1 Os psicológos e sua inserção no SUAS: da sensação inicial de perda de identidade ao reconhecimento de uma nova profissionalidade e de suas bases teóricas 1 Eduardo Mourão Vasconcelos 1) Introdução: a emergência no país dos novos programas de assistência social e o processo de inserção de psicólogos em suas equipes como um ‘ritual de passagem’ A criação e implementação gradativa do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no Brasil vem significando um novo campo de atuação para os psicólogos, mas esta inserção no perfil de trabalho requerido pelos novos serviços vem se mostrando difícil e problemática. Analisar os vários aspectos deste processo de inserção dos psicólogos nestes serviços é o tema deste pequeno ensaio, escrito a partir de minha experiência de assessoria realizada no período entre 2004 e 2005 à linha de programas sociais em implementação no Estado do Rio de Janeiro a partir de 2000, pela Secretaria de Estado da Família e da Assistência Social, por meio da coordenação de esforços com as prefeituras. No plano nacional, esta perspectiva de programas de assistência social foi sancionada na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), de 1993, mas apenas teve condições de ser efetivamente implementada em todo o território a partir da IV Conferência Nacional de Assistência Social, em 2003, que levou ao estabelecimento de diretrizes formais em 2004, no documento “Política Nacional de Assistência Social” – (PNAS) (Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome, 2004), e ao lançamento da “Norma Operacional Básica de 2005” (PNAS/NOB/SUAS), documentos oficiais que servem de referência para a implantação concreta destes programas, de forma descentralizada, nos estados e nos municípios de todo o país. Nesta Norma Operacional, são indicados os diferentes níveis de atenção e proteção social (básica e especial, mas com vários níveis de complexidade) e a distribuição dos serviços (Centros de Referência da Assistência Social – CRAS, e os Centros de Referência Especializada da Assistência Social - CREAS) destinados aos vários tipos de municípios, de acordo com o porte populacional. As equipes devem contar com profissionais de serviço social e de psicologia, embora outros profissionais afins também tenham acesso, como os pedagogos. Portanto, se alguns estados, como o Rio de Janeiro, iniciaram este tipo programa já na virada do milênio, foi a partir de 2005 que se iniciou em todo o país esta inserção mais acelerada de psicólogos nestes novos serviços de assistência social. O contato com psicólogos integrados às equipes municipais no Estado do Rio de Janeiro, através das demandas feitas à coordenação do programa, de conversas pessoais ou de discussões 1 Texto elaborado em 2005 para assessoria e capacitação de profissionais para a Secretaria de Estado da Família e da Assistência Social do Rio de Janeiro, e já publicado em Rosana Morgado, Eduardo M Vasconcelos e Joana Garcia, Cadernos de Assistência Social, vol 1: contribuições para a proteção básica e proteção especial. Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, Resende – RJ, 2011, 92 págs. A presente versão passou por uma rápida revisão e algumas pequenas mudanças e ampliações. 2 coletivas de eventos formais de capacitação, revelou que este processo de inserção no trabalho das equipes tem sido problemático e conflituoso. A partir dos depoimentos, pude perceber que este processo, quando vivido de forma comprometida, aberta e sincera por parte do profissional, no sentido de enfrentar o desafio colocado, tem muitas similaridades com aquilo que os antropólogos denominam de “ritual de passagem”. Embora encontremos visões diferenciadas destes rituais entre os cientistas sociais, inclusive algumas que os vêm unicamente na direção da adaptação ao status quo e de reforço dos laços de solidariedade social e da tradição, outras os avaliam como dispositivos ou processos sociais e pessoais que podem levar a alternativas ideológicas e culturais, levando ou não a reforçar o status quo. Por exemplo, em trabalhos já clássicos, Gluckman (1963) e Turner et al (1966), da escola de antropologia social inglesa, pensam que os rituais oferecem a possibilidade de atualização de antiestruturas e de estados potenciais e liminares da sociedade, estimulando a sua transformação e abrindo caminhos para as variantes possíveis de destino, em um processo que chamam de “drama social”. Por sua vez, como um dos melhores representantes da antropologia social brasileira, Roberto Da Matta (1981) avalia o próprio trabalho de campo em antropologia como um ritual de passagem. Assim, vê a ruptura metodológica introduzida por Malinowski na antropologia social no século XX como esta abertura ao desconhecido de uma outra cultura. Nesta virada, os antropólogos deixam a segurança dos gabinetes e bibliotecas, onde colecionavam e sistematizavam relatos avulsos de viajantes, cheios de surpresas e curiosidade em relação ao exotismo das culturas distantes, mas também marcados por interesses comerciais e colonialistas, ou simplesmente, por visões estereotipadas e, às vezes, preconceituosas. Na nova postura, cada um é encorajado a assumir ele mesmo o papel de viajante aventureiro. Este processo, que requer um contato íntimo com a outra cultura, aprender a sua língua e viver seus rituais por dentro, visa buscar dados sem nenhuma intermediação de outras pessoas/culturas e produzir um processo de relativização de suas próprias crenças e valores pessoais, incluindo de sua própria identidade profissional, para poder apreender propriamente as ações dos nativos como um sistema cultural e social com uma lógica e dinâmica própria. Assim, a inserção profunda em outras culturas exigida pelo trabalho de campo representa um verdadeiro ritual de passagem para o antropólogo, quando é obrigado a repensar seu próprio processo de socialização e sua própria identidade, é forçado a exercitar novas perspectivas de olhar os fenômenos sociais, étnicos e culturais, levando a um profundo enriquecimento pessoal, de sua visão de mundo, bem como obriga a própria antropologia a um processo permanente de colocar em dúvida seus próprios postulados e formas de identidade profissional. Em minhas andanças como assessor e agente de capacitação para as equipes de assistência social no Estado do Rio durante vários anos, até 2006, ouvi vários relatos de inserção de colegas psicólogos no programa que a meu ver se assemelhavam muito a este ritual descrito por Da Matta, com várias fases. Vamos verificar melhor isso. Em geral, ao se inserirem nas equipes, muitas vezes com pouquíssima informação sobre o que irão fazer, a maioria dos psicólogos recém-chegados leva um verdadeiro “susto”, pois os modelos profissionais mais idealizados e reconhecidos na cultura e o currículo nos cursos universitários geralmente são voltados para a psicologia clínica convencional, exercida nos consultórios privados. A primeira tentação é reproduzir estes modelos nos bairros populares: “é o que eu sei fazer”, ou “esta é a minha competência”. A impossibilidade de fazê-lo ou os desacertos deste tipo de prática na assistência social, quando permitidas (o que não corresponde às propostas normativas 3 do programa), geram uma sensação forte de “perda de minha identidade como psicólogo(a)” ou de “estar no lugar errado”. Contudo, vários conseguiram ultrapassar esta perplexidade inicial. Conheci muitos psicólogos que aceitaram o desafio de forma sincera e comprometida e que não viram o novo trabalho apenas como um “bico” temporário que lhes dariam uma renda fixa, para poder se lançar, aí sim com todo o afinco, na clínica particular. Entenderam a importância ética e social do programa, e mesmo sem saber bem o que fazer lá, compreenderam que as dificuldades não significavam apenas de um déficit de competência pessoal, ou que não deveriam sedar a ansiedade ou até mesmo a depressão por qualquer meio, e se abriram para o diferente representado pelos serviços e pelo novo tipo de “clientela”. Esta postura os levou a assumir a sensação de estranhamento, buscando conhecer a população alvo do programa, sua realidade e cultura próprias, e se abrindo para as novas possibilidades de ação profissional. Nesta trajetória, baixaram as resistências e defesas, “aprenderam a aprender” com a nova realidade, com os profissionais de outras áreas ou com psicólogos com mais experiência no campo, se permitiram a ousadia de experimentar novas práticas que julgavam mais adequadas ao novo contexto, e foram flexibilizando a identidade profissional aprendida no passado. Convido então o leitor a se perguntar: não se trataria, portanto, e verdadeiramente, de um ritual de passagem? Entretanto, mesmo se a resposta for positiva, não seria bom nos interrogar qual a natureza desta mudança? Seria mesmo o caso de uma crise tão global assim da identidade profissional dos psicólogos? 