> clínica do social Maria Ignez Costa Moreira Gravidez na adolescência: Análise das significações construídas ao longo de gerações de mulheres pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 clínica do social > p. 48-56 A gravidez na adolescência tornou-se nas últimas décadas um tema importante de pesquisa no Brasil. O presente artigo é fruto da tese de doutorado Gravidez na adolescência: análise das significações construídas ao longo de gerações de mulheres1 e pretende discutir as significações psicossociais construídas ao longo de gerações de mulheres sobre a gravidez considerada precoce. O artigo ressalta as significações positivas construídas, sobretudo, pelas jovens-avós e pelas mães adolescentes e contrapô-las ao discurso hegemônico da mídia e dos profissionais de saúde e educação que têm considerado a gravidez na adolescência como “risco” e “problema”. >Palavras-chave : Mãe-adolescente, jovem-avó, geração, psicologia social >48 Adolescent pregnancy has become an important research theme in Brazil in recent decades. The present article is the result of a doctoral thesis entitled Pregnancy in adolescence: an analysis of significations constructed by successive generations of women, and aims at discussing the psychosocial significations constructed by successive generations of women about what is known as precocious pregnancy. The article emphasizes the positive significations constructed especially by young grandmothers and adolescent mothers, and confronts these significations with the dominant discourse in the media and often expressed by professionals involved in health and education, who often consider adolescent pregnancy a “risk” and a “problem.” Key words >Key words: Adolescent mother, young grandmothers, generation, social psychology 1> Tese de doutorado defendida em 13 de junho de 2001 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC.-SP, sob orientação da Profa. Silvia Tatiana Maurer Lane. zem uma interpretação dos significados cristalizados atribuídos à gravidez e tal interpretação orienta sua vida cotidiana. Elas não substituem um discurso pelo outro, o do “problema” pelo da “solução”, mas apontam as contradições e revelam que a gravidez na adolescência, que experimentaram concretamente em suas vidas, não comporta apenas aspectos negativos, mas também positivos. Ou seja, elas revelam o que o discurso homogêneo oculta: as contradições. Por outro lado, a forma como a gravidez na adolescência vem sendo tratada, ou seja, como “indesejável” e “como problema”, permite suspeitar de algumas ordens de subordinação. A subordinação de classe social: as adolescentes pobres e suas famílias são um constante alvo de pesquisas e intervenções que visam muito mais o controle da reprodução e da sexualidade dessas jovens do que a invenção de possibilidades de compreensão de seu mundo de cultura, o amparo às suas decisões ou respostas às suas necessidades e demandas. Aqui temos: a subordinação de gênero, localizada na representação das adolescentes como vítimas das artimanhas sedutoras dos homens; a sistemática exclusão dos homens, sobretudo os pais adolescentes, do acompanhamento dos períodos de gravidez e parto de suas parceiras; a ausência de programas destinados aos homens adolescentes, permitindo-lhes refletir acerca dos seus direitos sexuais-reprodutivos e do exercício da paternidade; no aspecto das relações intragêneros, o poder que a maternidade confere à mãe, em relação à filha adolescente, e às transformações nessa relação de poder, quando a filha adolescente também se tor- 2> Os critérios para a escolha das entrevistadas foram: adolescentes entre 14 e 19 anos com pelo menos uma experiência de gravidez, cujas mães tenham se tornado avós entre os 35 e 48. clínica do social A gravidez entre mulheres adolescentes tem ocupado a pauta da mídia, tem se tornado tema de preocupação e de discussão entre pais e professores, bem como tornou-se, nas últimas décadas, um tema importante de pesquisa no Brasil. Este debate em torno do tema, tanto nos meios acadêmicos quanto não-acadêmicos, tem enfatizado a inadequação da gravidez ocorrida nesta etapa da vida e, mais ainda, tem atribuído a ela os significados de “problema” e de “risco”. Os significados da gravidez na adolescência enquanto “problema” e “risco” foram assumidos nos “dicionários” dos profissionais da mídia, de educação, de saúde e mesmo de uma parte dos pesquisadores. Mas tais significados são apropriados e revistos na vida cotidiana, e novas significações são produzidas. Para compreendê-las, foram entrevistadas mulheres de gerações distintas pertencentes