Energia por SYLVIA MIGUEL *Muito além do álcool* Na onda de expansão do mercado da cana-de-açúcar, a co-geração de eletricidade a partir do bagaço da cana-de-açúcar pode representar uma nova revolução na matriz energética do País e impulsionar a geração distribuída, afirmam especialistas A história do planejamento energético brasileiro, iniciado há cerca de 30 anos com o incentivo governamental à produção do álcool, pode estar passando por uma fase de transição sem precedentes com os movimentos recentes do governo e de produtores independentes de energia rumo à bioeletricidade. Durante o Ethanol Summit, encontro realizado em São Paulo dias 4 e 5 de junho que reuniu lideranças empresariais, mega-investidores e produtores mundiais da área de etanol e cana-de-açúcar, a ministra de Minas e Energia, Dilma Roussef, anunciou o incentivo do governo aos representantes do setor de biomassa e em especial ao bagaço de cana, desvelando um futuro promissor para a matriz elétrica do País. “O Brasil conquistou, ao longo de sua história energética, uma matriz extremamente sustentável, porque bastante diversificada. Temos 45% de fonte renovável e 55% de combustíveis fósseis, ao passo que a média mundial é de apenas 14% de matriz renovável. Pretendemos manter essa situação bastante privilegiada enfatizando certas fontes energéticas estratégicas para o País”, disse a ministra. “Quando falamos de etanol, não podemos esquecer a interessantíssima eficiência energética de uma unidade produtora de cana-de-açúcar também no que se refere ao uso do bagaço da cana e à produção de energia elétrica.” A aposta na bioeletricidade acontece em diversas frentes. No dia 18 de junho, por exemplo, ocorreu o primeiro leilão de energia de fontes renováveis. No total, 12 empreendimentos com um potencial de 542 MW de potência instalada comercializaram 140 MW médios de energia/ano, o que significa que 140 MW de bioeletricidade foram contratados e serão injetados no sistema nacional pelo prazo de 15 anos, a partir de 1o de janeiro de 2010. Além disso, um outro leilão para todas as fontes, previsto para este mês de julho, contou com o cadastramento inicial de 59 produtores independentes de energia de fonte renovável, segundo o mestrando do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da USP e técnico da Associação Paulista de Co-geração de Energia (Cogen) Leonardo Santos Caio Filho. “As perspectivas para a bioeletricidade no curto prazo são tão boas que às vezes é difícil convencer as pessoas de que isso é real”, disse, durante sua palestra no Ethanol Summit, o presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Maurício Tolmasquim. Ele afirmou que até o momento 42 usinas em Goiás estão querendo se conectar à rede de distribuição, o que poderá significar a injeção de 2.911 MW de bioeletricidade no sistema nacional a partir de 2009. Segundo Tolmasquim, as perspectivas de crescimento da bioeletricidade no longo prazo são ainda melhores. “Nosso planejamento indica que chegaremos a 2015 com uma safra de 715 milhões de toneladas ao ano e em 2030, de 1,14 bilhão de ton/ano. O potencial técnico para geração sem aproveitamento da palha em 2015 é de 42 terawatts/hora ao ano e com aproveitamento da palha, 61 TWh/ano”, disse. As projeções da Cogen e da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) apontam números ainda mais otimistas. Considerando o aumento da área plantada de cana e a conseqüente maior disponibilidade de bagaço, a bioeletricidade gerada nas usinas de açúcar e álcool do País em 2012 deverá estar em torno de 8,7 mil MW e se aproximar de 27 mil MW em 2020. Do total gerado atualmente, 1.600 MW são vendidos para as distribuidoras de energia elétrica. “O uso de tecnologias mais adequadas no futuro permitirá um aproveitamento melhor do bagaço para a produção de quantidades ainda maiores de bioeletricidade, o que torna os projetos de geração distribuída muito mais viáveis do que os grandes projetos energéticos que o governo quer aprovar”, avalia o professor José Goldemberg, docente do IEE e ex-secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Só com a entrada das novas usinas sucroalcooleiras projetadas para começar a operar até 2015, uma estimativa da Cogen/Unica aponta uma perspectiva de acréscimo da oferta de bioeletricidade em torno de 5 mil MWh/ano. Esse montante é o equivalente a cinco reatores nucleares iguais aos de Angra, compara Goldemberg. *Regras claras* – De acordo com Tolmasquim, um número crescente de usineiros de Goiás, Mato Grosso e São Paulo tem manifestado a intenção de produzir bioeletricidade para exportação, ou seja, além do consumo próprio. Mas se, por um lado, existe a vontade política e, por outro, o desejo de novos agentes entrarem nesse mercado, ainda é necessário o