suas condições de produção e de interpretação: (i) o sujeito comunicante (JEc) se faz representar aqui ou pelo conjunto das pessoas que se submetem a condições de produção derivadas de um contexto administrativo de hospitais, ou então por um único diretor, administrador, submetido a essas mesmas condições, que assume tal postura; sua vinculação é com um circuito externo, isto é, com as propriedades que qualificam a produção do ato; (ii) EUe é o personagem documental de (18) que representa uma projeção do EUc, determinado pelas condições externas vistas; a 153 Pronunciamento de Rubens Feferbaum, chefe da UTI neonatal do Hospital das Clínicas de São Paulo, sobre medidas para combater os surtos de infecção hospitalar, responsáveis pela morte de recém-nascidos. (VEJA, 1012-97, p. 15). 154 A correlação implicativa (Se P, então Q) entre esses dois circuitos da fala, em função do conteúdo proposicional expresso, pode ser ajustada da seguinte forma: <Se há surtos de infecção matando recém-nascidos (Mo = P), então é necessário cuidados sanitários para combater tais surtos (Md= Q)>. 212 identificação entre os dois integrantes aqui é desejável, porque a instância produtiva pretende levar adiante aquilo que é o objeto da denúncia: morte de recém nascidos por condições higiênicas precárias; (iii) TUd é o destinatário criado por EU, isto é, os próprios colegas submetidos às condições vigentes e que, circunscritos ao circuito interno, devem dele extrair efeitos práticos, como ‘lavar as mãos com água e sabão’ e ‘mudar a cor da cara’; (iv) TUi, por sua vez, ao submeter-se ao circuito externo, não está sujeito aos efeitos práticos mencionados, mas representa aquelas instâncias que extraem da denúncia um outro tipo de efeito prático, ou seja, aquele caracterizado pelos surtos letais; TUi tem uma extensão maior e pode representar a própria sociedade, ou especificações dela como imprensa, sindicatos etc; é ele quem sustenta, com críticas, com explicações, a sobrevida da denúncia. Desse modo, a hipótese de uma identidade entre TUi e TUd deve possibilitar que TUd se converta a TUi (e não o inverso), situação em que TUd se torna um crítico da situação − sem precisar lavar as mãos nem mudar a cor da cara. Essas considerações nos levam ao seguinte esquema: i. EUc constrói o ato-denúncia, através da fórmula ‘se P, então Q’ INTENÇÃO: validar ‘Q’ como argumento de superação da denúncia; ii. EUe enuncia ‘Q’ a TUd INTENÇÃO: convencer TUd sobre o valor positivo de ‘Q’; iii. TUi assume, ou refuta ‘se P, então Q’ INTENÇÃO: compreender a orientação argumentativa do ato-denúncia; O esquema acima requer observações adicionais, a fim de caracterizar algumas relações que representam as condições estruturais de atos de linguagem e aquelas que reportam diretamente ao funcionamento de um ato particular. No primeiro caso em análise, detalharemos os aspectos que se relacionam à estrutura de um ato, isto é, o papel desempenhado pelos interlocutores, bem como os traços contingenciais − as intenções acionadas em cada uma de suas etapas de desenvolvimento. Os dois aspectos justificam a existência do ato-denúncia, em contraste com outros atos específicos. Cada um dos itens do esquema comporta as seguintes explicações: a) O item (i) especifica a forma genérica da construção de um ato, através da correlação entre dois conteúdos proposicionais, integrantes dos circuitos externo e interno, indicados no quadro enunciativo. Em relação ao instante inicial de sua construção, um ato, além de sua estrutura genérica − `se P, então Q` −, contém uma 213 característica que serve para assegurar o valor contingencial que assume nas práticas discursivas. Trata-se da intenção que é acrescentada ao funcionamento do ato e que lhe determina uma orientação argumentativa possível. No ato presente, a orientação supõe a validade de `Q` − ‘cuidados ‘sanitários’ no combate a surtos de infecção’ − como um argumento válido para a superação do ato-denúncia. Entretanto, como denúncias se fazem representar por outros formatos discursivos, já que poderíamos supor que elas viessem apenas reportar um certo estado de coisas indesejável − por exemplo, o uso do conteúdo de `P`, ‘existência de surtos de infecção (que têm matado recém-nascidos em hospitais)’ −, então seria importante assinalar que elas comportam outras intenções, capazes de especificar outras orientações argumentativas. Assim, ao assumir `P` como expressão manifesta de uma denúncia, estamos assumindo-o também como argumento válido para constatar tal denúncia e não para superá-la. b) O item (ii) descreve a estrutura geral, determinante para o desenvolvimento do processo de interlocução de atos de linguagem − EUe enuncia ‘Q’ a TUd. Como dimensão estrutural, sua validade estende-se a todos os atos de um modo geral, já que representa uma dimensão necessária à sua constitutividade, isto é, a instância de um ato onde os interlocutores se colocam, por hipótese, face a face. De modo semelhante, a existência de atos singulares é assegurada pela presença de uma intenção específica, responsável pela orientação argumentativa que qualifica a relação entre os interlocutores. No caso em análise, a intenção orienta-se para o convencimento do alocutário em termos do valor factível de `Q`, como superação da denúncia apresentada. Confrontando-se a estrutura em questão com outro formato de denúncia, conforme descrito em (a) em relação a ‘P’, a intenção também deve ser alterada, pois o seu papel, nesse novo padrão, implica constatar um certo estado de coisas que se apresenta como deplorável − ‘existência de surtos de infecção (que têm matado recém-nascidos em hospitais)’. Em outras palavras, devemos destacar uma intenção de convencer TUd sobre a ameaça que o conteúdo proposicional em pauta representa. c) O item (iii) apresenta um outro padrão estrutural, determinado pela dupla atitude que o sujeito-interpretante pode manifestar diante de qualquer ato de linguagem, isto é, ‘TUi assume, ou refuta ‘se P, então Q’’. Supomos relevante, no plano da estrutura de um ato, sustentar essa dupla prerrogativa para TUi, já que qualquer tipo de ato, pelo 214 menos em princípio, deve admitir interpretações divergentes. Assim, enquanto TUd, como projeção de EUc, deve sustentar certo padrão de interpretação consensual, a TUi reserva-se o direito de padrões interpretativos amplos, já que ele não pertence à esfera de influência direta de EUc, ainda que este pretenda influenciá-lo através de TUd. No fundo, as pretensões que EUc reivindica para um ato indicam que, independentemente de sua natureza − denúncia, mentira, justificativa, apelo... − o referido ato deveria alcançar um percurso consensual de interpretação, incluindo a instância de TUi. Por outro lado, a especificidade de funcionamento de um ato particular, deve-se, como nos outros itens, à natureza da intenção a ser implementada, o que se torna mais complexo de ser determinado, em razão da dupla possibilidade interpretativa assegurada a TUi. No exemplo em análise, sugerimos a intenção representada por compreender, já que através dela TUi estaria apto a assumir, ou a refutar a validade da argumentação, construída para o ato-denúncia. Desse modo, sua interpretação decorreria de uma análise onde a relação ‘se P, então Q’, ou seria considerada procedente, ou seria recusada. Divergências e polêmicas interpretativas devem ser resguardadas nesse plano da estruturação de um ato de linguagem, pois até mesmo para a construção do atomentira, ainda que venhamos a manter a expectativa do seu desvelamento, conflitos interpretativos podem emergir. Na instância de TUi admitimos, portanto, que mentiras sejam desveladas, à proporção que se compreende a falácia da relação causal ‘se P, então Q’, ou que denúncias sejam ratificadas, à proporção que se compreende a procedência de sua formulação. Em resumo, o novo arranjo proposto para explicitar relações interlocutivas em diversos planos de realização de um ato de linguagem, seja na sua dimensão estrutural, seja nos seus aspectos contingenciais, visou a destacar aqueles momentos que consideramos essenciais para sua construção. O primeiro item destaca a dimensão produtiva do ato, incluindo componentes, o papel atribuído a cada um deles e o esforço de construção de um consenso em razão de intenções a serem implementadas; o terceiro item destaca a dimensão interpretativa, seus componentes, a função a eles conferida e a possibilidade de uma ruptura do domínio hegemônico de JEc no processo enunciativo pela introdução do dissenso e da polêmica; por fim, o item intermediário enfatiza a dimensão de ‘cont(r)ato interlocutivo’, essencial para assegurar, no plano discursivo, convenções e intenções dialógicas. A preocupação de se mapearem espaços mais delineados para a intervenção das instâncias 215 locutivas e alocutivas, no processo enunciativo, propiciou-nos a perspectiva do rearranjo para a formulação proposta por Charaudeau. 155 Na análise de outros exemplos, estaremos nos dispensando da tarefa descritiva de relatar a dimensão estrutural de um ato, a não ser em circunstâncias especiais. A nossa preocupação consistirá, de modo mais direto, no registro das alterações processadas no plano das intenções, assegurando uma diferenciação entre atos diversos. Analisemos, então, um exemplo de ato-justificativa: (19) “Partido que não tem candidatura própria é igual a time de futebol que não disputa campeonato. Perde a torcida.” 156 ato de linguagem: justificativa EUe TUd Md = circuito interno: EUc partidos sem candidatos próprios perdem eleitores TUi Mo = circuito externo: O PDT pode fazer alianças para as futuras eleições 157 Fig. 6: Ato de linguagem: justificativa O exemplo (19), representativo do ato de linguagem-justificativa, espelha o mesmo processo que vimos em (18), com ajustes devidos à circunstância de seu uso. Assim, o sujeito comunicante - EUc - representa as condições impostas por um determinado partido em termos 155 Julgamos que uma formulação mais apurada da estrutura do processo enunciativo, com vistas à avaliação de um quadro mais geral de atos de linguagem, está ainda a requerer um recenseamento mais preciso de tipos de atos existentes e dos limites e critérios que devemos sutentar na construção de uma tipologia. 156 Justificativa de Alceu Colares, recusando alianças do PDT com o PT nas próximas eleições. (VEJA, 17-1297, p. 15). 157 No presente exemplo, a correlação entre os dois circuitos pode ser formulada do seguinte modo: < Se o PDT fizer alianças para as futuras eleições (Mo = P), então o PDT não terá candidatos próprios e perderá eleitores (Md = Q)>. 216 da conveniência de coligações eleitorais. Todos os sujeitos enunciadores, determinados nessa circunstância produtiva, apenas se constituem como intermediários para fazer chegar a um TUd, destinatário ideal, o conteúdo relatado no ato. TUi, como sujeito interpretante, pode assumir a verdade do conteúdo do ato, aceitando a justificativa para ausência de coligação, identificando-se com TUd, ou pode recusar essa identidade e, portanto, negar a justificativa. Em outras palavras, um ato de linguagem-justificativa pode apresentar, da parte do sujeito interpretante, ou o aceite do relato de EUe ou a sua recusa. Essas observações nos levem à seguinte síntese: i. EUc constrói o ato-justificativa, através da fórmula ‘se P, então Q’; INTENÇÃO: validar ‘Q’, como um argumento adequado em relação a ‘P’; ii. EUe enuncia ‘Q’ a TUd; INTENÇÃO: convencer TUd a assumir ‘Q’, como um argumento adequado; iii. TUi assume, ou recusa ‘Se P, então Q’ . INTENÇÃO: compreender a orientação argumentativa do ato- justificativa O ato acima apresenta, no plano estrutural, a mesma configuração do anterior, mas difere daquele pelas especificações que podem ser estabelecidas em termos das intenções que coloca em jogo, em suas instâncias constitutivas. Avaliemos cada um dos itens: a) No item (i), EUc pretende que ‘Q’ seja um efeito ilustrativo para ‘P’ que é uma suposição admissível no âmbito de partidos políticos, ou seja, a possibilidade de se fazerem alianças. A intenção presente, portanto, refere-se à necessidade de se validar o conteúdo expresso por ‘Q’ como uma conseqüência plausível para o ato em questão. A plausibilidade de um argumento para justificativas deve ser entendida como um fator favorável ou desfavorável a realização de um ato. Para o ato em análise, assumindo-se ‘P’ − ‘o PDT pode fazer alianças para as futuras eleições’ −, ‘Q’ deve ser ressaltado como um argumento desfavorável, ao menos em relação à parte do conteúdo proposicional − ‘perderá eleitores’ −, que revela a verdadeira intenção do ato. Por conseguinte, justificativas podem ser formuladas de modo adverso, já que argumentos podem vir a tornar-se plausíveis, embora sendo contrários e desfavoráveis à realização de um ato. 217 b) No item (ii), a intenção presente será representada pela necessidade de se convencer TUd a aceitar ‘Q’ como argumento relevante para justificar a existência de certo estado de coisas. Justificativas, pelo teor contingente e até mesmo instável que podem suscitar, requerem, portanto, a necessidade de uma intenção que permita EUé interpelar TUd, convencendo-o da importância de ‘Q’. Nesse particular, o atojustificativa pode contrapor-se ao ato-mentira, já que o primeiro deve pressupor a verdade de ‘Q’ − sendo favorável ou não − como um argumento válido, enquanto o segundo deve implicar a falsidade de ‘Q’, ainda que a intenção que prevalece, neste último, seja também a de convencimento do sujeito-destinatário. c) Em (iii), a instância de TUi continua produzindo uma dupla possibilidade interpretativa do ato. Essa condição estruturante deve ser especificada, pelo fato de a intenção