2) A hipótese central deste texto: A inserção dos psicólogos no SUAS não induz a uma crise global de uma suposta identidade profissional única e global em psicologia, mas se trata de uma nova ênfase em formas de profissionalidade já existentes, mas até então secundarizadas na sociedade e na universidade brasileira. Creio que o processo de inserção dos psicólogos no SUAS possa ser descrito parcialmente por meio desta analogia com os rituais de passagem, como indicamos na seção anterior, em que tentamos criar uma imagem mais inspiradora e positiva das mudanças que ocorrem no nível individual dos profissionais e de alguns aspectos do desenvolvimento da profissão, como ocorreu com a antropologia. No entanto, precisamos a partir de agora ampliar o escopo da análise, para compreender melhor suas várias dimensões. Aqueles colegas que continuaram a sua inserção na assistência social e procuraram sustentar de forma mais sistemática as novas práticas, através da troca de experiências e de busca de bases teórico-operativas adequadas, puderam perceber que há um bom tempo existe no Brasil ramos da psicologia, particularmente a psicologia social e comunitária, que já vem trabalhando com modelos teóricos e de prática profissional dirigidos para realidades similares. De forma um pouco diferenciada, a própria psicologia clínica teve que realizar um processo algo semelhante, quando se deparou com os novos serviços de atenção psicossocial da reforma psiquiátrica, cujos dispositivos de atuação são muito diferentes da clínica psicoterápica particular (Vasconcelos, 1999). Assim, nas discussões de capacitação que tivemos no SUAS no Estado do Rio de Janeiro, pude então constatar e desenvolver melhor minha compreensão desta trajetória. Em minha opinião, o processo de ritual de passagem é inteiramente genuíno e necessário, com mudanças pessoais e de identidade profissional profundos. Entretanto, 4 não se trata de perder a identidade profissional de forma global, mas apenas se abrir para novas formas de profissionalidade em psicologia, que no contexto brasileiro foram secundarizadas, particularmente na sua representação social mais difusa na sociedade e nos cursos universitários, mas que já vinham sendo identificadas e praticadas há pelo menos duas décadas no Brasil. Para discutir melhor esta afirmação, inclusive explicitando os conceitos utilizados, vamos precisar ir devagar e em partes, estabelecendo um trajeto que partirá de uma explicação mais clara do contexto e das características diferenciadas destes novos serviços e programas sociais. 3) Os princípios e características básicas da nova assistência social que configuram formas de profissionalidade diferenciadas Se tentarmos fazer uma caracterização das práticas profissionais requeridas no contexto do SUAS, de forma independente do tipo específico de profissional, podemos identificar de forma bastante esquemática as seguintes características e princípios mais fundamentais2: a) O objeto da prática profissional: trata-se de situações de vulnerabilidade e risco social, ou seja, fenômenos complexos e multidimensionais, envolvendo aspectos econômicos, sociais, políticos, culturais, étnicos, psicológicos, de gênero, de geração, etc. b) A população alvo: os grupos sociais mais expoliados e pauperizados da sociedade brasileira, com uma vida social e cultural muito diferente da nossa, já que a grande maioria de nós profissionais temos origem nas classes médias. c) Universalização da proteção: característica inerente às políticas sociais como direito de cidadania, e dessa forma trabalhando na perspectiva de superar a antiga tradição brasileira de focar os programas sociais nos grupos populacionais de maior importância econômica, política e social. Os programas devem ser planejados diretamente para isso, na sua oferta espacial no território, no montante de recursos, na forma ativa de buscar seus usuários, na formatação cultural implícita, nos dispositivos de acessibilidade, etc. d) Descentralização político administrativa e territorialização: a atenção é dada no território, no local de vida e trabalho da população alvo, sob a gestão mais direta do poder municipal e de suas agências locais, mas de forma integrada com a gestão estadual e federal; e) Participação, controle social, visibilidade social e prestação de contas: o usuário não é mais uma pessoa isolada que compra serviços de forma individualizada, mas sim: - um cidadão e um ser coletivo com direitos; - e que deve ser estimulado a ter voz ativa, participar, fiscalizar e atuar nas instâncias de controle social; 2 O capítulo sobre Proposta Conceitual do PAIF e do SUAS nesta coletânea apresenta uma discussão mais sistemática sobre cada uma destas características, além de remeter para as referências bibliográficas mais importantes. 5 - em relação à psicologia clínica privada, esta é uma relação muito diferenciada daquela em que o discurso do cliente deve ser apenas interpretado em função de seu significado estritamente psicológico. f) Integralidade: embora constitua um conceito complexo, podemos indicar os principais sentidos em que ele pode ser compreendido: - como uma imagem e perspectiva utópica de futuro, mas que orienta e direciona nosso planejamento e prática no presente; - como princípio de reconhecimento das necessidades específicas de diferentes grupos da população, a partir das várias clivagens: classe social, gênero, etnia, geração, cultura, condição existencial mais singular (preferência erótica, deficiência, transtorno mental, outras doenças crônicas, etc). - como um modo mais flexível da organização e do processo de trabalho; - como princípio integrador de políticas e programas, na direção da intersetorialidade e interdisciplinaridade; g) Intersetorialidade: significa fazer todos os esforços na direção de criticar e ir superando a atual fragmentação administrativa, institucional e financeira, a descontinuidade, a superposição e competição entre agências no setor público, buscando articular interesses comuns, o estabelecimento de responsabilidades compartilhadas por determinadas linhas de atuação e de ação concreta integrada. Assim, programas dirigidos a situações de vulnerabilidade social implicam necessariamente ações multidimensionais integradas nas áreas de infra-estrutura urbana, transporte, saúde, educação, trabalho e renda, assistência social, cultura, etc. h) Interdisciplinaridade3: Este princípio, também complexo, busca: - a superação das conseqüências da especialização e da fragmentação das diversas áreas de conhecimento, das competências profissionais e das técnicas de intervenção. O velho sistema desintegrado e com ações uniprofissionais desarticuladas: + funciona com base na competência fragmentada dos profissionais, sem abertura para novas abordagens que assumam toda a complexidade dos problemas em foco; + provoca seleção, desresponsabilização e negligência em relação a usuários, temas e questões que não se encaixam nas competências especializadas. - a formação de equipes que atuam na transversalidade das questões econômicas, sociais, políticas, culturais, ambientais, jurídicas, relacionais, psicológicas, de gênero, etc. - a responsabilização de toda equipe pelo agenciamento inicial da totalidade das necessidades dos usuários, o que implica em uma profissionalidade mais complexa dos trabalhadores; 3 Para este tema, além da referência ao capítulo sobre proposta conceitual nesta coletânea, ver especialmente um outro trabalho de minha autoria já publicado (Vasconcelos, 2002). 6 - uma disposição fundamental para “aprender a aprender”, para o trabalho colaborativo entre os profissionais dentro das equipes e entre equipes, para superar o isolamento das intervenção. Dadas todas estas características e princípios, quais as implicações deste novo contexto de políticas, programas e práticas para os profissionais, particularmente para os psicológos? Com entender o que chamamos de novas formas de profissionalidade? Para compreender melhor isto, precisamos de alguns conceitos oriundos da sociologia das profissões, discutidos na próxima seção. 4) Para entender as novas formas de profissionalidade: os elementos constitutivos e a dinâmica do profissionalismo Embora apresente muitas visões diferenciadas, algumas linhas importantes dentro da sociologia das profissões geralmente identificam no que chamam ‘profissionalismo’ pelo menos quatro elementos básicos, de forma bastante esquemática 4: a) Processo de inserção histórica na longa divisão social e técnica do trabalho e da constituição dos saberes enquanto estratégia de poder, ao longo da história da humanidade; b) Reconhecimento e formalização de um mandato social e legal sobre um campo específico, com responsabilização legal e ética sobre a prática profissional, fronteiras de competência e atribuições privativas; c) Institucionalização de organizações corporativas (conselhos profissionais, associações profissionais e científicas, sindicatos, etc) que organizam o controle sobre a formação e as práticas dos filiados, incluindo normas éticas, bem como a defesa de interesses econômicos e políticos; d) Cultura profissional: conjunto mais geral ou particular e compartilhado de valores, representações e identidades sociais e profissionais, preferências teóricas e técnicas, estilos de vida, padrões de relação com a clientela, com a sociedade mais ampla e com a vida política. Como se pode ver, o profissionalismo é um fenômeno abrangente e de raízes históricas profundas, com várias características e processos internos e com diferentes níveis de dinâmica de transformação ou resistências a mudanças. Por exemplo, na atualidade, a maioria dos países ocidentais apresenta mandatos sociais e legais aprovados através da legislação emanada por seus parlamentos, e portanto, com enormes dificuldades para mudanças mais significativas nas leis e normas específicas que regulam o exercício profissional e a competição inter-corporativa. Por outro lado, de modo geral, a cultura 4 Também para este tema, ver o trabalho indicado na nota anterior (Vasconcelos, 2002). 