UMA ANÁLISE DAS TENSÕES EM TORNO DA CATEGORIA “MULHERES” NO DEBATE SOBRE O RECONHECIMENTO DAS TRANSEXUAIS COMO SUJEITOS DO FEMINISMO Indira Corban Brito Guerra1 Resumo Esta pesquisa tem como objetivo analisar as tensões em torno da categoria “mulher(es)” no debate sobre o reconhecimento das transexuais como sujeitos do feminismo, no contexto específico do Fórum de Mulheres de Pernambuco. O trabalho se debruça sobre a aproximação deste grupo com o movimento feminista e a construção de suas demandas, a fim de compreender os sentidos que este significante – que informa o sujeito do feminismo- assume e desvelar os mecanismo subjacentes à sua constituição. Neste contexto são levantadas, a partir de leituras feministas, questões sobre o que é legitimado como “ser mulher”, quais os limites entre “ser e não ser mulher”, quais os elementos que dão estabilidade a esta identidade, sobre quem, afinal, pode ser considerado sujeito do feminismo. Palavras-chave: “mulher(es)”, tensões, feminismo, transexuais, sujeito. 1 Mestranda em sociologia pelo Programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Federal da Paraíba – UFPB E-mail: [email protected] 1. Introdução A categoria “mulher(es)” surge e desenvolve-se no seio do pensamento feminista como identidade coletiva capaz de reunir em torno de si uma experiência compartilhada, agregar interesses e objetivos comuns e dessa forma constituir o sujeito mesmo em torno do qual o feminismo se organiza (BUTLER, 2010; PISCITELLI, 2004). Contudo, embora pareça obvia a afirmativa de que as mulheres são o sujeito em nome e em prol do qual o feminismo está articulado, a aparente estabilidade e simplicidade desta afirmação é capaz de esconder atrás de si grandes impasses e tensões que tem marcado teórica e politicamente o feminismo contemporâneo e dado contornos a uma de suas mais importantes querelas na atualidade: as questões em torno da constituição do sujeito político na relação com o signo identitário mulher(es). Ainda que sob o que chamamos feminismo abrigue-se uma gama diversa de perspectivas, é possível afirmar que por muito tempo o pensamento feminista compreendeu as mulheres como classe una e estável, orientando toda a sua construção teórica e política a partir desta conceitualização. Aos poucos estes pressupostos foram sendo problematizados e o rompimento com o essencialismo e o universalismo que dominavam a construção do “ser mulher” e orientavam o tratamento da experiência como algo homogêneo são ganhos indiscutíveis (MARIANO, 2005; MENDES, 2002). No entanto, a história deste movimento teórico-político não é linear, progressiva e unívoca, mas antes descontínua e mesmo contraditória; e ainda que estas “antigas” concepções tenham sido questionadas e criticadas a partir do interior do próprio discurso feminista, elas têm sido retomadas e ganhado nova problemática à luz de acontecimentos que podem ser considerados recentes. Neste sentido, entendendo o feminismo como um campo de disputas onde a categoria mulher(es) está em permanente negociação (ADRIÃO, 2008), e ainda considerando o lugar central que as discussões relativas ao sujeito e a identidade tem ocupado no seu interior; pretendo, a partir dos subsídios trazido pelas reformulações do conceito de gênero e, especialmente, a partir das contribuições da filósofa norteamericana Judith Butler, analisar as noções de “mulher(es)” que circulam no debate sobre o reconhecimento das transexuais como sujeitos políticos do feminismo no contexto pernambucano. 2. O Problema de pesquisa Sabe-se que um conjunto de transformações importantes começou a acontecer de maneira expressiva no feminismo nas últimas décadas, fundamentalmente a partir dos anos 1970, quando a compreensão da existência da unidade entre todas as mulheres começou a ser questionado (ADRIÃO, 2008; MENDES, 2002). Alguns pressupostos que estavam subjacentes à ideia da unidade da identidade feminina foram trazidos à tona. Várias críticas foram feitas em relação aos usos de conceitualizações supergeneralizantes e homogeneizantes como parte das estratégias políticas do feminismo e uma reavaliação destes construtos na relação com a elaboração da prática feminista tornou-se necessária, culminando em significativas mudanças em seus conteúdos (MARIANO, 2008; MENDES, 2002, PISCITELLI, 2004). Um dos grandes esforços e também uma das grandes conquistas deste processo foi a problematização da diferença sexual na compreensão da condição feminina na sociedade; bem como a desconstrução da continuidade condicionante entre biologia e experiência na constituição da identidade “mulher” (SCOTT, 2002; PISCITELLI, 2004). Esta