HERALDO MÁRCIO GALVÃO JÚNIOR
NACIONALISMO, COSMOPOLITISMO E AFRANCESAMENTO EM MON COEUR
BALANCE E LEUR ÂME, DE OSWALD DE ANDRADE E GUILHERME DE
ALMEIDA.
ASSIS
2013
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HERALDO MÁRCIO GALVÃO JÚNIOR
NACIONALISMO, COSMOPOLITISMO E AFRANCESAMENTO EM MON COEUR
BALANCE E LEUR ÂME, DE OSWALD DE ANDRADE E GUILHERME DE
ALMEIDA.
Dissertação apresentada à Faculdade de
Ciências e Letras de Assis – UNESP –
Universidade Estadual Paulista para a obtenção
do título de Mestre em História (Área de
Conhecimento: História e Sociedade)
Orientador: Prof. Dr. Antonio Celso Ferreira.
ASSIS
2013
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Galvão Júnior, Heraldo Márcio.
Nacionalismo, cosmopolitismo e afrancesamento em Mon coeur
balance e Leur âme, de Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida /
Heraldo Márcio Galvão Júnior. – Assis: [s.n.], 2013.
127 f. : il. ; 30 cm.
Orientador: Antonio Celso Ferreira
Dissertação (mestrado) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis –
Universidade Estadual Paulista
1. Brasil - História. 2. Teatro - História. 3. Almeida, Guilherme de. 4.
Andrade, Oswald de. 5. Mon coeur balance. 6. Leur âme. 7.
Nacionalismo. 8. Cosmopolitismo. 9. Afrancesamento I. Ferreira,
Antonio Celso. II. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”, Faculdade de Ciências e Letras de Assis. III. Título.
CDU - 981
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Aos meus pais, avós e irmão, pelo amor e dedicação.
À Regina, pela inspiração e companheirismo.
5
Agradecimentos
Esta pesquisa, especificamente, teve início no curso de Pós-Graduação, entretanto o
gosto pela literatura e pelo teatro, assim como a possibilidade de usá-los como fontes
históricas, surgiram antes. Quando surgiu a apreciação por estas artes é difícil de precisar,
todavia as possibilidades de análise em um estudo vieram, dentre outros professores, da
professora Emery Marques Gusmão, quando me apresentou a figura pouco conhecida
Guilherme de Almeida que, mesmo não dando frutos acadêmicos institucionalizados,
serviram de base para divagações futuras. Dessa forma, gostaria de agradecer inicialmente a
ela por todo o emprenho e auxílio, tanto em sua orientação consistente quanto em diversos
momentos críticos pelos quais passam os alunos de graduação.
Também foi a professora Emery quem me apresentou o orientador desse trabalho, o
professor Antônio Celso Ferreira. A este, agradeço por todas as reuniões formais e informais
em Assis, São Paulo, São José do Rio Preto e em demais eventos acadêmicos, pela orientação
segura, clara e crítica, permitida (conseguida) por seu vasto conhecimento historiográfico,
literário, empírico, político, enfim, pelo vasto conhecimento que garante a ele uma excelência
profissional por muitas vezes heterodoxa.
À minha mãe, Eliana Mazinini, que teve bravura, intrepidez e condições de se
desdobrar em mil a fim de garantir a mim exemplos e estudos fundamentais para a conclusão
desse estudo, assim como por estar ao meu lado irrestrita e integralmente por todos esses
anos. Ao meu irmão, Nilo Galvão, que sempre me apoiou em todos os sentidos, foi meu
companheiro de todas as horas e assumiu, por diversas vezes, responsabilidades que não lhe
eram cabíveis, mas que contribuíram para tornar mais leve e calma minha vida acadêmica
desde a graduação. Ao meu pai, Heraldo Márcio Galvão, sempre pronto a me auxiliar tanto
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nas questões práticas e técnicas quanto em nossas discussões sobre conceitos diversos e
modos do convívio humano. Ao meu tio, Heveraldo Galvão, por todo apoio, incentivo e
exemplos. A minha prima, Mariana Mazinini Dela Togna, pela cumplicidade e por aguentar
com interesse sincero minhas incertezas e confusões. Aos meus avós Dalva Laurenti Galvão,
Euripedes Alcides Galvão, Odete Correa Mazinini e Valentino Arthur Mazinini, cuja
preocupação, amor e dedicação foram indeléveis e incontáveis. A Paulo Leonardo Brunetti,
com quem, desde os tempos de colégio, cresci e amadureci e quem acompanhou todos os
momentos tristes, felizes, calmos e truculentos da minha vida.
À Regina Paula Biassi pela incrível paciência e compreensão em relação ao período
que antecedeu a defesa da Dissertação, por demonstrar maturidade e amor que me deram
força e me impulsionaram para a conclusão deste trabalho. Sou muito grato pela presença
afável, afetiva, pelo carinho e cuidados.
Às professoras Daniela Mantarro Calippo e Karina Anhenzi, presentes na banca de
qualificação, cuja leitura atenta e precisa, somada aos apontamentos (essenciais) foram
fundamentais para o decorrer da pesquisa. À Marlene Gasque, Isabel e aos demais
funcionários do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) pelo excelente
trabalho e dedicação no lidar com as fontes.
A Daniel Pansanato, Denis Gascó e Phablo Bittencourt Faria, irmãos e companheiros
de república, pelas noites de conversas, filmes e estudos, sem os quais dificilmente teria
conseguido completar a graduação com uma riqueza de experiências. Aos companheiros de
graduação Muryel, Iasia, Katia, Stenio, Raphael, Mário, Camila, Denise. A Wellington
Amarante Oliveira e Camila Soares López, com quem tive o privilégio de relacionar-me nos
quatro anos de graduação, pelas conversas e discussões formais e informais, pela parceria na
fundação de um cursinho comunitário, pelas correções e aulas de francês, pelo convívio que
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me faz falta. Aos amigos da Pós-Graduação André Mattos e Alexandre Costa, pelas
discussões e companhia nas longas e cansativas viagens para Assis, assim como a Rafael
Antunes e Gabriel Boscariol pela companhia e peripécias em congressos.
Por fim, gostaria de deixar minhas sinceras desculpas a todos que não citei e que, de
uma forma ou de outra, contribuíram com esta trajetória.
Todos estão incluídos nas páginas que seguem.
8
Uma geração que fora à escola em bondes puxados por cavalos se
encontrou, subitamente, em uma paisagem onde tudo se alterara e
nada permanecia igual ao que fora antes – exceto as nuvens e, debaixo
delas, em meio a explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.
Walter Benjamin
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GALVÃO JÚNIOR, H. M. Nacionalismo, cosmopolitismo e afrancesamento em Mon coeur
balance e Leur âme, de Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida. 2013. 127 f.. : IL.
Dissertação de (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis –
Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013.
RESUMO
Esta dissertação tem por objetivo principal analisar historicamente Mon coeur balance e Leur
âme, duas peças de teatro escritas em francês por Oswald de Andrade e Guilherme de
Almeida, em 1916, à luz das relações políticas, sociais e culturais em São Paulo da época.
Tais obras, quando observadas pela ótica do simbolismo, abrem uma gama de possibilidades
analíticas que são ampliadas quando contrastadas com as fontes jornalísticas – principalmente
O Pirralho, semanário irreverente de Oswald de Andrade e que contava com publicações de
Guilherme de Almeida. Esta pesquisa buscou comprovar a hipótese de que, ao contrário do
que acreditam diversos críticos contemporâneos de renome, tais obras não se resumem a uma
arte mundana e de entretenimento burguês, mas apresentam críticas sociais muito bem
definidas, embora não explícitas, por trás de citações de autores europeus, músicas, óperas,
quadros, etc. Com esta intenção, foi possível reconstruir um panorama das transformações
pelas quais passavam São Paulo da virada do século XIX ao século XX, tanto nos aspectos
físicos da cidade quanto nos psicológicos da população. Seguindo por essa linha, são
analisados os sentidos que o nacionalismo assume em diversos setores sociais e literários,
assim como quais deles os autores carregam ao longo de suas carreiras, em geral, e nas duas
peças, especificamente, como é o caso da paulistanidade. Este sentimento de pertencimento
nacional paulista está incutido em uma sociedade já afrancesada desde os tempos coloniais e
cuja valorização do cosmopolitismo ajuda a completar o quadro que se compõem as teias
intelectuais paulistanas do início do século XIX. Nesse sentido, esta pesquisa remonta, desde
os tempos coloniais, a presença francesa no Brasil, identifica quais obras e quais autores
foram importantes para a construção das peças, de que forma Guilherme e Oswald os
utilizaram para recriar e criticar a realidade nacional e, por fim, como os autores trouxeram
para o Brasil e remodelaram a figura da Mulher Fatal.
Palavras Chaves: teatro, dramaturgia, literatura, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida,
Mon coeur balance, Leur âme, nacionalismo, paulistanidade, cosmopolitismo,
afrancesamento, Mulher Fatal.
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GALVÃO JÚNIOR, H. M. Nationalism, cosmopolitanism and Frenchification on Mon coeur
balance e Leur âme, by Oswald de Andrade and Guilherme de Almeida. 2013. 127 f.. IL.
Dissertation (History Master’s Degree) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013.
ABSTRACT
This dissertation aims to analyze historically Mon coeur balance and Leur âme, two plays
written in French by Oswald de Andrade and Guilherme de Almeida in 1916 looking
political, social and cultural relations in São Paulo at the time. These plays, when viewed
from the perspective of symbolism, open a range of analytical possibilities that are magnified
when contrasted with journalistic sources - mainly O Pirralho, irreverent periodical by
Oswald de Andrade that had Guilherme de Almeida’s publications. This research sought to
prove the hypothesis that unlike of what many renowned contemporary critics believe such
plays are not limited to a worldly art and bourgeois entertainment but they show very well
defined social criticism behind European authors’ mentions, songs, operas, paintings, etc.,
though they are not explicit. With this intention, it was possible to reconstruct a picture of the
transformations São Paulo was passing in the turn of the nineteenth to the twentieth century,
both in the physical aspects of the city as the psychological aspects of the population.
Following this line, the ways that nationalism takes in various literary and social sectors are
analyzed, as well as what the authors carry from them throughout their careers, in general, and
in the two plays, specifically, as in the case of paulistanidade. This feeling of São Paulo’s
national belonging is instilled in a society already Frenchified since colonial times and whose
appreciation of cosmopolitanism helps to complete the picture that make up the São Paulo’s
intellectual webs in the early nineteenth century. In this sense, this research dates from
colonial times the French presence in Brazil, identifies what works and authors were
important for the construction of the plays, how Guilherme and Oswald and used them to
recreate and criticize the national reality and finally how the authors brought to Brazil and
reshaped the figure of Femme Fatale.
Key Words: theater, drama, literature, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Mon
coeur balance, Leur âme, nationalism, paulistanidade, cosmopolitanism, Frenchification,
Femme Fatale.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13
1 SÃO PAULO ENTRA NA MODERNIDADE...................................................................19
1.1 Mudanças estruturais, planejamento urbanístico e sociabilidade urbana............................20
1.2 Ideário da nacionalidade paulista........................................................................................27
1.3 O nacionalismo em Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida....................................32
2 ENTRE O “GIRONDINO” E O “JACOBINO” DO MODERNISMO..........................45
2.1 Aproximações de Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida.......................................49
2.2 Produções teatrais...............................................................................................................57
2.3 Mon coeur balance e Leur âme...........................................................................................62
3. BRASIL-FRANÇA..............................................................................................................69
3.1 Recepção das peças pela mídia escrita................................................................................70
3.2 Presença francesa no Brasil.................................................................................................76
3.3 Presença francesa, biografia e critica social........................................................................82
3.4 Entre ciganas, cortesãs, prostitutas e madames: a mulher fatal tupiniquim......................103
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................115
12
FONTES.................................................................................................................................119
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................122
13
INTRODUÇÃO
14
INTRODUÇÃO
Em 1915, José Oswald de Souza Andrade e Guilherme de Andrade e Almeida iniciam,
a quatro mãos, a composição de Mon coeur balance e Leur âme pelos bares e cafés
paulistanos.
A primeira peça passa-se em um hotel luxuoso de uma das praias mais elegantes de
São Paulo à época, o Guarujá. Há um fio de enredo que liga as três personagens principais:
Marcela, considerada uma flirting-girl, transita entre o amor de Gustavo, um jovem blagueur,
e seu amigo mais velho, Luciano. O conflito ocorre quando, no terceiro ato, Gustavo descobre
que o amigo também ama Marcela, enquanto esta afirma que, entre os dois, seu coração
balança e some fisicamente de cena até o fim da peça. As demais personagens gravitam em
torno delas e são reflexos do contexto interno paulista, de afirmação “cosmopolita”, e externo,
essencialmente em relação à Primeira Guerra Mundial: mãe de Marcela; Helena, uma
adolescente de 16 anos; um médico; um bacharel; um coronel; um jornalista, um fazendeiro;
uma exilada belga; uma cantora italiana; um inglês; uma família inglesa; garçons,
carregadores e o universo da praia.