estabelecimento das condições físicas e institucionais ideais para o produtor independente se sentir estimulado a participar dos leilões de energia. Além da expansão da rede distribuidora, o mercado de energia ainda carece de regras mais transparentes especialmente no que diz respeito à metodologia de cálculo do custo econômico de curto prazo (CEC), uma variável importante na composição do valor da energia paga ao produtor, diz Onório Kitayama, responsável na Unica pelo desenvolvimento do setor de bioeletricidade. “O momento é decisivo para a inserção definitiva da bioeletricidade na matriz elétrica e energética, o que poderá transformar a cadeia produtiva sucroalcooleira em agente de geração do setor elétrico brasileiro. Mas essa transição só estará consolidada com uma política de incentivos mais clara especialmente no que se refere às regras e metodologia de cálculo da CEC”, afirma Kitayama. No que diz respeito à infra-estrutura de distribuição, um grupo de trabalho constituído por técnicos do MME, EPE, Cogen e Unica, além da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), foi recentemente criado com o objetivo de levantar informações para a expansão do sistema de transmissão de energia elétrica. “Estamos realizando o levantamento de dados sobre cargas, canteiros de obras, partidas de usinas, cronograma de demanda até 2012 e os empreendedores assinarão uma declaração de intenções. Assim, teremos os dados para elaborar os fluxos de potência que definirão a malha do sistema”, diz o coordenador do grupo técnico, Carlos Roberto Silvestrin, vice-presidente executivo da Cogen. Segundo Silvestrin, serão necessários de R$ 2 bilhões a R$ 3 bilhões de investimentos para que as usinas estejam aptas a injetar energia na rede até 2011. “Ocorrerá uma inversão do processo de planejamento tradicional, que levava energia da geração centralizada para os consumidores nas periferias do sistema. Agora teremos uma geração nas periferias dos sistemas, a qual será levada para o centro do mesmo. Trata-se da geração distribuída”, diz Silvestrin. Tolmasquim afirma que entre as soluções que a EPE aponta para a expansão energética do País está a instalação de estações coletoras onde existir maior expectativa de oferta de energia. Já existem projetos para novas estações coletoras nos municípios de Itaguassu e Barra do Coqueiro, em Goiás, além de Chapadão, Inocência, Casa Verde, Maracaju e Naviral, em Mato Grosso. *Bioeletricidade, um novo paradigma* Passamos por uma mudança explícita de paradigma na geração de energia porque vamos vivenciar a presença do bagaço na indústria sucroalcooleira. A afirmação de José Luiz Alqueres, diretorpresidente da Light, empresa responsável pelo fornecimento de eletricidade para 31 municípios do Rio de Janeiro, foi feita durante palestra no Ethanol Summit, em São Paulo. Membro do Instituto Nacional de Eficiência Energética (INEE) e profissional experiente do setor, Alqueres lembrou que, à semelhança do período pós-Segunda Guerra, quando a autoprodução de energia era da ordem de 30%, atualmente os consumidores livres já representam mais de 25% do mercado. Ao contrário daquele período em que as fábricas usavam diesel para gerar vapor, nas centrais autoprodutoras a biomassa representa 46% da fonte energética, disse. Com um passado que se funde com a própria história do Brasil, a cana-de-açúcar viu o declínio do seu primeiro ciclo produtivo antes de 1.600, quando se esgotou a lenha usada na queima das caldeiras para fazer o açúcar. Mas os portugueses descobriram que o bagaço poderia ser queimado e isso representou uma revolução na época, com os holandeses entrando no negócio da cana e fazendo com que uma colônia se estabelecesse no Brasil com a presença de um príncipe de Portugal. “Hoje, a possibilidade de extrair quantidades superiores de energia em decorrência das novas tecnologias e máquinas mais eficientes e as chances de em breve termos um bagaço ainda mais precioso com a extração da celulose do bagaço podem representar uma nova revolução na história da cana e da matriz energética do País”, afirmou. A bioeletricidade pode ser gerada a partir de várias fontes e resíduos agrícolas e industriais. No que diz respeito à cana, seu potencial energético é alto, porém pouco aproveitado, já que palha e bagaço, que representam cerca de 2/3 do conteúdo de energia da planta, não são aproveitados para fins energéticos. Apenas o caldo é de fato transformado. “A bioeletricidade oferece segurança energética, pois a biomassa é recurso nacional. A biomassa está próxima de grandes centros produtores e consumidores, pode ser obtida em prazos relativamente curtos, gera emprego, é fonte renovável, seu custo é competitivo, fecha o balanço de carbono porque a planta absorve os gases de efeito