7 profissional difusa na sociedade e nos grupos particulares de profissionais apresentam uma maior flexibilidade no conjunto dos elementos do profissionalismo. Contudo, pode também incluir algumas formas muito institucionalizadas de prática e normas sociais, particularmente resistentes a mudanças, quando consolidadas em currículos, nos cursos de formação profissional universitária, e nas gerações de profissionais que ocupam os principais cargos como professores e pesquisadores. Estes atores sociais, dependendo de sua origem social, de sua inserção nos interesses hegemônicos da sociedade e de seus posicionamentos ético-políticos e existenciais, podem às vezes resistir muito a incorporar novas competências e práticas, por representar um campo de enorme luta entre interesses econômicos e capitais simbólicos (no sentido dado ao termo por Bourdieu) consolidados entre diferentes profissionais de prestígio e grupos de profissionais. Os processos de inserção histórica significam um componente de abertura a novas práticas, cuja velocidade de mudanças vem acelerando muito, particularmente a partir da segunda metade do século XX, com o desenvolvimento e a ampliação de políticas sociais de caráter universal em países centrais e de socialismo real, e que foram se difundindo gradativamente para os países periféricos. Da mesma forma, a emergência dos chamados novos movimentos sociais, a partir dos anos 60, ligados a novas clivagens de classe social, gênero, geração, expoliação urbana, etnia, ecologia, condições existenciais particulares (identidades sexuais e preferências eróticas, deficiências, doenças e quadros crônicos, etc), também implicou em novas práticas profissionais inseridas em formas mais complexas de divisão sócio-técnica do trabalho e de relações de saber-poder, polarizadas e intrinsecamente moldadas pelas lutas específicas em cada um desses campos. É exatamente neste campo de novas práticas que vão se conformando as novas formas de profissionalidade, como um processo de agregação e sedimentação gradual das modalidades de práticas profissionais emergentes, com forte caráter instituinte dentro da dinâmica dos componentes convencionais do profissionalismo, e que gradualmente vão criando e legitimando novas competências e arranjos teóricos e operativos, bem como novos nichos de culturas profissionais específicas. Muitas vezes, estas formas mais recentes de profissionalidade são incorporadas ao conjunto da cultura profissional de maneira apenas secundarizada, dada a hegemonia econômica e cultural das práticas e das formas mais convencionais de profissionalidade, que moldaram, até então, o mandato profissional, as características principais das organizações e normas corporativas, e as instituições, o conteúdo e as normas de formação profissional e pesquisa acadêmica. Algumas vezes, contudo, as organizações corporativas, particularmente quando vanguardeadas por lideranças com uma visão ético-política renovadora, crítica e progressista, têm um papel importante de pesquisar, compreender e divulgar estas formas de profissionalidade emergentes e mais orgânicas aos interesses popular-democráticos de seu país, ou até mesmo no plano internacional. Esse me parece o caso particular das organizações corporativas da psicologia no Brasil, como veremos na próxima seção. 5) As transformações na profissionalidade dos psicólogos no Brasil nas últimas décadas e a relação com a sua inserção nas novas políticas sociais universais Penso que agora temos os principais elementos históricos e conceituais para continuar a desenvolver a hipótese central que expus rapidamente na seção 2 acima. Apenas para reconstituir o raciocínio, em primeiro lugar reconhecemos que o novo perfil de práticas requerido na atual política de assistência social, no SUAS, exige um ritual de passagem em relação às formas de profissionalidade mais convencionais hegemônicas na formação universitária, na sociedade mais geral e no universo dos 8 profissionais de saúde em particular. Esta representação social e imagem do psicólogo5 é mesmo marcante da identidade dos profissionais, e seu ultrapassamento requer uma disposição pessoal e profissional efetiva para se possa reconhecer e buscar novos modelos de prática. Entretanto, já também apontamos acima para a perspectiva de que estas novas formas de profissionalidade no campo da assistência social não significam propriamente a negação da herança e a identidade profissional mais global dos psicólogos, mas apenas o reconhecimento de modelos e práticas profissionais com pouca visibilidade social dentro da cultura profissional dominante, mas que já fazem parte do repertório da profissão no país pelo menos desde a década de 1980. Elas vem sendo reconhecidas sistematicamente pelo chamado Sistema Conselhos de Psicologia (SCP), que engloba o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e os vários Conselhos Regionais (CRPs). Gostaria de comprovar melhor isto, mostrando como, em alguns trabalhos significativos que investigam as práticas emergentes em psicologia no país, as características destas formas de profissionalidade já estavam indicadas pelos menos desde os meados dos anos 80, em um primeiro momento mais voltadas para a psicologia social e comunitária, mas depois associadas a todos os campos de atuação da psicologia. O primeiro exemplo é de um livro de minha própria autoria, “O que é psicologia comunitária?”, da conhecida coleção Primeiros Passos, publicado pela Editora Brasiliense, com primeira edição em 1985. Na verdade, este foi o primeiro livro brasileiro voltado para o tema. Neste pequeno ensaio de caráter introdutório e sintético, marca registrada daquela coleção, procurei identificar as características das práticas convencionais em psicologia e compará-las às da psicologia comunitária, que vinham sendo utilizadas de forma orgânica aos vários movimentos sociais populares que emergiram de forma mais explícita a partir de 1978, inclusive como uma mobilização social e reação ao regime militar. Esta comparação foi revisada, incluindo rápidas atualizações, mas sem mudar o conteúdo original do trabalho, e é reproduzida no Quadro 1: Quadro 1: Características da Abordagem da Psicologia Convencional e da Psicologia Comunitária PSICOLOGIA CONVENCIONAL PSICOLOGIA COMUNITÁRIA 1) Unidisciplinar, uniparadigmática e 1) A realidade psicológica é complexa, integrando uniprofissional; foco no psicológico de forma aspectos sociais, psíquicos e biológicos; independente do social. abordagem interdisciplinar e interparadigmática; trabalho em equipes interprofissionais horizontalizadas. 2) Abordagem individual dos fenômenos psíquicos; 2) Embora levando em conta a singularidade de ênfase na singularidade das pessoas. cada pessoa, a ênfase é nos processos grupais e coletivos; conteúdo psicológico também com conotações sociais, institucionais, culturais e 5 Esta representação difusa na sociedade e nos cursos universitários, associada principalmente à clínica privada e ao seu caráter exclusivamente terapêutico e individualizado, vem sendo sistematicamente pesquisada por investigadores universitários e pelas organizações corporativas no Brasil, com uma série de trabalhos publicados sobre o assunto. Ver particularmente os trabalhos de Praça e Novaes (2004); Ferreira Neto (2004); Conselho Federal de Psicologia (1994, 1992), Conselho Regional de Psicologia – 4.a Região (1992), e Mello (1975). 9 políticas individuais e coletivas. 3) Abordagem geralmente desarticulada de uma 3) Abordagem articulada a uma visão histórica e visão social mais ampla, e geralmente se pretende social mais ampla; explicitação de compromisso neutra em relação às questões ético-políticas. ético-político. 4) Formação profissional predominantemente 4) Formação necessariamente integra intimamente teórica, intramuros e com poucos vínculos com a ensino, pesquisa e extensão, com forte relação prática. teoria/prática; atividades realizadas prioritariamente nos serviços e nos locais de vida e trabalho da população. 5) Técnicas e atividades predominantemente curativas. profissionais 5) Integração de recursos curativos e preventivos, com ênfase na prevenção. 6) Teorização e atividades dirigidas principalmente para consultórios e serviços privados rentáveis; baixa accessibilidade financeira e geográfica, com concentração em áreas nobres das cidades e em grupos sociais privilegiados econômica e culturalmente. 6) Prioridade básica para as classes populares e para serviços públicos gratuitos, descentralização em locais de trabalho e moradia da população, com máximo de acessibilidade geográfica e adequação às características sociais e culturais da população. 7) Prática profissional altamente especializada com base em competências parciais e na competição profissional; clientela se adapta à divisão técnica do trabalho, sendo referenciada a distintos serviços não integrados; tendência à desresponsabilização e a “buracos” na assistência integral à clientela. 7) Profissionais e práticas mais generalistas e flexíveis, apropriadas à complexidade e variabilidade das situações; busca de pesquisa e sistematização de práticas inovadoras e/ou alternativas; ênfase na responsabilidade pelo cuidado integral da clientela; intersetorialidade. 8) Práticas sofisticadas exigem formação longa, 8) Pesquisa e sistematização de práticas demorada, de alto custo, que é repassada aos simplificadas, apropriadas às condições sociais e serviços, com elitização social. culturais populares; extensão da cobertura com qualidade. 9) Práticas exigem presença e dependência do profissional; lugar do poder centrado nele e na manutenção do monopólio do seu saber profissional especializado. 9) Apesar da provisão direta de serviços, forte ênfase também no agenciamento de recursos, assessoria e capacitação de agentes locais; busca de democratização do conhecimento e do empoderamento dos usuários. 10) Abordagem não interage com o conhecimento 10) Reconhecimento e diálogo com saber e práticas difuso e práticas informais populares. autônomas da população. 