a ser acionada contemplar esferas mais amplas de construção de um ato. Assim, uma vez que sujeito-interpretante não se limita à esfera discursiva do processo enunciativo, a ele são asseguradas plenas condições de interpretação e ‘compreender a orientação argumentativa’, construída para o ato, significa a possibilidade de julgamento de sua adequação em termos de conteúdos proposicionais recorrentes. Apesar do esforço de EUc em formular um argumento válido, e da suposição que nos leva a admitir ‘Q’ como verdadeiro, haverá sempre a possibilidade de uma confrontação com TUi que, de posse de outros dados, poderá invalidar a correlação causal. Afinal, a instância interpretante é o lugar apropriado para se engendrarem polêmicas. Os comentários descritos nos três itens acima, em termos das intenções que qualificam parte das relações entre os interlocutores, procuram apontar alguns aspectos que possibilitam distinguir o ato-justificativa de outros atos. Admitimos a existência de aspectos que permitem confrontar justificativa com mentira ou com equívoco, exatamente pelo fato de estes últimos sustentarem sua argumentação em premissas falsas, intencionalmente construídas ou não. É evidente, porém, que mentira e equívoco somente se revelam como tal, à medida que detectamos a falsidade de uma das premissas. Qualquer interpretação que possamos propor para um ato não deve, portanto, ser considerada como a única forma de seu funcionamento 218 interlocutivo. Controvérsias e descompassos, nesse momento de uma compreensão ainda incipiente dos fenômenos de enunciação, interferem diretamente nas ‘armadilhas’ que construímos numa perseguição, sem tréguas, da pluralidade de vozes dos sujeitos. A análise que temos empreendido, ainda que apenas demonstrativa do funcionamento de um modelo de enunciação, é uma tentativa formal de explicitar alguns parâmetros de como podemos chegar à compreensão de critérios que regem o pragmatismo. Retomando parte de trecho anterior, notamos que a preocupação de Peirce está centrada nos mesmos aspectos que temos enfatizado como resultado da análise do processo enunciativo, no modelo em questão. PEIRCE (1977, p.294) complementa : “O pragmatismo (...) tenta definir o propósito racional, e isto ele descobre na conduta utilitária da palavra ou proposição em questão.” Ora, é precisamente esse “propósito racional”, ou seja, um ato de linguagem, que o modelo em tela tenta fazer emergir, a partir do valor utilitário que as proposições assumem no conjunto de nossas práticas discursivas. O fato de um modelo de enunciação fundamentar a análise de efeitos práticos decorrentes da atividade discursiva, a partir do uso de proposições, autoriza o seu estreitamento conceitual com o projeto de Peirce para o pragmatismo. Vejamos outros casos complementares: (20) “Existe uma crise horrível, que abala os alicerces do governo, e ele fica por aí conversando com o Maluf.” 158 ato de linguagem: reclamação EUe EUc TUd Md = circuito interno: conversas do presidente com o Maluf não resolvem a crise TUi Mo = circuito externo: o país está passando por uma séria crise 159 Fig. 7: Ato de linguagem: reclamação 158 Comentário da deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP), criticando FHC por se encontro com Paulo Maluf. (VEJA, 25-06-97, p. 14). 159 Podemos determinar a relação implicativa presente no quadro, do seguinte modo: < Se o país está passando por uma séria crise <(Mo = P), então conversas com o Maluf não ajudam resolver a crise (Md = Q)>. 219 Em (20) temos um ato de linguage-reclamação que podemos, em resumo, justificar com as seguintes observações: (i) EUc ou representa uma voz comum, associada ao conteúdo de Mo, ou se faz eqüivaler ao sujeito enunciador; no caso de identificação entre EUc e EUe, o valor empírico de um dos sujeitos, mistura-se com o valor discursivo; (ii) EUe representa o enunciador que profere a frase ou como uma verdade individual ou como algo justificado por vozes correntes; (iii) TUd, como sujeito destinatário, deve ser representado pelo público em geral ou por algum indivíduo ocasional; (iv) TUi representa o próprio presidente, objeto da reclamação. A reclamação, como outros atos, realiza-se em razão dos mesmos componentes, mas especifica parte deles em razão de particularidades de seu funcionamento. Uma reclamação pode estar próxima a uma crítica, mas certamente distingue-se de uma justificativa ou de uma denúncia, conforme pode ser comprovado na análise dos casos anteriores. Em cada uma das circunstâncias existem intenções da parte dos integrantes dos atos que tornam um diferente do outro. Essas considerações podem ser confirmadas pelo esquema de relações abaixo: i. EUc constrói o ato-reclamação, através da fórmula ‘se P, então Q’ INTENÇÃO: validar ‘Q’ como um fato desfavorável em sua relação a ‘P’; ii. EUe enuncia ‘Q’ a TUd INTENÇÃO: alertar TUd para necessidade de ‘Q’ ser corrigido iii. TUi assume, ou refuta ‘se P, então Q’; INTENÇÃO: compreender a orientação argumentativa do ato- reclamação. O ato-reclamação160 pode ser descrito em termos de uma forma particular de funcionamento, a partir da especificação de conteúdos proposicionais, como também de intenções que determinam sua orientação argumentativa. Para cada um dos itens em questão, podemos estabelecer: 160 A classificação do exemplo (20) como ato-reclamação não deve ser considerada a única forma possível de qualificá-lo. Poderíamos, por exemplo, aproximá-lo do ato-crítica, desconsiderando que entre os dois possa existir uma demarcação clara. Os aspectos mais visíveis que apontamos para a reclamação − o fato de ‘Q’ representar um conteúdo negativo, a pretensão que o teor de ‘Q’ seja superado − são também extensivos à crítica. 220 a) Em (i) especifica-se que o conteúdo ‘Q’, que é transmitido a TUd, deva caracterizar um estado de coisas cujos efeitos práticos derivados se mostram desfavoráveis, ou inconvenientes a supostos destinatários da ação. Desse modo, devemos entender a intenção de validar ‘Q’, assumindo-o como algo que retrata um comportamento, um valor indesejável, ao menos para a relação estabelecida com ‘P’. Reclamações, de um modo geral, reproduzem fatos que incomodam pela sua presença incompatível com estados de coisas previamente admitidos, como ‘P”, no exemplo. Nesse particular, o ato-reclamação opõe-se ao ato-elogio, por apresentar este um conteúdo favorável ao estado de coisas ao qual se acha vinculado. b) O item (ii), ao representar a interpelação de TUd por EUe, mostra ‘Q’, em razão do seu valor indesejável já descrito, como conteúdo que EUc espera, seja corrigido no curso do tempo. A influência que EUc pode exercer sobre TUd foi traduzida em termos de uma intenção que expressamos através de alertar − e não mais convencer −, já que uma reclamação não implica que o seu destinatário seja, necessariamente, o canal adequado para sua superação. Logo, não devemos supor que a interpelação sobre TUd seja da ordem do convencimento, já que nem sempre é ele a instância apropriada à correção de ‘Q’. Entretanto, reclamações podem conter uma orientação específica para a solução de problemas, quando recorrem à postulação de um TUd que, nesse caso, deve assumir o papel de interpretante, ao qual conferimos, publicamente, autoridade na execução de certas tarefas. c) Em (iii), resguardamos as mesmas características dos atos anteriores, possibilitando que uma reclamação possa ser assumida como procedente ou possa ser refutada, dado o fato de que TUi conhece a correlação ‘se P, então Q’. A circunstância de intervenção de TUi no ato, como já vimos, define-se em razão de parâmetros mais amplos: a ele é conferido o dever de avaliação mais aprofundada dos interesses, dos pressupostos que envolvem a formulação e o uso de um ato. Em razão das especificações presentes, devemos considerar, então, que a intenção represente a necessidade de se avaliar a natureza argumentativa do ato, julgando-se a legitimidade dos efeitos práticos decorrentes de seu uso. Tanto numa dimensão de registro − quando destinatários não têm poder sobre a solução do reclame −, quanto numa dimensão de cobrança − quando os destinatário se tornam portadores de sua solução − o desempenho de TUi pode 221 englobar posições diversas, asseguradas pelo teor estrutural do item no esquema proposto. Ao analisar o ato-reclamação, procuramos localizar os detalhes que compõem a sua especificidade como um ato distinto de outros já comentados. Essa diferença, mais uma vez, foi sustentada por intenções que se materializam nos argumentos, em diversos momentos de sua construção. Ainda que intenções continuem gerando incertezas nas circunstâncias diversas em que são implementadas como um instrumento de análise, não vemos razões para, em nome de uma certeza controlada, ou de um controle da certeza, fugir ao convívio com ‘estruturas’ e padrões de análise que, embora efetivos na compreensão de muitos fenômenos de linguagem, ainda nos deixam ruborizados por soluções ad hoc que precisam ser contornadas. Avaliemos, na seqüência, o ato-desprezo. (21) “Gostaria de mostrar a minha alegria de receber mais uma vez em território francês o presidente do México.” 161 ato de linguagem: desprezo EUe EUc TUd Md = circuito interno: presidente francês troca Brasil com México TUi Mo = circuito externo: desprezo pelo conhecimento de fatos de países do terceiro mundo 162 Fig. 8: Ato de linguagem: desprezo A análise de (21) pode nos mostrar alguns aspectos distintos de funcionamento desse quadro, se o comparamos aos anteriores. Gostaríamos antes, porém, de fazer nesse caso −o que também poderia ter sido feito para os demais − uma pequena incursão sobre sua dimensão como ato de fala. Como tal, o presente ato realiza-se no ponto declarativo e mododesignativo, o que lhe confere o poder de o objeto em questão, Fernando Henrique Cardoso, 161 Proferimento de Jacques Chirac, presidente da França, em encontro na Guiana com Fernando Henrique Cardoso. (VEJA, 10-12-97, p. 14). 162 A correlação entre os dois estados de coisa do quadro representa: <Se há desprezo pelo conhecimento de fatos de países de terceiro mundo (Mo = P), então presidente francês troca Brasil por México (Md = Q)>. 222 ser assim designado − ‘presidente do México’ − a partir de sua enunciação. Como se trata de um desprezo − ou de um equívoco, como veremos com outra perspectiva de análise −, voltemos aos atos de linguagem para aferir os efeitos práticos que decorrem de um descompasso entre os sujeitos componentes do evento discursivo.163 Assim, EUc identifica-se com o seu enunciador, EUe, ainda que os pressupostos de EUc possam conter outras intenções capazes de modalizar o proferimento de EUe e fazê-lo depreciativo ou transformá-lo em erro, por exemplo. Por outro lado, o esforço de EUc em fazer com que TUd − o presidente que está sendo saudado naquele momento − identifique-se a EUe não prevalece por romper com a pressuposição existencial, a de que, no momento da enunciação, as designações Fernando Henrique Cardoso e presidente do Brasil pressupõem o mesmo referente. Assim, um ato que rompe com uma pressuposição dessa ordem desfaz o vínculo ideal de manutenção da submissão de TUd às intenções de EU. O resultado dessa ruptura é que TUd se iguala a TUi e este, como um interpretante de todo o processo e vendo-o do seu exterior, já que não integra o circuito interno da fala, além de detectar o equívoco também pela falha da pressuposição, ainda pode acrescentar-lhe intenções e admiti-lo como desprezo. Esse procedimento de análise, considerando-se o jogo de relações interlocutivas, pode apontar diferenças entre um ato de linguagem e um ato de fala. Ainda que o resultado final possa ser parcialmente o mesmo, o processo enunciativo que nos leva a detectar os efeitos práticos do ato − equívoco, desprezo − se enriquece, quando acionamos intenções e comportamentos dos personagens que desdobram cada um dos lugares da enunciação. Por essa razão, estamos convencidos de que a conjunção desses dois objetos conceituais − as duas vertentes de atos lingüísticos consideradas na presente abordagem − parece, mais do que nunca, um instrumento para alcançar o que Peirce denomina como “totalidade dos efeitos práticos”. Em resumo, as relações enunciativas, acima descritas, podem ser organizadas no seguinte esquema: i. EUc constrói o ato-desprezo, através da fórmula ‘se P, então Q’ 163 Quanto à TAF, uma possibilidade de análise seria considerar o equívoco como o fato de um ato ser malsucedido. Se tem essa característica, então é preciso nele identificar o defeito que o levou a ser assim constituído. Repassando de memória os componentes da teoria, retemo-nos nas condições de sinceridade ou nas condições preparatórias. Se o defeito está nas condições de sinceridade, o proferimento em questão não revela o estado mental do falante: ele registra o estado mental de que Fernando Henrique Cardoso é presidente do Brasil, e o saúda como presidente do México. Entretanto, é difícil supor que uma questão protocolar de saudação, seja propícia à manifestação de descortesias desse porte. Passemos, pois, às condições preparatórias: ato falha ao romper com uma pressuposição existencial que identifica Fernando Henrique Cardoso a presidente do Brasil. Aqui parece localizar, de modo mais sensato, a origem do equívoco. 