A segunda transita entre uma faustuosa casa em Higienópolis, bairro paulistano e
elitizado, uma garçonnière, uma sala de fumar de um grande clube requintado da cidade e
uma casa de campo. Há novamente um triângulo amoroso, entretanto não mais no plano
mental, como em Mon coeur balance, mas a tradicional história de marido, mulher e amante,
assunto recorrente em peças teatrais dessa fase. Natália é casada com George, tem um caso
amoroso com Gastão e foge com um caixeiro viajante. O casal, ligado pelos laços do
matrimônio, possui duas filhas: Emma, mais velha, e Carlotinha, levada por sua mãe ao
sumir. Os dois homens se enfurecem, separadamente, pela impossibilidade de possuir a
mulher amada por inteiro, gerando discussões de caráter romântico, psicológico e filosófico.
Entre as personagens secundárias, há: um filósofo, um “bom burguês” e seu filho, um padre,
um criado japonês, dois clubmen, um garçom, um carregador, clientes e criados.
A esta época, os autores, esses “homens sem profissão”1, de mesma idade, haviam
passado pelas mais tradicionais instituições de ensino paulistas – sendo colegas de classe no
ensino ginasial –, incluindo a Faculdade de Direito de São Paulo, e lutavam por serem
1
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
15
reconhecidos com sua incipiente produção intelectual e literária. Guilherme publicara algumas
de suas poesias em jornais, Oswald atuava como crítico de teatro no Diário Popular e ambos
publicavam em O Pirralho, fundado por Oswald.
A cidade de São Paulo, berço dos autores, passava por diversas mudanças em sua
fisionomia: crescente industrialização, expansão urbana, surto imigratório, ampliação dos
espaços de sociabilidade, dentre outras questões que inseriam a capital paulista na
modernidade. O culto à modernidade e seu significado simbólico, em oposição ao atraso
representado pelo velho mundo rural, era utilizado pela elite intelectual e política – que
diversas vezes se confundem ou se complementam – como forma de impor sua
representatividade em âmbito nacional por meio de uma identidade paulista que não se
distinguia da déia de nacionalidade brasileira.
Tais questões geraram estudos geográficos, etnológicos, sociais, historiográficos, entre
outros, que chegaram à literatura, entre outras obras artísticas e intelectuais do período.
Incutida nesse panorama, a ideia de uma capital paulista cosmopolita se fazia presente entre as
discussões e criações, notadamente baseadas em paradigmas e produções intelectuais e
artísticas europeias, especialmente francesas.
Todas essas transformações ocorridas em São Paulo em fins do século XIX e início do
século XX, somadas ao reflexo proporcionado pela Primeira Guerra Mundial, alteraram os
modos de percepção das pessoas, gerando mudanças também nas artes.
Para tornar-se um intelectual reconhecido no Brasil deste período, havia a necessidade
de enquadrar-se nos moldes da Academia Brasileira de Letras, representada por Machado de
Assis, Olavo Bilac e Coelho Neto. Entretanto, tal postura recaía sobre a limitação da liberdade
e da autonomia artística individual, que poderia ser requerida a partir do momento em que o
artista possuísse maneiras de sobreviver independentes do trabalho intelectual, ou seja,
pertencesse a uma elite e possuísse rede de sociabilidade que o permitisse questionar a
literatura oficial e propor uma renovação, assim como rupturas estéticas, como é o caso dos
autores aqui apresentados.
O ambiente teatral paulista, ainda incipiente em relação ao Rio de Janeiro, recebia
peças cariocas e europeias em grande quantidade, mas passou-se a exigir um teatro
exclusivamente produzido por dramaturgos da cidade. De um lado, então, tínhamos teatros
bairristas – a presença de imigrantes italianos contribuiu enormemente para a produção teatral
16
da época –, caipiras, regionalistas e, de outro, a visita constante de grandes companhias
estrangeiras.
Com o grande sucesso do teatro rápido e musicado, alguns intelectuais passaram a
reclamar uma produção teatral paulista ligada aos padrões europeus de gosto burguês. Os
autores admiravam o trabalho do carioca João do Rio, que foi uma figura importante nesse
cenário, produzindo tanto estudos de caráter social quanto peças que abarcavam a sociedade
burguesa.
O panorama da produção literária brasileira nesta fase transita entre diversas correntes,
com a marcada presença do romantismo, do naturalismo, do parnasianismo e do simbolismo.
As peças guardam relações diretas e indiretas com as características dessas escolas, mas sua
composição está intimamente ligada ao simbolismo/decadentismo: dividida em quatro atos,
lenta, com andamento vagaroso de delicadeza, o uso de metáforas, paradoxos, sinestesia, entre
outras características próprias desta produção.
O ambiente político nacional, instável devido à recente proclamação da República e
dominado pelas antigas elites rurais, atraem os intelectuais, que trazem para si a
responsabilidade de propor novos rumos para o Brasil e para São Paulo. Mesmo que a
numerosa massa estivesse excluída dos processos políticos decisórios, havia certo clima de
esperança, incentivando a ação militante, especialmente anarquista, contribuindo para
modificações sofridas nos domínios da instrução pública, vida artística e literária. Tais
propostas, embora divergentes em sua ideologia e seu modelo de ação, guardavam um ponto
em comum: reconstruir a nação, criar um homem novo, reciclar os valores culturais e
modernizar a nação e o Estado. Assim, era intensa a busca dos sentidos do Brasil: progresso
versus atraso; urbano versus rural; internacional versus nacional; “civilização” versus
província.
Dessa maneira, inseridos neste contexto interno e externo, claramente influenciados
por intelectuais europeus, adoradores da literatura teatral que se fizeram presentes em sua
formação – como Shakespeare – e baseados em Maeterlinck, Bernstein, Bataille, Baudelaire e
João do Rio, os autores produziram a partir das condições a eles apresentadas e por eles
selecionadas como armas de luta pela reconstrução nacional e paulista pela via artística.
Entretanto, as obras não encontraram espaço para serem montadas – apenas um ato de
Leur âme foi apresentado por Suzanne Deprès no teatro municipal. A crítica jornalística foi,
em sua maioria, elogiosa às peças, que eram lidas para grupos de amigos em redações de
17
jornais e cujo maior questionamento consistia em depreciá-las por terem sido escritas em
francês em meio à exaltação do nacionalismo. O próprio Oswald comenta que, quando
apresentado um ato de Leur âme, a peça foi recebida com a maior e mais justa indiferença do
público e da crítica.
Até hoje críticos e estudiosos consideram as peças como fracasso, como obras
menores dos autores e desvios literários por não reconhecerem nelas os aspectos que se
tornaram uma constante nas obras futuras de Oswald e de Guilherme. Entretanto, este estudo
não requer apenas o resgate de um projeto literário recebido de forma injusta pela crítica, mas
pretende determinar as facetas de sua composição, assim como resgatar os dilemas
vivenciados pelos autores em uma época de impasses intelectuais, estéticos e ideológicos.
Esta pesquisa não se liga aos estudiosos que as consideram menos importantes no
conjunto da obra dos autores, mas ao balanço de seu significado literário a partir de sua
natureza híbrida. Para tal, a abordagem aqui usada insere-se no campo multidisciplinar e
multiteórico, beneficiando-se dos métodos da História social e da cultura, da teoria literária,
da filosofia e da psicologia. Assim, levam-se em consideração os aspectos estéticos e formais,
fundindo texto e contexto em uma análise histórica.
A crítica contemporânea diz que nas peças não pode ser encontrado nada que revele a
virilidade questionadora de O Rei da Vela, de O Homem e o Cavalo e de A Morta, assim
como dos romances sociais de Oswald. Esta afirmação é por este autor questionada, pois
acredita-se que as peças foram analisadas superficialmente, não levando em consideração sua
marca mais enfática, o simbolismo, assim como as ideias de intelectuais nacionais e
internacionais que estão presentes em meio à construção do texto e impressas na construção
das personagens e dos diálogos.
É fato que não existem, nas peças, discursos e críticas diretas que lembrem a “trilogia
da devoração”, mas estes aspectos vêm à tona ao considerarmos a simbologia empregada
pelos autores: complementar certa ideia de uma personagem com uma música citada,
questionar aspectos patriarcais a partir de um quadro, de uma história, de uma obra, que são
apenas citadas e que sugerem a crítica. Entretanto, este aspecto também leva à consideração
que as peças foram escritas para um pequeno grupo elitizado culturalmente, haja vista que na
criação de símbolos podem referir-se a uma ilha europeia, a textos de Goethe, a obras de
Baudelaire, a quadros de Watteau, à mitologia, a óperas, enfim, elementos distantes da
realidade cultural da maioria da sociedade brasileira da época.
18
Assim, as peças analisadas oferecem o exemplo de uma criação literária que extrapola
marcos estanques.
Diversas são as questões colocadas, de início, que causam dúvidas e até estranheza em
relação a estas informações.
Primeiramente, como apreciadores de literatura e de teatro, é inevitável questionar
sobre a relação entre os dois autores, já que são figuras que se distanciam se pensarmos em
sua trajetória intelectual – o “girondino” e o “jacobino” do modernismo2 –, mas que guardam
proximidade quando considerados em termos sociológicos.
Outra questão que se impõe refere-se ao fato de que, em pleno fervor nacionalista, as
peças tenham sido escritas em francês – peculiaridade condenada pela crítica nos jornais
pesquisados –, o que leva à reflexão sobre esta característica francófona das elites brasileiras,
já em declínio em 1916, mas persistentes ao ponto de se fazerem presentes nas obras.
Interligado a este aspecto, há de se considerar a exaltação do cosmopolitismo pelos grupos
“pré-modernistas”3 em relação à cidade de São Paulo como um dos elementos definidores do
paulista que, em muitos momentos, é considerado como responsável pela definição da
nacionalidade brasileira.
Para tal, um retrocesso às transformações pelas quais passava a cidade de São Paulo
se torna necessário, assim como a discussões acerca da nacionalidade e da paulistanidade na
historiografia, na literatura e no teatro. Da mesma forma, é fundamental discutir sobre as
possibilidades de se inserir no meio intelectual encontradas na época, relacionando os autores
ao contexto e identificando suas visões acerca da nacionalidade incutidas em suas lutas
literárias pela brasilidade. Também será traçado um panorama sobre a produção teatral no
Brasil e em São Paulo, a ligação dos autores a essa arte ao longo de suas carreiras e
comparações entre a memória individual, ficção e crítica social.
Por fim, há a análise da critica jornalista em relação às obras, um resgate da presença
francesa no Brasil e nas peças, assim como considerações acerca do ser homem/ser mulher no
período tratado, o que nos levou a considerar as personagens femininas dos teatros a partir do
conceito de mulher fatal empregado na literatura europeia do século XIX e sua transposição
para o país em sua versão abrasileirada.
2
Termos cunhados por: Tristõa de Athayde, “Estudos: 1925”, Estudos Literários, vol. I.
O termo “pré-modernismo” foi cunhado por Tristão de Athayde para designar os escritores contemporâneos do
neo-parnasianismo, entre 1910 e 1920 Ver: COELHO, Joaquim Francisco. Manuel Bandeira pré-modernista,
Instituto Nacional do Livro, 1982.
3
19
1º CAPÍTULO
SÃO PAULO ENTRA NA MODERNIDADE
20
1 SÃO PAULO ENTRA NA MODERNIDADE
Mon coeur balance e Leur âme foram escritas entre 1915 e 1916, período em que a
Primeira Guerra Mundial afetava física e psicologicamente diversos países. No Brasil, a
recente implantação de República, somada aos reflexos da Grande Guerra, como o
nacionalismo, geraram a necessidade de busca de uma identidade que aglutinasse todos os
brasileiros em torno da nação. A cidade de São Paulo também passava por diversas
transformações em sua fisionomia e sociabilidade, com a crescente urbanização
proporcionada por investimentos do rico setor cafeeiro, além do grande contingente de
estrangeiros que chegavam quase que diariamente à capital paulista. Neste estado, que até
então tivera pouca importância na economia e na política nacional, as elites paulistas
passaram a exigir maior visibilidade e participação.
Mon coeur balance se passa em um hotel de uma praia elegante de São Paulo na
época, Guarujá, e entre suas personagens são encontrados diversos estrangeiros, além de um
médico, um bacharel, um coronel e um jornalista. Em Leur âme, a história tem início em uma
“casa rica” do bairro Higienópolis, passando por uma garçoniere, por um grande clube
elegante e terminando em uma casa de campo no subúrbio da cidade, e tem como personagens
um filósofo vegetariano, um bom burguês com seu filho, um padre e alguns estrangeiros.
Dessa forma, por se tratarem de peças que foram publicadas em 1916, escritas em
meio a bares e cafés paulistanos por Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida, passaremse em espaços exclusivamente urbanos e paulistanos, e caracterizarem diversos personagens
pela nacionalidade ou por tipos sociais, há a necessidade de resgatar a história da cidade em
sua fase de reconfiguração de diversos setores da vida paulistana.
21
1.1 Mudanças estruturais, planejamento urbanístico e sociabilidade urbana
Entre fins do século XIX e início do século XX, houve diversas transformações no
ambiente paulistano. A palavra ambiente foi colocada em itálico, pois é citada em sua origem
latina, ou seja, no sentido de envolver os corpos por todos os lados, já que tais transformações
provocaram mudanças nos aspectos políticos, sociais, econômicos, culturais, artísticos,
visuais, enfim, afetando consideravelmente a vida da população de São Paulo.