11) Práticas planejadas e executadas profissional sem participação da clientela. pelo 11) Efetiva participação da clientela na definição de prioridades, planejamento, execução e avaliação dos serviços, e na formação dos profissionais; controle social através dos conselhos de política social. 12) Ação restrita ao trabalho especializado e 12) Ação ampliada envolvendo: estritamente profissional nos consultórios, escola e a) intervenção direta especializada junto à clientela empresa. dentro dos serviços; b) ação direta especializada junto à clientela nas casas e em espaços comunitários abertos; c) ação difusa em projetos sociais e intersetoriais mais amplos, com a população e outras agências; d) capacitação de agentes comunitários e técnicos em projetos especializados e intersetoriais; e) pesquisa, planejamento e gestão de programas sociais, de educação, saúde e saúde mental; 10 f) ação na sociedade mais ampla para defesa de direitos, mudança das representações sociais e dos estigmas, e militância política. Um segundo livro, desta vez promovido e organizado pelo Conselho Federal de Psicologia, datado de 1994, apresenta de forma sintética em um de seus capítulos, de autoria de Virgílio Bastos e Rosemary Achcar6, as características das práticas emergentes em psicologia e os desafios para a formação profissional. A partir das indicações feitas neste trabalho, montei uma síntese das principais características, que é apresentada no Quadro 2 a seguir: Quadro 2: Movimentos Emergentes no Exercício Profissional do Psicólogo no Brasil TENDÊNCIAS DETECTADAS NA PRÁTICA PROFISSIONAL DO PSICÓLOGO NO BRASIL PRÁTICA CONVENCIONAL PRÁTICAS EMERGENTES 1) Concepção sobre o fenômeno psicológico Centrado no plano individual (indívíduo a-histórico, Visto na interdependência com o contexto sócioisolado de seu contexto social) cultural 2) Fontes de conhecimento que embasam a prática Perspectiva unidisciplinar Perspectiva interdisciplinar 3) Natureza da intervenção (I) Centrada na ação do psicólogo isoladamente Atuação em equipes interprofissionais 4) Natureza da intervenção (II) Focada no indivíduo: ‘intra-psi’, caráter ‘curativo’, Centrada em contextos, remediativo preventiva, prospectiva em grupos; ação 5) Nível da intervenção Restritiva ao plano de aplicação das técnicas Atuação no nível mais estratégico: maior poder (reduzido poder de intervenção) decisório (assessoria, gerência, consultoria) 6) Recursos técnicos Restritos e originários basicamente no âmbito da Diversidade de recursos e instrumentos; pluralidade própria psicologia de ‘técnicas’ que podem extrapolar o campo da psicologia 7) Clientela Predominantemente de classe média e com poder Mais diversificada: acesso a segmentos social aquisitivo (crianças e adultos) excluídos; classes populares 8) Atitudes em relação aos conhecimentos, técnicas e práticas Consumista: aplicar aquilo que foi gerado em outros Crítica: preocupação em gerar conhecimentos e contextos tecnologia apropriados à realidade em que atuam 6 A referência bibliográfica completa é: BASTOS, Virgílio BB e ACHCAR, Rosemary – Dinâmica profissional e formação do psicólogo: uma perspectiva de integração, in Conselho Federal de Psicologia (org) Psicólogo brasileiro: práticas emergentes e desafios para a formação. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1994 11 9) Natureza do compromisso enquanto profissional Preocupação humanista e voltada para o Preocupação com atendimento de necessidades individuais transformação social o engajamento pela Em minha opinião, os Quadros 1 e 2 apresentados acima são importantes primeiro por que mostram claramente que estas formas emergentes de profissionalidade já estavam esboçadas desde os anos 1980, e que foram devidamente identificadas e sistematizadas pelo Conselho Federal de Psicologia e por pesquisadores. Em segundo lugar, por que identificam os seus principais traços, podendo servir de referência para a discussão destes modelos de prática entre os profissionais interessados. Além destes dois trabalhos, gostaria de remeter o leitor interessado às publicações oficiais do Sistema Conselhos de Psicologia, que vem de forma sistemática divulgando trabalhos descritivos sobre universos temáticos e novas práticas emergentes. Por exemplo, o leitor pode ter uma boa idéia destas formas recentes de profissionalidade se fizer uma visita às publicações do CFP, “Psicologia, ciência e profissão” e “Psicologia, ciência e profissão: diálogos”, nos números disponíveis na Internet, desde 2002, no sítio www.pol.org.br. Um rastreamento nestas publicações indica os seguintes campos temáticos e de práticas, apresentados no Quadro 3: Quadro 3: Campos temáticas e práticas emergentes nas publicações do Conselho Federal de Psicologia, nos números disponíveis na Internet, desde 2002 1) Campos temáticos: - debates teóricos e acadêmicos; - pesquisa em psicologia; - processos sociais e políticos associados à cidadania e aos direitos humanos e sociais, tais como violência social, déficit habitacional e grupos sociais sem teto, etc; - questões de gênero, etnia e geração (por ex., idosos, crianças e adolescentes ) e relação com a saúde mental; - reforma sanitária, reforma psiquiátrica, luta antimanicomial e direitos humanos; - saúde mental do trabalho; - psicologia institucional; - artes; - religião. 2) Práticas profissionais: - práticas clínicas convencionais; - práticas em serviços de saúde, particularmente em psicologia hospitalar; - práticas em serviços de saúde mental, principalmente ligados ao processo de reforma psiquiátrica e à luta antimanicomial; - atuação sócio-comunitária com grupos sociais especiais, como moradores de rua; - atuação profissional na área do judiciário e do sistema penitenciário; - atuação em instituições; - testes psicológicos e sua avaliação crítica. 12 Como o leitor pode apreender, os artigos destas publicações vem abordando de forma sistemática os campos temáticos e as práticas emergentes envolvidos nestas formas de profissionalidade que ficaram secundarizadas nas representações sociais do psicólogo difusas na sociedade, e particularmente nos cursos universitários de psicologia. Assim, aqueles engajados nos novos programas de assistência social encontrarão nelas uma fonte muito interessante de seu estudo, como forma de sustentar sua prática profissional inserida no SUAS. Na continuidade do presente trabalho, tendo em vista disponibilizar mais elementos para subsidiar esta prática profissional do psicólogo no SUAS, farei agora uma maior aproximação com o tema da atenção psicossocial a famílias, foco central do trabalho nos novos programas de assistência social. 6) Uma nova concepção de atenção psicossocial dirigida à família no âmbito da assistência social do SUAS e suas bases teóricas As sistematizações dos modelos históricos e técnicos de atuação dos psicólogos com famílias (Pereira, 2002; Melman, 2001; Elkaïm, 1998;) indicam que as principais formas atuais de atuação da psicologia tendo como objeto famílias no Brasil são o diagnóstico e a psicoterapia individual, de grupo e de família. Alguns modelos alternativos chegam a ultrapassar o setting convencional da psicoterapia, se abrindo para intervenções na rede social da família (Sluzki, 1997). Embora estes modelos de prática possam ter plena relevância no âmbito de serviços privados e públicos do campo da saúde mental, particularmente nos ambulatórios, no âmbito da assistência social, as características indicadas para as práticas convencionais listadas nos Quadros 1 e 2 acima apontam sérios limites para a sua utilização no contexto do SUAS. Esta perspectiva de avaliação não tem a menor pretensão de invalidar as inúmeras contribuições teóricas que estes campos têm feito para a compreensão dos mecanismos psicológicos e psicossociais envolvidos nas relações familiares, de gênero e das vivências de grupos geracionais específicos, que são fundamentais para o acúmulo do conhecimento sobre estes fenômenos. Entretanto, qualquer apropriação deste conhecimento para a perspectiva da assistência social deve levar em consideração alguns aspectos importantes: a capacidade de integração interdisciplinar com outros campos de conhecimento e olhares críticos7; a importância de um foco prioritário na realidade social e cultural específica das classes populares (que constitui o objeto principal dos programas de assistência social), dado que estas abordagens geralmente são produzidas para uma clientela das classes médias e altas; e a capacidade de subsidiar práticas profissionais outras que não o modelo clínico convencional. Tendo em vista esta avaliação, a concepção de assistência social em vigor e minha experiência em pesquisa e assessoria no campo da saúde mental, no âmbito dos novos serviços de atenção psicossocial ligados à reforma psiquiátrica, e particularmente no campo da assistência social, venho sistematizando e fazendo algumas proposições e recomendações básicas sobre os modelos de atuação e as formas de profissionalidade do psicólogo no SUAS. Gostaria de colocá-las em discussão aqui: 7 Por exemplo, nos dois volumes organizados por Elkaïm (1998) de revisão das terapias familiares na atualidade, em um trabalho de excelente qualidade e claramente recomendável, autoras feministas mostram alguns limites das abordagens atuais, dada a ênfase absoluta nos aspectos psicológicos e o olhar moldado pelo setting terapêutico, em levar em consideração os problemas gerados pela violência doméstica masculina. 