estufa durante a fotossíntese. A bioeletricidade aumenta a demanda por bens de capitais nacionais”, disse Maurício Tolmasquim, da EPE. *Carros elétricos para as metrópoles* A bioeletricidade obtida em usinas de açúcar e álcool, em sistemas de co-geração que usam o bagaço de cana como combustível, pode ter um valor agregado ainda maior se utilizada para movimentar veículos elétricos ou híbridos. Esses tipos de automóveis, que ganham mercados crescentes em centros urbanos como Tóquio e Londres, por exemplo, não emitem dióxido de carbono e poluentes locais, ao contrário dos movidos a gasolina e mesmo a álcool. Com isso, criam um benefício a mais ao ambiente e podem gerar créditos de carbono. A idéia foi apresentada pelo professor de Gestão Ambiental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP Sérgio Pacca, em seminário da Associação Brasileira das Empresas de Conservação de Energia (Abesco), realizado em São Paulo, em maio. Com o tema “Co-geração + Veículos Elétricos. Uma Proposta para Produzir Créditos de Carbono e Reduzir a Poluição Urbana”, a palestra apresentou o carro elétrico como alternativa de transporte para grandes centros. “O álcool pode reduzir a emissão de gases que provocam o efeito estufa, mas não melhora a poluição local, que é um grave problema ambiental e de saúde pública de metrópoles como São Paulo”, explica. Segundo Pacca, um carro a gasolina emite 200 gramas de gás carbônico por quilômetro rodado. Essa seria, portanto, a quantidade correspondente de créditos que iria para o produtor de energia. Uma frota de cerca de 1 milhão de veículos elétricos, o que representa 27% dos automóveis rodando na cidade de São Paulo, com base em dados de 2002, poderia evitar a emissão de 2,3 milhões de toneladas de CO2 por ano, afirma. Doutor em Recursos Energéticos pela Universidade da Califórnia, Berkeley, Pacca diz que a eficiência energética do carro elétrico é 2,6 vezes maior que o movido a gás natural. “Os governos locais poderiam adotar mecanismos de incentivos para promover a adoção dessa tecnologia em cidades como São Paulo. As pessoas estão morrendo por causa da poluição e os carros elétricos deveriam ser considerados mais seriamente. Existem usuários na cidade que certamente poderiam fazer uso dessa tecnologia sem arcar com prejuízos significativos”, diz Pacca. Os principais argumentos contrários à adoção do carro elétrico dizem respeito especialmente à vida útil das baterias e tempo de recarga, diz Henry Joseph Jr., presidente da Comissão de Energia e Meio Ambiente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). “Do ponto de vista do fabricante de veículos, a idéia do carro elétrico não é ruim nem dispensável. Os fabricantes não têm qualquer visão antagônica. Ao contrário, tem-se trabalhado no sentido de tornálo viável. Mas eu afirmo que a questão da bateria ainda não está superada a ponto de podermos pensar no investimento desse mercado no Brasil”, afirma. O físico-químico Edson Antônio Ticianelli, diretor do Instituto de Química de São Carlos da USP, afirma que a tecnologia de baterias evoluiu muito, especialmente no que diz respeito ao uso de materiais e ácidos desses dispositivos. “As novas baterias utilizam níquel-hidreto e lítio, materiais potencialmente recicláveis. Não utilizam metais pesados como cádmio e chumbo. Os motores de carros elétricos, como o Honda, Prius e Tesla, utilizam essas baterias de última geração. Mas a vida útil e o tempo de recarga das baterias ainda podem ser uma limitação para a expansão do mercado de carros elétricos”, afirma. Segundo Ticianelli, as baterias de última geração possuem vida útil de mil ciclos, o que pode ser traduzido em cerca de três ou quatro anos de uso. “Não é a bateria que pode resolver o problema do carro elétrico, mas a tecnologia da célula a combustível.” Na opinião do presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tolmasquim, o carro elétrico é um caso clássico para a geração de créditos de carbono porque não se trata de algo que ocorreria naturalmente. Ao contrário, terá mais chances de ser incorporado ao mercado consumidor a partir de alguma medida de governo que funcione como mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL), visando ao estímulo dessa tecnologia com vistas a gerar créditos de carbono. Para o professor José Goldemberg, pode ser “complicado” atribuir os créditos de carbono ao produtor de bioeletricidade a partir do uso desse combustível em carros elétricos. Pacca diz que nas duas pontas – geração e consumo – o balanço precisa zerar, ou seja, o que é suprido por todas as usinas tem de ser igual ao que é consumido e assim se atribuem os créditos. “Seriam necessários ajustes em termos de regulações e leis e no próprio mecanismo de consumo da energia”, pondera Pacca.