A presença de diversas personagens estrangeiras nas obras pode ser explicada pelo
fato de, na capital paulistana desse período, terem ocorrido os fenômenos da expansão urbana
e explosão demográfica, resultantes principalmente da emigração estrangeira, haja vista que
entre os anos de 1890 e 1900, houve um crescimento populacional de aproximadamente
370%, cuja parcela estrangeira alcançada aproximou-se de 55% do total de habitantes. Esta
expansão redefiniu o entorno urbano da cidade, estabelecendo duas grandes frações: uma zona
industrial, representada nuclearmente pelo Brás, e outra residencial, cingida essencialmente
pelo Pacaembu, Campos Elíseos, Lapa, Avenida Paulista e Perdizes.
A presença da São Paulo Railway, da Estrada de Ferro Central do Brasil, o aumento
constante da iluminação a gás – proveniente da companhia inglesa São Paulo Gás Company
Ltd. –, e o fornecimento de serviços de água e esgoto pela Companhia Cantareira
contribuíram para esboçar o caráter industrial da cidade no início do século XX. Somado a
estes fatores, há de se considerar o investimento nos sistemas de transporte e comunicações
provenientes da elite cafeeira, enriquecida com o surto do café no século XIX.
Oswald, em Um homem sem profissão, além de especificar que tinha conhecimento
acerca das novas instalações modernas da cidade devido ao seu pai ocupar o cargo de
vereador, resgata em suas memórias a imagem inicial acerca da inauguração de bondes
elétricos na capital paulista:
Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos. Os tímidos veículos puxados a
burros, que cortavam a morna da cidade provinciana, iam desaparecer para sempre.
Não mais veríamos, na descida da Ladeira de Santo Antônio, frente à nossa casa, o
bonde descer sozinho equilibrado pelo breque do condutor. E o par de burros
seguindo depois.
22
Uma febre de curiosidade tomou as famílias, as casas, os grupos. Como seriam os
novos bondes que andavam magicamente, sem impulso exterior? Eu tinha notícia
pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira de minha tia, vinda do Rio, que era muito
perigoso esse negócio de eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos ficava ali
grudado e seria esmagado fatalmente pelo bonde. Precisava pular.4
Tais alterações urbanas, que proporcionam a entrada de São Paulo na “modernidade”,
coadunam com modificações em âmbito social, inclusive no que concerne à sociabilidade
citadina. Enquanto na época da escravidão o espaço da rua era tido como de socialização das
famílias, agora começam a ser criadas, nas casas, salas de visitas e escritórios, além de, no
espaço da rua, haver a multiplicação de salões, clubes, cafés, entre outros espaços. O espaço
público acaba por receber regularizações municipais que visam cunhá-lo, restritamente, como
lugar de circulação, limpo e de respeitabilidade burguesa5.
Em Mon coeur balance foi marcante o fato de algumas personagens do hotel
praticarem esportes, havendo a valorização dos mesmos, inclusive com descrições de roupas
próprias para tal, levando-nos a buscar qual sentido suas práticas carregavam.
Como símbolo da vida moderna urbana, os esportes foram incentivados – com
especial destaque para as ações de Washington Luís –, popularizando-se alguns até então
restritos às camadas altas, como o ciclismo, o remo, a corrida e o futebol 6. O velódromo
passou a ser mais frequentado.
A prática de exercícios físicos ao ar livre gerou novas formas de sociabilidade e de
sensibilidade, especialmente para as mulheres, pois tal atividade requer roupagens específicas,
e aumentou a participação feminina no espaço público. Além disso, os esportes também
estavam relacionados ao fortalecimento da nacionalidade e de regeneração da população –
disciplina, articulação de esforços, cooperação, coordenação, longa e paciente preparação,
força, virilidade e sangue frio –, além das vitórias no campo das competições gerarem orgulho
nacional e sentimento de otimismo em relação à tecnologia, haja vista que os artefatos
modernos ajudavam a superar desafios da natureza e limites corporais.
A educação física, difundida principalmente nessa época, sistemática e com regras
precisas, auxiliava na formação de um povo forte, resistente, trabalhador e produtivo. A partir
4
ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão. Memórias e Confissões. Sob as ordens de mamãe. São
Paulo: Globo, 2002, p. 72
5
ROLNICK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São
Paulo: FAPESP;Studio Nobel, 1997.
6
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.
23
desses preceitos de tom lamarquista, Olavo Bilac passou a defender, em 1917, o serviço
militar obrigatório como meio de fortalecer o homem brasileiro. Compartilhando dos mesmos
preceitos, Washington Luís ordenou que houvesse a contratação de professores de ginástica
suecos paras as escolas públicas de São Paulo7.
Entre os debates urbanísticos do final do século XIX, em que os governantes
basearam-se nas ideias e legislações europeias a fim de enquadrar-se ao mundo civilizado, há
a aprovação do Código de Posturas de 1886, que consistia em limitar a existência de cortiços
e casas de operários no centro da cidade, excluindo a presença de pobres nas áreas centrais e
mais valorizadas de São Paulo. Outra questão proveniente destas discussões consiste em
eliminar ou reduzir ao máximo as epidemias, proporcionando condições adequadas de
saneamento a partir de questões higienistas. Dessa forma, elabora-se o Código Sanitário do
estado de São Paulo e implanta-se a Diretoria de Higiene em 1894, claramente influenciados
pela legislação francesa de higiene residencial de 1850.
As Escolas de Medicina, como a do Rio de Janeiro, baseavam-se em teorias médicas
francesas e formaram gerações de higienistas brasileiros8. Tais teorias foram importantes para
o planejamento urbanístico, pois o meio inadequado, os modos e hábitos de vida dos
“miseráveis” eram considerados preponderantes para a propagação de doenças e epidemias.
Houve alterações também em relação ao sentido que o solo assume nesta
transmudação citadina. Anterior a estas modificações, o solo tinha sentido de produção e
moradia, convertendo-se agora, com a presença cada vez maior de assalariados e imigrantes,
em frenesi imobiliário. Com aumento considerável do número de construções surge, em São
Paulo, uma área especializada em atividades terciárias, chamada inicialmente de Triângulo
Central, cujas construções abarcavam bancos, consultórios, escritórios, teatros, dentre outras
atividades que se enquadraram neste novo centro comercial e financeiro da cidade. Assim,
logo houve nova segmentação do espaço e as elites acabaram formando bairros como Campos
Elíseos, Higienópolis, Santa Ifigênia e deu nova configuração à Avenida Paulista.
Na área do Triângulo Central, os lucros obtidos nos cafezais foram investidos neste
nascente setor terciário e, juntamente com o desejo de adquirir hábitos europeizados, surgiram
diversas lojas especializadas em artigos estrangeiros, principalmente franceses e ingleses, que
7
idem
SCHARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
8
24
conferiam um status social maior a uma elite sequiosa por um estilo de vida mais “civilizado”,
ou seja, europeu.
Tal ocupação urbana gera deleite para os proprietários enquanto criavam símbolos de
um novo poder, pois o Zé-Ninguém sente-se intimidado e assustado pelas proporções não
humanas da demonstração urbana de riqueza e poder.
Outro fator decisivo para a alteração da sociabilidade e dos hábitos da cidade foi o uso
da iluminação pública noturna, integrando a noite ao calendário e à vida social, inclusive
como marca de civilidade.
Frequentar teatros foi uma prática que aumentou nesta fase. Segundo Antonio Barreto
do Amaral9, em 1763 um grupo teve autorização da Câmara Municipal para a construção de
uma casa de espetáculos, terminado em 1765, nomeada Casa da Ópera. Desta data até meados
de 1870, havia na cidade cinco teatros: Casa da Ópera, Teatro de São Paulo; Teatro São José,
Teatro Batuíra e Teatro do Palácio.
Com a inauguração de um Curso Jurídico em 1828, no Convento de São Francisco,
houve envolvimento dos acadêmicos com o teatro, arrendando, por cinco anos, o Teatro da
Ópera, atuando e escrevendo peças. Ocorreu um aumento considerável em relação aos
freqüentadores de teatro. A partir de 1860, diminuiu-se a participação dos acadêmicos na
prática teatral, dando lugar às companhias profissionais, especialmente líricas, que já atuavam
na Corte e na Europa. Em 1868, acontece a demolição do Teatro da Ópera por ordem do
governo da província, restando, em São Paulo, apenas os Teatros São José e Batuíra. O
primeiro pegou fogo, mas foi reconstruído.
Horácio de Souza Muniz, em 1873, decide construir um teatro em caráter temporário,
chamado de Teatro Provisório, cito à Travessa da Boa Vista, sendo este o local da primeira
temporada lírica da cidade, gerando concorrência10. Em 1879, o Provisório passa a ser
chamado de Teatro Ginásio Dramático, uma cópia do Gimmnase Frances, recebendo peças do
Rio de Janeiro, como comédias de França Júnior, Arthur Azevedo, entre outros, passando a
chamar-se, em junho do mesmo ano, Teatro das Variedades Paulistanas. Este local, após ser
comprado pela Companhia de Teatros Paulistas, passou a chamar-se Teatro Minerva em 1891
e depois Teatro Apolo. Após diversas reformas, foi adquirido por Antonio Álvares Leite
Penteado, que o demoliu e construiu uma nova casa de espetáculos, denominada Teatro
9
AMARAL, Antonio Barreto do. História dos velhos teatros de São Paulo. São Paulo: Governo do Estado,
1979.
10
Idem
25
Santana, o qual foi inaugurado em 1900 com o drama Helen, do português Pinheiro Chagas, e
era iluminado à luz e a gás, possuía poltronas e cadeiras em estilo europeu moderno.
Em 1892, estabelece-se o Teatro Politerama, de propriedade da Companhia Antártica
Paulista. A casa não possuía assoalho, o que obrigava o público das cadeiras a ficarem com os
pés no chão; entretanto, era iluminado à luz elétrica. Devido às suas instalações, teve que se
adaptar às exigências da Intendência de Polícia e Higiene a fim de continuar em
funcionamento. O local foi destruído por um incêndio em 1914.
Havia ainda, no fim do século XIX, o Teatro Colombo, localizado no Lago da
Concórdia, no Brás, tendo que ser remodelado, pois inicialmente funcionava no prédio de um
antigo mercado. Este se tornou, no século XX, um dos mais populares da cidade.
Em 1909, inaugura-se o segundo Teatro São José, situado à Rua Xavier de Toledo,
esquina com o Viaduto do Chá. Próximo ao São José, O Estado de S. Paulo lança, em 1916, o
Teatro Boa Vista, localizado na rua de mesmo nome.
Como se pode verificar, a cidade de São Paulo encontra-se muito diferente de seu
passado colonial, enriquecida pelo pujante setor cafeeiro, com investimentos em setores
urbanos rentáveis e com grande contingente de imigrantes. Esta fase coincidiu com a
necessidade das elites brasileiras de criar um sentimento de identidade nacional.
Aos intelectuais, colonizados intelectualmente pelos paradigmas europeus, foi árdua
tal tarefa, já que cidades grandes, como São Paulo e Rio de Janeiro, estavam estruturadas pela
mescla de culturas, idiomas e sotaques, e pelo fato de os símbolos criados para representar a
brasilidade com o advento da República não terem sido suficientes para sustentar e
estabelecer a base deste sentimento11.
Assim, a intelectualidade chamou para si a “missão” de demonstrar a verdadeira face
da nação. Lucia Lippi Oliveira12 nos apresenta o surgimento, no início do século XX, de uma
vertente não tão ligada aos regimes políticos, mas ao nacionalismo como fruto das condições
naturais da terra – prodigiosa e abençoada – e aos valores das três raças originárias,
denominado ufanismo, dando esperanças positivas para o futuro e marcando profundamente o
pensamento social brasileiro na Primeira República13.
11
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
OLIVEIRA, Lucia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.
13
O termo Primeira República foi utilizado ao invés de República Velha, pois, como nos apresenta Ângela de
Castro Gomes, o segundo foi consagrado por “ideólogos autoritários das décadas de 1920 a 1940”, restringindo a
participação popular a revoltas, greves e motins, desconsiderando associações recreativas, esportivas e dançantes
12
26
Entretanto, outra vertente intelectual do período se lança ao passado em busca de
características positivas da brasilidade. As alterações das características físicas da cidade de
São Paulo e a diversidade populacional devido à variedade de nacionalidades, culturas e
línguas trazidas pelos imigrantes europeus, geraram uma espécie de desintegração social, uma
negação da herança luso-africana e a adesão aos hábitos europeus, identificados pelos
brasileiros como exemplo a se seguir. Forma-se, então, uma marca identificadora da cidade no
início do século XX, a marca da alteridade14.
A fisionomia da cidade muda, marcada pela relação do novo com o velho, pelo
aumento da velocidade do ritmo social, pela imigração, pelo café, pelas indústrias, pelas
novas línguas, pelos novos hábitos, pela estética neoclássica, e, com essa mudança, vão
desaparecendo as marcas culturais e materiais originais, gerando uma perda da identidade pela
alteridade.