13 a) A abordagem clínica convencional por parte de psicólogos deve acontecer apenas em situações de emergência, ou seja, em casos de crises psíquicas de usuários, quando estes estão inseridos diretamente em outros tipos de atividades ligadas aos serviços ou projetos de assistência social; b) Este atendimento deve visar apenas o acolhimento inicial, providenciando-se o devido encaminhamento responsável e monitorado para serviços de saúde mental; c) Em caso de não haver no município este tipo de serviço, os profissionais da assistência social devem iniciar imediatamente uma negociação com a Secretaria de Saúde local para encaminhamento intermunicipal ou para criação deste tipo de serviço; d) As questões psíquicas e psicossociais devem ser abordadas, no âmbito do SUAS, de forma imanente às estratégias de reprodução social e de reinvenção das novas formas de viver, assumindo a complexidade e multidimensionalidade da vida. Em outras palavras, a proposta é de que, a não ser em casos excepcionais de emergência, indicados acima, os psicólogos não devem oferecer atividades psicoterápicas convencionais nos programas de assistência social do SUAS. A concepção implícita é de que este tipo de prática deve ser restrito a alguns tipos específicos de serviços de saúde mental, como os ambulatórios, pois mesmo a atenção psicossocial provida nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), no contexto da reforma psiquiátrica, já apresenta um rol bem mais amplo de práticas, nos quais os psicólogos estão envolvidos (Vasconcelos, 1999; Venâncio et al, 1997; Costa e Figueiredo, 2004; Saraceno, 1999). A tendência já conhecida de uso de práticas psicoterapêuticas convencionais no contexto de serviços de saúde mental para população baixa renda é a da reprodução elitizadora do modelo de consultório, fazendo com que os psicólogos se limitem a uma agenda semanal fechada de atendimentos individuais de cerca de 15 a 20 clientes ou um pouco mais, dependendo da carga horária semanal de trabalho, evitando a sua inserção em outros ou novos tipos diferenciados de práticas. Além disto, a clientela que tende a aderir a este tipo modelo de atendimento geralmente é aquela que apresenta os melhores indicadores econômicos, sociais, e educacionais nos bairros populares (Vasconcelos, 1992). Quanto à última proposição acima, na alínea (d), trata-se de uma proposição teórica fundamental, complexa, que privilegia algumas abordagens na história da psicologia clínica e da psicologia social, mas que tem também claras implicações nos modelos de prática e nas formas de profissionalidade. Abaixo, buscarei identificar os movimentos e abordagens teóricas que me parecem mais relevantes para a atuação no campo da assistência social, incluindo algumas referências bibliográficas mais importantes: a) A Psiquiatria Democrática, movimento social italiano de profissionais de saúde mental, foi quem liderou o processo de reforma psiquiátrica naquele país, fechando as instituições com características manicomiais e criando serviços de atenção psicossocial efetivamente substitutivos ao hospital psiquiátrico convencional (Barros, 1994; Sarraceno, 1999). Além de Franco Basaglia (2005), sua liderança mais conhecida, o movimento possui várias outras lideranças ainda vivas, como Franco Rotelli, que, em 14 texto hoje já considerado clássico, assim expressa a concepção básica de atenção psicossocial do movimento: “a ênfase não é mais colocada no processo de ‘cura’, mas no projeto de ‘invenção da saúde’ e de ‘reprodução social do paciente’. (...) não existe mais uma saúde, mas existem mil. (...) O problema não é a cura (a vida produtiva) mas a produção de vida, de sentido, de sociabilidade, a utilização das forma (dos espaços coletivos) de convivência dispersa” (Rotelli, 1990). Assim, na concepção do movimento, as transformações psicológicas nos indivíduos e nas famílias acontecem no próprio processo de inserção dos usuários e de suas famílias em projetos de trabalho, de arte e cultura, de dispositivos residenciais, no aumento do poder contratual através de benefícios sociais e pecuniários, do acesso aos demais serviços e programas sociais, de conquista e convivência social nos espaços públicos das cidades, da participação cidadã em associações civis e na vida civil e política, etc. b) O chamado movimento institucionalista e grupalista, que reúne várias tendências, abordagens e movimentos particulares. Entre eles, tendo em vista a relevância para o nosso tema, podemos destacar: b.1) A socioanálise nasceu na França, nos anos 60, tendo como principais expoentes Lapassade e Lourau8. Constitui uma abordagem mais sociológica, com fortes aproximações ao marxismo e às obras de Sartre mais próximas do marxismo, mas também se apropria de forma muito própria de alguns conceitos psicanalíticos. Está centrada na idéia chave de que todos os fenômenos grupais e organizacionais têm sua face de superfície visível, mas estão atravessados de ponta a ponta por processos institucionais ocultos e reprimidos, que podemos chamar de inconsciente social. Aqui há forte aproximação com Marx, na sua descrição das formas de ocultamento das relações sociais de dominação, mas a contribuição original da socioanálise está em revelar os processos institucionais e subjetivos deste ocultamento. Por outro lado, da mesma forma que no plano individual há o que Freud chamou de retorno do recalcado, há também processos de “retorno do reprimido social”. Em termos muito sintéticos, no processo de intervenção em coletivos, a socioanálise constitui uma práxis que estimula a emergência dos chamados analisadores, eventos e processos que apontam ou revelam as relações de poder e as estruturas do inconsciente social, permitindo aos atores sociais identificarem com mais clareza as forças instituídas, bem como as forças instituintes e renovadoras da dinâmica institucional, que podem ser mobilizadas nos processos de mudança social e política. Assim, as contribuições da socioanálise são fundamentais e têm enorme relevância no trabalho com grupos, em organizações, em projetos econômico-sociais e no trabalho comunitário. b.2) A esquizoanálise de Felix Guattari e Gilles Deleuze caminha em uma direção muito próxima a da Psiquiatria Democrática e da socioanálise, se apropriando e modificando de uma maneira muito própria referenciais teóricos variados, mas principalmente da psicanálise, do marxismo e do pensamento de Nietzsche. Seu principal representante foi Guattari, autor francês com vários livros sobre o tema e sobre experiências concretas de práticas e intervenções no campo social, da saúde e da saúde mental. Guattari propõe que: 8 Para uma primeira introdução à socioanálise, sugiro o livro recente de Lourau (2004), para depois fazer uma incursão nos livros mais clássicos, como Lapassade (1983) e Lourau (1995). 15 “O inconsciente pode voltar-se para o passado e retrair-se no imaginário, mas pode igualmente abrir-se para o aqui e agora, ter escolha com relação ao futuro (...) O que importa, agora (...) é o que denomino ‘devir’. (...) A única maneira de ‘percutir’o inconsciente, de fazê-lo sair da rotina, é dando ao desejo o meio de se exprimir no campo social (...): construir sua própria vida, construir algo de vivo, não somente com os próximos, com as crianças – seja numa escola ou não – com amigos, com militantes, mas também consigo mesmo, para modificar, por exemplo, sua própria relação como o corpo, com a percepção das coisas”(...). (Guattari, 1985 9). A esquizoanálise tem vários representantes argentinos e brasileiros importantes, tais como Suely Rolnick, Gregório Baremblitt, Regina Benevides de Barros, Antonio Lancetti, Peter Pál Pelbart e Heliana Rodrigues, entre vários outros. b.3) A psicossociologia teve origem na França, nos anos 70, com base nas obras culturais de Freud, mas integrando algumas contribuições da filosofia de Castoriadis e da sociologia da ação social de Touraine. Os autores mais conhecidos são Pagès, Kaës, Anzieu, Enriquez, Levy, Barus-Michel e também os ingleses Bion e Elliot Jacques, todos eles com trabalhos já publicados no Brasil10. Os psicossociólogos utilizam seus conceitos a partir da intervenção psicossociológica, na qual o profissional é chamado a atuar em grupos, associações, instituições e projetos sociais, no sentido de estimular que os participantes tenham acesso aos mecanismos conscientes e inconscientes que atuam nos processos grupais e institucionais. Muitas vezes, mesmo projetos marcados pelas melhores intenções no plano consciente, no sentido de buscar idéias críticas, estratégias participativas e valores democráticos, podem estar sendo montados de forma a articular e mobilizar inconscientemente formas de subjetividade que implicam em perda da autonomia, autoritarismo, ou até mesmo fanatismo e violência. b.4) A psicoterapia institucional francesa se desenvolveu na França desde a II Guerra Mundial, a partir de experiências internas aos hospitais psiquiátricos convencionais, e retrabalhou e ampliou conceitos psicanalíticos para a compreensão, democratização e transformação das relações institucionais nos serviços, por meio de ações horizontalizadas de decisão coletiva, divisão de trabalho e práticas grupais. Seus principais autores são os franceses Tosquelles e Oury, mas há autores brasileiros que vem sistematizando e divulgando seus conceitos e práticas (Vertzman et al, 1992; Verztman e Gutman, 2001; Moura, 2003). A meu ver, uma das idéias mais férteis desta abordagem é a concepção dos serviços como “campos transferenciais multifocais” envolvendo todas as pessoas, atividades e objetos, oferecendo: - um acolhimento imediato, aberto para toda a clientela adscrita ao serviço, e assumido por todos seus profissionais e demais trabalhadores, independente de sua situação funcional, bem como pelos usuários mais cotidianos e freqüentes; 9 Esta inserção constitui na verdade uma montagem de vários trechos do livro, para tornar suas idéias mais compreensíveis e accessíveis ao leitor não acostumado com seu estilo. Além desta obra, o leitor interessado pode consultar Baremblitt (1992), outras obras individuais do próprio Guattari (1988, 1992), de Guattari e Rolnik (1986) e de Guattari et al (2003). 