223 INTENÇÃO: validar ‘Q’ como um conteúdo negativo; ii. EUe enuncia ‘Q’ a TUd; INTENÇÃO: humilhar TUd através do conteúdo de ‘Q’; iii. TUi assume ou refuta ‘se P, então Q’ INTENÇÃO: compreender a orientação argumentativa do ato-desprezo. O ato em questão, analisado na sua dimensão de desprezo, revela-se diferente de outros atos, a partir de especificações que devemos demarcar para algumas das intenções que são fundamentais na determinação de sua orientação argumentativa. Para cada um dos itens especificados acima, vamos realçar os aspectos que contribuem para sua singularidade: a) Em (i), devemos assegurar para o conteúdo `Q` a necessidade de ser ele representativo de um estado de coisas que se traduz pela depreciação. Assim, devemos entender que a intenção de validar ‘Q’ visa a depreciar o seu destinatário, ainda que o depreciação seja resultado de mera troca de nomes. Desprezo, de um modo geral, retrata estados de coisa que incomodam pelas inconveniências, pelos desacertos derivados. Nesse particular, o ato-deprezo contrapõe-se a atos como elogio pela natureza do conteúdo proposicional que devemos considerar em cada um dos casos. Nem desprezo, nem elogio são estratégias enunciativas comandadas por convenções, mas o conteúdo proposicional de um e outro deve conter traços característicos que sejam adequados à natureza semântica dos atos. b) Em (ii), EUe interpela TUd através de ‘Q’, que representa, como visto no item anterior, um estado de coisas depreciativo para o destinatário. Outros atos também implicam conteúdo negativo em ‘Q’, mas o desprezo requer a condição complementar de que tal conteúdo seja dirigido a um possível destinatário, ou a um estado de coisas que ele integra. Essa condição adicional conduz a orientação argumentativa, representada pela intenção de humilhar. O ato-elogio que destaca a intenção de enaltecer também exige a mesma condição complementar, apenas orientada com valores opostos. 224 c) O item (iii) reproduz as mesmas prerrogativas gerais de outros atos para TUi: tratase da instância enunciativa apropriada ao rompimento das ações que garantiram certa fluição do ato-desprezo. Se TUi refuta a orientação argumentativa apresentada, ele o faz, descredenciando as pretensões de EUc em humilhar o destinatário. Se assume a argumentação, ele aceita as pretensões à validade de Q, engendradas na criação do ato. Não há, com certeza, um padrão definido que direcione TUi à rejeição do argumento de EUc, a não ser nas circunstâncias em que o desprezo alcança diretamente a esfera do interpretante como um alvo selecionado. Contrariamente, a aceitação do desprezo deve implicar neutralidade de TUi diante da orientação argumentativa em (ii). A estruturação dos atos atende, como temos visto, a um padrão geral de relações e de princípios, insuficientes na tarefa de caracterizar atos particulares, os quais têm sido explicados com base na especificação de intenções e até de condições especiais sobre o conteúdo proposicional, como mostramos para o caso presente. Há atos, todavia, que mesmo depois de justificados por padrões específicos acabam se mantendo numa situação ambígua. Assim, nada impede que possamos avaliar tal ato também como um equívoco, já que sua enunciação permite derivar um efeito prático de que EUe cometeu, involuntariamente, um erro, uma gafe. Vejamos uma reanálise do ato com base em outros padrões que devemos introduzir para sua compreensão: ato de linguagem: equívoco EUe EUc TUd Md= circuito interno: presidente francês confunde presidente do Brasil com o do México TUi Mo = circuito externo: presidente francês sabe que o Brasil não é o México 164 Fig. 9: Ato de linguagem: equívoco 164 Além da alteração de parte do conteúdo dos dois universos, também alteramos a relação entre eles. Assim, obtemos ‘P, mas Q’: < Presidente francês sabe que o Brasil não é o México (Mo = P), mas confundiu o presidente do Brasil com o do México (Md = Q) >. Um levantamento mais extenso de atos de linguagem nos levará, com certeza, à formulação de outros padrões de relações além das duas até agora discutidas. 225 A análise de (21), na dimensão de um ato-equívoco, comporta o seguinte esquema de relações interlocutivas e de intenções: i. EUc ‘constrói’ o ato-equívoco, através da fórmula ‘P, mas Q’ INTENÇÃO: descrever um estado de coisas através de ‘Q’; ii. EUe enuncia ‘Q’ a TUd INTENÇÃO: relatar ‘Q’ a TUd, como uma informação que julga correta; iii. TUi refuta ‘Q’ INTENÇÃO: compreender a extensão do ato-equívoco. A organização que atribuímos ao ato-equívoco reproduz apenas o esqueleto geral de padrões até agora recorrentes na maioria dos atos estudados. As dificuldades de sua organização referem-se aos componentes estruturais, bem como à natureza das intenções presentes. Avaliemos alguns pormenores nas etapas de sua organização: a) No item (i), em casos já analisados, admitimos o fato de EUc construir um ato a partir de uma relação postulada entre o universo psicossocial e o universo do discurso. A situação mostra-se distinta para o ato-equívoco: não se trata de uma construção de EUc na extensão atribuída à expressão para os outros atos; daí havermos anotado ‘constrói’. Nos atos anteriores, EUc não só produz uma relação de causalidade entre os dois universos, como também qualifica essa relação em termos da intenção de validar ‘Q’ como um argumento adequado. Para o equívoco, além de não podermos afirmar essa produção, precisamos também remover quaisquer pretensões de validar um argumento, mantendo apenas uma intenção fraca165 que implica descrever certo estado de coisas, sem a necessidade de uma vinculação clara entre os dois universos. Logo, a importância de uma intenção neutra e genérica166 decorre da possibilidade de conferirmos a ‘Q’ certa autonomia semântica, o que não anula a existência de ‘P’, 165 Por outro lado, se fortalecermos a dimensão intencional do ato, introduzindo, voluntariamente, uma intenção específica, gerando, pois, outra orientação argumentativa, correríamos o risco de convertê-lo, de novo, em desprezo, por exemplo. Uma intenção assim determinada − descrever, relatar, transmitir − constitui mais um pressuposto para qualquer forma de ato, do que um componente adicional, capaz de imprimir ao ato uma orientação argumentativa precisa. 166 226 como um pressuposto. Equívocos e descuídos, na instância produtiva, representam ruídos involuntários que não se prestam a justificativas racionais de uma correlação entre os universos. A estrutura correlacional formulada − ‘P, mas Q’ (ou também ‘Apesar de P, Q’) −, ainda que formalmente correta como componente do ato, na perspectiva de EUc só pode ser verificada a posteriori, isto é, a partir do momento em que EUc ‘se der conta da mancada’. b) Em (ii), a estrutura geral do ato permanece idêntica à de outros já analisados, uma vez que sua função é apenas a de tornar o processo interlocutivo viável, restando apenas algumas observações sobre o plano das intenções. Nesse caso, sustentamos uma intenção genérica que qualifica a relação de EUe com TUd com a finalidade de relatar informações contidas em ‘Q’, que EUe julga procedentes. Existem razões para que reforcemos o papel de uma intenção, ainda com teor global. Contrariamente à suposição que nos conduziria, por uma questão de coerência com o que foi observado para a intenção em (i), a esvaziar, de todo, o seu peso qualitativo, julgamos importante registrar algum vestígio intencional, como estratégia argumentativa, porque seria pouco provável admitir relações interlocutivas desprovidas de intenção. Entretanto, se o equívoco resulta de um ruído involuntário, do qual EUc e, conseqüentemente, EUe não têm consciência a priori, ele deve manter a feição de funcionamento de qualquer outro ato, retendo, ainda assim, algum traço intencional. Razões dessa natureza mostram que o equívoco não pode ser revelado na instância de EUc, pois isso o faria equivalente à mentira, nem na de EUe, já que não dispõe de autonomia e dos elementos suficientes para detectar o erro. Para EUe qualquer ‘Q’ comporta uma qualificação intencional, ainda que seja uma intenção fraca que nos conduza a reportar o conteúdo ‘Q’ a TUd. A apuração do ruído, também na extensão de EUe, só pode ser possível a posteriori. c) Em relação a (iii), devemos alterar parte do padrão usado para analisar outros atos, porque a TUi só podemos associar a condição de refutar o conteúdo de ‘Q’, como válido para a descrição de um estado de coisas. As condições de atuação do sujeito-interpretante indicam que ele dispõe do conhecimento da relação ‘P, mas Q’ e, por essa razão, descarta qualquer pretensão à verdade para ‘Q’. Por mais recursos que sejam necessários para considerar ‘Q’ como falso, a 227 instância de TUi deve ser capaz de fazê-lo, pois, do contrário, teríamos o equívoco assumindo o valor de uma verdade. Para equívocos transparentes − como a troca de nomes no exemplo − sua constatação é imediata e o próprio TUd assume a função de interpretante, denunciando-o. 4.3.2.3 Observações complementares No decorrer da análise dos conceitos e procedimentos que constituem um ato de linguagem, na formulação da semiolingüística, proposta por Charaudeau, procuramos selecionar os momentos em que a teoria foi mais explícita em relação ao processo enunciativo. A razão fundamental dessa escolha procede da necessidade de mostrar, como começamos a fazê-lo com o estudo da TAF, que é impossível tratar-se de práticas de linguagem sem um avanço decisivo sobre a estrutura do processo enunciativo. Todo o desenvolvimento recente da lingüística, em áreas como a análise do discurso, a análise da conversação, a teoria modular do discurso, apresenta, em comum, uma incursão deliberada sobre a enunciação, como um novo padrão de análise da compreensão dos fatos de linguagem. De uma lingüística de enunciado estamos avançando na direção de uma lingüística da enunciação. Todo esforço de análise e de compreensão de objetos lingüísticos, descritos nos capítulos II e III, responde por uma parcela significativa daquilo que representou a questão da linguagem nas últimas quatro décadas; não há porque, de fato, desconhecer a sua relevância, o avanço que representou para os estudos da linguagem. No entanto, essa relevância aferida, às vezes por instrumentos potencialmente sofisticados, mostrou-se sempre incapaz de prover respostas adequadas e, sobretudo desejáveis, para grande parte das intuições que temos do uso da linguagem. Desse modo, a abordagem que acabamos relatar, ainda que embrionária na explicitação formal do estatuto de muitas de suas correlações, emerge como uma estratégia fecunda que devemos assumir como necessidade para compreender um propósito racional nas nossas práticas. É nessa perspectiva, portanto, que a proposta da semiolingüística pode 228 representar um outro patamar de discussão, como o fizemos em relação a alguns casos, para os problemas afeitos a uma construção do pragmatismo. 4.4 Considerações finais Para concluir a discussão que desenvolvemos ao longo desse capítulo, é importante retomar certas orientações básicas que nortearam a formulação de Peirce sobre o pragmatismo, cotejado com os dois modelos que usamos para tentar justificar alguns de seus aspectos funcionais. A escolha para uma reflexão que possibilitasse aproximar pragmatismo de atos de fala, de um lado, e pragmatismo de atos de linguagem, de outro, origina-se no fato comum de que as três abordagens partilham a idéia de que condutas práticas possam ser construídas a partir da linguagem. Essa constatação inicial, embora essencial à discussão, agrupa as três abordagens, apenas fazendo referência a uma dimensão exterior que associamos à natureza do seu objeto de conhecimento, isto é, de comportamentos derivados do uso da linguagem. Existem, todavia, razões locais que diferiram de um momento para outro no confronto e que significaram uma avaliação funcional mais detalhada de procedimentos de análise. Quando retomamos o pragmatismo. através dos atos de fala, o objetivo central era analisar os atos, como instância portadora de um quadro geral das condições que permitem converter linguagem em ação. Quando se procedeu à retomada do pragmatismo, via atos de linguagem, o interesse deveu-se ao fato de os atos serem fundamentados em procedimentos de análise que consideram interações entre os componentes do processo enunciativo. O que fizemos, portanto, foi inserir, no contexto do pragmatismo discutido por Peirce, duas ordens de questões: uma construída em termos do resultado da atividade de locutor e alocutário − atos de fala −, outra fundamentada em termos de divergências e convergências entre instâncias enunciativas − atos de linguagem −. Além desse roteiro programático de incursão no pragmatismo, conforme acabamos de delinear, a análise das três abordagens perpassa uma dimensão que representou, ao longo dessa exposição, o ponto de convergência mais significativo, isto é, o esforço de se construir, 229 no campo dos efeitos práticos, uma racionalidade que seja a expressão maior de todas as condutas práticas do homem. Ao avaliarmos cada uma das abordagens, estivemos preocupados em resgatar princípios, orientações e formulações que nos levassem a uma especificação singular desse problema. Disparidades técnicas e conceituais na formulação de um objeto próprio de análise, entretanto, não fizeram delas organismos incompatíveis, quando o objetivo central era o de mostrar o esforço na construção dessa racionalidade. Na seqüência, pretendemos reativar alguns aspectos que representaram, no decorrer de toda discussão desse capítulo, o motivo maior da análise, ou seja, a possibilidade de uma fundamentação racional do comportamento. A reflexão de Peirce não deixa dúvidas quanto ao estatuto que confere ao pragmatismo: este deve constituir-se na doutrina capaz de de formular condições sobre as nossas ações, as nossas práticas. O texto do autor não é um receituário preciso de princípios e técnicas que possibilitam uma compreensão instrumental do pragmatismo: suas bases estão alicerçadas precisamente nas outras categorias que representam estágios