continuidade essencializava o significado de “ser mulher” e acabava por naturalizar a opressão a que as mulheres foram submetidas historicamente, provocando impactos avessos àqueles desejados pelo próprio feminismo (NICHOLSON, 2000). Mas ainda que as “antigas” concepções sobre a constituição da identidade “mulher(es)” tenham sido questionadas e o rompimento com o essencialismo e o universalismo que dominavam a noção de “mulher” como algo homogêneo tenham sido ganhos indiscutíveis; seria um equívoco concluir que tenham culminado em resoluções definitivas e desembocado em algum acordo absoluto. É importante considerar que estas questões estão inseridas no campo feminista onde estão em permanentes disputas e são constantemente retomadas e rearranjadas, sempre enredadas por debates e tensões entre diferentes correntes, abordagens e perspectivas. (ADRIÃO, 2008; MENDES, 2002) Segundo Karla Adrião, no contexto brasileiro este movimento de crítica à categoria mulheres estendeu-se até o momento atual, trazendo de volta “velhas” questões e dando-lhes novas roupagens. Neste sentido, recentemente - a partir dos anos 2000 - em um movimento em parte semelhante ao mencionado anteriormente (iniciado pelas reivindicações das mulheres negras, latinas, lésbicas etc.) em parte inovador, novos sujeitos passaram a reivindicar reconhecimento político frente ao feminismo (ADRIÃO, 2008). Dentre esses segmentos de novos sujeitos estão as transexuais2, grupo para o qual voltei o meu olhar a fim de construir o problema desta pesquisa. 2 Na esteira de Berenice Bento (2011) esclareço que entendo a transexualidade em termos de: (a) uma identidade autodefinida que (b) está relacionada a um não reconhecimento do “sexo” e do gênero imposto sobre este corpo e (c) envolve um desejo de “adequação” do corpo sexual à identidade de gênero que (d) pode envolver ou não um processo cirúrgico de redesignação sexual. 2.1. Novos sujeitos: a demanda das transexuais por reconhecimento político Foi no 10º Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe (EFLAC), ocorrido no Brasil em outubro de 2005 que esta demanda foi trazida formalmente pela primeira vez. Nesta ocasião o movimento de travestis e transexuais elaborou e fez circular via e-mail - pelo menos um mês antes da realização do evento - uma carta direcionada às organizadoras e às participantes, na qual mulheres trans pediam que a sua participação no 10° Encontro fosse permitida. A carta, intitulada Por que queremos a abertura dos encontros feministas às pessoas trans, organizou e sistematizou as reivindicações e argumentos das transexuais no sentido da demanda por reconhecimento político por parte deste grupo. O documento está estruturado a partir de 6 pontos que abordam fundamentalmente questões referentes à despatologização da identidade transexual e ao questionamento sobre os sentidos de “ser feminista” e sobre os significados do que é “ser mulher”. Numa invocação às conquistas feministas relativas ao reconhecimento da pluralidade e heterogeneidade das identidades das mulheres e relembrando as lutas contra o universalismo e o essencialismo iniciadas décadas atrás, este grupo de mulheres transexuais apropriando-se das próprias formulações teóricas do feminismo aponta para a necessidade de somar as categorias “gêneros/sexos” àquelas outras que já reconhecidamente perpassam a categoria identitária das mulheres (raça, etnia, classe, idade, sexualidade etc.). Ou seja, reivindicam que a experiência específica das mulheres “trans” seja incorporada à gama de possibilidades de vivencias daquilo que é legitimado como “ser mulher”, sendo entendida como mais uma das diferenças já reconhecidas entre as identidades femininas. Assim, elas reivindicam que o seu status de sujeitos políticos do feminismo seja reconhecido (POR QUE QUEREMOS A ABERTURA DOS ENCONTROS FEMINISTAS ÀS PESSOAS TRANS, 2005) 3. Observa-se que as argumentações partiram e partem fundamentalmente da crítica ao essencialismo, ao determinismo e ao fundacionalismo biológico que alicerça e condiciona a identidade política “mulher” à anatomia. Apesar dos diálogos que vem se abrindo nos últimos anos e das aproximações que vem sendo possibilitadas, sabe-se que os posicionamentos contrários às 3 Disponível em: < http://culturavisualqueer.wordpress.com/2010/07/14/recriando-os-feminismos-por-quequeremos-abertura-dos-encontros-feministas-as-pessoas-trans> reivindicações das transexuais (e das travestis) são ainda dominantes no feminismo. Eles apresentam resistências concretas à aceitação das demandas trazidas pelas mulheres transexuais e seu conteúdo pode ser resumido, grosso modo, nos