Segundo Bronislaw Baczko15, uma das funções dos imaginários sociais consiste na
organização e domínio do tempo coletivo no plano simbólico e uma coletividade fixa sua
identidade ao mesmo tempo em que elabora uma representação de si. Dessa maneira,
cristaliza-se, em São Paulo, uma história em dois tempos: o das origens e o da europeização
descaracterizadora. A imagem do bandeirante serve como apoio para essa identidade perdida
com a chegada do imigrante europeu, gerando um fio de continuidade ao representar o mito
fundador de São Paulo como a nação brasileira. Tanto Guilherme de Almeida quanto Oswald
parecem ter aderido a essa ideia, como demonstrado no decorrer da dissertação.
Nesse sentido, a necessidade de buscar as raízes do sentimento nacional entrecruza-se
com o debate sobre a matriz básica, regional, que poderia dar origem à melhor sociedade.
da população pobre. GOMES, Ângela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte:
Argvmentvm, 2009. p. 21.
14
PINTO, Alfredo Moreira. A cidade de São Paulo em 1900. Sâo Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1979.
15
Baczko, Bronislaw. “A imaginação social” In: Leach, Edmund et Alii. Anthropos-Homem. Lisboa,
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.
27
1.2 Ideário da nacionalidade paulista
O sentimento de perda ocasionado pela rápida transformação da história, com
incontáveis passados gerados de modo cada vez mais rápido, é compensado pela valorização
de uma memória histórica. No entanto, é importante frisar que tal retificação sempre é
política, determinada por embates ideológicos entre os grupos que participam mais ativamente
do processo histórico em questão na sociedade.
Neste sentido, tem-se um embate simbólico, restrito aos grupos políticos formalmente
constituídos, com marcada ausência direta do grosso da população.
A construção do símbolo herói, considerado poderoso por representar encarnações de
ideias e aspirações, pontos de referência e fulcros de identificação coletiva, são instrumentos
eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes
políticos. A criação destes símbolos não é arbitrária; tem que responder a alguma necessidade
ou aspiração coletiva, refletir algum tipo de personalidade ou de comportamento que
corresponda a um modelo coletivamente valorizado16.
As virtudes destes símbolos foram exploradas em prosas, versos, livros, jornais,
manifestações cívicas, monumentos, quadros; seus nomes foram dados a instituições, ruas,
praças, navios de guerra, entre outros, e transformados em semióforos, ou seja, um signo
provido de significação ou de valor simbólico capaz de relacionar o visível ao invisível seja
no espaço ou no tempo, “pois o invisível pode ser o sagrado (...) ou o passado ou o futuro
distantes (...) e expostos à visibilidade, pois é nessa exposição que realizam sua significação e
sua existência” 17.
A questão nacional brasileira pode ser encontrada a partir da intensificação dos
movimentos contestatórios ao domínio metropolitano ocorridos no século XVIII. Todavia, foi
a partir da abolição da escravidão (1888) e da Proclamação da República (1889) que a
discussão assume caráter de urgência. Dessa maneira, as instituições intelectuais saíram em
busca de características e especificidades brasileiras positivas a fim de construir laços de
pertencimento capazes de difundir um sentimento de brasilidade que agregasse todos os
16
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 55
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora fundação Perseu Abramo,
2000, p. 12.
17
28
cidadãos em torno da nação, fato que se ampliou com a deflagração da Primeira Guerra
Mundial, com as principais potências industriais inseridas na corrida pela hegemonia mundial.
Nesta empreitada, intelectuais brasileiros, sobretudo de São Paulo e do Rio de Janeiro,
deram início a um processo de organização, nem sempre consciente, de quesitos necessários
para se forjar uma unidade e consciência nacional a partir de elementos como o mapa, o censo
e o museu, assim como investigaram a história, a geografia, a literatura, a gramática, a etnia,
símbolos, hinos, organização econômica e social, instituições políticas, sistema educacional e
de saúde.
Em um primeiro momento, com a geografia como mestra, o território foi apresentado
como orgulho nacional devido à localização privilegiada do país, a fertilidade de suas terras, a
amenidade de seu clima, a exuberância de suas matas, a beleza de suas praias, o número de
portos, a força das cachoeiras, entre outros aspectos que percorriam cotidianamente os jornais
e as revistas, livros didáticos e ensaísticos18.
Neste contexto, em que cada pedaço do mundo era disputado pelas potências
internacionais, foi necessário delimitar e fortalecer a segurança das fronteiras, mapear
recursos naturais, tirar proveito da fertilidade do solo e da energia dos rios; enfim, o
conhecimento geográfico foi usado como guia para orientar a elaboração de políticas públicas.
Surgiu, então, no início do século XX, uma vertente do nacionalismo intitulada
ufanista, com a exaltação das qualidades naturais da terra e das três raças originárias, o
português, o índio e o negro, dando esperanças positivas para um futuro do país.
Entretanto, a geografia precisaria de sua principal aliada, a história, para apresentar um
conjunto verossímil e coerente de feitos históricos capazes de gerar no indivíduo orgulho de
pertencer ao país, ou seja, a história ficou encarregada de promover a narrativa dos grandes
feitos que assegurassem a posse das terras. Dentre os eventos que ganharam destaque, é
válido citar a expulsão dos holandeses de Pernambuco, a derrota dos movimentos separatistas,
a guerra do Paraguai e, fundamentalmente, o movimento das bandeiras.
Embora a grande fração de representações históricas de São Paulo tenha se iniciado no
final do século XIX, alcançando o auge nas duas primeiras décadas do século XX, a figura do
bandeirante começara a ser analisada, em sua matriz histórica, desde o século XVIII, com Frei
Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques de Almeida Paes Leme, representantes das elites
18
LUCA, Tania Regina de. A Revista do Brasil: Um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Fundação Editora
UNESP, 1999.
29
paulistas e defensores dos habitantes da cidade de São Paulo contra a chegada dos reinóis, que
ameaçavam sua posição dominante.19. Taques deu ênfase aos feitos paulistas em relação às
conquistas territoriais e militares ocorridas nos dois primeiros séculos da colonização, ou seja,
imputava-se o valor da valentia na guerra como valor pessoal e hereditário a fim de justificar
sua elevação ao estamento da nobreza e privilégios concedidos aos seus representantes.
Entretanto, fazer parte da nobreza não significava ter posses materiais, mas valores
comportamentais próprios, chegando a representar os paulistas de 1600 como cavaleiros
medievais.
Já Frei Gaspar dá especial atenção aos feitos dos mamelucos, que teriam desafiado
uma natureza brutal, passando fome, frio, enfrentando doenças, mas que mesmo assim teriam
conseguido seus intentos. Entretanto, a justificativa para que os mamelucos tenham
conseguido todas as suas conquistas advém do fato de eles terem em si a união das qualidades
do europeu e do índio, ou seja, a inteligência e a resistência, resultado da miscigenação das
etnias.
Augustin de Saint-Hilaire, botânico e naturalista, hipoteticamente influenciado pela
leitura histórica paulista, declara que estes seriam uma “raça de gigantes”, e essa
caracterização fará parte das justificativas e argumentações de muitos intelectuais e membros
das elites de São Paulo por muito tempo.
Durante o século XIX, São Paulo possuía pouca importância na vida política e
econômica do império, o que começará a mudar a partir do último quartel do século devido à
expansão do café, transformando-o em uma das mais importantes e promissoras regiões
brasileiras. Entretanto, sua pujança econômica não correspondia à sua força política, gerando
certo ressentimento da elite política local. Com o movimento republicano, lideranças políticas
paulistas aumentaram seu poder e formas de ação, lutando para implantar, como projeto
político, uma federação com autonomia estadual, o que permitiria, segundo eles, maior
desenvolvimento do Estado. Incutido neste plano político, estaria um projeto de hegemonia
estadual, que deveria caber ao Estado sustentar economicamente a nação.
Assim, a predominância de São Paulo na vida política brasileira foi justificada pelo
progresso e pela riqueza do estado, assim como pelo fato de que foi este estado o responsável
pela expansão do Brasil, pois, desde a colonização, ampliara o território e enriquecera a
19
ABUD, Katia Maria. A idéia de São Paulo como formador do Brasil. In: FERREIRA, Antonio Celso; LUCA,
Tania Regina de; IOKOI, Zilda Grícoli (orgs). Encontros com a História: percursos históricos e historiográficos
de São Paulo. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
30
metrópole com o ouro de seus desbravadores, ou seja, a riqueza e o progresso de São Paulo
podiam ser considerados como consequência de sua própria história, pois eram herdeiros dos
primeiros povoadores da Capitania de São Vicente, os bandeirantes.
A escolha do símbolo, longe de ser aleatória, foi analisada na historiografia paulista de
Frei Gaspar e Pedro Taques. Dentre os historiadores que debateram a questão, este estudo se
baseia em três. Tal explanação é necessária, pois historiadores construíram essa imagem e
produziram um conhecimento que fundamentou a crônica popular, fazendo parte da memória
coletiva, afinal, querendo ou não, a história oficial cria memória coletiva20.
Alfredo Ellis Jr, claramente influenciado por Frei Gaspar, Gabineau e Lapouge,
defende que houve, em São Paulo, a formação de uma sub-raça superior, a sub-planaltina,
europeia e indígena. Alcântara Machado, em Vida e morte bandeirante, partiu de Pedro
Taques em relação à comparação dos paulistas com a nobreza medieval, pois honrado,
cavaleiro, homem de palavra e valentia, temente a Deus, levava uma vida social muito mais
reservada do que a encontrada no Nordeste luxuoso; assim, a riqueza conquistada pelo
paulista deveria servir para o bem de todos e não pessoal. Taunay analisou o paulista do
século XVII como o grande desbravador do sertão brasileiro e teria sido graças a ele que se
deu a unidade territorial do país e a descoberta de riquezas, caracterizando-o como condutor
do progresso e da riqueza.
Se antes a visão positiva era em relação ao futuro, agora, graças às vias geográfica e
histórica, pode ser estendida ao passado, instaurando-se uma forte identificação entre a
história de São Paulo e a História Nacional. Se antes a mescla do português com o indígena
gerou o bandeirante como modelo da nacionalidade, agora o paulista vinculado ao imigrante
estrangeiro geraria a superioridade da raça, invertendo o valor negativo da miscigenação –
teorizado pelos evolucionistas e darwinistas –, agora considerada positivo em relação à raça
paulista. Assim, as elites encontraram na figura do bandeirante o núcleo impulsionador das
energias capitalistas de São Paulo.
A mitologia bandeirante heroifica o cotidiano do homem de São Paulo e lhe estabelece
valores importantes para a manutenção do poder pela burguesia paulista – como o culto ao
trabalho – que se vale dessa mitologia para criar uma alegoria de igualdade dos paulistas,
afinal, moralmente todos são originários de desbravadores do sertão, conquistadores de terras,
civilizadores, realizadores da unidade territorial.
20
Idem
31
A produção historiográfica acerca da figura do bandeirante teve como núcleo principal
o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, fundado em 1894 pelas elites política e
intelectual paulistas, de maioria republicana e de profissionais liberais21. Sendo assim, o
IHGSP estava ligado ao poder político constituído no Estado e seus integrantes eram
recrutados por critérios de sociabilidade, contribuindo para o engrandecimento da
nacionalidade pelo viés regional, utilizando-se de teorias evolucionistas e teses sociais
darwinistas em análises históricas, geográficas, etnográficas, linguísticas, genealógicas,
folclóricas, literárias, entre outras.
A relação entre a história e a literatura é frutífera, pois a historiografia paulista se
deixa moldar pela imaginação literária, e a literatura embriaga-se de matéria histórica, ou seja,
salvo suas especificações teórico-metodológicas, entre elas coadunam temas e formas de
representação. As biografias e as genealogias são muito produzidas no período, pois muitos
autores descendem dessas famílias estudadas, chegando a ocupar o espaço literário com
biografias romanceadas e romances históricos22.
Essas formas de representação alcançam a pintura. Dessa maneira, a historiografia
oferece a sustentação documental, a pintura fornece a visibilidade e a literatura dá o amparo
da ambientação das subjetividades.
21
FERREIRA, Antonio Celso. A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940).
São Paulo: Editora UNESP, 2002.
22
Idem
32
1.3 O nacionalismo em Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida
Ao analisar a visão dos autores acerca do nacionalismo, percebemos que há tanto
aproximações quanto afastamentos. O primeiro ponto a se considerar diz respeito ao
surgimento, no início do século XX, de uma vertente não tão ligada aos regimes políticos,
mas ao nacionalismo como fruto das condições naturais da terra e aos valores das três raças
originárias, denominada ufanismo, dando esperanças positivas para o futuro e marcando
profundamente o pensamento social brasileiro na Primeira República23. Um dos maiores
expoentes dessa vertente foi Afonso Celso, com a obra Porque me ufano do meu país, de
1901.