diferentes da compreensão. Se a racionalidade tende, gradativamente, a ser construída a partir de padrões que recobrem sensação, formulação, representação, não haveria motivo para que o seu estágio derradeiro, o da conduta exterior, devesse ser representado por práticas resultantes do acaso. Supor o aleatório da conduta, numa extensão relevante, significaria, em resumo, supor que para agir devêssemos abandonar, ou até mesmo desconhecer todo o processo de construção de conhecimento que incorporamos através de etapas sucessivas. Se avançamos na compreensão do universo através de experiências que nos são sensíveis, da concepção que formulamos, e da existência que representamos, não seria sensato supor que viéssemos agir sobre esse mesmo universo de modo aleatório, que viéssemos separar uma e outra atitude. Não existem razões plausíveis que nos levem a admitir que a nossa conduta sobre o universo não seja tributária da compreensão que dele construímos. Ao contrário, o que elaboramos em diversos estágios, fizemo-lo em razão de uma economia do agir, de uma economia que permite ajustar a qualidade e a quantidade daquilo que compõe o nosso comportamento. Das formas mais elementares de atuação, às mais elaboradas, estamos sempre em busca de caminhos menos espinhosos, de um dispêndio menor de energia, de uma execução mais rápida das tarefas. Ainda que venhamos, por algum tipo de motivação esporádica, a contrapor-se à “lei do menor esforço”, ao “princípio da alavanca”, procedemos 230 desse modo por anomalia, o que irá requerer de nós cuidados extremos, maior gasto de energia, mais desperdício de tempo. Ao caminharmos numa direção da experiência imediata, defrontamos com uma questão proposta por Peirce, a de que o pragmatismo não deve ser visto como uma espécie emanação do propósito concreto; ele estipula condições para o agir racional, mas ele não é uma legislação sobre esse agir, já que não tem nem poder regulador, nem poder censório. Em resumo, não é a conduta concreta que regulamenta a existência do pragmatismo, mas é este que dispõe sobre os princípios de racionalização daquela. As observações que associamos ao texto de Peirce abordaram a questão das condutas, sem especificar as condições de sua realização. Como fica, então, o agir assim descrito quando o meio de sua realização é a linguagem ? A percurso que procuramos desenvolver sobre a TAF, no presente capítulo, orientouse, precisamente, pela questão acima aventada, a saber, o fato de ser ela um esforço teórico de construção de uma racionalidade de ações mediadas pela linguagem. Se a proposta de Peirce não chega a diagnosticar um formato específico de funcionalidade para estratégias racionais da conduta, a TAF demonstra que essa funcionalidade pode, ao menos em termos do alcance a que a teoria se propõe, ser estruturada a partir de padrões conceituais recorrentes, como condições de aplicação de um ato de fala. Entretanto, dada a complexidade e a amplitude das ações que o nosso habitat social comporta, a diagnose das condições que regem atos específicos implica não apenas amplos ajustes, o ponto de realização de um ato que propicia um recorte genérico da realidade, como também restrições circunstanciais de funcionamento, as condições preparatórios que podem condicionar realizações singulares. Formalizar e processar o global e o local, ao mesmo tempo, tem representado um desafio para a teoria: que condições devemos atribuir á dimensão necessária e que outras devemos circunscrever nas contingências de sua realização local ? Se assumimos uma promessa como exemplo, podemos dizer que a sua condição de conteúdo proposicional − ação futura a ser desempenhada pelo locutor − expressa um teor de necessidade, pois não conhecemos tal ato cujo valor proposicional descrito não seja o desempenho futuro em relação ao momento de seu proferimento. Por outro lado, mas ainda em relação à promessa, existe um aspecto das condições preparatórias que assegura que a ação a ser realizada deva ser benéfica ao alocutário. É evidente que temos algum padrão de julgamento entre o que pode ser bom ou ruim para alguém, mas esse padrão não tem o mesmo 231 estatuto acima mencionado da idéia de ação futura. Em atendimento a essa condição, comumente, não construímos promessas como ‘Prometo cortar-lhe o braço’, mas nada impede que ela, em contextos específicos − por exemplo, um paciente com um dos braços dominado pela gangrena − seja benéfica ao alocutário.167 De toda forma, as condições preparatórias, sobretudo em relação ao seu caráter especial, assumem um teor contingencial na realização de atos. Raciocínio semelhante poderia ser formulado para outros tipos de ato, para outras circunstâncias aplicativas. A preocupação, porém, é mostrar como um ato se torna representativo para condutas racionais. O que há de racional no funcionamento do ato acima descrito ? A racionalidade de uma promessa, como de outros atos, contém graus diferenciados, pois tanto podemos concebê-la na instância do necessário como na do contigente. Saber de uma promessa que ela será sempre uma ação a ser executada no futuro constitui um traço da sua racionalidade, que ela partilha com a racionalidade de outros atos − como a ordem, por exemplo −, ou que se contrapõe com a de alguns outros − como a asserção, por exemplo −. Da mesma forma, saber que um conteúdo proposicional pode ser benéfico ao alocutário também representa um traço de racionalidade desse ato, que pode ser partilhado, ou contraposto a tantos outros. A aferição do conteúdo proposicional a partir de um sistema axiológico, como vimos no exemplo acima, é sempre um complicador no processo de análise, mas isso é inevitável em se tratando dos atos de fala, tais as circunstâncias materiais a que se submete o nosso discurso. Falar dessa racionalidade, todavia, não é assegurar a realização de um ato de fala, nem afirmar que todo ato não realizado é, por definição, irracional. Nem promessas, nem ordens deixarão de ser realizadas pelo simples fato de a sua racionalidade conter o princípio ético de que uma promessa, formulada em condições apropriadas, deve ser realizada e que uma ordem, respeitando condições adequadas, deve ser cumprida. As possibilidades de rompimento de tais contratos de fala não colocam em dificuldade a TAF, pois ela não é um manual de condutas práticas que prescreve e normatiza atos, mas um construto que justifica as condições ideais de sua realização. Como teoria, ela se obriga também à descrição das condições adversas que 167 Em português, temos o uso do verbo ‘prometer’ em formas usuais como ‘Prometo quebrar-lhe a cara’. Não se trata, com certeza, de uma promessa, precisamente, por violar a condição preparatória em análise, mas 232 dificultam a realização de um ato. Defeitos na construção de um ato, porém, não implicam uma total impossibilidade de sua realização, muitos podem ser ajustados, corrigidos nas circunstâncias em que são proferidos. Outro modo de particularizar a presença funcional de padrões racionais no pragmatismo foi estabelecido através de uma incursão no campo da Semiolingüística, em especial no seu esforço teórico de integração dos componentes de um processo enunciativo. A novidade, como vimos anteriormente, não está em apenas vincular questões de sentido ao plano da enunciação, mas antes de demonstrar que grande parte da compreensão dos atos de linguagem está no jogo estabelecido entre os integrantes do processo. Assim, por um processo de assimetria entre as instâncias componentes da enunciação, procuramos mostrar a diferença entre diversos atos de linguagem. Aqui também, a abordagem não é um esquema de controle da conduta, mas uma construção racional de como elaboramos certos padrões ideais de produção da fala e de sua interpretação. Vejamos, como do ponto de vista da enunciação, podemos contrastar o padrão de racionalidade presente em dois atos diferentes. Como vimos anteriormente, na análise de diversos atos de linguagem isolados, o objetivo na proposição desse quadro é mostrar que os atos se constroem em relação a divergências e convergências que podemos localizar no processo enunciativo. Para cada tipo de ato diferente existe um padrão racional distinto que é possível determinar em função das quatro instâncias enunciativas que foram analisadas. Nesse comentário final, não vamos desenvolver análise de nenhum ato específico, mas apenas mostrar como o padrão racional pode ser fixado pelo comportamento dos seus integrantes. Como então, podemos justificar a diferença entre mentira e equívoco ? Como justificamos o fato de alguém estar mentido ? Como justificamos o fato de esse alguém estar sendo equivocado em seu proferimento ? Se considerarmos que os efeitos práticos sobre ações mentirosas ou equivocadas podem comportar uma certa explicação a partir do modo pelo qual um conteúdo proposicional possa estar associado a uma instância enunciativa, então podemos demonstrar como, no jogo interlocutivo, se estrutura um ato de linguagem. Assim, podemos considerar o contraste entre mentira e equívoco: sim de uma ameaça. 233 a) enquanto na mentira existe uma oposição entre aquilo que EUc pensa e aquilo que EUe diz, no equívoco o que EUe diz é idêntico ao que EUc pensa como verdadeiro. Assim, compreender a mentira significa, nesse momento, identificar, no lugar do locutor, uma contradição entre as duas instâncias. A compreensão de um equívoco, por outro lado, não pode ser determinada a partir de qualquer discrepância no lugar do locutor; b) enquanto na mentira o que EUe diz é assumido por TUd como verdadeiro, no equívoco ou TUd assume, ou refuta o que lhe foi dito por EUe. A mentira não será revelada, portanto, no circuito interno da enunciação, mas o equívoco pode ser aí solucionado se o desajuste proposicional referir-se diretamente ao sujeito destinatário. Logo, romper com a mentira é muito mais complexo do que com o equívoco: aquela foi elaborada na instância de EUc para funcionar como verdade, o equívoco pode ter sido um mero descuido de EUc; c) enquanto na mentira TUi refuta o que é assumido por TUd, logo ele assume o que EUc pensa e não o que EUe diz, no equívoco TUi refuta o que é assumido por TUd (ou assume o que é refutado por ele). Nesse plano, a mentira é desvelada pelas condições que o sujeito interpretante reúne para alcançar aquilo que o sujeito comunicante pensa. O equívoco, se não foi ainda desvelado pelo sujeito destinatário, será superado pela ação do sujeito interpretante no circuito externo do discurso.168 As observações acima mostram, de modo funcional, a diferença entre dois atos de linguagem, comumente presentes na nossa atividade discursiva. Os parâmetros implementados nessa análise não devem ser considerados como forma de instrumentalização extravagante para o 168 De modo sintético, podemos reproduzir, para as quatro instâncias enunciativas, as comparações acima em dois esquemas: a) mentira: EUc pensa ~P b) equívoco: EUc pensa P como verdadeiro EUé diz P EUé diz P TUd assume P TUd assume P (ou refuta P) TUi refuta P (ou assume ~P) TUi refuta P. No caso presente, o equívoco está sendo considerado apenas em relação ao lugar do locutor. Existem equívocos que podem ser gerados pelo lugar do alocutário, isto é, resultantes de uma interpretação inadequada. 234 pragmatismo: é possível que práticas interativas comandadas pela mentira ou pelo equívoco já tenham sido definidas de tantas outras formas. Entretanto, o esquema que a Semiolingüística propõe ressaltar uma vantagem: ele constrói padrões de estruturas que permitem localizar, no jogo enunciativo, os efeitos decorrentes de certos atos discursivos: por exemplo, a fonte da mentira, o seu percurso no processo, o lugar de seu desvelamento. Por fim, esse quadro de análise, embora aqui apenas esboçado em suas linhas gerais, representa um avanço na formulação de uma proposta capaz de fundamentar a necessidade de exigências racionais para práticas ordinárias. Além do mais, a possibilidade de justificar racionalmente o vínculo entre princípios ordenativos e práticas discursivas, requer que avancemos na compreensão do processo enunciativo subjacente a essas práticas. Nas circunstâncias atuais, é inconcebível supor que condutas práticas mediadas pela linguagem possam ser dissociadas do seu processo de enunciação e nesse sentido as propostas analisadas representam ambas uma contribuição importante na explicitação de um viés funcional para o pragmatismo. 