seguintes pontos: 1) as mulheres são o sujeito do feminismo; 2) as experiências e a história das transexuais são distintas das experiências e história vivenciadas pelas “mulheres de nascença” – cujas características específicas conferem a estas um status de coletividade; 3) as transexuais se constituem como transexuais e não como mulheres e 4) as transexuais já foram homens, não podendo vivenciar uma experiência genuinamente feminina; 5) sendo assim, elas não preenchem os atributos necessários para que sejam consideras sujeitos do feminismo. Os posicionamentos predominantemente contrários às reivindicações das transexuais por reconhecimento político parecem revelar – através de seus argumentos – que o apelo a uma base fundacional de origem biológica na formulação do gênero e, consequentemente, na constituição da categoria identitária “mulher” ainda é bastante forte nas construções teórico-políticas do feminismo, como afirmam Linda Nicholson (2000) e Judith Butler (2010). Embora represente a retomada de antigas questões, a natureza singular e especialmente desafiadora das reivindicações das transexuais reside no fato de estes sujeitos serem capazes de irromper de maneira evidente as tensões, paradoxos e controvérsias do discurso feminista sobre a constituição do sujeito e da identidade “mulher”, desafiar os elementos estabilizadores daquilo que é legitimado como “ser mulher” e desvelar alguns dos mecanismos subjacentes à construção deste significante tão caro ao feminismo (a unidade da experiência, a diferença sexual, a referência biológica, a coerência, a continuidade etc.). Para levar adiante a proposta deste trabalho – a saber, analisar as noções de “mulher” que circulam no debate sobre o reconhecimento das mulheres trans como sujeitos políticos do feminismo no contexto específico de Pernambuco - considero algumas questões que servirão como norte para o desenvolvimento de minha análise: Que formas de “ser mulher” estão sendo consideradas na política representacional e identitária feminista? Existe uma verdade sobre o “ser mulher”? Existe uma identidade feminina genuína, original, autentica? Existem, em oposição a estas, identidades que mereçam ser consideradas como falsas? Que mecanismos estão envolvidos na (des)legitimação do sujeito “mulher(es)”? Que elementos estão subjacentes a ela? 3. Dialogando com Judith Butler Compreender as noções de “mulher(es)” no debate sobre o reconhecimento das transexuais envolve entender quais significados de “ser mulher” estão colocados como possibilidades e quais aqueles que não são aceitos como possíveis neste contexto. Envolve ainda compreender os mecanismos através do qual esta identidade é construída e legitimada e como ela opera no discurso representacional do feminismo. Neste sentido considero que, dentre as interlocutoras possíveis deste trabalho, as contribuições trazias pela teórica Judith Butler são especialmente valiosas. Propondo uma pesquisa genealógica e a perspectiva metodológica da desconstrução4, em uma de suas mais conhecidas obras, publicada em 1990 e intitulada Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, Butler discute a constituição da categoria “mulheres” como sujeito do feminismo a partir da crítica à distinção sexo/gênero, mostrando como a dualidade sexual foi construída discursivamente, assim como a própria categoria. Segundo a autora, a maior parte das teorias feministas – com base na distinção sexo/gênero - tem partido do pressuposto de que o gênero é uma forma de regulação social que se impõe de maneira arbitrária sobre sujeitos já sexualmente definidos. Porém, de acordo com Butler, o gênero não deveria ser pensado como uma simples inscrição cultural (apenas repressora e opressora) sobre um sexo biológico definido, mas como o aparelho de produção discursiva através do qual a própria natureza do sexo é fabricada. (BUTLER, 2010) Isto significa dizer que a relação binária entre sexo e gênero não é natural, mas é o efeito da atuação reguladora de duas principais instituições que, agindo na produção de uma matriz cultural de normas de gênero coerentes, geram padrões identitários estáveis e produzem gêneros inteligíveis: o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória. A produção binária de gêneros inteligíveis (ou de formulações aceitas de “mulher” e “homem”) cria um domínio normativo de possibilidades interpretativas, exigindo que as identidades que extrapolam os limites das normas de inteligibilidade, não possam existir (BUTLER, 2010). Os padõres de inteligibilidade de gênero exigem, por sua vez, uma coerência da identidade que significa a existência de uma relação de continuidade entre sexo, gênero, desejo e prática sexual. Qualquer identidade que represente uma ruptura entre estes elementos tem sua possibilidade de existência posta em xeque. Assim, dadas “Pesquisa genealógica” nos termos pensados por Foucalt e “desconstrução” como proposta por Derrida, definido como um procedimento analítico que, grosso modo, desvela o implícito dentro de uma oposição binária (MISKOLCI, 2009). 