a uma mesma família: as bisavós, as jovens-avós e as mães-adolescentes.2 A análise das entrevistas mostrou a existência de um fosso entre o significado cristalizado da gravidez na adolescência, como um problema, e a interpretação feita pelas jovens e suas famílias sobre tal experiência. É interessante notar o conflito entre esse significado cristalizado e o esforço de produção de novas significações, quando as jovens-avós e as mães-adolescentes fazem um inventário entre as vantagens e as desvantagens da gravidez e da maternidade, nessa etapa da vida. Entre as vantagens, elas relatam a vivência da gravidez como a realização de um projeto ou uma possibilidade de organização da vida dos jovens, além da reorganização da própria vida familiar. Dessa forma, essas mulheres produ- pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 Introdução >49 na mãe; finalmente, a ordem da dominação dos adultos, em relação aos jovens, exercida não só pelos pais, mas por profissionais de saúde e educadores. Entre todas as formas de subordinação apontadas, este artigo tratará apenas da subordinação entre as idades, enfocando as relações entre as jovens-avós e as mães adolescentes. Esta discussão guia-se pelas teorias de geração que foram úteis na análise das entrevistas realizadas. pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 clínica do social Geração >50 Considerando que uma geração não é um grupo concreto, no sentido de que seus membros não se conhecem nem se reconhecem, mas estão vinculados pelas práticas e pelos símbolos que marcam aquela geração, as relações intergeracionais e intrageracionais ganham visibilidade e podem ser analisadas em grupos concretos como a família. Por isso, foram entrevistadas mulheres de distintas gerações de uma mesma família. As narrativas foram tratadas segundo dois planos de análise: o primeiro, relacionado à história intergeracional das mulheres e, o segundo, às relações estabelecidas entre mães e filhas. Os dois planos de análise – o da história intergeracional das mulheres e o da história das relações mãe/filha – estão articulados, uma vez que a história subjetiva e social dos sujeitos são indissociáveis. A própria noção de geração permite a articulação entre as histórias coletiva e individual produzidas por homens e mulheres inseridos em seus grupos sociais. A noção de geração representa a mediação entre o tempo individual e o tempo público e, portanto, imprime marcas profundas nos sujeitos, daquilo que receberam de seu tempo e da relação com seus contemporâneos. Examinando a história de mãe e filha, percebemos que as relações entre os gêneros e entre as gerações têm mudado de forma solidária. Ou seja, tanto as relações entre os gêneros quanto entre as gerações tornaram-se menos hierarquizadas e se influenciam mutuamente. O primeiro plano de análise, o das relações intergeracionais, foi ancorado na produção de Attias-Donfut (1988; 1991; 1998). Esta autora desenvolveu um longo trabalho de revisão crítica da literatura que trata das teorias de geração no qual ela apresenta, entre outras, a proposta de G. Ferrari (1874). Este autor defende a proposição de que é preciso um tempo de quatro gerações para avaliar o processo e o grau de profundidade das mudanças sociais. Ele considera que a primeira geração é a dos precursores, seguida de uma geração revolucionária, que contesta a primeira; esta é sucedida de outra, reacionária, que promove uma certa volta aos valores da primeira geração e, por outro lado, esforça-se por conservar os valores estabelecidos, o que significa uma resistência à mudança. Assim, tanto a tentativa de retornar ao passado quanto a de impedir as inovações são reações ao novo. Finalmente, essa geração é substituída por outra chamada resolutiva, que teria como tarefa resolver os impasses, ou seja, promover a síntese dos legados recebidos e mais, produzir soluções inovadoras. O diálogo com o modelo proposto por Ferrari (1874) permite pensar as passagens dos legados geracionais relativos às significações da gravidez na adolescência, bem como analisar o movimento para conservar e transformar tais legados. Nem a conservação nem a transformação acontecem de forma linear, e talvez a imagem de uma espiral seja mais adequada para representar esse movimento. Cabe ainda ressaltar que, como as gerações não são monolíticas mas multifacetadas, encontraremos no movimento que cada ge- As bisavós entrevistadas foram identificadas como pertencentes à geração precursora, uma vez que é composta por mulheres que viveram mudanças significativas na organização familiar e doméstica, decorrentes da