Sobre esse aspecto nacionalista, encontramos, nos livros Raça e Meu, de Guilherme de
Almeida, ambos de 1925, essas ideias ufânicas impressas:
Os pássaros coloridos e as frutas pintadas
na transpiração abafada da floresta
e estas fôlhas transparentes como esmeraldas
e esta água fria nesta sobra quieta
e esta terra trigueira cheirosa como um fruto:
êste grande ócio verde, isto tudo, isto tudo
que um deus preguiçoso e lírico me deu,
se não é belo é mais que isso – é MEU24
Mesmo se tratando de uma vertente mais em voga antes da Semana de Arte Moderna,
percebe-se que esta poesia, considerada por diversos autores como modernista, carrega
características de um nacionalismo ufanista em que o poeta se aproxima da estética
modernista sem se distanciar de sua trajetória clássica, peculiaridade esta encontrada em
diversas obras do autor. Em relação a Oswald, detectamos um nacionalismo que se inicia
próximo ao nacionalismo paulista.
Como dito anteriormente, a mitologia bandeirante, povoando corações e mentes
paulistas, foi o subsídio necessário para diversos políticos e intelectuais em suas lutas pelo
nacionalismo que tinha seu ponto fulcral e gerador em São Paulo, refletindo nas artes.
O nacionalismo de Oswald é estudado normalmente a partir do Manifesto Pau-Brasil,
mas pode-se regressar ao ano de 1915, ano em que o autor, na coluna Lanterna Mágica, n´O
23
24
OLIVEIRA, Lucia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.
ALMEIDA, Guilherme de. Meu. São Paulo: Tipografia Paulista de José Napoli e Cia, 1925.
33
Pirralho, sai em defesa da pintura moderna, defendendo, além de um aperfeiçoamento
técnico, a ação de incluir aspectos brasileiros para se consolidar uma identidade nacional,
sustentando que os artistas deveriam pesquisar as obras dos antepassados em sua fundação e
na raça25.
Nas páginas que antecedem Mon coeur balance, há uma dedicatória dos autores:
Monsieur le Docteur
Washington Luiz Pereira de Sousa
Préfet de la Ville de São Paulo
Nous avons voulu faire de celle première pièce
notre écu de combat. Qu´on lise, en le blasonnant,
votre nom – pièce honorable
que nous y posons en abîme. 26
Essas palavras, que lembram a conjuntura da Primeira Guerra Mundial e o programa
nacionalista, lançam elogios a Washington Luís, figura importante na luta pela nacionalidade
e promotor de diversos eventos culturais paulistas.
Washington Luís teve notada participação política em relação à cidade de São Paulo:
foi vereador (1897), intendente municipal (1898-99), deputado estadual (1904-1906; 191213), secretário da Justiça e Segurança Pública do Estado de São Paulo (1906-1912), prefeito
da Capital (1914-1919); presidente do estado de São Paulo (1920-1924); senador (1925-26) e
presidente da República (1926-1930), deposto pouco tempo antes do término do mandato27.
Ele tinha grande admiração pelas artes, adorava música e era sensível para com o
estudo do passado. Promoveu diversas reformas, principalmente na educação pública e na
instrução militar, o que gerou a imagem de político modernizador junto a seus
contemporâneos. Na fase em que governava o estado, nomeou Sampaio Dória para a pasta da
Educação, que adotou o programa patriótico da Liga Nacionalista, realizando o primeiro
censo escolar brasileiro e a ampliação do número das escolas primárias. Como secretário da
25
BRITO, Mario da Silva. História do modernismo brasileiro, 1: antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
26
“Senhor Doutor/Washington Luiz Pereira de Sousa/Prefeito da Cidade de São Paulo/Quisemos fazer desta
primeira peça/nosso escudo de combate. Leia-se em seu brasão/vosso nome – peça honrada que aí colocamos em
abismo”. ANDRADE, Oswald de. Mon coeur balance; Leur âme: em co autoria com Guilherme de Almeida.
São Paulo: Globo, 2003, p. 29.
27
FERREIRA, Antonio Celso; LUCA, Tania Regina de. O tradicionalista moderno. Washington Luís: política,
espetáculo e letras históricas. In: FERREIRA, Antonio Celso; MAHL, Marcelo Lapuente (orgs.). Letras e
identidades: São Paulo no século XX, capital e interior. São Paulo: Annablume, 2008.
34
Justiça e Segurança Pública do Estado de São Paulo, contratou uma missão militar francesa
para aperfeiçoar a milícia paulista e reorganizar a polícia e o sistema penitenciário.
Enquanto presidente do Estado, mandou contratar professores de ginástica suecos para
as escolas públicas paulistas, tendo em vista que os esportes também estavam relacionados ao
fortalecimento da nacionalidade e de regeneração da população.
Ele cumpriu um papel importante no que diz respeito à construção de instituições,
símbolos e monumentos que se associavam à ideia de força e grandeza da nacionalidade,
especialmente paulista. Por sua iniciativa, foram criados o Museu Republicano de Itu e a Casa
de Rui Barbosa; frequentava exposições de arte; preocupava-se em enriquecer as coleções de
museus e pinacotecas, embelezar praças e construir monumentos. Promoveu um concurso
público para a escolha do brasão de armas da cidade, que foi ganho por José Wasth Rodrigues
e Guilherme de Almeida, com o famoso NON DVCOR DVCO28, que trazia as aspirações
paulistas da época.
Além disso, reorganizou o Museu Paulista e instalou duas seções históricas, uma
nacional e outra exclusivamente paulista, dando a Affonso de Taunay a obrigação de dar
corpo às seções históricas e preparar o local para as festividades do Centenário da
Independência, colocando, no pórtico do Palácio-monumento, artefatos que apresentassem a
história nacional a partir da perspectiva que colocava São Paulo como berço da nacionalidade
e o bandeirante como figura central da urdidura.
Washington Luís fazia parte da gama de homens públicos da elite letrada paulista da
primeira metade do século XX, com perfis e gostos semelhantes: culto ao passado, elogio à
tradição, gosto pelas letras históricas, bacharéis da Faculdade de Direto de São Paulo,
médicos, politécnicos, alcançavam postos políticos por meio de redes de sociabilidade e
capital simbólico, integrantes da Academia Paulista de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo – responsável pela produção e difusão do conhecimento histórico
regional.
Em relação à sua contribuição para a historiografia paulista, vale citar sua participação
no IHGSP. Admitido em 1901, fez biografias, como as de Martim Afonso de Souza e João
Ramalho – intitulado pai dos mamelucos paulistas –, apresentou estudos sobre a filiação
linguística e étnica dos habitantes do planalto paulista antes da chegada dos europeus, gerando
debates que se prolongaram até 1920. Publicou na revista do Instituto Contribuição para a
28
Tradução: “Não sou conduzido, conduzo!”.
35
história da capitania de S. Paulo – governo de Rodrigo César de Menezes, relatando as
relações dos habitantes da terra com as autoridades da Metrópole e as primeiras viagens dos
paulistas rumo aos sertões. Publicou, em 1918, Na capitania de São Vicente, entre outros
escritos.
Pode-se afirmar, assim, que os autores poderiam ser coniventes com as propostas de
Washington Luís, e integravam-se na luta pelo nacionalismo paulista.
Conta Oswald, em Um Homem sem profissão, acerca de sua genealogia: do lado
paterno, era descendente do capitão-mor Tomé Rodrigues Nogueira do Ó, fundador de
Baependi no começo do século XVIII e tronco de uma importante família mineira depois
alastrada por São Paulo e Rio, com marqueses, condes, barões no império. Diz que Tomé
Rodrigues fez bandeirismo.
Pelo lado da mãe, orgulhava-se de descender dos Sousas de Mazagão, defensores desta
última praça-forte portuguesa em Marrocos, aos quais contava que o rei D. José I mandara dar
o Pará, depois de Pombal lhe haver dito, em resposta a uma pergunta desdenhosa, que eram
tão nobres quanto Vossa Majestade.
Após isso, escreve que era assim que ele se incluía entre os paulistas de quatrocentos
anos e figurava no volume genealógico de Silva Leme. Encontrou-se em relatos de algumas
pessoas com quem Oswald travou relações, como Antonio Cândido29, que ele se gabava de
sua genealogia.
Annateresa Fabris30 lembra que a cidade de São Paulo entrou no século XX não mais
como a capital dos fazendeiros, mas como núcleo transformado pelos efeitos da
industrialização, e sua modernização acelerada causou choques e contradições nos mais
diversos ramos da sociedade a qual, nesse momento, conheceu um crescimento demográfico,
industrial, comercial, financeiro, educacional e cultural. Nesse sentido, Nicolau Sevcenko
apresenta um quadro da complexidade em que se encontrava a cidade, que não possuía uma
definição clara de sua identidade e instabilidade psicológica:
(...) São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de brancos e nem de
mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana, nem européia,
nem nativa; nem era industrial, apesar do volume crescente das fábricas, nem
entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café; não era nem tropical, nem
subtropical; não era ainda moderna, mas já não tinha passado. Essa cidade que
29
CANDIDO, Antonio. Os dois Oswalds. In: _____. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.p.35-42.
FABRIS, Annateresa. O Futurismo Paulista: Hipóteses para o Estudo da Chegada da Vanguarda ao Brasil.
São Paulo: Perspectiva: Edusp, 1994.
30
36
brotou (...) era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos, tentando
entendê-lo como podiam, enquanto lutavam para não serem devorados. 31
Fabris completa que, por conceber a arte como manifestação peculiar de um momento
histórico, surge um grupo de jovens intelectuais, futuros modernistas, com a ideia de
promover a atualização estética do Brasil por meio de um fenômeno sociológico e que seu
conceito de modernidade se deu através da tomada de consciência de uma vida transformada
pela técnica e a consequente necessidade de encontrar uma expressão adequada aos desafios
dos novos tempos, devido à mudança na percepção da população.
A fim de concretizar suas metas, esse grupo adota duas estratégias fundamentais. A
primeira é a criação de símbolos que, ao mesmo tempo, se opõe ao passado para limpar seus
resíduos e exaltam o novo contexto, a nova forma de fazer arte, o construir uma ideia; a
segunda é a criação de um mito tecnizado - mais projetivo do que efetivo - da cidade de São
Paulo, ou seja, construir a imagem heróica da modernidade da metrópole, utilizando-se de
recursos retóricos, sem se preocupar tanto com a verdade.
Em relação à justificação do caráter único de São Paulo no cenário brasileiro, os
modernistas caracterizam-na como tendo liderança em matéria de cultura devido ao seu
cosmopolitismo, fruto de uma nova raça que se transforma, abrasileirada, multiétnica (o
melhor das raças que o mundo todo despeja nos portos), vencedora, completamente diferente
do tipo brasileiro convencional (faz-se alusão a Peri e Jeca Tatu). Essa raça paulista possuía,
então, caráter apenas regional, associando-a ao bandeirante criador de fortunas.
Em suma, esse grupo, longe se ser homogêneo, considerava que a metrópole paulista
teve uma montagem multifacetada, que inclui considerações raciais (paulista, multietnia), o
momento histórico e o ambiente (metrópole do século XX, industrialização e resultantes:
urbanização, economia monetária, paisagem citadina, multidão), que convergem na visão de
cultura como “sintoma”, “produto” da época e lugar geográfico.
Guilherme de Almeida aderiu e foi um dos grandes colaboradores desse movimento e,
além de construção de obras em estilo moderno, participou ativamente da Semana de 22 e
saiu pelo Brasil pregando o modernismo numa série de conferências que se iniciaram em
1925, em Porto Alegre, e terminaram em novembro do mesmo ano, em Fortaleza, depois de
uma breve estada em Recife.
31
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 31.
37
Em relação à sua contribuição na caracterização da cidade de São Paulo, é valido citar
oito artigos publicados no jornal O Estado de S. Paulo, em 1929, que foram compilados em
livro sob o título de Cosmópolis. Estes artigos podem ser considerados como um retrato de
São Paulo, cujas imigrações de alemães, judeus, turcos, japoneses, portugueses, espanhóis,
húngaros, entre outros, provocaram mudanças em sua fisionomia nos anos de 1910 e 1920.
Na obra, além de seus aspectos literários, nota-se seu considerável valor sociológico por
retratar um momento histórico da evolução étnica e urbanística desta cidade. Seguem alguns
trechos desses artigos:
São Paulo enorme de casas e gentes. Casas e gentes de todos os estilos. Cosmópolis.
Resumo do mundo (...)
Que homens são esses, que vão chegando e vão passando? De que pátria fugiram?
Que música estrangeira terá sua fala? (...)
Aqui respiro São Paulo. São Paulo ali, tão perto, mas tão alto e tão distante, atrás
desta trama canadense de postes e fios; além dessas Tôrres repetidas, de ferro,
trançadas em X sobre o Tamanduateí canalizado; São Paulo, crescido para o céu, de
andares sobre andares – Babel! – fundindo e confundindo as línguas – Babel! – os
sangues e as convicções – Babel! – os interesses e os ideais – Babel! – e também...
as idéias dos jornalistas. (...)
Entretanto, que harmonia, e que equilíbrio, e que igualdade! O grande milagre do
trabalho. Harmonia, equilíbrio e igualdade feitos de diferenças32.
Como se pode perceber, a questão inicialmente literária se transforma em questão
ideológica e o combate ao passado se torna meio para a afirmação da mentalidade moderna e
do cosmopolitismo.