235 5 CONCLUSÃO 236 5. CONCLUSÃO No decorrer da reflexão que desenvolvemos nos quatro capítulos precedentes, procuramos uma aproximação das formulações de Peirce com abordagens, procedimentos e teorias que nortearam a discussão sobre a construção do sentido nas línguas naturais nos últimos tempos. O nosso objetivo maior com essa aproximação consistiu em destacar não apenas os aspectos em que semântica e semiótica poderiam contribuir para um desenvolvimento mútuo, como expor diferenças de concepção responsáveis por estruturar, de modo próprio e quando possível, o objeto de estudo em cada um dos campos em confronto. Toda essa preocupação se mostra descrita no longo percurso que construímos e que convergiu, na sua forma derradeira, na construção do pragmatismo. Se essa instância de formulação da teoria de Peirce contém, de fato, a expressão final da nossa atividade, se ela se faz valer pela necessidade de uma expressão racional da nossa conduta, se os estágios precedentes devem ser estruturados para que alcancemos eficácia prática, não podemos, com certeza, desconsiderar as operações, os procedimentos e os esforços que empreendemos através de um traçado onde destacamos, paulatinamente, percepção, formulação, representação, além da ação já incluída no território do pragmatismo. A validade desse projeto para a semiótica deve incluir a sua extensão à semântica, embora a natureza de certos componentes e a sua articulação devam ser vinculadas à especificação do funcionamento das línguas naturais, conforme demonstramos em diversas circunstâncias. Nessa tentativa de aproximação, os comentários desenvolvidos para as categorias propostas por Peirce procuraram enfatizar aspectos fundamentais que nos consentiram discutir sua correlação com abordagens diversas para o objeto da semântica. Nada impede, no entanto, que segundidade comporte outros padrões conceituais que não aqueles orientados para a formulação conceitual; nada impede também que a terceiridade possa ser analisada com base em outros padrões que não o da representação, e assim por diante. Nesse processo de análise, ao emparelharmos dimensões da teoria de Peirce com dimensões diversas da semântica, procuramos selecionar o que existia de mais genuíno em cada um dos estágios de sua discussão. Da mesma forma, quando submetemos a discussão de parâmetros semânticos e discursivos às categorias desse autor, fizemo-lo em nome da necessidade de uma busca de 237 fundamentação e de uma generalização necessária à compreensão de fenômenos de significação. Assim, ainda que algumas aproximações com o campo da semântica possam terse manifestado menos orgânicas, procuramos, de algum modo e para um e outro campo, sustentar uma visão de globalidade, de integração que, se não se materializa ainda de forma decisiva, ao menos em termos projetivos deve compor as preocupações do seu desenvolvimento. Se para semiótica, pelo menos na visão de Peirce, não há como fugir a essa integração, também não vemos como na semântica se possa desconhecer quaisquer desses estágios, ainda que nenhuma das teorias disponíveis o tenha realizado do modo efetivo. No decorrer dos quatro capítulos procuramos escrutinar conceitos, categorias, que demarcaram especificidades do quadro conceitual e operacional da semântica e da semiótica. Na seqüência, evitando retomar, no mesmo padrão, o que já foi discutido, estamos propondo um comentário final para falar da importância da implicação de questões de sentido num plano de efetivas práticas sociais e cognitivas. Assim, depois da tentativa de aproximar os dois campos conceituais, gostaríamos de destacar dois aspectos sobre os quais incidem dificuldades e orientações que podemos fazer derivar do trabalho aqui desenvolvido. Uma primeira dimensão refere-se à questão concernente à maneira pela qual processamos os dados alcançados pelo percepto e como os estruturamos na forma de conceitos, tendo em vista a análise desenvolvida nos três primeiros capítulos. A segunda relaciona-se à possibilidade de uma justificativa para a racionalidade de nossas ações, quando expressas de forma determinante através de atos lingüísticos, lato sensu. 5.1 - Percepção e estruturação conceitual Além das diferenças que destacamos ao longo de nossa discussão, semântica e semiótica ainda convergem em razão de um interesse comum que a uma e outra podemos associar. Trata-se das pretensões que podemos associar-lhes com referência à explicitação dos parâmetros de funcionamento do processo de significação. Por esse motivo, ambas perseguem um único objetivo em comum, qual seja o de construir sistemas de representação para sentidos atribuídos aos objetos, às palavras, ou a quaisquer outros meios, que elegemos como 238 instâncias representativas. Poderíamos unificar a presente discussão, considerando-se semântica e semiótica no plano geral de uma teoria do sentido, com especificações próprias a serem avaliadas a partir do meio de representação selecionado. Essa associação, com certeza, deve ser erguida e sustentada pela integração direta de preceitos e procedimentos derivados de três padrões diferentes da atividade humana, isto é, processos perceptivos, processos cognitivos e processos de representação. A conjunção desses três planos resulta num comando geral que determina formatos possíveis para nossos comportamentos, para nossas condutas práticas. Assim, compreendemos a formulação de Peirce e a traduzimos num formato ajustado à análise de modelos e padrões derivados das abordagens semânticas. Que papel devemos atribuir a cada um dos estágios que compõe a perspectiva de uma teoria do sentido ? O vasto terreno em que situamos os problemas de nosso agir e, em especial do nosso agir comunicativo, requer instâncias constitutivas diversas, dentre as quais devemos distinguir os processos de percepção. A atividade perceptiva, ainda que representativa desse estágio inicial, constitui um complexo muito amplo de ações, orientadas para capturar dados que serão necessários à composição de estruturas de informação, imprescindíveis à configuração de objetos e às relações entre eles. O grande problema com que nos deparamos no Capítulo 1, por exemplo, apontou entraves na compreensão do real papel do percepto face à ‘coleta’ dos dados sensíveis. A princípio, a diversidade dos objetos na sua forma primária deve supor uma atuação aleatória do percepto, já que há objetos que se distinguem por dimensões próprias. Sua função primeira talvez seja a de atuar sobre os acontecimentos diversos de uma realidade experimentada, para que dela possamos extrair, em estágios subseqüentes, alguma ordem. Possivelmente, como reivindica Peirce, o percepto orienta-se, organicamente, para ativar qualidades de sensação em relação a dados sensíveis como cor, tamanho, temperatura, forma, natureza material, e tantos outros que possam ser determinantes na concepção dos objetos. Afinal, se assim pudermos conceber o seu papel, como ele se auto-orientará ? Essências devem ser percebidas antes de acidentes, por exemplo ? Para o percepto, existem alguns dados universalmente mais sensíveis do que outros? Diante do conjunto complexo de dados que compõem a natureza dos objetos, sobre o qual o percepto investe, é possível admitir que alguma orientação deva direcionar a sua atuação. Entretanto, é necessário acrescentar um detalhe a essa suposição: a atuação do 239 percepto precisa ser diferenciada, pelo menos, em duas circunstâncias a que ele se aplica. Quando o faz na direção de um objeto inaugural da nossa experiência sensível e que ainda não se inclui na esfera de nosso conhecimento, sua aplicação deveria orientar-se pela captura de traços capazes de construir um esquema geral, um arcabouço de estrutura desse objeto. Tal procedimento nos resguardaria de equívocos futuros sobre a compreensão de um objeto, bem como de desgastes contínuos de sempre reaprendê-lo. Por outro lado, quando se aplica ao reconhecimento de um objeto, que já pertence ao nosso domínio conceitual, ele deve reconhecê-lo pela configuração prévia que dele possuímos, assim como captar dados idiossincráticos nesta circunstância de percepção. Tal procedimento tornaria inesgotável a possibilidade de enriquecimento contínuo de um objeto, aumentando sempre a compreensão sobre ele. Por exemplo, a percepção de um ‘poste’ pode revelar fatos diversos: no primeiro caso acima, a percepção deveria orientar-se pela posição espacial − [verticalidade] −, pela forma − [haste (cilíndrica)] −, pelo tamanho − [extremidade superior muito acima do alcance das mãos e da cabeça de pessoas] − e, finalmente, por um valor mais complexo, a função, que requer a reunião dos traços precedentes em associação com um outro fator − [cabos de energia] −, resultando, pois, o seu conceito funcional, isto é, [fixar cabos de energia em posição vertical e fora do alcance das mãos e da cabeça de pessoas].169 Se o percepto opera com algum padrão de seleção, podemos afirmar que, no caso do presente artefato, categorias como cor, natureza do material, localização devem ser excluídas dessa primeira experiência com ‘poste’, já que nada acrescentariam à necessidade que temos de estabilizar o seu padrão conceitual . Experiências subseqüentes com esse objeto nos conduziriam a apurar, de forma crescente, a possibilidade de compreensão de indivíduos da classe-poste − ‘postei’, ‘postej’ −, ou de subclasses da classe − ‘postes de cimento/postes de ferro’, ‘postes cilíndricos/postes sextavados’, ‘postes brancos/postes pretos’... −, através da captação de outras categorias como natureza do material, forma, cor, ou de uma especificação daquelas já presentes no domínio do conceito, que atuariam como complemento da estrutura básica. Se a concepção de um objeto se faz pela ação do percepto, localizada numa sucessão de tempos diferentes − os intervalos antes referidos, por exemplo −, caberia ainda discutir se 169 A complexidade do conceito de função, quando a associamos a um projeto inscrito num objeto artefato, deve-se ao fato de ela representar a projeção de um objeto sobre outro, mediada por uma predicação específica. No caso em análise, obtemos ‘fixar (poste, cabos elétricos)’. Se tivéssemos um ‘saca-rolhas’, ‘lápis’, deveríamos formular ‘extrair (saca-rolhas, rolhas)’, traçar (lápis, papel)’. 240 momentos diversos da sua percepção resultam em diferenças entre os dados percebidos, ou seja, se devemos distinguir entre essência e meros acidentes. Consideremos as categorias tamanho e posição espacial no exemplo anterior; podemos contrastar objetos candidatos a ‘poste’ e a ‘mourão’, cuja função particular não tenha sido ainda especificada, pois nem o ‘poste’ [fixa cabos elétricos], nem o ‘mourão’ [fixa arame (farpado) e/ou tela]. A posição espacial − [verticalidade] − coincide para um e outro candidato, não se constituindo num valor criterial para sua categorização. No entanto, tamanho, na especificação proposta, difere de um para outro, pois, provavelmente, não registramos, na experiência ordinária, um ‘mourão’ tão alto a ponto de confundir-se com um ‘poste’, nem um ‘poste’ tão baixo a ponto de ser trocado por um ‘mourão’. Entretanto, no caso de objetos que se pretendam ‘poste’, o reconhecimento do tamanho pode ser um dado categorial necessário, mas não um dado suficiente, já que tal haste, com o tamanho especificado, na posição vertical pode vir a transformar-se num ‘mastro’, num ‘pau-de-sebo’, num ‘pilar para andaime’... Necessidade e suficiência parecem recobrir fatos distintos na categorização de objetos: um traço determinado pode ser necessário para o reconhecimento de classe, o que não o torna, todavia, suficiente para identificar classes, subclasses ou indivíduos da classe. Assim, tamanho − [extremidade superior muito acima do alcance das mãos e da cabeça de pessoas] − é necessário para a categorização de ‘poste’ − logo, deve compor parte de sua essência −, já que essa condição exclui a presença de ‘mourões’ na classe. O traço em questão não é, porém, suficiente para o reconhecimento da classe, onde estão todos os objetos do tipo, já que o critério não inibe a pertinência de ‘mastro’ e ‘pau-de-sebo’ no domínio. A suficiência deve ser assumida como um critério metalingüístico para avaliar a categorização, facultando o reconhecimento de subclasses numa classe, ou de indivíduos numa subclasse; ela permite medir a quantidade de dados que devemos considerar numericamente adequada para caracterizar tal objeto. Em contraposição, a necessidade é um critério interior de pertinência funciona apenas como um padrão de filtro a que objetos devam ser submetidos para pertencerem a uma classe.170 170 A discussão proposta contra abordagens semânticas orientadas pela composicionalidade de categorias aponta, diretamente, para esta questão. O argumento decisivo costuma questionar o fato de definições necessárias e suficientes serem defeituosas por excluírem de uma classe os seus membros anormais que são regularmente nela incluídos. Assim, o fato de se considerar um pássaro como portador de categorias como [bípede], [bi-alado], [ter bico] [ter penas], não significa que a obliteração de uma dessas propriedades o exclua do domínio-pássaro. 241 Enfim, o desenho de um quadro preciso para o funcionamento do percepto, a natureza dos dados que ele recolhe e seleciona, padrões que devam ser assumidos para a estruturação desses dados, todos têm representado uma questão essencial para a semântica e, certamente, devem ser cruciais para uma semiótica que pretenda o alcance que Peirce confere à primeiridade. As dúvidas maiores, com certeza, não se referem às operações descritas do percepto, mas à maneira pela qual devemos concebê-las, os limites que lhes devemos impor como mera sensação, na construção de uma teoria. Não temos dúvidas da sua eficiência operacional; duvidamos, sim, da forma pela qual devemos traduzir essa eficiência. Afinal, nada nos garante se devemos ou não conceber as primeiras propriedades que o percepto capta como essência e as demais como acidente, nada nos assegura que ele opere com distinções entre o necessário e o possível e tantas outras formas categoriais que têm sido problemáticas na discussão de arranjos conceituais.171 Comentários mais específicos aos problemas apontados já nos remetem a um quadro de análise que ultrapassa o plano do percepto e nos remete ao plano de uma formulação conceitual mais elaborada, como elaboramos nos parágrafos seguintes. Todos os dados que alcançamos por meio de operações do percepto devem ser retidos e transformados em informações que estruturam nossa atividade cognitiva. Assim, o domínio da cognição deve representar a inclusão de procedimentos de formulação, como tentativa de racionalizar as informações, de dotá-las de princípios organizacionais, de construir-lhes algum padrão lógico. Esse formato que o conhecimento assume no plano da cognição implica transcender o patamar de mera sensação e de percepção, porque já se compromete com a estruturação e com a organização das informações. Nessa perspectiva, analisamos, no Capítulo 2, alguns formatos para a estruturação de conceitos, destacando modelos de atomização conceitual, sobretudo predicação e composicionalidade, bem como modelos de ‘membramento’ conceitual, com base no critério de pertinência em diversas dimensões (clássica, difusa e prototípica). Tais critérios, embora pensados em circunstâncias diversas como formação de conceitos, não devem ser admitidos como excludentes e contraditórios 171 Uma categoria como cor, por exemplo, excita o percepto de forma imediata, na condição de uma qualidade de sensação para um leque muito grande de objetos. Tal fato não pode ser usado como uma justificativa direta para afirmar que cor deva ser um traço da essência de um objeto, se bem que existem casos, onde cor tem um papel fundamental. Por exemplo, a percepção da cor em ‘roupas’, ‘paredes’, ‘balões’ não é fundamental para o conhecimento desses objetos, mas, provavelmente, a percepção da cor [vermelho], numa substância como ‘sangue’, é essencial para o seu domínio. Para ‘folhas’, a cor [verde], embora predominante, não tem a mesma extensão que [vermelho] no caso anterior. 