4 identidades são compreendidas como falhas, como logicamente impossíveis, porque desafiam a coerência e continuidade e não se conformam as normas da inteligibilidade cultural. (BUTLER, 2010). Porém, para Butler aquilo que é entendido como causa é, na realidade, um “efeito”. Ou seja, a substancialidade do sexo não é natural mas é um efeito discursivo do gênero, um efeito que se constrói através de “atos e gestos desempenhados na superfície do corpo”, denominados por Butler como performatividade. (BUTLER, 2010). Deste modo, as identidades de gênero são sempre construídas mediante a atualização das normas sociais no próprio corpo, assumindo um caráter de real que oculta a sua própria produção. Os atributos de gênero não são expressivos, mas performativos, assim, “não haveria atos de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos; e a postulação de uma identidade de gênero verdadeira se revelaria uma ficção reguladora” (BUTLER, 2010 p. 201). Trocando em miúdos, o sexo é materializado (e substancializado) por meio da performatividade dos agentes sociais, estabelecendo limites para as possibilidades de configurações de identidades de gênero.“Ser mulher” não é a expressão de uma essência interna (do sexo), mas uma construção performativa que através de repetições permanentes de atos e gestos normativos dão a impressão de naturais e assumem o efeito de substância. Para Butler, o sujeito do feminismo revela ser sempre construído discursivamente em um processo que envolve mecanismos de legitimação e exclusão, assim, não existem identidades originais, e “ser mulher” e “não ser mulher” é fruto de uma prática de significação. (BUTLER, 2010). Assim, se “ser mulher” não constitui um “fato natural”, mas uma performance cultural que precisa ser permanentemente atualizada, então, como pensar em uma identidade apriorística, pronta apenas para ser representada na política? Se não existe uma identidade de gênero original e a própria “originalidade” seria um efeito fictício da performace mediante uma incessante repetição de atos e gestos; se não existe uma verdade sobre o “ser mulher”, é preciso perguntar: que significados “ser mulher” assume? Quais os elementos estabilizadores desta identidade que dá contornos ao sujeito do feminismo? Como o discurso feminista no contexto deste debate sobre o reconhecimento das transexuais compreende a constituição desta categoria e o limite entre “ser e não ser mulher”? O que determina este limite? Qual lugar o corpo assume nesta construção? Como a distinção sexo/gênero opera neste debate no sentido de (des)legitimar as identidades das mulheres trans? Considero que Judith Butler traz importantes pistas analíticas para pensar sobre a categoria “mulher(es)”. É a partir do diálogo estreito com esta autora, apropriando-me da percepção do “ser mulher” como fruto de uma construção discursiva e também das pistas analíticas trazidas por ela sobre os mecanismos que operam na constituição de seus significados, que eu irei analisar as noções de “mulher” que circulam no debate sobre o reconhecimento das transexuais como sujeitos do feminismo. 4. A experiência no campo e o exercício de interpretação O trabalho de campo desta pesquisa foi realizado no segundo semestre de 2012 e primeiro semestre de 2013. Ele consistiu basicamente na realização de entrevistas semiestruturadas com 15 mulheres de distintas instituições e organizações feministas do estado de Pernambuco (organizações não-governamentais, fóruns, associações e grupos de mulheres, mulheres de núcleos universitários, de secretarias de mulheres de sindicatos e de partidos políticos etc) escolhidas através de rede de relações. O que significa dizer que a escolha das entrevistadas foi feita através do pedido de indicação de outro sujeito – a partir do primeiro a que tive acesso - dentro das mesmas condições para a participação da pesquisa. Apresentarei em formato de tópicos as principais tensões identificadas por mim ao longo da realização da pesquisa. 4.1. Sobre a participação no feminismo: “ser mulher” A questão engatilhadora da minha pesquisa dizia respeito a quem pode representar e ser representada/o pelo movimento feminista: que sujeitos são reconhecidos como legítimos nesta luta. A questão foi colocada nos seguintes termos: “quem, na sua concepção, pode juntar-se à luta feminista?”