nova organização das cidades, nas primeiras décadas do século XX. Talvez o grande legado dessa geração às jovens-avós tenha sido o esforço para que suas filhas tivessem um maior grau de escolarização, em relação a elas próprias, e pudessem afirmar-se no mercado de trabalho. No entanto, tais projetos deveriam ser conciliados a dois outros: o casamento e a maternidade. As jovens-avós são mulheres da geração revolucionária, marcadas sobretudo pelo ideário de uma sociedade igualitária, refletido nos movimentos sociais da década de A maternidade adolescente e as relações intergeracionais As relações intergeracionais são marcadas pelos conflitos e pela solidariedade. Os dois pólos, o do conflito e o da solidariedade, clínica do social Bisavós, Jovens-Avós e Mães-Adolescentes 1960, especialmente o movimento feminista. Mesmo que algumas mulheres contemporâneas dessa geração não tenham vivido pessoalmente as experiências emblemáticas desta geração, a sua característica revolucionária marcou com tal força a memória coletiva que o exercício de procurar vestígios reacionários nas suas práticas não constitui tarefa fácil. Para encontrá-los, é preciso examinar essa geração internamente, analisando as significações que ela produziu sobre si mesma. Neste sentido, o discurso das adolescentes sobre suas mães revela críticas à geração anterior e as adolescentes pontuam, desta forma, as contradições da geração revolucionária. Por isso, não podemos nos afastar da noção de que a categoria de geração é relacional e, para entendermos uma geração, é preciso compreender tanto os movimentos da geração antecessora quanto da contemporânea. Já as mães-adolescentes podem ser consideradas como integrantes de uma geração reacionária. Entendo que essa geração produz uma reação aos valores da geração precedente, a geração revolucionária à qual pertencem as jovens-avós. Tal reação parece especialmente manifesta na recusa anticonceptiva e no prolongamento da dependência, em relação às famílias de origem. A quarta geração, a dos filhos das mãesadolescentes, talvez seja aquela que se possa definir como preponderantemente resolutiva. Talvez lhe caiba superar impasses herdados, inventar novas formas de exercício da feminilidade e da masculinidade, da paternidade e da maternidade. Formas plurais, por certo. pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 ração descreve traços que a tornam revolucionária e outros que, ao contrário, fazem dela uma geração reacionária. E, ainda, que cada geração a seu modo é precursora das inovações que a geração seguinte realizará. A geração resolutiva, ao produzir a síntese dos legados das três gerações antecessoras, engendrará também soluções inovadoras. A própria síntese é uma atividade de criação. É preciso lembrar também que nem todas as mulheres de uma geração compartilharam e viveram os ideais preponderantes de sua geração, o que demonstra, mais uma vez, que uma geração não é monolítica. As definições de geração apontam-lhe uma dupla função de símbolo coletivo e de referência do tempo social. Os símbolos coletivos agem como pólos de ligação, mediando a identificação com acontecimentos históricos. Por outro lado, as definições de geração produzem os discursos sociais, marcando a memória coletiva e promovendo elos entre o passado, o presente e o futuro. >51 clínica do social pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 >52 são indissociáveis nas relações estabelecidas entre as gerações. E a maternidade na adolescência revela-os de maneira especial, uma vez que as relações intergeracionais entre mães-adolescentes e jovens-avós produzem estratégias de solidariedade, mas também de conflitos. Ambos são motores que promovem o movimento transformador na história das gerações. O conflito entre as gerações está marcado pela dominação que os adultos exercem sobre crianças, adolescentes e velhos. E o discurso que desqualifica a gravidez e a paternidade/maternidade entre adolescentes, construído pelos adultos, revela a lógica da subordinação. A solidariedade intergeracional e intrageracional é fruto dos vínculos sociais e dos sentimentos de pertencimento a uma coletividade, vivenciados pelos indivíduos. A solidariedade, no entanto, não exclui e não livra as relações intrageracionais dos conflitos, uma vez que estes são inerentes às relações intergeracionais e intrageracionais e manifestados tanto no fato de que a afirmação de uma geração pressupõe o desaparecimento da geração anterior, quanto no exercício de dominação de uma geração sobre a outra, de um grupo de idade sobre outro. A gravidez tem o sentido da solidariedade