242 entre si, ainda que nem sempre seja possível a construção de uma passagem de um para o outro. Quando comparamos uma ampla gama de critérios, seria importante questionar sobre a prevalência que alguns devem assumir em relação aos outros; ou ainda, se devemos considerar circunstâncias em que um se torne complemento do outro. Com esse objetivo pretendemos discutir fatos que foram analisados na segundidade. O teor, tanto fluido quanto universal da predicação, torna-a um instrumento poderoso e propício a ser cotejado tanto no plano da atomização conceitual, quanto no da classificação conceitual, quando a assumimos na dimensão considerada no Capítulo 2. Assim, todo o objeto que está inscrito na esfera do nosso conhecimento é um objeto passível de predicação sob as mais diversas perspectivas. Paralelamente, todas as nossas predicações resultam na seleção de domínios a que podemos circunscrever objetos, ao mesmo tempo em que elas se instituem como possibilidades de se integrarem à matriz conceitual, que pode ser estabelecida para o objeto em questão. Nem por isso, todavia, podemos assegurar que tudo o que se predica sobre tal objeto revele um modo de construir o seu conceito, na forma de uma matriz de traços, e nem mesmo o de apontar o seu domínio de pertinência, de forma restrita. Predicar a cor de `x` − `x é azul` −, a sua forma − `x é octogonal` −, o seu tamanho − `x é pequeno` −, o material de que é feito − `x é de plástico` − ... representa destacar formatos através dos quais um objeto pode ser conhecido, ou definir domínios genéricos dos quais ele faça parte.172 Desse modo, qualquer propriedade que pudermos predicar sobre `x` tanto revelará um aspecto da sua dimensão conceitual, ainda que tal propriedade não seja fundamental para a construção da matriz conceitual da classe a que pertence ‘x’, quanto propiciará condições para sua identificação a domínios possíveis, ainda que a propriedade não seja um padrão natural para o reconhecimento de classe de objetos. Predicação, composicionalidade e pertinência desempenham papéis relativamente distintos nos processos de cognição: enquanto a primeira opera aleatoriamente da classe ao indivíduo, às duas últimas devemos assegurar a função de erigir esquemas conceituais no reconhecimento preferencial de classes e de subclasses de objetos. Portanto, se alguma elegância formal pudermos conferir à pertinência e à composicionalidade, devemos fazê-lo em razão de elas se constituírem em procedimentos 172 Embora a ilustração presente tenha o mesmo teor da anterior, em termos de dados que possam ser arrolados para um objeto, existe uma diferença fundamental entre a percepção, isto é, a forma pela qual ‘começamos’ a compreender um objeto, e a cognição, o modo pelo qual conhecemos esse objeto (ou o modo pelo qual 243 amplos de descrição conceitual, em padrões normativos que permitem avaliar o que conhecemos de um objeto, numa extensão de classe. Qualquer matriz conceitual que se deixasse seduzir pelas idiossincrasias de um indivíduo − um objeto indicializado − exibiria uma validade restrita; qualquer condição de pertinência que se curvasse diante de suas particularidades referendaria apenas domínios unitários; ambas fracassariam como instrumentos de formação conceitual, ainda que preservassem uma função designativa.173 Outros detalhes ainda devemos considerar em relação à predicação: por exemplo, se ela não proclama padrões descritivos ou funcionais de um objeto, corre o risco de não mais se referir a possibilidades conceituais, mas apenas, de modo periférico, ao registro de uma atitude proposicional de um locutor diante de determinado objeto. Assim, enunciar que `x é chato`, que `x é interessante`, que `x é sensacional` pode não conter o mesmo estatuto das predicações anteriores, já que não identificaríamos num objeto tais propriedades como sendo aspectos conceituais de suas partes componentes. No primeiro caso, por exemplo, podemos contrastar objetivamente `x é octogonal` com `x é quadrado`, como reveladoras de perspectivas descritivas de objetos, mas dificilmente poderíamos fazer o mesmo com `x é sensacional` em contraste com ‘x é aborrecido’, já que ser ou não sensacional (ou aborrecido) não evidencia valor descritivo de um objeto, por não se tratar de propriedades associadas às suas partes componentes, nem às relações entre partes, senão à manifestação de uma atitude (proposicional) de um sujeito. Isolando predicações que se comportam como atitudes proposicionais, podemos concluir que, de fato, a predicação representa um formato através do qual expressamos o conceito que formamos de um objeto. Com certeza, nenhum objeto é decisivamente conhecido por uma única predicação, mas por um conjunto de predicações que se tornam disponíveis na construção da sua história. Da mesma forma, não há um limite que devemos impor ao número de predicações que um objeto comporta; qualquer projeção seria absolutamente arbitrária. Entretanto, sabemos que o número de manifestamos nosso conhecimento sobre esse objeto). 173 Nem uma nem outra orientação são impossíveis; elas apenas não são adequadas, em se tratando de formação de conceitos. Por exemplo, é possível definir uma condição de pertinência como ‘o atual presidente do Brasil, de direito’, ou ‘o número par da série dos inteiros situado entre quatro e oito’, onde os conjuntos resultantes são necessariamente unitários. O ideal é que estipulemos condições de pertinência mais genéricas − presidente do Brasil ou número par − e possamos decidir, no interior dos conjuntos, sobre subconjuntos menos genéricos ou particulares. 244 predicações que conhecemos sobre um objeto deve ser finito, já que o nosso conhecimento sobre tal objeto comporta limites. Por outro lado, a predicação ainda revela potencial de reconciliação em relação aos procedimentos difusos de pertinência, a saber, características criteriais na definição da pertinência num domínio podem se mostrar gradativas através do processo de predicação. Por exemplo, o conhecimento que temos da classe de objetos ‘cadeira’ deve selecionar, como exemplar de referência − o protótipo da classe −, aquele que atenda, entre outros aspectos, a uma angulação de noventa graus na relação encosto/assento e assento/pés, considerando-se sua função básica, ou seja, [acomodar pessoas na posição....]. Nada impediria, no entanto, que o critério de angulação fosse alterado em certos limites e numa orientação determinada e que ainda mantivéssemos objetos com tais ‘deformações’ na classe. Desse modo, os dois padrões de angulação poderiam ser distendidos (simultaneamente ou não), alcançando valores variados e acima de noventa graus, mas nunca poderiam alcançar cento e oitenta graus, ou outros valores que lhe fossem muito próximos.174 A objetos assim alterados poderíamos aplicar predicações gradativas de pertinência na classe-cadeira: ‘cadeira reclinada’ ( ‘...pouco reclinada’, ‘...um tanto reclinada’, ‘...bem reclinada’, ‘...bastante reclinada’, ‘...muitíssimo reclinada’...), embora não tenhamos mais certeza da imediatez e da unanimidade da sua identificação à classe, em decorrência do grau de deformação que lhe fosse aplicado. A distinção que fizemos entre duas orientações para formação de conceitos, de tal modo a nos permitir aproximar do teor definido por Peirce para a segundidade, no fundo, apenas recorta uma prática de análise comum às teorias semânticas. Atomização conceitual e classificação conceitual, em razão dos desdobramentos que mostramos, mantêm entre si relações de complementaridade. A percepção que alcançamos de um objeto e o conhecimento que construímos a partir dessa percepção são duas fases integradas à nossa atividade de cognição. Em muitas circunstâncias não se torna nem mesmo possível, a não ser por razões 174 A possibilidade de que angulação de ‘cadeira’, nas partes apontadas, pudesse alcançar tais valores significaria obliterar sua função primordial, tornando-a equivalente à funcionalidade de ‘cama’, ‘estrado’.... A angulação é, no geral, deformada apenas na direção do aumento do grau, seja por conveniências anatômicas de acomodação − relação encosto/assento −, seja por razões de equilíbrio − relação assento/pés. Dificilmente, encontraríamos cadeiras que resultassem numa redução drástica da angulação das relações mencionadas, a não ser como um objeto estético. 245 analíticas e conceituais, decidir sobre uma demarcação precisa entre percepção e cognição. O certo, por exemplo, é que ao olharmos para objetos percebemos, mas ainda assim estamos longe de assegurar que essa percepção se traduza por uma atividade pura do percepto, isenta de compromissos com a organização da informação. O percepto é, sem dúvida, o motor para a cognição e, em conseqüência, para qualquer processo de formação conceitual, ainda que a sua intervenção sobre a realidade se faça de modo aleatório, desconhecendo o que, em essência, podemos fixar como conhecimento do seu conceito. O conjunto dos procedimentos que reunimos na cognição, no entanto, representa modelos que se orientam pela necessidade da estratificação de padrões de conhecimento − essência versus acidente −, da seleção de seus componentes − tamanho ao invés da cor − e do arranjo entre seus componentes − do global para o local. Nessa extensão da construção de uma teoria, apontamos, no plano da segundidade, as duas orientações que se mostraram de modo mais decisivo no âmbito da construção de teorias semânticas. Nenhum dos padrões é, por si mesmo, autônomo e suficiente: nem atomização conceitual deve validar a suficiência da composicionalidade e da predicação, em detrimento do valor operacional da pertinência, nem a classificação conceitual deve proclamar a autonomia das operações de pertinência, numa recusa das concepções atomizadas. Ambas refletem atribuições e tentativas diferenciadas para um desafio de racionalização do diverso e da desordem que se erguem diante de nós sob a forma de realidade. Nesse ponto, iniciamos uma outra jornada: se conhecemos, como devemos representar o que conhecemos ? O plano da representação, conforme desenvolvido no Capítulo 3 a partir da categoria terceiridade, parece ressaltar-se como aquele que mais apresenta discrepâncias entre os campos da semiótica e da semântica. A razão mais imediata para justificar a questão decorre da diversidade dos meios que um e outro campo utilizam para representar os seus objetos. A semiótica, com Peirce, construiu uma tipologia de signos capaz de justificar, em planos diferentes, não só a mais elementar percepção cognitiva − o qualissigno − como a forma mais elaborada de estruturação do pensamento − o argumento −, representando este, de modo sintético, formas de raciocínio. As pretensões de Peirce parecem enfatizar a tipologia sugerida como padrão de suficiência para recobrir, do ponto de vista da representação que se quer fundamentada em padrões diversos de percepção, de relação e de estruturação, o conjunto das operações cognitivas do homem. Assim, um signo, considerando suas formas mais distintas e 246 complexas de realização, transforma-se num pólo de catalisação onde se fazem registrar o ser representado e não apenas a representação do ser. O arsenal de relações e propriedades mútuas, de planos e elementos determinantes na arquitetura do signo resulta em duas considerações essenciais para a sua compreensão: (i) nenhum signo, ainda que na forma de ‘radical básico’, pode ser entendido em razão de um único parâmetro de configuração: o dicente não se constitui pela relação única com o interpretante, mas também pelo fato de partilhar a natureza do desempenho e de implicar existência: (ii) nenhum objeto, fato ou propriedade pode ser visto por uma única forma de representação no quadro de relações sígnicas estabelecidas por Peirce. Exemplificando, ‘vermelho’ pode ser qualissigno, enquanto qualidade de sensação para a substância ‘sangue’; pode vir a ser ícone, enquanto possibilidade de comparar-se ao perigo; pode representar índice, quando o ‘vermelho’ materializa-se em placas, em faixas, enfim quando assume a forma de um existente; pode ser parte de um rema, se estruturado, enquanto possibilidade, como função proposicional, isto é, ‘vermelho (x)’ e um dicente, ao saturarmos a função precedente − ‘vermelho (carro).175 Por outro lado, a semântica, além de notações específicas para fatos locais − temporalidade, quantificação, modalização... −, muitas derivadas de sistemas lógicos independentes, fundamenta-se em toda tradição milenar de representação lingüística. Para a semântica não está em questão apenas uma (onto)lógica do ser representado − leituras lexicais −, o que parece constituir o fundamento da arquitetura do signo, mas ainda um lógica de relações entre unidades − sintáticas e/ou lexicais −, ou de relações entre propriedades lexicais − necessárias e contingenciais. Além das dificuldades inerentes à definição formal de leituras lexicais, padrão considerado indispensável ao cálculo do significado de estruturas derivadas e mais complexas, o teor das relações lógicas tornou-se um fator determinante para o entendimento do processo de significação. Logo, representação semântica, descontadas as divergências metodológicas, implica, em sua base essencial, erigir algoritmos capazes de conceber certas classes de objetos lingüísticos, como também construir sistemas de relações entre tais objetos, sendo ambos, algoritmos e sistemas, responsáveis pela produção de efeitos de sentido. 