. A resposta a esta pergunta foi unívoca: as mulheres. “Ser mulher” apareceu como o único “pré-requisito” de participação, como o único critério para a legitimação e reconhecimento político dos sujeitos nos espaços feministas. Considerando, em acordo com Butler (2010), que a identidade “mulher” não exprime uma verdade substancial ou um fato natural, mas que é sempre fruto de uma prática de significação, saber que a participação no feminismo se estende “ás mulheres” torna-se insuficiente para esta análise. É necessário ir além e compreender quais os sentidos de “ser mulher”, o que “ser mulher” significa neste contexto. Desta maneira, questionar sobre quem são essas mulheres das quais se fala torna-se inevitável: afinal, quem são essas mulheres que podem participar da instituição? Esta pergunta foi recebida pelas entrevistadas como um questionamento óbvio, com possibilidades de argumentações reduzidas, de maneira que as respostas foram quase uma repetição daquelas dadas à pergunta anterior - quando questionei sobre quem são os sujeitos que podem participar da luta feminista vinculada às instituições. Notei que havia uma generalização no sentido de “mulheres”, ainda que o discurso expressasse a consciência da existência de uma pluralidade de identidades na categoria “mulher(es)”. Assim, apesar de serem consideradas e reconhecidas como importantes, as diferenças pareceram estar sempre subordinadas à “questão maior” que é ser mulher e compartilhar desta experiência comum capaz de unir todas as diferenças, horizontalizando-as. Percebi que as diferenças eram sempre abordadas de forma genérica, em afirmações como: “somos diferentes”, “somos todas diferentes”, “existem muitas diferenças”, e sempre acompanhadas de um “mas”, pronto para esclarecer que apesar destas diferenças existirem há algo capaz de superá-las e de dar uma relativa unidade à identidade “mulheres”. 4.2.Mulheres x transexuais Ao serem perguntadas, todas as entrevistadas afirmaram que conheciam esta demanda e que suas instituições também já a conheciam, ou seja, que a demanda por reconhecimento como sujeitos políticos por parte das transexuais já havia sido posta de alguma maneira, apesar de este não ser um debate constante. Mas como estas demandas haviam sido recebidas? As respostas que eu não conseguira obter com o questionamento sobre a identidade “mulher(es)” começavam aos poucos a surgir e os primeiros contornos do “ser mulher” – ou de como a identidade mulheres é percebida neste contexto começaram a aparecer nos depoimentos dados pelas entrevistadas como resposta a esta última pergunta. Ou seja, ao perguntar sobre como a demanda das transexuais por reconhecimento como sujeito do feminismo era recebida, percebi a existência de uma necessidade aguçada de afirmação dos limites entre o ser e o não-ser mulher, de forma que toda a argumentação partiu desta distinção. De acordo com Judith Butler, o sujeito do feminismo é sempre construído discursivamente em um processo que envolve mecanismos de legitimação e exclusão que funcionam em uma relação dialógica. Para Butler, dentro da lógica representacional em que a política feminista funciona, “os sujeitos são invariavelmente produzidos por via de práticas de exclusão” (BUTLER, 2010), o que significa dizer que, nesta configuração, a constituição do sujeito só pode se dar mediante a exclusão daqueles sujeitos que não se conformam com o que é exigido para que se possa ser representado. Desta maneira, afirmar o que “é”, implica necessariamente estabelecer o que “não é”. Ou seja, dizer o que “não é ser mulher” é ao mesmo tempo dizer o que é “ser mulher”, e vice-versa. Deslizando pelas falas das entrevistadas comecei a perceber que a suscitação deste debate, a partir da solicitação para que falassem sobre a demanda das mulheres transexuais por reconhecimento político, despertou a necessidade de afirmação das mulheres como sujeito do feminismo. Desta vez exigindo o estabelecimento dos limites que cercam este sujeito, ou seja, exigindo defini-lo, dizer aquilo que ele é, no caso, o que é “ser mulher”. Confirmando a afirmação de Butler, além do preenchimento interno dos contornos da categoria “mulheres”, percebi que havia, ao mesmo tempo e como parte deste mesmo processo de (des)legitimação do sujeito, a necessidade de expor o que fica de fora destes limites, ou seja, o que não é aceito como “ser mulher”. Neste sentido, em vários momentos as falas deixaram claro o jogo aceitação/exclusão, evidenciando a tensão sujeito/outro, claramente