10 Considero que uma boa introdução a esta corrente pode ser obtida pela leitura das seguintes obras, sugerindo-se respeitar a ordem de apresentação: Levy et al, 1994; Barus-Michel, 2004; Enriquez, 1997; e Kaës et al, 1991. 16 - uma organização interna sem verticalização e hierarquia (que reforçam a burocracia e a esterilização das mensagens verbais e emocionais), valorizando-se relações horizontalizadas, oblíquas e transversais, entre os vários atores sociais envolvidos, estimulando a implicação de todos com a tomada de responsabilidade pela atenção; - um leque o mais variado possível de dispositivos concretos capazes de atrair, gerar identificações e vínculos11 para os mais diversos tipos de usuários do serviço e de situações. Para se ter uma idéia do alcance desta concepção, os projetos que hoje são desenvolvidos no âmbito da assistência social do SUAS, tais como as brinquedotecas, as atividades de suporte escolar, os projetos de lazer, cultura, arte, esporte; os grupos e oficinas de trabalho e renda, grupos de mulheres, grupos de socialização, clubs de dança e socialização para idosos, etc, têm um enorme potencial de reabilitação psicossocial, já que criam espaços em que este tipo de relações e vínculos podem ser claramente estimulados. b.5) A escola argentina de grupo operativo teve como principais autores Bleger e Pichon-Rivière, com os principais trabalhos publicados a partir dos anos 60. Esta abordagem integra conceitos da psicanálise de Melanie Klein e do marxismo, desenvolvendo uma metodologia centrada na análise crítica dos processos grupais na sua relação com o desenvolvimento de sua tarefa, ou praxis. Em outras palavras, enquanto os métodos convencionais de psicoterapia de grupo centram sua análise das relações transferenciais entre terapeuta e clientes, Pichon-Rivière buscou abordar as relações que os participantes de grupos sociais estabelecem com as tarefas que se propõem, e daí o nome de grupo operativo12. Assim, ao mesmo tempo em que o grupo busca realizar seu trabalho concreto, ele também deve refletir sobre os processos subjetivos e inconscientes que estão atuando no momento. c) A psicologia sócio-histórica e seus principais autores originais, Vigotsky, Luria, Rubinstein e Leontiev, se desenvolveram na União Soviética, a partir da década de 30, mas suas obras só puderam ter plena divulgação mais tarde, com o afrouxamento gradual da repressão intelectual e cultural naquele país, a partir da década de 70. Construída a partir dos princípios mais gerais do marxismo, parte das noções de sujeito, subjetividade e das patologias como constituídos socialmente, na história concreta do indivíduo, em seus sistemas de relações, e na própria capacidade dos sujeitos de ações e de doações de sentidos e significados neste contexto histórico específico (Rey, 2001). Nesta direção rompe com o dualismo entre o social e o individual, criticando as abordagens baseadas em princípios universais e a-históricos, que sustentam o psicologismo presente em boa parte das teorias psicológicas contemporâneas, ou que reduzem mecanicamente os indivíduos apenas à sujeição ou internalização de forças sociais, ideológicas, culturais ou meramente discursivas. Esta abordagem já tem várias obras publicadas e fortes representantes no Brasil, entre os quais se destaca, a meu ver, 11 A noção de vínculo da psicoterapia institucional é muito semelhante à idéia de Winnicott de estimular a criação de objetos transicionais, bem como ao conceito de Guattari de produção desejante. 12 Para uma introdução aos conceitos básicos da abordagem de grupo operativo, ver Saidon (1982). 17 o cubano Fernando Gonzalez Rey, profundo conhecer das matrizes soviéticas e de seu debate com as teorias ocidentais13. Já que esta corrente deu mais ênfase aos temas da psicologia do desenvolvimento e da cognição, tiveram maior influência no campo da educação, da psicologia educacional e particularmente da psicologia social. d) Outras correntes da psicologia social e comunitária e do serviço social: d.1) Outras correntes progressistas da psicologia social: há aqui um leque bastante sugestivo de contribuições, mas gostaria de chamar a atenção particularmente para a corrente dos estudos das representações sociais. Esta abordagem busca revelar as formas com que os sujeitos e grupos sociais particulares vêem e representam as várias dimensões da vida e da dinâmica social, como dão sentido a elas, como percebem as relações de poder e dominação, como estas representações estão envolvidas nas formas particulares de ação destes sujeitos nos projetos sociais e econômicos estatais e privados, e quais as possíveis razões que levam estes sujeitos e grupos a se envolverem eventualmente em processos de mudança social. No Brasil, já há uma tradição bastante sedimentada destes estudos, com inúmeros trabalhos já publicados14, que investigam as representações sociais envolvidas nos processos econômicos, no trabalho, nos movimentos sociais, nas identidades coletivas, nas relações inter-étnicas, nas minorias e grupos sociais específicos (como os moradores de rua), nos processos de saúde e doença, nas relações familiares e de gênero, na sexualidade, nas vivências das crianças, adolescentes e idosos, etc. Em suma, estes estudos são fundamentais para o conhecimento dos processos sociais e subjetivos de grupos sociais específicos, particularmente quando investigam as representações próprias das classes populares, permitindo aos profissionais que atuam junto a elas uma melhor compreensão da sua cultura e dos parâmetros subjetivos e simbólicos que orientam a sua ação na comunidade local e na sociedade mais ampla. d.2) A tradição da psicologia comunitária constitui um campo aplicado da psicologia social, com estudos voltados para a sistematização e apropriação de teorias e técnicas aplicáveis na intervenção concreta na realidade social, bem como para a descrição e análise de práticas e projetos já desenvolvidos, particularmente junto a grupos populares e movimentos sociais. No Brasil, há vários autores identificados com esta tradição, incluindo o autor do presente ensaio (Vasconcelos, 1985, 2008a e 2008b), como também Willian Cesar Pereira (1994, 2001 e 2004), e Campos (1996), entre outros. Como os leitores podem depreender, esta tradição constitui uma contribuição imprescindível para os psicólogos e demais profissionais que atuam no campo da assistência social. d.3) As abordagens e estratégias de empoderamento (empowerment) tiveram no Brasil suas primeiras formulações mais voltadas para os campos do serviço social e da saúde mental. Os principais autores que publicam sobre o tema são Vicente Faleiros (1999), a 13 Assim, aos leitores interessados nesta corrente, sugiro particularmente os trabalhos de Rey, pelo seu conhecimento e avaliação crítica da psicologia soviética, contexto no qual os autores da abordagem sóciohistórica se desenvolveram, e cuja obra e evolução Rey também conhece profundamente, inclusive no seu debate com os autores ocidentais. Para um primeiro contato, sugiro os seguintes trabalhos, se possível na seqüência proposta: Rey, 2004, 2001 e 2003; Pinto, 2005; Bock, 2001; Vigotsky, 1999. 14 Para os leitores interessados no tema, sugiro as seguintes obras: Moreira e Oliveira (1998), Jovchelovitch e Guareschi (1994); Oro (2004); Moscovici (2004) e Jodelet (2001). 18 partir do serviço social, e o próprio autor deste ensaio, por uma perspectiva mista que inclui principalmente o serviço social e o campo da saúde mental (Vasconcelos, 2003 e 2006). A abordagem de Faleiros está mais direcionada ao trabalho profissional com indivíduos, mas inserindo-os nos processos de coletivização e inserção em organizações sociais de defesa dos direitos. A minha perspectiva está mais centrada em estratégias de auto-empoderamento grupal e coletivo, nas quais se destacam os seguintes dispositivos: - grupos de ajuda mútua, em que os participantes trocam apoio emocional, buscam se informar, identificam recursos e sistematizam as estratégias usadas para lidar com seus problemas comuns; - grupos de suporte mútuo, que começam com atividades coletivas externas simples de cuidado doméstico, lazer, esporte, até projetos mais arrojados de cultura, esporte, trabalho, renda, moradia, etc, com diversos níveis de financiamento e provisão de recursos pelo Estado; - iniciativas de defesa de direitos, que pode ser informal, pelos próprios cidadãos, ou profissional, por meio de profissionais especializados, particularmente advogados; - iniciativas de mudança na cultura e na sociedade civil, visando a transformação das representações e relações de poder discriminatórias, segregadoras e opressivas na sociedade, por meio de recursos de educação popular e de mídia, como rádio, imprensa, cartilhas, e particularmente vídeo, televisão e Internet; - participação nas instâncias de controle social e militância política mais ampla, incluindo a capacitação e participação nos conselhos e outras instâncias de controle social de políticas setoriais, bem como a militância social e política em outras esferas, como movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos, etc. e) Os estudos interdisciplinares sobre relações de gênero, família e grupos geracionais específicos: Sem deixar de incluir, mas também ultrapassando o campo da psicologia social e comunitária stricto sensu, é importante considerar um amplo campo, o do estudo das relações de gênero, família e grupos geracionais específicos, e de seus processos incidentes mais prioritários, como a violência doméstica, que tem sido objeto