Oswald refere-se à urbanização híbrida da cidade em sua velocidade e contradição:
Locomotiva e bixos nacionais
Geometrizam as atmosferas (...)
A verdura no azul Klaxon
Corta
Sobre a poeira vermelha
Arranha-céus
Fordes
Viadutos
Um cheiro de café33
Entretanto, a busca pelo elemento nacional na arte, mesmo guardando relações quanto
à paulistanidade, apresenta cisões dentro do grupo modernista, principalmente após a Semana
de 22.
32
33
ALMEIDA, Guilherme de. Cosmópolis. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1962.
ANDRADE, Oswald de. Poesias reunidas. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966, p. 113.
38
Em 1924, Oswald publica, no Correio da Manhã, o Manifesto da poesia Pau-Brasil,
propondo uma poesia extremamente ligada à realidade nacional, um redescobrir do Brasil.
Dentre as propostas, temos a defesa de uma língua sem arcaísmo, sem erudição, natural, em
que se deveria ver com olhos livres.
Em resposta ao nacionalismo do Pau-Brasil, surge o grupo verde-amarelo em 1926,
contendo em seus quadros Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia,
Plínio Salgado, entre outros. Esses poetas criticavam o afrancesamento de Pau-Brasil e
propunham um nacionalismo primitivista e ufanista, elegendo a anta como símbolo nacional.
Este grupo era declaradamente aberto às instituições e movimentos conservadores.
Oswald, em 1928, publica o Manifesto Antropofágico, baseado no cubismo francês,
pois o que eles procuravam como suporte exótico e moderno, o autor de Os condenados
poderia encontrar no Brasil, na natureza, no índio e no negro, em elementos da cultura
popular como carnaval, na cozinha, mas aglutinando-os aos símbolos da modernidade.
Com o correr do tempo, os autores afastam-se cada vez mais. Oswald pendendo para o
lado comunista e com produções de cunho social e político, e Guilherme de Almeida aliado
aos setores conservadores e com obras que mesclam parnasianismo, simbolismo e
modernismo.
O autor de Meu, então, pode ser inscrito na série de autores que, de uma maneira ou de
outra, contribuíram para cristalizar a noção de Pátria Paulista e da superioridade bandeirante,
já que o brasão da cidade de São Paulo foi criado por ele e J. Wasth Rodrigues, assim como
projetaram, durante a Revolução de 32, o Brasão de armas de São Paulo, cujo lema Pro São
Paulo Fiat Eximia34 inspirou os paulistas para a defesa de seus ideais. Também se destacou
como presidente da Comissão do IV Centenário São Paulo em 1954.
Por outro lado, somente a defesa da autonomia regional pode explicar que na
Revolução de 1932 tenha sido um dos primeiros a se alistar para a luta, tendo combatido
como soldado raso nos campos de Cunha com entusiasmo suficiente para levá-lo ao exílio em
Portugal. Além de lutar na Revolução, fez programas de rádio durante o conflito e poetou com
a temática, cujos versos entraram na instituição educacional pelos livros de leitura da escola
primária. Dentre seus escritos dedicados à causa paulista, temos O PASSO DO SOLDADO,
hino do primeiro Batalhão da Liga de Defesa Paulista, entre outros, como o Credo:
34
Tradução: “Por São Paulo façam-se grandes coisas”
39
Creio em São Paulo todo-poderoso,
criador, para mim, de um céu na terra;
e num Ideal Paulista, um só, glorioso, (...)
o qual foi concebido nas “bandeiras”,
nasceu da virgem alma das trincheiras,
padeceu sob o jugo dos invasores;
crucificado, morto, sepultado,
desceu ao vil inferno dos traidores,
mas para, um dia, ressurgir dos mortos,
subir ao nosso céu e estar sentado
à direita do Apóstolo Soldado,
julgando a todos nós, vivos ou mortos.
Creio no pavilhão das treze listas,
Na santa união de todos os Paulistas,
Na comunhão da Raça adolescente, (...)
Numa ressurreição do nosso bem,
Na vida eterna de São Paulo. Amém! 35
Guilherme de Almeida produziu diversos livros de literatura infantil, entretanto, conta
apenas com O Sonho de Marina como produção original, pois o restante consiste em
traduções e adaptações de obras estrangeiras. Todas estas publicações foram lançadas pela
Editora Melhoramentos que, segundo Márcia de Paula Gregório Razzini 36, ao analisar o
histórico dos lançamentos da editora de 1907 a 1959, 67% da produção desse período visava
atingir crianças e adolescentes, justamente em um período em que houve um aumento
significativo da presença dessa faixa etária na escola.
Em suma, o livro O Sonho de Marina surgiu em uma época de ascensão da literatura
infantil, fase em que houve aumento significativo da presença de crianças na escola e de
criação de bibliotecas em grupos escolares, cuja proposta era a de moralização e
doutrinamento das camadas populares por meio da literatura, especialmente a poesia, e possui
características que se assemelham às ideias de paulistanidade defendidas por Cassiano
Ricardo e diversos intelectuais da época. Nesta obra, o autor da “historieta” narra a aventura
vivida por Marina, em sonho, ao ir para o céu em companhia de seu cachorro. Lá chegando e
tendo contato com São Pedro, este lhe adverte:
Minha menina, ouça bem!
E você, Totó, também!
Dou-lhes plena liberdade,
podem brincar à vontade.
35
ALMEIDA, Guilherme de. Toda a poesia. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1955, v.4.
RAZZINI, Marcia P. G. A produção de livros escolares da Editora Melhoramentos na Primeira República. In:
XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2007, Santos, SP. Anais do XXX Congresso Brasileiro
de Ciências da Comunicação. São Paulo: INTERCOM, 2007. p. 1-10. Disponível em:
<www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R1479pdf>.
36
40
Mas, no céu, quem quer brincar
deve também trabalhar
cada vez que for preciso.
Por isso, muito juízo!
E nada de travessura!
Tome cuidado com a altura!37
Na realidade, esta passagem, em que São Pedro informa Marina de que pode brincar à
vontade, não condiz com o que realmente acontece com a menina no céu, pois é apenas em
uma passagem do livro que a garota é mostrada se divertindo sem trabalhar:
“Então, vamos começar,”
Diz o Totó, “por brincar!”
“Música!” bradam todos
Os anjinhos, como doidos.
E um, com ar de gente grande,
Vai dirigindo o jazz-band.
Violino, pratos, pistão,
sanfona... – que barulhão!
E Marina dança... E só
Com dois pés dança Totó38.
Após este breve período de divertimento, um “anjinho” diz que é hora da “batuta”, e
partem todos em direção à lua para banhar-lhe e arrumar-lhe para a noite que estava a chegar.
Após muito trabalho, todos se dirigem à fábrica de brinquedos do Papai Noel, na qual todos
os presentes trabalham, pois um “anjo serra, outro aplaina, este prega, aquêle pinta” 39 e, após
construírem “bonecas, bichos, automóveis, soldadinhos”40, partem para mais um trabalho,
lavar a roupa dos anjinhos, e “Marina, que é muito boa menina, quis ajudar o pessoal a se
aprontar pra o Natal”41. Em meio a esta tarefa, Marina resolve se divertir enquanto trabalha:
Teve uma idéia, afinal:
“Vou levantar o varal!”
E enquanto São Pedro dorme,
Marina ao cajado enorme
Ata a corda, faz um nó...
Sacode o rabo o Totó...
E um anjinho, pendurado,
Grita “Socorro!”, assustado...
“Santo Deus, que rebuliço!
Olá, Marina, que é isso?”
37
ALMEIDA, Guilherme de. O sonho de Marina. São Paulo: Melhoramentos, 1941.
Idem
39
Idem, p. 12
40
Ibidem
41
Idem, p. 14
38
41
Diz São Pedro despertando.
“É que eu estava brincando”...
“Isso é mais que travessura:
isso já cheira a diabrura!
Tome cuidado!”42
Neste instante, Marina escorrega em um sabão e cai de volta para a terra como se fosse
um castigo.
Nota-se, então, que na história se manipula informações concretas, conceitos
supostamente mensuráveis ou normas de bons costumes e, ao mesmo tempo, recorre à ficção
através de um discurso literário e poético. Outro exemplo que comprova tal argumento
aparece no início da história, quando Guilherme de Almeida descreve as características
psicológicas e comportamentais de Marina como sendo as ideais, transpassando isso aos seus
leitores infantis:
Todos sabem que Marina
é muito boa menina,
embora tal não pareça,
porque é um pouquinho travessa...
Estudiosa, comportada,
anda sempre muito asseada,
ouve a mamãe, não reclama,
vai cedinho para a cama43.
Obviamente, como pode ser observado, a historieta consagra a religião e as práticas
católicas como sendo normas corretas a se seguir, pois além de ser boa menina, asseada, ouvir
a mamãe, não reclamar, ir cedo para a cama, ela ainda reza e faz o Nome-do-Padre, o que gera
a admiração da lua, que vem espiar pela janela, dos anjos que vieram convidá-la para uma
festa de gala – na qual ela praticamente só trabalhou – e recebe a imediata aprovação e
aceitação de São Pedro ao chegar ao céu.
Nota-se que, com a quantidade enorme de trabalho em relação ao divertimento, o autor
consegue passar, nesse livro destinado às crianças, a valorização do trabalho e a aventura
presentes nos bandeirantes, assumindo assim uma postura doutrinária ao transparecer seu
sentimento de paulistanidade em meio a estas disputas regionais pela preponderância
nacional.
42
43
Idem
Idem
42
Pode-se dizer que, ao mesmo tempo em que há a valorização do trabalho e a punição
da menina por tentar se divertir durante a labuta, podemos encontrar certa divisão sexual do
trabalho, pois no diálogo entre texto e imagem, a menina é mostrada lavando a lua, lavando
roupa e subindo o varal, trabalho executado exclusivamente pelo sexo feminino na época em
que a história foi escrita, enquanto que na fábrica do Papai Noel o autor coloca que a menina
vai visitar a Oficina dos Segredos, que fabrica os brinquedos. Guilherme de Almeida chega a
sugerir que todos trabalharam, mas, nesta cena, enquanto o leitor lê que “um anjo serra, outro
aplaina, este prega, aquêle pinta”44, pode-se observar isso na imagem também, imagem esta
que Marina aparece apenas dentro do saco do Papai Noel, mas sem trabalhar, levando-nos a
supor que este seria um trabalho exclusivamente do sexo masculino.
Além disso, deve-se considerar que, para autores explicitamente amantes da cidade de
São Paulo, como Guilherme de Almeida, a cidade é o símbolo do trabalho, levando-nos a
supor que pode haver uma comparação da cidade de São Paulo com o Céu.
Essas análises sugerem a aglutinação de características de diferentes vertentes do
nacionalismo existente na época em ambos os intelectuais, que tanto os aproxima quanto os
diferencia ao longo de suas vidas. Para exemplificar o proposto, serão utilizados escritos dos
autores da segunda metade da década de 1920, fase em que se verifica sua divergência
declarada em relação à luta por uma arte essencialmente nacional.
Um dos fatores importantes a se declarar é a divergência do nacionalismo ufanista e do
nacionalismo paulista em relação à raça. O primeiro, surgido por inspiração romântica e
antecessor da paulistanidade, defende a miscigenação das três raças formadoras do povo
brasileiro – português, indígena e negro – como fator positivo para nação. Já o segundo
apega-se apenas ao indígena e ao estrangeiro para demonstrar a superioridade bandeirante e
paulista na formação do país. Porém, o que diferencia uma abordagem da outra é a questão da
afirmação da modernidade de São Paulo perante o país, característica presente no ideário
paulista e ausente no ufanismo.
Assim, parece que mesmo após a cisão entre a poesia Pau-Brasil, de Oswald, e do
grupo Verde-Amarelo, de Guilherme, tanto as características do nacionalismo ufânico quanto
do paulista em relação à raça persistem em suas obras, mas com formas de abordagem
diferentes. A poesia Pau-Brasil apega-se à liberdade de pensamento e de escrita, defendendo a
devoração da cultura e sua adaptação à realidade nacional, resultando na Antropofagia;
44
Idem
43
enquanto
o
verde-amarelismo
defende
uma
escrita
formal,
ligada
ao
parnasianismo/simbolismo, na tentativa de abolir os estrangeirismos, resultando no Grupo
Anta.
Para desfazer o paradoxo formado, seguiremos com exemplos. Guilherme de Almeida,
em 1925, publica Raça, obra em que podemos encontrar aspectos ufanistas:
Há uma encruzilhada de três estradas sob a minha cruz de estrêlas azuis:
três caminhos se cruzam – um branco, um verde e um preto –
três hastes da grande cruz.
E o branco que veio do norte, e o verde que veio da terra,
e o preto que veio do leste derivam num nôvo caminho,
completam a cruz unidos num só, fundidos no vértice 45.
Neste trecho, percebe-se claramente a fusão das três raças originárias do brasileiro,
unidas pela religião católica, em um tom sério e formalidade tanto em relação à estética
quanto no uso da forma culta da língua.