expressa através da oposição mulheres/transexuais. Esta diferenciação entre “mulheres” e “transexuais” marca claramente os limites entre sujeito e outro, onde as mulheres correspondem ao primeiro e as transexuais ao segundo pólo - nomeio de pólo, por que entendo que esta diferenciação não é entendida como relação, mas como oposição absoluta. Neste contexto específico o “outro” não é entendido em termos de alteridade, mas em termos de exclusão e anulação. Desta forma, a identidade transexual aparece não como uma diferença constitutiva do sujeito “mulheres”, mas como um “outro” que não se adequa à condição de sujeito, que não possui legitimidade enquanto tal: que está excluído de seus limites. Sendo assim, posicionada no lugar deste “outro” a identidade transexual só tem sentido diante da identidade das “mulheres não-transexuais”, ela só ganha significado neste contraste. As mulheres transexuais são colocadas compulsoriamente no lugar do “outro”, que neste contexto está posicionado como o contrário de “sujeito”. Mas o que a tensão sujeito/outro nos diz sobre a categoria “mulheres”, sobre seu conteúdo interno? Qual é a base desta diferenciação? Quais elementos marcam os limites que colocam as “mulheres” como sujeito e as “transexuais” como “outro”? O que é necessário para “ser mulher” e, portanto, sujeito do feminismo? 4.3. Mulheres de verdade x mulheres fabricadas Contrastando, a partir da tensão sujeito/outro, aquilo que foi dito sobre as mulheres não-transexuais com o que foi dito com relação às mulheres transexuais, identifiquei que esta oposição primária mulheres/transexuais trazia subjacente a si uma série de pares de opostos significativos: verdadeiro/falso; original/fabricado; real/forjado etc. onde o primeiro pólo refere-se às mulheres não-transexuais (“mulheres”, na fala das entrevistadas) e o segundo às mulheres transexuais (apenas “transexuais” nas fala das entrevistadas). Estes pares de opostos recorrentes nas falas das entrevistadas apontam algumas pistas importantes para a compreensão dos significados da “categoria mulheres” no contexto deste debate. Estruturados a partir de noções de verdade, originalidade e autenticidade, todos os pares de opostos identificados partem do pressuposto da substancialidade da identidade “mulheres”, ou seja, da ideia da existência de uma essência das “mulheres”, pronta para ser apenas representada na “realidade”. Nesta perspectiva, há a pressuposição de que existe uma verdade intrínseca sobre a identidade “mulheres”, e que para “ser mulher” é preciso corresponder a esta “verdade”, ou seja, estar de acordo com os atributos que “lhe são próprios”. Isso se aproxima bastante do que Butler afirma quando diz que a ideia da substancialidade do sexo, ela mesma produzida, cria a noção de verdade e originalidade das identidades de gênero, das quais se passa a exigir que haja um perfeita coerência, estar de acordo com os seus atributos internos e essenciais. Neste movimento perde-se de vista o caráter construído, performativo, do “ser mulher” (BUTLER, 2010). Fica bastante evidente a crença na existência de uma identidade feminina verdadeira, bem como na existência de identidades falsas: com as quais as mulheres transexuais são identificadas. Na medida em que se entende que há uma “verdade” sobre o “ser mulher”, é necessário questionar sobre que elementos “fundam essa verdade”, constroem os limites entre “ser” e “não-ser mulher” – entre verdadeiro e falso – e dão estabilidade interna à categoria identitária “mulheres”. O que significa ser uma mulher de “verdade”? E o que significa ser uma “falsa mulher”? Mas consideramos que a noção de verdade, de originalidade e de autenticidade são efeitos discursivos de uma matriz cultural de normas de gênero que geram padrões identitários estáveis e produzem gêneros inteligíveis. Segundo Butler, a inteligibilidade das identidades de gênero e a ideia de verdade dependem da existência de uma continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, de maneira que as identidades que representem uma ruptura desta continuidade são consideradas falhas, não- autenticas, imitações, falsas etc. (BUTLER, 2010 ). A exigência desta continuidade na constituição da identidade “mulheres” fica bastante clara nas falas sobre o reconhecimento das transexuais. Desta maneira, uma vez que rompe a continuidade entre sexo e gênero a identidade das mulheres transexuais é considerada falha, inautêntica, imitação de uma verdade sobre o “ser mulher”. 