entre as gerações, ao promover a renovação e a perpetuação da humanidade. Este sentido está presente na gravidez, em qualquer fase da vida reprodutiva de uma mulher, inclusive na fase da adolescência. No entanto, a gravidez na adolescência revela de maneira particular o conflito entre as gerações, por mostrar que o início da vida sexual e reprodutiva dos jovens não permite esquecer o declínio da vida sexual e o encerramento da possibilidade reprodutiva daqueles que envelhecem. Por outro lado, a gravidez na adolescência parece ser um episódio capaz de acionar redes de solidariedade na família quando, além da mãe, outros parentes ocupam-se dos cuidados com o bebê: jovens-avós, as bisavós, as tias. Nesse sentido, a geração das mães-adolescentes reedita o funcionamento das famílias extensas, mais comum entre a geração de suas avós do que entre a de suas mães, essas mais identificadas com a família nuclear conjugal. A cultura da geração das mães-adolescentes A experiência da gravidez e da maternidade na adolescência cria uma cultura da mãeadolescente apoiada nos seguintes princípios: assumir a gravidez, ter responsabilidade, experimentar a privação da liberdade e a solidão. Assumir a gravidez significou para as adolescentes entrevistadas não abortar e não dar o filho em adoção. Os pais delas foram informados da gravidez entre o terceiro e o quarto mês. Nesse intervalo de tempo, elas tomaram a iniciativa de confirmar suas suspeitas por meio de exames laboratoriais. Contaram a eles depois de algumas certezas: estavam mesmo grávidas, o risco de um aborto natural parecia afastado, e as prováveis pressões externas para a realização de um aborto ficariam sem efeito, devido à idade gestacional. Contar aos pais depois desse tempo parece então significar uma proteção à vida do filho e uma forma de expressar que a gravidez foi assumida. A responsabilidade consiste em saber que uma outra pessoa passa a depender delas por “toda a vida”. Interessante notar dois aspectos: o primeiro é que essa noção é vaga, durante a gravidez, e vai tornando-se mais concreta, a partir do nascimento da criança e à medida que esta passa a demandar cuidado e atenção de suas mães. O segundo aspecto a acrescentar é que ser mãe é uma condição que passa a ser compreen- clínica do social as jovens-avós são marcadas por uma série de ambivalências. O júbilo pelo nascimento das crianças é acompanhado de sentimentos de pena, raiva, tristeza, orgulho. A maternidade na adolescência não ficou reduzida a uma tragédia na vida das mulheres entrevistadas. Mães-adolescentes e jovens-avós estão de acordo em que não existe uma idade cronológica ideal para a maternidade, de tal sorte que uma mulher que se tornou mãe aos quinze anos é citada como exemplo de maternidade responsável e de dedicação à filha, ao passo que outra mulher, mãe depois dos trinta anos e que não quis ter nenhum contato com o filho, optando por entregá-lo para a adoção, é considerada como irresponsável, no sentido de não ter assumido o seu filho. A responsabilidade e a coragem com as quais as mães-adolescentes assumiram a gravidez e a maternidade contribuíram para que, sem negar as dificuldades, as jovensavós encontrassem aspectos positivos na vivência da gravidez de suas filhas e se dispusessem a ajudá-las. Entre as vantagens apontadas, foi lembrada a possibilidade de maior aproximação entre a mãe-adolescente e o seu filho, facilitada pela menor diferença de idade. As jovensavós relataram que suas filhas têm mais disponibilidade e mais “pique” para brincar com suas netas. Chegam a afirmar que elas próprias foram menos disponíveis para suas filhas, quando essas eram crianças. As mães mais jovens são mais companheiras dos filhos e isso, na visão das jovens-avós, acarreta uma diminuição dos conflitos entre as gerações. A maternidade é fruto, entre as adolescentes, do relacionamento sexual com os seus namorados. Esse dado, aparentemente óbvio, merece ser considerado porque contribui para o questionamento de um pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 dida como permanente. A sensação de perda de liberdade está relacionada tanto à impossibilidade de aceitar convites de última hora quanto de ausentar-se muitas horas de casa. Ou, ainda, da desidealização da liberdade, considerada como própria do mundo dos adultos. A solidão é fruto do afastamento dos amigos sem filhos. Isso gera afastamentos decorrentes da não disponibilidade para sair sempre, para ir a todas as festas, para saídas não programadas com antecedência. As mães-adolescentes relataram que temeram contar às suas mães que estavam