De Oswald, selecionamos o poema brasil, com b minúsculo, dedicado a Trolyr, ou
seja, Tarsila do Amaral, sua companheira no movimento Pau-Brasil e Antropofágico,
encontrado em seu Primeiro Caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, publicado
originalmente em 1927:
Zé Pereira chegou de caravela
E perguntou pro guarani da mata virgem
- Sois Cristão?
- Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Tererê Tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
- Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval46
O poema apresenta, como demonstrado em obras de Guilherme, o valor das três raças
originárias, no entanto com o humor e o sarcasmo consagrados em Oswald. Da mesma forma,
está repleto de características próprias do movimento proposto pelo autor, ou seja, o resgate
da cultura brasileira – no caso, o carnaval – a caracterização do índio e a crítica à escravidão.
45
46
ALMEIDA, Guilherme de. Raça. São Paulo: José Olympo, 1925, p. 15-16.
ANDRADE, Oswald de. Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade. São Paulo: Globo, 2006.
44
A partir de uma linguagem e estética “livres”, resgata a linguagem formal do português, do
indígena autóctone e do escravo negro trazido da África.
Em relação às personagens, temos o Zé Pereira, português, impondo sua religião; o
guarani resistente a ela; e o negro, a quem o português nem se referiu, intrometendo-se na
conversa e afirmando sua aceitação.
Entretanto, é na formação do carnaval que temos uma explicitação dos papéis
desempenhados pelas personagens. A presença estrangeira de Zé Pereira, questionando sobre
a religião dos outros dois, gerou um dialeto indígena e um escravo que, somado aos sons da
natureza brasileira, geraram uma nova religião, o carnaval, ou seja, houve a devoração do
estrangeiro que, adaptada à cultura nacional, gerou uma atração nova, essencialmente
brasileira, de caráter elogioso.
Assim, podemos perceber, ao longo da especulação abordada no tópico, que há, nos
autores, desde suas primeiras produções, características das diferentes formas de nacionalismo
existentes na primeira República, levando-nos a concluir que a aproximação dos autores no
início de suas carreiras intelectuais deveu-se, entre outros fatores, por adotarem posturas
nacionalistas vigentes em seu tempo e espaço, que foram redefinidas com a cisão entre o
Grupo Pau-Brasil e o Grupo Anta, que consequentemente afastava Oswald e Guilherme.
45
2º CAPÍTULO
ENTRE O “GIRONDINO” E O “JACOBINO” DO MODERNISMO
46
2 ENTRE O “GIRONDINO” E O “JACOBINO” DO MODERNISMO
Antes de adentrarmos nas biografias de Oswald de Andrade e de Guilherme de
Almeida, faz-se necessário uma reconstrução histórica da vida intelectual anterior à semana
de 1922, pois assim poderemos averiguar mais claramente o motivo pelo qual autores
considerados pelos estudiosos da literatura como opostos e cuja via intelectual seguiram
rumos diversos, aproximaram-se em sua juventude a ponto de escreverem uma obra a quatro
mãos. Não obstante, espera-se desfazer os antigos preceitos que enquadram os autores, em sua
totalidade, em uma ou outra escola literária, ou mesmo a maneiras estanques de escrever ou
pensar.
Em sua jornada, o intelectual depara-se com as questões da liberdade e da autonomia,
que são limitadas devido à cristalização de valores, métodos e classificações pré-definidas. A
liberdade acaba confinada à aceitação das orientações e valores pré-definidos, enquanto a
autonomia é limitada pela necessidade de reconhecimento e legitimação. Portanto, a liberdade
é construída nos limites da diferenciação possível e delimitada pela normatização oficial,
sempre interligada às escolhas de alinhamento que definem sua entrada ao mundo das letras.
Dessa forma, surge a pergunta: quais as possibilidades de carreira intelectual e sociabilidade
na Primeira República?
O primeiro ponto a se tratar é a fundação da Academia Brasileira de Letras,
inicialmente liderada por Machado de Assis, Olavo Bilac e Coelho Neto, cujos escritos
configuravam a literatura oficial e representavam o restante da produção literária brasileira,
determinando ou não a consagração de autores a partir da escolha de sua entrada para a
Academia ou por elogios nos jornais.
Oswald de Andrade, intelectual entre dois mundos, inicia sua trajetória intelectual
ligado à herança boemia carioca e pela especificidade de sua posição de classe, que lhe
proporcionava recursos materiais para ultrapassar as modalidades vigentes e tradicionais de
inserção, definindo nova forma de atuação na vida intelectual. Estaria, então, a meio caminho
da via tradicional e da via inquieta sedenta por ruptura com o passado, inserido na conjetura
de transformações políticas, sociais, culturais e pessoais com as quais se defronta. Oswald, em
suas memórias, coloca:
47
“Os valores estáveis da mais atrasada literatura do mundo impediam qualquer
renovação. Bilac e Coelho Neto, Coelho Neto e Bilac. Houvera um surto de
Simbolismo com Cruz e Souza e Alphonsus de Guimaraens mas a literatura oficial
abafara tudo. Bilac e Coelho Neto, Coelho Neto e Bilac (...) Entre velhos e novos
não encontrei um só escritor que nessa época me animasse na intenção de renovar
letras e artes.”. 47
O intelectual romântico e carioca, cujo estereótipo era do artista desajustado, cede
lugar, com a mercantilização da cultura e padrões da ABL, ao intelectual comportado, cuja
postura deveria condizer com a produção oficial, na qual Machado de Assis era o exemplo
máximo, ou seja, haveria o aburguesamento dos escritores, pois para sobreviver da literatura
tornou-se necessário seu alinhamento com o jornalismo, produzindo escritos “encomendados”
e tornando-se o que Martins chamou de “boêmia dourada”, ou seja, o aburguesamento da
boemia, muitas vezes limitando-se a assuntos mundanos, imitando a última moda de Paris,
tanto no trajar como na literatura de Anatole France.
Oswald diz que nunca gostou da literatura vigente, a não ser Machado de Assis e
Euclides da Cunha. Em seu aspecto satírico, liga-se à tradição boêmia de Emílio de Menezes,
assim como a escritores ditos “mais sérios”, como Sílvio Romero. Em Um homem sem
profissão, o autor coloca:
Só Emílio podia me interessar porque era um feroz maldizente. Confraternizei com
esse baluarte da sátira (...) Com seus belos olhos azuis e seus bigodes brancos em
ponta, punha o mundo abaixo diante de qualquer suposto inimigo. Sofria
visivelmente de um poderoso complexo de inferioridade social. (...) Machado de
Assis, outro complexado, opusera-se resolutamente à sua entrada na Academia
Brasileira da Letras (...) Fazia questão de impor rígidos costumes à instituição
branca que dominava (...) Quando Machado morreu, foi fácil a Emílio verejar de
fardão o Siligeu.48
Nesse período, há uma mudança na condição social dos intelectuais, cujo aumento
expressivo da dependência dos jornais fez com que acumulassem diferentes tipos de atuação,
como Bilac promovendo peças de propaganda, João do Rio dividido entre a crônica mundana
nos jornais e seus romances e a especialização da função de crítico de jornais.
Na Faculdade de Direito de São Paulo, instituição preparatória para as futuras
lideranças políticas e culturais, surgiram revistas e jornais literários que não tardaram a
multiplicar-se pela cidade.
47
ANDRADE, Oswald de. Mon coeur balance; Leur âme: em co autoria com Guilherme de Almeida. São
Paulo: Globo, 2003, pp. 125-126.
48
Idem, p. 126-127.
48
Partindo da ideia de que, durante a República Velha, não se pode dissociar as
experiências sociais do trabalho intelectual, torna-se possível analisar a formação
sociocultural de Oswald de Andrade e de Guilherme de Almeida, desde a infância, que pode
ser a base para os seus itinerários profissionais e culturais, assim como analisar os fatores que
levaram figuras tão distintas a aproximarem-se no início de suas carreiras.
Embora a maioria dos escritores modernistas seja originária de antigas famílias
dirigentes, diferenciam-se entre si mais pela proximidade relativa de suas famílias em relação
à fração intelectual e política da classe dominante, com sua rede de relações sociais, do que
pelo volume de capital econômico ou escolar.
49
2.1 Aproximações entre Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida
Guilherme de Almeida é um autor pouco conhecido e estudado atualmente, mas teve
grande importância em sua época. Esse interesse pelo itinerário do autor de Raça encontra
respaldo nas ideias de Sirinelli49, em que o autor defende que a análise de uma “geração” não
deve apenas se limitar aos “grandes” ou “famosos” intelectuais, pois os esquecidos também
representaram um papel real em seu meio e influenciaram gerações seguintes de intelectuais,
cultural e politicamente, assim como a própria sociedade. Não obstante, faz-se necessário
analisar o contexto geral e a rede de influências dessa geração, pois, como nos apresenta
Annateresa Fabris, o espírito do grupo intitulado artificialmente como “pré-modernistas” pode
ser enquadrado na psicologia do milieu artiste, “a testemunhar a consciência de uma
existência aristocrática e ilhada que, se nada recebe do ambiente exterior, se fertiliza, contudo,
internamente graças a uma rede de influências e trocas exclusivas (...) uma sociedade dentro
da sociedade (...) com regras próprias” 50.
Guilherme de Almeida (1890-1969) foi advogado, jornalista, poeta, ensaísta, tradutor,
entre outros. Embora tenha tido grande importância em sua época, é uma figura esquecida nos
dias de hoje, talvez por ser uma personagem singular e por não ter se rendido estritamente a
uma escola literária específica. A título de exemplo, vale ressaltar o fato de ter sido um dos
mais ativos participantes na Semana de Arte Moderna, em 1922 e, no entanto, produzir obras
marcadas pela presença de musas gregas e versos em estilo parnasiano. Foi também o
primeiro “modernista” a entrar para a Academia Brasileira de Letras (1930), escola até então
dominada por Olavo Bilac e demais parnasianos. Muitos de seus versos são dedicados à
Revolução de 1932, tendo sido incorporados aos livros de leitura da escola primária nos anos
de 1930-40 e declamados até hoje no dia nove de julho nas instituições de ensino paulistas.
Esses versos contribuíram para que, em concurso organizado pelo Correio da Manhã, em
1959, tenha sido considerado o “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, sucessor de Olavo Bilac.
Nesse sentido, Guilherme de Almeida, filho de Estêvão de Andrade, advogado e
jurisconsultor, e de Angelina de Andrade Almeida, que pertencia a uma das mais tradicionais
49
SIRINELLI, J F. "A geração". IN: Usos & abusos da história oral. FERREIRA, M
e AMADO, J. (orgs.). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
50
FABRIS, Annateresa. O Futurismo Paulista: Hipóteses para o Estudo da Chegada da Vanguarda ao Brasil.
São Paulo: Perspectiva: Edusp, 1994.
50
famílias de Campinas, ao contrário do que Miceli intitula de “parente pobre” 51 da oligarquia –
a exemplo de Mário de Andrade –, enquadra-se na figura do “homem sem profissão”, assim
como Oswald de Andrade, ou seja, originário de família de “estirpe abastada”, cujo
sobrenome de “boa cepa” garantia livre trânsito nos círculos dirigentes. Nas palavras de
Miceli, esses “homens sem profissão” pertenciam a importantes famílias especializadas havia
diversas gerações em funções culturais e eram filhos de advogados ilustres e magistrados.
Oswald de Andrade é filho único (teve um irmão que faleceu) de Henriqueta Inglês
de Souza Andrade, descendente de antiga família do Pará, educada em meio culto, filha de pai
desembargador e irmã de Herculano Marcos Inglês de Souza (autor de O Missionário).
Oswald, em Um homem sem profissão, refere-se às muitas habilidades intelectuais do tio,
entre elas o fato de ele ter sido o autor do Código Comercial e ser membro fundador da ABL.
Sua mãe herdou os bens da família, pois o avô proporcionou estudos apenas aos filhos
homens.
Oswald conta que seu pai, José Oswald Nogueira de Andrade, descendente de
família de muitas posses, era tropeiro em Minas. Explica que tropeiro em São Paulo não está
relacionado à riqueza, mas que em Minas representava um moço, filho de latifundiário, que
conduzia as tropas de burros para negócio. Apesar de não ter estudado, cultivava o gosto pela
poesia e chegou a publicar algumas quadrinhas no jornal O Baependiano. Era ligado a
empreendimentos imobiliários e vereador da Câmara de São Paulo.
O autor de Os Condenados conta que se impressionara com as histórias e a vida de
seu tio Guilherme, boêmio conhecido no meio acadêmico e casado com uma francesa, pois
este conhecera a famosa atriz francesa Sarah Bernhardt em uma de suas visitas ao Brasil.
De formação católica, influenciada principalmente por sua mãe, Oswald tem seu
imaginário alimentado por histórias contadas por esta, cujos temas permeiam histórias do
Amazonas, lendas, superstições, selva e bichos e, ao mesmo tempo, é protegido em uma
redoma, sem acesso ao turbilhão infantil da rua, tendo contato, até a idade escolar,
praticamente apenas com empregados e raras visitas dos primos.