175 Para cada um dos exemplos, devemos considerar a especificidade de interpretantes apropriados. 247 No caso, pois, da representação, as dificuldades de aproximação entre os dois modelos revelam-se evidentes, pois as diferenças se tornam marcantes. O fato de certos padrões de signos representarem relações funcionais simples e complexas − rema, dicente, argumento − é muito diferente de usarmos signos para estabelecer relações funcionais − por exemplo: ‘com[instrumental] (x,y)’, ‘com[companhia] (x,y)’, ‘com[modal] (x,y)’ ... − A semântica, na sua dimensão essencial, submete-se à modelagem lingüística (sintática e lexical) de certos padrões de relações e de propriedades; o que ela acrescenta como notação específica decorre da necessidade de explicitar relações sintáticas − papéis temáticos, configuração de casos −, ou propriedades lexicais − configuração de traços. Por último, o plano da representação parece assumir caminhos próprios, pelo menos considerando-se os modelos em análise. Tal fato, no entanto, não deve ser exclusivamente assumido como uma restrição imposta à natureza de funcionamento dos objetos conceituais de um e outro campo de estudo, mas também não deve ser concebido como mera diversificação notacional. Enquanto sistemas, ambos os campos devem especificar formas de organização dos seus elementos componentes. Objetos semânticos fundamentam-se numa sintaxe natural, construída a partir de procedimentos de substituição no plano paradigmático e de associação no plano sintagmático, resultando em formatos diversos de estruturação de unidades cada vez mais complexas. Objetos semióticos, se comportam uma sintaxe − que não vemos necessariamente expressa na formulação de Peirce −, recorrerão a sintaxes locais ou analogamente construídas, em razão de especificidades inerentes a um dado sistema. Equiparando-se ou não, sob o nome de sintaxe, o modo pelo qual os dois campos organizam primitivamente os seus componentes, as relações entre os seus objetos, considerando-se ou não diferenças na forma como calculam unidades complexas, sabemos que semiótica e semântica, no fundo, são instrumentos capazes de fornecer justificativas formais para a compreensão de muitos fatos de sentido. 248 5.2 - Razão e ação No decorrer do Capítulo 4, procuramos analisar aspectos determinantes de construção da vertente do pragmatismo, orientada para condutas ordinárias e não como modelo de justificação de hipóteses científicas, segundo a versão formulada por Peirce. No âmbito da discussão desenvolvida, enfatizamos o núcleo de construção do pragmatismo, como a necessidade de explicitar o modo pelo qual os signos, nas suas manifestações mais diferentes, são instrumentos hábeis para a racionalização de todo o nosso comportamento. A transposição dessa exigência inicial, para uma discussão no plano da linguagem, implica assumir outros parâmetros que, tradicionalmente, não compuseram a discussão da semântica. O primeiro efeito da exigência é a necessidade de se fazer a discussão lingüística progredir para o território da enunciação, um campo mais fértil para abrigar princípios determinantes das práticas ordinárias. Transpostas as barreiras do enunciado e assumindo orientações decorrentes do processo enunciativo, decidimos por recorrer a dois modelos de práticas enunciativas que se mostraram sensíveis à análise de questões centrais do pragmatismo, isto é, atos de fala, como modelo de práticas discursivas no domínio primordial das convenções, e atos de linguagem, como modelo orientado, substancialmente, para intenções. À complexidade do processo enunciativo dominado por convenções e intenções, devemos acrescentar ainda outros aspectos relativos à interação entre locutor e alocutário, mormente aqueles associados a orientações argumentativas erigidas no interior das práticas discursivas. Esse quadro − complexo − de componentes e relações que acabamos de desenhar para a enunciação tem sido marcado ainda por um traçado conceitual de discrepâncias e dificuldades, mas também por avanços, em razão da necessidade de se justificarem novos padrões de análise. Parte das convicções conceituais e dos ajustes formais que asseguramos para o enunciado, em diversos planos da análise lingüística, precisam modelar-se a outro tipo de concepção, adequada a fundamentar a linguagem em dimensões interlocutivas. Por mais que intencionemos tratar o processo enunciativo sob a forma de padrões estruturais, haverá sempre adaptações ad hoc a serem implementadas. A análise proposta por CHARAUDEAU (1983), não obstante conter avanços incontestes nesse particular, ressoa ainda como um padrão de funcionamento restrito para extensões amplas de práticas discursivas. Se simulações de EUc em EUe são evidentes para certos atos, elas podem conter soluções ainda provisórias, ajustadas ao sabor de exemplos coletados, como deixamos claro em momentos da 249 análise desenvolvida. Assim, se o ato-mentira torna evidente a simulação de um EUe para dizer ‘P’, como verdadeiro, enquanto EUc processa ‘P’, como falso, o mesmo paralelismo não pode ser estendido ao ato-equívoco − apesar da proximidade conceitual entre ambos −, já que neste não se pode pensar numa discrepância entre as duas instâncias locutivas. Fatos similares podem ser isolados na instância alocutária: no caso da mentira, a possibilidade imediata de TUd se fazer interpretante é menos previsível e, provavelmente, ‘P’ permanece verdadeiro, embora seja falso. Para o equívoco, a natureza imediata de seu desmentido, em muitas circunstâncias, transforma o TUd num sujeito-interpretante, no instante mesmo de sua enunciação. As discrepâncias que destacamos são corriqueiras, quando tentamos estender o esquema proposto por CHARAUDEAU (1982) a análises efetivas de práticas discursivas. Os detalhes que devemos acionar para justificar certas condições de uso costumam exigir explicações concernentes ao funcionamento de fatos naquela circunstância específica. Nas diversas análises de casos, por exemplo, há padrões que recortam com nitidez a interferência EUc sobre EUe, da mesma forma que o contraste entre TUd e TUi − o ato-mentira é uma ilustração clara desse funcionamento enunciativo. Devemos admitir, no entanto, exemplos mais amplos de atos de linguagem, onde esse recorte implique conveniências artificiais no atendimento a uma regra geral para funcionamento do quadro enunciativo, tal a indiferenciação gerada entre as instâncias do locutor e do alocutário, em geral. A justificativa para tal instabilidade no processo enunciativo parece decorrer da presença de intenções, engendradas no uso de um ato, sem que para elas possa existir um padrão previsível de recorrência. A emergência de intenções aleatórias na execução de atos não deve ser considerada desconfortante; ao contrário, ela representa uma liberdade enunciativa que não apenas amplia o leque de perspectivas para o locutor − ele disporá de um arsenal ilimitado de formas intencionais para interpelar o alocutário −, como pode induzir o alocutário − na forma de um TUi − a divergências interpretativas. Polêmicas e falta de consenso entre os interlocutores, quando resultantes da aplicação de intenções, podem justificar o fato de se confundirem, por exemplo, brincadeiras como ofensas, críticas como ofensas, pedidos como intimações, equívocos como desprezo... Se ainda não dotamos de rigor a compreensão analítica de muitos efeitos práticos construídos a partir de intenções, não obstante os avanços realizados, não vemos razão para 250 que deixemos de investir na sua relevância para os processos de argumentação lingüística. Somente assim estaremos nos credenciando a capturá-las, quando muito nos momentos em que se revelam menos reservadas. É impossível supor racionalidade para condutas práticas decorrentes de atos discursivos, se viermos a descredenciar o papel das intenções nesse processo, ou a reduzi-las a uma dimensão convencional, ainda que, historicamente, elas tenham, com freqüência, merecido uma atenção discreta na construção de padrões racionais. Se pudéssemos explicar todos os efeitos incorporados nas práticas discursivas através de convenções, em detrimento das intenções, estaríamos assegurando o consenso, mas estaríamos lacrando o espaço do novo, da liberdade... Eliminando as chances do acaso discursivo, submetemos as intenções à legislação, ao domínio do normativo, o que agride o espírito pragmático que conclama as intenções para aventuras do improviso. Além do mais, é indesejável supor que locutores devam confrontar alocutários ou que alocutários devam sentir-se interpelados por locutores apenas em razão da presença enfadonha de convenções partilháveis. Sem apelo direto às intenções, as emoções, os sentimentos, as tensões esvaem-se e estaremos condenados a procedimentos enunciativos que se repetem, que apenas efetivam práticas rituais de convenções. As intenções constroem uma dimensão ambígua para a enunciação: elas se materializam não só no ‘berro de liberdade’ do locutor − ainda que discretamente proferidas − como também no do alocutário − ainda que nunca proferidas. Retendo esse valor ambíguo, elas podem tanto propiciar o amálgama tênue de um consenso interlocutivo, construído no percurso da enunciação, como engendrar os estilhaços do seu dissenso. Unindo e separando as instâncias interlocutivas, as intenções cultuam a polêmica, o diversionismo discursivo − daí a nossa dificuldade (e até mesmo a inconveniência) em submetê-las a padrões de análise. Elas representam a quebra de uma ingenuidade discursiva, comumente respaldada na simetria eu/tu, como de resto, a quebra de uma hegemonia de sentido, alimentada pelas determinações históricas. Intenções não foram, portanto, introduzidas no processo enunciativo por decreto, ou por algum artifício formal; elas estão lá, porque lá estão aqueles que as fazem mover − os interlocutores −; elas estão lá, porque lá está o que as faz mover − as emoções, as tensões, os interesses. Outro aspecto que destacamos numa orientação empírica para o pragmatismo fez-se representar, na discussão do Capítulo 4, pela presença dos atos de fala. Ao selecioná-los para essa tarefa, fizemo-lo em função do fato de as convenções assumirem um papel fundamental 251 na construção de um ato e, em extensão, da necessidade de se compreenderem, através delas, fenômenos do plano enunciativo. O apelo a convenções justifica-se também pelo contraste a ser instaurado face às intenções, dois padrões que supomos relevantes para avaliar a campo minado do processo enunciativo. Não que tais categorias sejam confiáveis e confortáveis, à primeira vista, para a tarefa de erigir a enunciação longe de turbulências e como procedimento seguro na análise de fatos discursivos. São dois objetos conceituais que não se submetem aos rigores de uma fita métrica: se defini-las, de forma independente, pode tornarse um exercício temeroso, quando nos credenciamos a confrontá-las, inserimos um novo fator nesse quadro de incertezas, ou seja, a dificuldade de traçar fronteiras objetivas entre elas. O convívio com tal dificuldade restou acentuado em nossa análise, quando avaliamos, em seções distintas, atos de fala e atos de linguagem. O objetivo que pretendíamos, com a análise dessas duas abordagens, era o de demarcar uma fronteira entre elas, já que uns − atos de fala − se orientam a partir de convenções, enquanto os outros − atos de linguagem −, a partir de intenções, conforme relato anterior. Entretanto, o que se percebe em ambos os enfoques é o fato de que o predomínio da convenção não exclui a intenção, nem o inverso. No caso dos atos de linguagem, a adaptação que explicitamos para o esquema de funcionamento das relações enunciativas visava isolar a sua dimensão intencional, ressaltando o modo pelo qual instâncias interlocutivas atuam umas sobre as outras e como orientam intencionalmente os argumentos que constroem. Todo esse esforço, porém, prefigura apenas um diagnóstico daquelas intenções majoritárias na construção de certos tipos de ato, o que não impede o afloramento de intenções adicionais. As dificuldades, na análise do processo enunciativo, não devem ser atribuídas apenas ao manuseio de intenções. As convenções, apesar do seu estatuto menos incerto, ainda estão a requerer um tratamento mais sistemático. Assim, os entraves à análise do processo enunciativo não resultam somente de manifestações específicas, determinadas por intenções; as mesmas dificuldades podem ser verificadas, numa extensão diferente, quando a análise depende de convenções precisas. Muitas dessas dificuldades ficaram evidentes na investigação desenvolvida em torno dos atos de fala: afinal, não dispomos de uma sistematização sobre elas, de maneira tal a poder convertê-las em princípios metodológicos e em instrumentos de análise. A