4.4. Corpo e experiência Este raciocínio é fruto da distinção sexo/gênero, que compreende o gênero como uma simples inscrição cultural sobre um sexo biológico definido. Em outros termos, que entende que a construção do gênero se dá sobre um sexo pré-discursivo, substancial, considerado como um dado incontestável da natureza. Desta maneira, outro elemento importante percebido é que a identidade “mulher(es)” revela-se condicionada ao corpo, sem que a “realidade” deste corpo seja problematizada. O corpo – o sexo biológico – assume o lugar de base sobre o qual o “ser mulher” se constrói, funcionando como uma condição para a sua constituição, como na noção “porta casacos” de Linda Nicholson, onde o eu fisiológico é compreendido como um “dado” sobre o qual as especificidades são sobrepostas. Nota-se que ao mesmo tempo em que condicionar a identidade feminina ao sexo é uma operação entendida como problemática, este mesmo sexo é exigido como o ponto de partida para a constituição da identidade “mulheres”. Desta forma, ainda que a experiência de “ser mulher” não esteja restrita ao corpo, compreende-se que, em alguma medida, ela depende do corpo para se concretizar. Vê-se aqui o paradoxo da diferença sexual que tem estado presente ao longo da trajetória do feminismo, especificidades à parte. O sexo como condicionante do “ser mulher” é problematizado no interior do discurso feminista, mas ainda aparece como uma marca fundamental da construção do gênero, da constituição da identidade “mulher”. Isto fica evidenciado no fato de que em nenhum momento algum outro argumento que justificasse o não reconhecimento das transexuais como sujeitos do feminismo e sua não aceitação foi citado, que não este pautado na constituição biológica, que nega com base no “sexo biológico” que as transexuais possam ser consideradas mulheres. O corpo é tido como um elemento capaz de dar realidade e coerência à identidade “mulher(es)”, de ser o “ponto comum”e assim conferir-lhe um caráter coletivo. Percebe-se aqui que a continuidade entre biologia e experiência é ainda uma marca forte da identidade política das mulheres, em outros termos, do sujeito do feminismo. Assim, a categoria mulheres parece não funcionar sem supor a materialidade do sexo. 4.5. A política representacional e a tensão universal x particular Gostaria ainda de me deter no trecho de uma entrevista e sobre ele lançar luz: A questão das transexuais é complicado por conta dessa indefinição. Elas querem ser mulheres, mas nós somos um movimento social que tem objetivos políticos muito claros. Nós lutamos contra a opressão feminina, contra as desigualdades de gênero na nossa sociedade. Mas como nós vamos lutar pelas mulheres se nós não sabemos nem o que é uma mulher e quem são as mulheres? Dá pra entender? Isso é uma coisa muito complicada, Essa indefinição pode fazer com que a gente fique perdido, sem ter como fazer a nossa reivindicação política, sem ter como agir. Esta fala remete à crítica feita por Judith Butler à política identitária feminista, quando ela questiona a compreensão dominante no feminismo de que sem um conceito pré-estabelecido e unificado de mulher a política perde a capacidade de ação e sua própria existência é posta em xeque (BUTLER, 1998 e 2010). Esta concepção, descrita por Butler e percebida por mim na fala acima, corresponde a uma versão específica (apesar de dominante) de política que tem afirmado de antemão que toda política assim como toda teoria da política - necessita desde o seu princípio presumir um sujeito que sirva como o seu fundamento. Em outras palavras, que é preciso haver um sujeito definido antes mesmo de haver ação, sendo aquele a condição desta. Esta ideia envolve a crença implícita de que há uma identidade apriorística, real e una, pronta para ser apenas representada.Como já foi dito diversas vezes, o sexo é compreendido como o elemento capaz de fornecer esta “realidade” e conferir unidade ao sujeito “mulheres”. O sexo é entendido como o elemento apriorístico da identidade, capaz de, no meio da já reconhecida pluralidade de identidades, ser “a cola” que une todas as mulheres em uma identidade comum, em torno da qual a política feminista se articula. A ideia de que é preciso falar em nome das mulheres e pelas mulheres é articulada nesse contexto com a noção de que existe uma verdade sobre o “ser mulher”. Assim, a categoria “mulheres” é invocada como apenas descrevendo o sujeito do feminismo, um sujeito já preexistente e que está unificado pela articulação de seu elemento comum – que neste contexto é o sexo. Porém, como afirma Butler, “as categorias de identidade nunca são meramente descritivas, mas sempre normativas e como tal, exclusivistas” (BUTLER, 1992). A não aceitação das transexuais relaciona-se diretamente com o tipo de