de investigação de várias áreas de conhecimento: a própria psicologia social, a psicologia do desenvolvimento, a psicologia clínica, os estudos feministas e de gênero, os estudos interdisciplinares de grupos geracionais específicos (crianças, adolescentes, gestantes, e idosos), a gerontologia, a saúde coletiva, o serviço social, a antropologia social, a demografia e a sociologia, etc. Trata-se de um amplo conjunto de estudos15, muitas 15 Podemos listar aqui algumas das obras consideradas fundamentais neste conjunto, publicadas no Brasil: a) obras diretamente voltadas para a intervenção social e psicossocial com famílias, de importância clara para o trabalho no SUAS: Acosta et al, 2003; Moreira, 2006; Baier, s/ data; b) obras que focam os processos familiares na sua relação com a saúde: Mello Filho e Burd, 2004; Elsen et al, 2002; c) estudos na perspectiva das políticas sociais e do serviço social: Kaloustian, 2004; Sales et al, 2004; Carvalho, 2003; Rosa, 2003; Rizzini, 2002; d) obras na perspectiva da sociologia e antropologia social: Minayo, 2002; Sarti, 2005; Peixoto et al, 2000; 19 vezes sem delimitações claras de campos de saber, e de importância fundamental para subsidiar a teoria e a prática da assistência social focada na família, particularmente quando estes estudos se dedicam às classes populares. e) Os estudos antropológicos sobre o “nervoso”, código cultural próprio das classes populares para abordar os fenômenos mentais Desde o início dos anos 80, a antropologia social brasileira, sob a liderança principal do prof. Luis Fernando Dias Duarte, mas também com contribuições de Gilberto Velho e Roberto Da Matta, vem investigando como a classe trabalhadora no Brasil e em vários outros países possui códigos próprios para representar os fenômenos mentais. Segundo eles, de forma diferente das elites das sociedades ocidentais, que comungam uma representação mais individualista, igualitária e psicologizada do universo subjetivo, as classes populares brasileiras vêem os fenômenos mentais projetados em uma visão hierarquizada e holística da vida, na qual cada pessoa só se compreende inserida no seu círculo de relações familiares, de vizinhança e de comunidade. Nesta ótica é que se pode entender o modelo do “nervoso” ou dos “problemas de nervo”, que apenas formalmente tem uma conformação somática, muito mais como uma estratégia de desculpabilização, e que pelo contrário envolvem profundas dimensões sociais e morais, muito focadas nas dificuldades concretas de subsistência (condições de vida e trabalho), na perda de vínculos culturais e da rede de suporte social, como também na quebra da reciprocidade nas relações interpessoais e familiares diretas (como no caso de violência doméstica). Na medida em que a maioria dos profissionais de nível universitário teve uma socialização de base e uma formação universitária mais hegemonicamente marcadas pela representação individualista, há um enorme descompasso, em programas e serviços de saúde, saúde mental e da área social, entre os códigos culturais e lingüísticos próprios dos usuários oriundos das classes populares e os códigos dos profissionais e suas abordagens teóricas e operativas. Assim, é fundamental que todos os profissionais da assistência social conheçam esta literatura16. e) obras mais diretamente associadas à gerontologia: Veras, 1994; Py, 1999 e 2004; f) estudos interdisciplinares voltados para o tema da violência doméstica: Azevedo e Guerra, 1993; Morrison e Biehl, 2000; g) estudos marcados pela perspectiva de gênero: Araújo e Scalon, 2005; h) estudos interdisciplinares na perspectiva demográfica: Heilborn et al, 2006; Goldani, 2002; i) estudos do campo da psicologia social: Takeuti, 2002. Para o monitoramento dos processos e indicadores sociais e demográficos referentes ao campo, sugiro acompanhar os trabalhos impressos produzidos ou disponíveis eletronicamente na Internet pelas seguintes agências: IBGE (www.ibge.gov.br), Associação Brasileira de Estudos Populacionais (www.abep.org.br) , IPEA (uma agência dos Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão) (www.ipea.gov.br). É fundamental também acompanhar os trabalhos produzidos por Pochmann et al (2003 em diante), intitulados “Atlas da exclusão social no Brasil”. 16 Sugiro ao leitor que queira se introduzir nesta literatura, se iniciar por Duarte e Ropa (1985), por Velho (1981, especialmente caps 1 e 6) e Da Matta (1979, particularmente o conhecido capítulo “Você sabe com quem está falando?”), passando pela revisão desta bibliografia feita por Venâncio (2001) e Fonseca (2008), para finalmente se aventurar na obra mais complexa de Duarte (1986). 20 Finalmente, para concluir esta seção sobre as bases teóricas da concepção de atenção psicossocial aqui indicada, creio ser necessário fazer algumas observações adicionais. A primeira está relacionada às próprias características de nosso objeto e de seu estudo: trata-se de um campo plural, polissêmico, exatamente dado o caráter multidimensional e complexo dos fenômenos que aborda. Penso ser impossível se reduzir a uma só abordagem, dada a complexidade e o caráter multifacetado da realidade social em que nos inserimos para intervir e montar projetos concretos. Quando se trata da subjetividade, e principalmente em sua interação com o social, penso que nos convém lembrar de Freud e seus modelos metapsicológicos. Muitas vezes, um só fenômeno no aparelho psíquico requereu dele a utilização simultânea de dois ou mais de seus modelos, dadas as características ao mesmo tempo econômicas, dinâmicas e topológicas do processo em análise. O campo psicossocial nos exige, portanto, conhecer de forma pluralista as abordagens mais diretamente ligadas ao objeto de conhecimento e trabalho, bem como ir aos poucos avaliando suas diferentes potencialidades, limites, parcialidades ou problemas, para poder enfrentar os desafios complexos colocados pelos seus fenômenos e pela nossa intervenção no seu âmbito17. Neste ponto do texto, é importante então relembrar nossa hipótese neste estudo, de que estas abordagens já estavam disponíveis no Brasil no campo da psicologia social e comunitária, bem como em disciplinas intimamente associadas a ele, desde os anos 1980. Portanto, pudemos demonstrar que as bases teóricas e operativas para o trabalho na assistência social já estavam disponíveis e publicadas no campo psicológico desde então, mas que não eram reconhecidas nas linhas hegemônicas de formação e identidade profissional. e que retomá-las constitui uma necessidade urgente para os psicólogos que não tem contato com elas. Para aqueles que já têm alguma familiaridade nesta direção, será possível avançar em novas direções, para uma ampliação interdisciplinar do conhecimento teórico e operativo em outras áreas de conhecimento, que poderão fortalecer nossa capacidade de intervir na assistência social. Trata-se de uma aproximação gradual a campos como os das políticas sociais; de planejamento, monitoramento e avaliação de políticas públicas; da economia política, etc. De qualquer forma, para todos os indicados acima, creio que esta aproximação só poder ser lenta e gradual, sem ansiedade, mas de forma muito firme. É preciso lembrar novamente de que se trata do desenvolvimento de formas diferenciadas de profissionalidade, em um processo complexo, e isso pede um investimento decisivo por parte dos profissionais e da gestão dos programas. Assim, as iniciativas podem ser até mesmo individuais (o investimento na compra de livros e em leituras pessoais, proposição de grupos de estudo informais junto aos colegas), mas é fundamental que os gestores de programas e serviços promovam formas coletivas de conhecimento e aprofundamento destas contribuições tão importantes. É possível estimular e subsidiar: 17 Não se defende aqui, de forma alguma, uma proposta de ecletismo, ou seja, o uso aleatório de matrizes paradigmáticas, epistemológicas, teóricas e ético-políticas variadas, de forma indiferenciada. Em primeiro lugar, as contribuições acima já foram escolhidas a partir de um partilhamento comum de certos valores ético-políticos fundamentais, que configuram uma aliança pluralista em defesa dos interesses e das lutas popular-democráticas, tanto teórica quanto prática, pois seus representantes vêm participando de movimentos sociais populares no Brasil. Além disso, no conhecimento acumulativo destas contribuições, é necessário conhecer as diferenças, os pontos de contato e as várias áreas nas quais é impossível qualquer acoplamento linear, quando então se tornam necessárias estratégias mais complexas de um trabalho interdisciplinar ou, em um conceito mais exato, inter-paradigmático. Para o leitor interessado nesta perspectiva de trabalho interdisciplinar e inter-paradigmático, ver meu livro “Complexidade e pesquisa interdisciplinar” (Vasconcelos, 2002), particularmente os capítulos 2 e 3 da primeira parte, e o Tomo I da coletânea "Abordagens psicossociais" (Vasconcelos, 2008a). 