abordagem dos atos de fala representa um esforço conceitual que permite demonstrar sua relevância para o processo lingüístico. Em muitas circunstâncias, 252 a presença de convenções na concepção de um ato torna-se um fator decisivo para o seu contraste com outros atos que compartilham propriedades semelhantes. Passemos, então, a comentários mais específicos sobre a papel desempenhado pelas convenções. A concepção formal de um ato de fala modela-se em razão de componentes básicos que representam a existência de convenções mais ou menos fixas no plano das circunstâncias apropriadas de seu uso. O peso das convenções, no arranjo formal de um ato, incide tanto sobre condições impostas aos seus interlocutores, como ao seu conteúdo proposicional. Ordens, batismos, súplicas... são atos de fala aos quais podemos vincular convenções que regem o seu funcionamento em relação às condições acima apontadas. importância de apenas alguns aspectos de Destaquemos a convenções que ainda não foram objeto de comentários anteriores: (a) Uma ordem, para que seja bem sucedida, requer a convenção determinante que o seu conteúdo proposicional não possa ser prejudicial àquele que desempenha as tarefas previstas. Logo, conteúdos que tendem a ser lesivos ao alocutário podem bloquear o curso normal de sua execução plena. No entanto, incertezas quanto à eficácia de convenções, que postulam valores para conteúdos proposicionais, surgem, em razão da inexistência de um padrão preciso que nos possibilite ajustar o valor de prejudicial entre locutor e alocutário. Por outro lado, sabemos que, em relações hierárquicas mais fortes, exigências sobre o conteúdo proposicional tendem a ser enfraquecidas, já que os alocutários estão na obrigação incontinente de cumprir o que foi ordenado. Diferentemente, relações hierárquicas mais flexíveis permitem questionamentos e contrapontos sobre a natureza do conteúdo proposicional, e os alocutários tornam-se mais exigentes em relação às tarefas que lhes são imputadas. Além do mais, em se tratando de ordens, cujas conseqüências práticas e derradeiras estão orientadas para terceiros, e não para o alocutário, a convenção sobre a natureza do conteúdo proposicional continua prevalecendo para aquele que a executa. Por esse motivo, em nome de convenções, ordens para ‘prender’, ‘bater’, ‘torturar’ e ‘matar’, apesar do valor lesivo do conteúdo, continuam sendo executadas com sucesso, porque não violam a convenção em análise. 253 (b) O ato-batismo, de valor mais cartorial do que o precedente, não se constrói a partir das pretensões de um locutor para realizá-lo, mas somente pode ser praticado por aqueles que estão investidos de certas prerrogativas institucionais e sociais: logo, há convenções que asseguram condições específicas a locutores para batizar pessoas, navios, estradas... Assim, por mais nebulosos que sejam os limites entre intenções e convenções, batizar não pode ser submetido ao mero desejo de quem pretenda fazê-lo a qualquer momento; batizar requer circunstâncias próprias, e pessoas ajustadas a essas circunstâncias para que se efetive como um ato de fala legítimo. (c) O ato-súplica estrutura-se a partir de convenções que devem ser observadas nas correlações entre locutor e alocutário. De início, ele se mostra em contraposição a uma ordem e deve atender a condições diferentes para sua realização. Se o conteúdo proposicional do ato constitui algo de importância para o locutor, então ele poderia, através do alocutário, alcançá-lo mais de imediato, via comandos e ordenações. O locutor não o realiza, portanto, na forma de uma súplica por mera deliberação pessoal, senão em razão de uma convenção que o coloca em relação de inferioridade frente ao alocutário, pelo menos na consecução de tal ato. Súplicas contrastam, de forma menos categórica, com atos como pedido e solicitação, cuja diferença deve ser também justificada em função da existência de convenções. Há situações em que poderíamos enfraquecer o teor da relação hierárquica entre locutor e alocutário, assegurando o valor de uma convenção que exclui qualquer grau de favorecimento hierárquico a um dos interlocutores, no caso de pedido e de solicitação.176 Os fatos, todavia, não mostram evidências em favor de convenções consagradas e unívocas. Por exemplo, um locutor investido de autoridade, em muitas circunstâncias, pode renunciar ao atoordem em favor do ato-pedido, flexibilizando as relações. O inverso, entretanto, não pode ser extensivo a nenhum falante, já que o ato não institui a convenção − uma ordem não pode ser proferida com o intuito de criar uma convenção hierárquica entre os seus interlocutores −; esta é uma condição para a existência daquela. Outra orientação deve ser fixada para a correlação pedido/súplica: o direito a pedido pode 176 Do ponto de vista do conteúdo proposicional, podemos assegurar certas convenções que regem a formulação de um pedido, por exemplo. Um pedido, destinado a um alocutário, não pode conter termos ásperos na sua formulação. Aquele que o executará não pode sentir-se acuado, porque uma característica do ato-pedido é que o alocutário se disponha, espontaneamente, a realizá-lo em favor do alocutário (embora possa negar-se a fazê-lo). 254 ser transformado numa súplica, se o locutor pretende diminuir o espaço de recusa do alocutário. A orientação contrária também seria possível, mas correria o risco de descomprometer o alocutário com a sua realização. Esse quadro de correlações evidencia que as convenções constituem, de fato, um fundamento para a construção de atos de fala, o que, porém, não pode ser traduzido como garantia de sua evidência em todas as circunstâncias em que atos específicos aconteçam. Há, como vimos, situações para as quais o estabelecimento de convenções torna-se uma tarefa duvidosa, mesmo porque podemos desdobrar diversas escalas do ponto de realização em modos de realização possíveis, onde a presença de convenções, se existem, pode não se tornar suficientemente esclarecedora para determinar o funcionamento de um ato. No caso acima, quando passamos do modo-pedido para o modo-súplica não fica evidente se o fizemos devido a convenções; nada impede que o locutor tenha chegado a essa transformação por uma intenção − mas haverá sempre uma convenção que define o modo-súplica de forma independente. Dificuldades desse teor sempre foram marcantes na teoria, desde o texto de AUSTIN (1989), por exemplo, quando propõe a distinção entre ilocucional e perlocucional, postulando que argumentar é ilocucional, já que existem convenções que regem a sua existência, enquanto insinuar é perlocucional, porque não existe uma convenção que nos leve à persuasão, por se tratar de um efeito produzido por intenções. Não se trata, pois, de uma questão absolutamente fechada a necessidade de reconhecer padrões distintos para argumentar e para insinuar. Poderíamos determinar regras de construção de silogismos, destacar a adequação de argumentos em relação a posições assumidas como componentes da convenção que rege uma argumentação, mas não nos parece que convenções possam ser arregimentadas para justificar o funcionamento de insinuar. As convenções, de modo geral, exercem um papel determinante na construção do processo enunciativo, pois asseguram certos padrões para o seu funcionamento. Elas se responsabilizam por construir uma face do discurso de domínio consensual no circuito interlocutivo; são elas que asseguram, por exemplo, que ordens sejam cumpridas, que declarações tenham validade pública, que os sujeitos se comprometam juridicamente com testemunhos que proferem, ou que se engajem eticamente com promessas que enunciam. Os atos de fala apresentam uma disponibilidade pública em relação à sua construção lingüística − todo falante de uma língua natural torna-se apto a construir ordens, promessas, testemunhos... 255 −, mas essa disponibilidade não se estende, de modo eqüitativo, às condições de seu uso efetivo. As práticas enunciativas que materializam quaisquer atos submetem-se a normas determinadas pelo lugar social dos usuários, pelas funções institucionais que exercem, por padrões rituais a que se submetem, ou ainda por circunstâncias interlocutivas que constroem no decorrer de um processo dialogal. Em todas essas circunstâncias prevalecem convenções específicas de uso; sua validade está circunscrita a padrões próprios a que se submetem os usuários: todos os locutores podem expressar, asseverar, prometer; muitos podem ordenar, jurar, suplicar; poucos podem batizar, declarar, nomear.. Além do mais, os objetos sobre os quais podem incidir tais ações ainda se submetem a outras restrições: todo locutor pode expressar sobre tudo, mas só pode asseverar o que julga verdadeiro, e deve prometer o que pode realizar. Poucos podem declarar a existência de certos fatos a partir de seu ato; os objetos que se conformam ao batismo são escassos; nomeações recobrem apenas pessoas no desempenho de certas funções públicas. Não se atestam valores universais às convenções: o seu poder de legislar sobre o universo das práticas discursivas decorre de situações especiais que asseguram o funcionamento de um determinado ato. Nenhuma convenção pode ser pensada a partir de um valor único, de uma hegemonia que venha calar dissonâncias sobre os objetos discursivos, embora seja sempre possível supor a existência de uma convenção universal, por exemplo, de que toda pergunta deva, eticamente, ser respondida, de que toda promessa deva, eticamente, ser cumprida. O fato de convenções revestirem-se de valor normativo não deve supor ausência de conflitos nos processos interlocutivos regidos por elas. Conflitos podem se constituir em ruídos propositais, introduzidos pela ação deliberada das intenções que também interceptam o curso normal de locutores e alocutários na realização de um ato. Assim, ao invés de uma suposta monotonia modelada pelas convenções, o processo enunciativo mostra-se essencialmente dinâmico, por acolher o discurso na sua forma de acontecimento único, no tempo e no espaço. Abrigando acontecimentos discursivos, o processo enunciativo torna-se reflexo do processo histórico, enquanto moldado por convenções vigentes que determinam o funcionamento dos atos de fala, ao mesmo tempo em que se evidencia como refração que introduz seqüelas no funcionamento de tais atos, enquanto instância de emergência das intenções. Esse teor elástico do processo enunciativo transforma-o num objeto complexo de análise, pois ele se abre à medida que sacrifica a estrutura em favor do acontecimento, mas, paradoxalmente, se fecha, à proporção que sacrifica o acontecimento em favor da estrutura. 256 Por motivos dessa ordem, a enunciação, enquanto sistema fechado, permite fazer-se portadora do discurso feito razão e consenso, mas, enquanto sistema aberto, torna-se emissária do discurso feito desejo e dissenso. Este movimento dúbio que a enunciação nos reserva não deve ser considerado um defeito na sua formulação conceitual: a enunciação funciona desse modo, por ser o modo como a linguagem funciona. Finalmente, os propósitos pleiteados por Peirce em relação ao pragmatismo, isto é, o de “definir o propósito racional”, a partir de “condutas utilitárias das palavras ou das proposições” encontra, nos enfoques a que nos recorremos no plano da enunciação, componentes e procedimentos válidos para sua compreensão. Nem a análise das práticas de linguagem proposta pela Teoria dos Atos de Fala, nem a análise do quadro de correlações enunciativas formuladas pela Semiolingüística constituem os únicos padrões relevantes para “definir o propósito racional”. Muitas outras abordagens e orientações para as práticas de linguagem ajustar-se-iam, com certeza, aos propósitos definidos para o pragmatismo. Entretanto, nem o valor teórico da semântica (e suas extensões), nem o da semiótica valem como procedimentos únicos de análise, os quais sejam suficientes para justificar tanto o grau de compreensão conceitual, como o de eficácia prática que devemos atribuir a certos objetos e comportamentos no quadro do pragmatismo. Perspectivas engendradas na enunciação permitiram que avançássemos sobre questões propostas por Peirce na formulação geral do pragmatismo. Só podemos conceber alguma racionalidade a “condutas utilitárias das palavras”, se igualmente concebemos alguma estruturação à existência de atos lingüísticos que materializam tais condutas. Em se tratando de práticas ordinárias de linguagem, processo enunciativo − nos mais diversos formatos disponíveis − e pragmatismo − no modelo de Peirce −, inscrevem-se mutuamente um no outro. Nem avançamos no processo enunciativo sem conceber critérios para algum padrão racional de nosso agir comunicativo; nem perseguimos os objetivos do pragmatismo, desconhecendo os embates entre locutor e alocutário, as controvérsias entre intenção e convenção. Eis, portanto, o cenário que almejamos compor nos limites da nossa reflexão. 257 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 258 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 01. ARMSTRONG, S.L., GLEITMAN, L. R., GLEITMAN, H. What some concepts might not be. Cognition. n.13, p. 263-308, 1983. 02. AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer; palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas,1990. (Trad. de: How to do things wiht words). 03. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981. 04. BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral II. Campinas: Pontes, 1989. p. 81-90: O aparelho formal da enunciação. 05. . Problemas de lingüística geral. São Paulo: Nacional, 1978. p. 294306: A filosofia analítica e a lingüística. 06. . 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