política - identitária e representacional - que o feminismo, especificidades à parte, tem assumido e dentro da qual a constituição da categoria “mulheres” se dá. Este tipo de política exige que a categoria “mulheres” tenha seu conteúdo pré-definido e minimamente estável e unificado para que a ação possa acontecer, mesmo que isso implique na contradição daquilo que o próprio feminismo tem construído. As transexuais não se encaixam naquilo que é descrito como “mulheres”, pelo contrário, desafiam a unidade desta noção. As especificidades são aceitas apenas dentro dos limites daquilo que está préestabelecido como sendo necessário para a construção da identidade “mulheres”, que, como já dissemos algumas vezes, está em grande medida ancorado no “sexo biológico”. A especificidade da experiência das mulheres trans extrapola esses limites e por isso é compreendida como um risco para a capacidade de ação da política feminista. 5. Considerações finais Diante daquilo que foi percebido do meu contato com o campo e da análise dos dados por mim coletados, não gostaria de aqui apresentar conclusões absolutas, mas fazer algumas considerações desde a minha experiência e a partir dela levantar algumas questões. A um primeiro olhar, a asserção de que as “mulheres” é o sujeito do feminismo aparenta ser suficientemente nítida, a ponto de dispensar os esforços de elaborar questionamentos e contestações que desafiem o que parece não poder ultrapassar as barreiras de uma constatação evidente. Porém, como vimos ao longo deste trabalho esta é uma questão distante da obviedade e que esconde atrás desta aparente simplicidade uma extensa problemática. Fica evidenciado que no contexto investigado o debate aponta - até o momento para a recusa dominante em reconhecer as transexuais como sujeitos do feminismo; e que esta recusa está ancorada em argumentos que evidenciam o caráter ambivalente do pensamento feminista (sem entender aqui ambivalência como necessariamente um problema que precisa ser resolvido), especialmente no que diz respeito à constituição da categoria “mulheres”, que se revela como um significante paradoxal. As transexuais não são consideradas mulheres, e não o são fundamentalmente por não possuírem um corpo que seja aceito como feminino..Mesmo que as especificidades tenham ganhado lugar de grande importância, uma tendência universalista advinda da necessidade de dar à categoria “mulheres” uma materialidade corpórea ainda se faz presente. O corpo figura como a principal fonte de tensões. Compreendo que repensar a própria construção da categoria “mulheres” é um momento importante deste processo e acredito que a aproximação das transexuais potencializa esta possibilidade auto-reflexiva do feminismo, dado os desafios que lança a este movimento. Creio que seja importante considerar que a afirmação de que a categoria “mulheres” refere-se a “todas as mulheres” e engloba todas as possíveis diferenças, enfraquece-se diante da evidência de que as transexuais não são reconhecidas como mulheres. Ao que parece da análise desta recusa, as especificidades só podem ser contempladas dentro dos limites de uma perspectiva que compreende que a “categoria mulheres” revela uma verdade sobre o “ser mulher” e que esta verdade esta condicionada ao sexo biológico entendido como substancial. Portanto, essa categoria deixa de considerar as experiências que extrapolam a continuidade sexo-gênero e, desta forma, não dá conta de abarcar a experiência concreta das mulheres transexuais. A distinção sexo/gênero opera neste contexto limitando as possibilidades de vivências da identidade “mulheres” e produzindo exclusões. Concordo com Butler em sua afirmação de que a principal tarefa do feminismo na busca pela concretização de seu projeto emancipatório é a desessencialização do sujeito do feminismo através da revelação do seu caráter discursivo e da desconstrução da identidade universal das “mulheres”; o evidenciamento do caráter contingente e das descontinuidades no processo de sua constituição histórica, com vistas a uma prática política mais inclusiva, democrática e eficaz (BUTLER, 1992 e 2010). REFERÊNCIAS ADRIÃO, Karla Galvão (2008). “Encontros do feminismo:uma análise do campo feminista brasileiro a partir das esferas do movimento, do governo e da academia”. Tese (Doutorado interdisciplinar em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. BENTO, Berenice (2003). A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Tese (Doutorado em Sociologia) - Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, Brasília. BUTLER, Judith (2010). 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