21 - a formação de pequenos acervos de livros/textos básicos nas equipes; - a constituição de grupos de leitura/discussão formais ou centros de estudos pelas equipes, incluindo trabalhadores das demais equipes de integração intersetorial no município e/ou municípios vizinhos, dentro do cronograma de trabalho; - a montagem de sítios, grupos de discussão e blogs na Internet, o que constitui uma proposta muito dinâmica e de baixíssimo custo; - a organização pelos gestores estaduais de uma equipe de supervisores regionais, que acompanhem o trabalho regular e promovam discussões sistemáticas nas equipes municipais; - o estímulo à oferta de cursos de extensão e especialização; - o estímulo e oferta de condições para que os trabalhadores do programa possam fazer cursos, sem prejuízo de suas condições de trabalho; - a realização de seminários e eventos de formação e troca de experiências; - a promoção de concursos de monografias com premiação e publicação dos melhores trabalhos; - a identificação dos possíveis intelectuais orgânicos e instituições acadêmicas que poderão colaborar nesta tarefa de aprofundamento e educação permanente na teoria e nas técnicas de intervenção. Felizmente, em favor destas propostas, a literatura e os autores já disponíveis em nosso país permitem um amplo acesso público às obras mais importantes do campo, indicadas neste texto. E hoje em dia, é possível comprar livros editados no país de qualquer local, através da Internet, com entrega rápida pelo correio. Assim, basta ter disposição e começar... 7) Considerações finais Embora o foco deste ensaio esteja centrado na psicologia, penso que os problemas e desafios da assistência social discutidos aqui não se referem ou dizem respeito apenas aos psicólogos. As formas de profissionalidade exigidas por um trabalho interdisciplinar e intersetorial, que assume com coragem a complexidade e a multidimensionalidade da vida, coloca desafios fundamentais também para os demais profissionais que atuam no campo, particularmente os assistentes sociais e os pedagogos, como também para os gestores de programas. E nesta perspectiva, a questão da atenção psicossocial não é responsabilidade apenas dos psicólogos, mas também dos demais profissionais inseridos na assistência social. E na direção inversa, a estrutura mais geral dos mandatos sociais das profissões, a competição inter-corporativa e a formação universitária geralmente tendem a assumir uma lógica corporativista, de saberes especializados e exclusivos, como forma de preservar o capital simbólico e as atribuições privativas, na luta competitiva com as demais profissões. Muitas vezes, o resultado disso é que é deixada aos próprios profissionais a árdua tarefa de reunir os cacos das formações e culturas profissionais fragmentadas, quando se exige esta nova profissionalidade mais complexa e integrada. Entretanto, se quisermos implantar efetivamente um sistema único de assistência social marcados pelos princípios da universalidade da atenção, da integralidade, da intersetorialidade e interdisciplinaridade, a luta terá que ser assumida por todos os profissionais e trabalhadores inseridos nos programas, bem como pelas coordenações dos programas a nível municipal, estadual e nacional. A pretensão inicial deste ensaio foi exatamente a de contribuir para esta tarefa. 22 Nesta direção, posso adiantar que a disposição dos profissionais e trabalhadores para estimular esta nova profissionalidade vai depender fundamentalmente de algumas conquistas e medidas coletivas imprescindíveis: a) Conquista de condições dignas de trabalho e salário: as experiências anteriores mostram que o processo descrito aqui, de se refazer identidades profissionais já adquiridas, de se adequar a novas formas de profissionalidade, de se buscar novos conteúdos teóricos e operativos para a intervenção, exige necessariamente a reciprocidade dos programas em oferecer contratos de trabalho estáveis, condições de trabalho dignas, e salários condizentes. Isso é particularmente verdadeiro se considerarmos que se trata de um programa descentralizado, espalhado por todos os municípios do país, em cidades que nem sempre têm os atrativos culturais e as oportunidades das grandes cidades. Assim, se estas condições não estiverem presentes ou não forem conquistadas no curto prazo, os profissionais tendem a considerar os postos de trabalho como meros empregos transitórios, ou apenas como um provedor de um adicional fixo no final do mês, mas o maior investimento pessoal e profissional acaba sendo concentrado em outras direções. b) A criação de uma cultura organizacional colaborativa e não competitiva, na qual os profissionais possam “aprender a aprender”: Ao contrário da cultura e da competição inter-corporativa hegemônica, identificada acima, os programas de assistência social precisam “criar o clima” para poder se dizer: “isso eu ainda não sei fazer, mas estou disposto a aprender”, e que esta frase não signifique que alguém é incompetente ou um mau profissional. Isto implica em fomentar uma estrutura gerencial/decisória e um trabalho de equipe horizontalizados, sem privilégios corporativos, com reuniões semanais, sempre aberta para se trabalhar os eventuais e naturais conflitos, e com disposição e ousadia permanente para a inovação e experimentação de novas formas e propostas de trabalho. c) A criação de uma estrutura de capacitação e supervisão adequada: a formação de recursos humanos e a gestão dos programas de assistência social devem ser capazes de abordar tanto os aspectos técnicos e estratégicos, como também os conflitos, as relações de poder e os desafios subjetivos do trabalho. Como indicado acima, considero imprescindível a criação de uma equipe de supervisores no nível estadual, que possa acompanhar de forma orgânica o planejamento e a implementação do programa nas várias regiões e em cada município do estado. Esta equipe deverá contar com uma capacitação sistemática e reuniões regulares no nível central, em que possam discutir o andamento e os desafios encontrados, bem como fazer o planejamento integrado dos novos passos. Também já pontuado acima, é preciso também ir identificando os intelectuais orgânicos comprometidos com os valores ético-políticos do programa, que estejam devidamente capacitados para tal, bem como disponíveis em todas as regiões dos estados, e atraí-los com condições dignas de trabalho. Além disso, é necessário identificar as instituições acadêmicas e de pesquisa do país cuja produção está focado nas temáticas de interesse do programa, e neste campo, a pesquisa e o acompanhamento regular na Internet é imprescindível. d) Estímulo à inclusão da assistência social na agenda dos cursos universitários: é possível provocar as universidades e cursos superiores de profissionais da área para incluírem a assistência social em sua agenda. No curtíssimo prazo, isso é possível através de convites para estágios, projetos e cursos de extensão, pesquisa, consultoria e 23 pós-graduação (particularmente lato sensu, ou seja, de cursos de especialização), e no médio prazo, são necessárias iniciativas e mudanças na oferta de disciplinas eletivas, nos currículos e na oferta de professores com capacitação adequada. e) Busca de alianças regionais e locais com as entidades corporativas: como vimos aqui, as lideranças brasileiras dos psicólogos já conquistaram suas entidades corporativas para o estímulo a novas formas de profissionalidade no exercício de sua profissão. Da mesma forma, as entidades corporativas do serviço social brasileiro se constituíram na vanguarda política e profissional do movimento mais amplo que conquistou a formação do próprio SUAS. Cabe agora então aproximá-las dos programas de assistência social a nível estadual, regional e municipal, criando alianças capazes de fomentar a participação e a capacitação dos profissionais para a prática nos novos serviços. Finalmente, e antes de concluir, gostaria de deixar uma breve mensagem final, e especial para os colegas psicólogos. No nosso modelo mais valorizado de prática profissional, na psicologia clínica, aprendemos a ter coragem de explorar os mistérios da subjetividade pessoal, nossa e de nossos clientes, no que chamamos processo de individuação. Não podemos abrir mão desta marca ética de nossa profissão, o estímulo a esta coragem para desvendar o diferente e o “estrangeiro” dentro de nós mesmos e de nossos clientes, respeitando a singularidade de cada um, as características de sua realidade e o necessário desbravamento de caminhos existenciais próprios a que todos somos chamados. Em minha opinião, a assistência social e estas formas diferenciadas de profissionalidade discutidas aqui, na verdade não negam esta marca, mas apenas a ampliam o universo das pessoas que possam ter o acesso a ela. Agora, nosso compromisso não é mais apenas com a pessoa da classe média que pode chegar ao nosso consultório, mas com pessoas típicas da maioria da população brasileira. Este “outro” tem condições de vida diferentes das nossas, tem sua cultura própria, faz escolhas existenciais a partir de outros parâmetros. No quase “apartheid” social brasileiro18, como na divisão favela e asfalto, este outro ser é um “estrangeiro” que precisa ser conhecido e ser objeto do mesmo tipo de compromisso ético, com todos os desafios que isto implica, como o de adequar o nosso instrumental teórico e profissional a sua realidade. Na essência, no fundo mesmo das coisas, o desafio então me parece o mesmo: o mistério das várias formas de existir humano, o ato de assumir o estranhamento necessário para lidar com este desconhecido, e a mesma coragem heróica para entrar no labirinto escuro deste diferente Outro... Referências Bibliográficas ACOSTA, AR e VITALE, MAF (org) – Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo, IEE/PUC-SP, 2003. 18 O apartheid foi o sistema diferenciado e estanque de leis, direitos e acesso a políticas publicas e espaços no território, para as diferenças raças, etnias e classes sociais na África do Sul, até recentemente. Embora tenhamos um sistema mais informal, fluido, mas incisivo de divisão étnico-racial e social, a desigualdade é uma das mais altas do mundo. 24 ARAÚJO, C e SCALON, C – Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro, FGV, 2005. AZEVEDO, MA e GUERRA, VNA (org) – Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. São Paulo, Cortez, 1993. 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