grávidas. O medo, denominador comum entre elas, estava associado ao sentimento de terem feito alguma coisa “errada”, de terem “aprontado”. É possível perceber nos relatos que o erro relacionava-se mais ao fato de não terem seguido a orientação dada pelas mães, de usar métodos contraceptivos, do que ao fato de terem uma vida sexualmente ativa. Mas, vencido o temor, descobriram em suas mães guias solidárias na nova experiência da maternidade. Os bebês recém-nascidos são, ao mesmo tempo, elos de união e fonte de conflitos entre suas mães e suas avós. A preocupação maior das jovens-avós com a gravidez de suas filhas adolescentes parece ser a de que essa maternidade venha prejudicar o futuro de suas filhas. As preocupações são basicamente ligadas ao risco de interrupção dos processos de escolarização, profissionalização e afirmação em bons postos de trabalho, de afastamento das possibilidades de convivência social, das oportunidades de lazer e de diminuição de suas chances no mercado afetivo-sexual, sobretudo quando a mãe-adolescente rompe o relacionamento com o pai da criança. E as jovens-avós movem-se no sentido de atenuar tais riscos. As relações entre as mães-adolescentes e >53 preconceito que envolve as discussões sobre a gravidez na adolescência, ou seja, de que é fruto da promiscuidade sexual dos jovens. Isso não parece confirmar-se quando examinamos a vida afetivo-sexual dos jovens. As mães-adolescentes entrevistadas consideram o casamento como algo “sério” e “indissolúvel”. Por isso, amparadas por suas famílias, evitam o casamento reparador formal e mantêm relações consensuais, que poderão tornar-se formais no futuro. Trabalhar com a hipótese de que a gravidez entre jovens tenha sido uma opção dos mesmos exige a consideração de que são sujeitos de direitos e que têm autonomia, o que não significa que possam dispensar cuidados de saúde e orientação para viverem essa etapa da vida reprodutiva. As formas inventadas pelas famílias para que possam viver a nova realidade da gravidez e da maternidade das adolescentes são contraditórias, revelando a um só tempo os conflitos e a solidariedade, bem como práticas precursoras, revolucionárias, reacionárias e resolutivas. pulsional > revista de psicanálise > clínica do social ano XV, n. 158, jun/2002 Os legados geracionais >54 A geração das jovens-avós depositou na geração das mães-adolescentes expectativas de que seus legados fossem não só aceitos, mas sobretudo fortalecidos. E, ainda, que seus impasses pudessem ser resolvidos. Nesse sentido, uma geração espera que a seguinte seja resolutiva, que produza sínteses e ultrapasse limites. Essa seria uma das maneiras de manifestação da solidariedade de uma geração em relação à outra. A geração anterior (das jovens-avós) prepara seus legados e a geração posterior (das mães-adolescentes) os recebe e fortalece, garantindo assim a permanência dessa geração, através da permanência de seus valores. A primeira grande expectativa das jovensavós em relação às suas filhas está relacio- nada à escolaridade. Aquelas que não ultrapassaram a escola fundamental ou média esperam que suas filhas o façam. Aquelas que cursaram a universidade esperam que suas filhas também cursem. O maior grau de escolarização está associado à possibilidade de ascensão a bons postos de trabalho e, dessa forma, à independência das mulheres, o que favorece a busca de relações mais igualitárias entre os gêneros. A gravidez na adolescência aparece no primeiro momento como uma ameaça à realização dessa aspiração, passada de geração a geração, desde as bisavós precursoras. O esforço das jovens-avós é feito no sentido de possibilitar às suas filhas a conciliação das atividades escolares com a maternidade. O outro legado diz respeito à conduta no terreno afetivo-sexual e reprodutivo. As jovens-avós aprenderam a dissociar a vida sexual-afetiva tanto do casamento formal quanto da reprodução. Sua geração pôde contar com a tecnologia reprodutiva. O domínio sobre o próprio corpo foi importante para essa geração, como estratégia de negociação de relações mais igualitárias com seus parceiros. E a geração de suas filhas, as atuais mães-adolescentes, pôde contar tanto com as informações acerca das práticas contraceptivas quanto com o acesso aos métodos contracepcionais. No entanto, a geração das mães-adolescentes reagiu a esse legado. Elas recusaram tanto as informações, à medida que não operaram com elas na vida cotidiana e prática, quanto os métodos contraceptivos, uma vez que engravidaram. A gravidez na adolescência evidencia essa ruptura com os valores recebidos e é fonte de conflitos. As jovens-avós revelaram não condenar suas filhas pela vida sexual ativa, o que as associaria a um padrão de comportamento tradicional com o qual elas não se identificam. Mas condenaram-nas, porque não fizeram Considerações finais Combater os preconceitos em torno da gravidez na adolescência e as dominações de idade é condição necessária para garantir os direitos reprodutivos dos adolescentes e, dessa forma, promover o amparo daqueles que se tornam pais e mães. Isso significa ajudá-los a elaborar a própria experiência e clínica do social dos pais. E, ao mesmo tempo, “vai acontecer tudo”, porque os pais estão disponíveis para ajudá-las no que for preciso. Por outro lado, a relação provedor/dependente favorece a ordem de dominação das idades, uma vez que as mães-adolescentes são constantemente alvo de ações reguladoras dos adultos da família de origem e dos serviços de saúde e de educação, no que se refere à sua vida afetivo-sexual e ao exercício da maternidade, já que são consideradas imaturas para cuidar dos próprios filhos sem a orientação dos adultos, notadamente das jovens-avós. Para as mães-adolescentes, a maternidade significa também uma dificuldade adicional na autonomia financeira, o que leva a postergar a saída da casa dos pais. No entanto, o projeto da geração das mães-adolescentes não parece ser o de sair da casa de seus pais. Esse foi o projeto muitas vezes realizado pela geração das jovens-avós. Tal discurso parece distanciado da vida prática dessas jovens, uma vez que não revelaram em suas entrevistas nenhuma ação concreta que as pudesse encaminhar para uma vida independente. Não trabalham e tiveram, à exceção de uma entrevistada, dificuldades na trajetória escolar. Nesse aspecto, é interessante notar que a gravidez e a maternidade provocaram nelas uma mudança em relação ao processo de escolarização: muitas tentaram melhorar seu desempenho escolar, associando tal esforço às novas responsabilidades da maternidade. pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 nem cargo das informações, nem uso de métodos contraceptivos. Essa condenação as mantêm fiéis a um padrão de comportamento moderno inventado por sua própria geração. As adolescentes, por sua vez, reagem a um código que prega a prática de uma sexualidade racional. O desejo de ter um filho na adolescência é tecido subjetivamente, o que não significa necessariamente que seja um projeto racional, consciente. As mãesadolescentes revelaram, em suas entrevistas, como já assinalei, que seus sentimentos frente à notícia da gravidez foram ambivalentes: sentiram medo, mas também alegria. Todas teriam, com maior ou menor facilidade, recursos para o aborto, mas nenhuma delas optou por interromper a gravidez, o que faz supor que os sentimentos positivos em relação à gravidez e à maternidade prevaleceram, e que a nova condição lhes traria ganhos, do ponto de vista emocional e social. A gravidez e a maternidade para as adolescentes entrevistadas foram o resultado da experimentação afetivo-sexual. Não podemos deixar de considerar que a socialização das mães-adolescentes incentivou a sua autonomia e a busca de novas experimentações. Nasceram e cresceram em famílias nas quais as relações entre os gêneros e entre as idades eram menos hierarquizadas, o que as levou a experimentar menor grau de repressão. Uma das faces do conflito entre as gerações está presente nas relações de solidariedade entre pais e filhos que colocam os primeiros como agentes de proteção irrestrita aos filhos, e estes no pólo da dependência total em relação aos pais. Nesse sentido, o medo das adolescentes em revelar a gravidez aos pais é apaziguado pela certeza de que “não vai acontecer nada”. De fato, não sofreram nenhuma punição ou restrição, por parte >55 pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 clínica do social a desempenhar as tarefas de educar e cuidar de seus filhos. O significado cristalizado e homogêneo de “problema” atribuído à gravidez na adolescência, oculta as contradições e a pluralidade das significações e acaba por sustentar práticas discriminatórias e de exclusão social de pais e mães adolescentes. Por outro lado, tal significado também nega as possibilidades de transformação da vida cotidiana, pela interação das gerações, no interior das famílias. As significações são construções sócio-históricas elaboradas ao longo das gerações. >56 Referências ATTIAS-DONFUT, Claudine. Générations et âges de la vie. Paris: PUF, 1991. _____ Sociologie des générations. L’empreinte du temps. Paris: PUF, 1988. _____ (org). 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