Guilherme de Almeida frequentou quatro colégios até bacharelar-se em Ciências e
Letras, em 1907, no colégio Nossa Senhora do Carmo, em São Paulo. Entretanto, como
apresenta Frederico Ozanam Pessoa de Barros52, Guilherme costumava dedicar toda sua
51
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
BARROS, Frederico Ozanam Pessoa de. (org). Guilherme de Almeida: seleção de textos, notas, estudos
biográfico, histórico e crítico e exercícios. São Paulo: Abril Educação, 1982.
52
51
carreira literária ao pai que, imbuído de profunda cultura humanística, foi quem o iniciou no
estudo do latim e do grego, e na leitura metódica dos clássicos portugueses, cujas obras
formavam uma das mais ricas seções da biblioteca do doutor Estêvão. Sendo assim, nasceu e
cresceu em ambiente propício à literatura, sendo, desde cedo, impulsionado pelo pai para o
mundo das letras.
Oswald de Andrade, com oito anos, frequenta a Escola Modelo Caetano de Campos e,
após um professor proferir em sala de aula que “Deus é a natureza”, há um escândalo em
família e o mandam para o Ginásio Nossa Senhora do Carmo, onde é chacoteado pelos
colegas pelo fato de ser gordo. Os pais o retiram da escola e contratam uma professora
particular até, em 1902, encaminhá-lo ao Colégio São Bento, em cujos bancos escolares estão
filhos dos homens de projeção política, econômica e intelectual, onde se torna amigo de classe
de Guilherme de Almeida e, após repetir o quarto ano dos estudos ginasiais, torna-se Bacharel
em 1908.
No Colégio São Bento, Oswald e Guilherme têm como professores de história Affonso
de Taunay, de português Batista Pereira, genro de Rui Barbosa e, após uma reciclagem do
quadro docente, o professor de literatura, o português exilado Gervásio de Araújo – a quem
Oswald credita o estimulo e o gosto pelos livros – e de filosofia e lógica o monsenhor
Sentroul.
Maria Augusta Fonseca53 afirma que o gosto de Oswald pelos livros começa com Os
miseráveis, de Victor Hugo (indicado por um de seus professores), passando por Espumas
flutuantes, de Castro Alves (presente de seu pai), Ilha misteriosa, de Julio Verne, sendo 1906
o ano de maior quantidade de leituras, em que lê assiduamente Shakespeare, Eugênio de
Castro, Dostoiévski e Eça de Queirós. Oswald, em suas memórias, afirma ler a literatura
oficial orientada por Olavo Bilac e Coelho Neto, assim como Rui Barbosa, mas afirma que era
apenas para galantear as moças com versos bonitos, pois considera, cinquenta anos mais
tarde, o período literário como “frustrado e cadavérico”. Dessa maneira, o objetivo deste
estudo também pretende resgatar parte das leituras dos autores que tenham contribuído para a
sua formação intelectual.
Oswald acredita que a vida cultural em São Paulo está opaca, mas compensa
frequentando uma roda de boêmios. Ele tem como abrigo literário a Casa Garraux, onde
conhece José Olympio, mais tarde seu editor, convivendo com Indalécio de Aguiar, seu “guia
53
FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade: Biografia. São Paulo: Globo, 2007.
52
espiritual”, Francisco Rangel e Osvaldo Pinheiro – este desperta em Oswald o desejo de
conhecer Paris. Conhece o poeta Ricardo Gonçalves e Monteiro Lobato, fundadores do grupo
Cenáculo e do tablóide O Minarete.
Após os estudos ginasiais, os dois autores vão para a Faculdade de Direito de São
Paulo, entretanto com diferença de um ano devido à repetência de Oswald, e bacharelam-se
em Ciências Jurídicas e Sociais com uma maior discrepância de tempo, pois Oswald faz uma
viagem à Europa em meio ao curso. Para Lilia Schwartz54, frequentar tal estabelecimento de
ensino significa ser um “eleito da nação” devido ao prestígio social adquirido. Além deste
prestígio, esta faculdade era considerada uma instância suprema em termos de produção
ideológica, concentrando inúmeras funções políticas e culturais, e o Direito, estudo essencial
para uma formação polivalente, cuja rentabilidade profissional é tanto mais apreciável quando
se faz acompanhar de um capital de relações sociais. Nos dizeres de Miceli:
Até meados da República Velha (...) No interior do sistema de ensino [da Faculdade
de Direito] destinado à reprodução da classe dominante, ocupava posição
hegemônica por força de sua contribuição à integração intelectual, política e moral
dos herdeiros (...). A Faculdade de Direito atuava ainda como intermediária na
importação e difusão da produção intelectual européia, centralizando o movimento
editorial de revistas e jornais literários, fazia as vezes de celeiro que supria a
demanda por indivíduos treinados e aptos a assumir os postos parlamentares e os
cargos de cúpula dos órgãos administrativos, além de contribuir com o pessoal
especializado para as demais burocracias, o magistério superior e a magistratura 55.
Ao entrar na Faculdade em 1908, dentre outras atividades, Guilherme de Almeida
publicou sua primeira poesia no periódico O 11 de Agosto, foi membro do Centro Acadêmico
e do Grêmio Literário Álvares de Azevedo. Já Oswald de Andrade, com sua entrada em 1909,
decepciona-se com os estudantes, principalmente os veteranos, e considera a faculdade um
abrigo da prepotência e do atraso cultural. Entre o primeiro e o terceiro anos da Faculdade,
Oswald estreia na imprensa escrita como repórter e redator do Diário Popular – emprego
conseguido por influência do pai –, promovendo reportagens na programação de cinemas,
teatros e notícia-acontecimentos. Um tempo depois, assume a coluna Teatros e salões, quando
se torna amigo do ator siciliano Giovanni Grasso e o acompanha em São Paulo e no Rio de
Janeiro, assim como namora uma das atrizes de sua troupe.
54
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 18701930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
55
MICELI, Sérgio. Intelectuais a brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 115.
53
Em 1911, o autor de Marco Zero integra o grupo boêmio de Emílio Menezes – que
promove ataques ferinos a pessoas e instituições, estando entre seus integrantes João do Rio,
Olegário Mariano, Olavo Bilac e Elói Pontes.
Ao conseguir “financiamento”, deixa o Diário Popular e funda O Pirralho na rua XV
de Novembro, pois, em seus dizeres, havia a necessidade de arejamento da cultura nacional,
abordando na revista assuntos que transitavam inicialmente entre política, literatura, crônicas
sociais, noticiário esportivo e ilustrações de Voltolino. Entre os integrantes do semanário,
estão Sarti Prado, Amadeu Amaral, Babi de Andrade, Paulo Setúbal, Cornélio Pires, Juó
Bananére e Voltolino.
Os aspectos de união entre literatura e política, engendrados no período em que fazia
parte do Diário Popular, leva a O Pirralho, que apoiava a campanha civilista de Rui Barbosa,
mesmo fazendo restrições ao uso da língua portuguesa.
Em 1912, devido a sua formação, rede de relações sociais e influência do pai,
Guilherme mudou-se para Mogi Mirim, onde exerceu o cargo de promotor interino,
retornando para São Paulo em 1914 com diversos sonetos, os quais seriam parte de seu livro
de estreia.
Oswald, aos 21 anos, faz sua primeira viagem à Europa, decidido a permanecer
bastante tempo em Paris que, em resumo, era considerada o aceno dos prazeres do amor e da
vida cultural. Oswald afirma que nesta viagem tratou de aproveitar a vida sem intenções
sociais e espírito anárquico, entregando-se à alegria, cafés, teatros, exposições, bons vinhos,
descompromisso com a vida e fartura amorosa. Entretanto, é obrigado a adiantar sua volta
devido à morte de sua mãe, episódio marcante em sua vida e em suas obras.
Encantado com a França, que elegeu Paul Fort como príncipe dos poetas no Lapin
Agile, e contagiado com o Manifesto Futurista, de Marinetti, retoma O Pirralho e lhe dá um
caráter mais literário, agora com colaboradores como Guilherme de Almeida, Ignácio da
Costa Ferreira e Emílio de Menezes.
Em 1915, na coluna Lanterna Mágica, Oswald sai em defesa da pintura nacional,
defendendo e tecendo elogios a pintores que traziam as novas técnicas da Europa em sua
bagagem. Forma-se o Oswald cosmopolita, defensor de artistas livres, amores livres, da vida
boêmia, experimentada e apreciada nos tempos em que passou viajando pela Europa.
O ano de 1916 foi ponto fundamental para a inclinação de Guilherme de Almeida ao
mundo das letras literárias, pois:
54
(...) viu sua poesia divulgada, ao lado dos maiores nomes da época, nas revistas de
maior circulação do Rio e de São Paulo; publicou, de parceria com Oswald de
Andrade, o volume Tréâtre Brésilien, com duas peças escritas em francês, Mon
Coeur Balance e Leur Âme; e ganhou o primeiro prêmio no concurso instituído pelo
então prefeito Washington Luís para a escolha do brasão de armas da cidade. (...)
[recebeu] o convite de Amadeu Amaral para que integrasse o corpo do Estadinho –
edição da noite de O Estado de S. Paulo – libertou de vez o relutante causídico de
qualquer envolvimento maior com as letras jurídicas (...) 56
Todos esses fatores, e muitos outros, solavancaram a carreira do autor de Raça,
transformando-o em um grande nome das letras brasileiras, propiciando a ele cargos como
redator de O Estado de S. Paulo, diretor da Folha da Manhã e da Folha da Noite, fundador do
Jornal de São Paulo, redator do Diário de São Paulo, membro da Academia Brasileira - e
Paulista - de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, do Seminário de
Estudos Galegos, de Santiago de Compostela, do Instituto de Coimbra, entre outros57.
Sua produção literária caracteriza-se por uma multiplicidade de formas, tendências,
temas, cenários e momentos, que possivelmente são um reflexo das diversas direções culturais
existentes na época em que viveu, de sua postura em se manter aberto às manifestações
culturais de seu tempo e ser herdeiro, por parte de pai, de um capital cultural que lhe
proporcionou uma formação clássica.
Segundo Maria Helena de Queiroz58, a crítica que girou e gira em torno de Guilherme
de Almeida, em sua maioria, sempre se empenhou arduamente em enquadrá-lo em uma escola
literária, ou seja, em rotulá-lo, gerando uma hipervalorização da escola em detrimento da
própria literatura. Não obstante, a análise feita apenas de uma determinada obra de um autor
acaba por sobrepor o conjunto, facilitando assim sua classificação, entretanto, cometendo
graves erros se pensarmos a trajetória literária como um todo, principalmente se os processos
expressivos, os recursos formais, empregados pelo poeta, ilustram o percurso da poesia
brasileira:
A variedade [poética de Guilherme de Almeida] consiste nas formas distintas de se
praticar a poesia (soneto, cantiga, quadra, redondilha, verso livre, haicai etc.) e nas
diferentes tendências pelas quais passa (parnasianismo, simbolismo, modernismo
56
BARROS, Frederico Ozanam Pessoa de. (org). Guilherme de Almeida: seleção de textos, notas, estudos
biográfico, histórico e crítico e exercícios. São Paulo: Abril Educação, 1982, p. 4.
57
Dados retirados da biografia de Guilherme de Almeida, encontrados no site da Academia Brasileira de Letras:
www.academia.org.br
58
QUEIROZ, Maria Helena de. A variedade literária na obra poética de Guilherme de Almeida, 2003. 202 p.
Tese (Doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa) UNESP, Assis.
55
etc.). E, do mesmo modo, no desenvolvimento de diferentes temas, que vão dos
clássicos (amor, morte, fugacidade do tempo etc.) aos contemporâneos (a
velocidade, a máquina, a cidade). Diferentes cenários (europeizante, grego, tropical)
e momentos (séc. XII ao XX). Linguagem arcaica, quinhentista, moderna. Diante de
tais aspectos, uma mudança de tom é percebida a cada novo livro de Guilherme de
Almeida, não existindo, em sua obra, ‘sintoma de estadia definitiva 59
Queiroz ainda cita a caracterização de Guilherme de Almeida feita por Manuel
Bandeira, na qual ele identifica três fases do poeta: a primeira intitulou parnasiano-simbolista,
a segunda modernista e, a terceira, de retorno às origens, aos temas e às formas das primeiras
publicações. Entretanto, considera o modernismo do autor moderado, pois ele não se entrega
ao verso livre, ou seja, se aproxima da estética modernista sem se distanciar de sua trajetória
clássica. Inserido no movimento modernista, o autor se aproximou da ala nacionalista e
exaltação à cidade de São Paulo, não dissociando seu aspecto político do campo literário.
Ao analisar a obra ficcional de Oswald de Andrade, Antonio Cândido, em Digressão
Sentimental sobre Oswald de Andrade60 e em Os dois Oswalds61, situa a ficção do autor em
uma plataforma expressiva comum e dividida em três grupos: a Trilogia do exílio, o Par
Miramar-Serafim, e Marco Zero.
Segundo o autor, Trilogia e Par foram engendrados mais ou menos entre 1915 e 1930,
tendo praticamente o mesmo tipo de estrutura, mas guardam diferenças relevantes. A Trilogia
contém uma retórica decadentista, é mais convencional e sentimental, um modo meio pelintra
de origem decadentista, com imagens artificiais e grandiloquentes. Já no Par, identifica
características modernistas, linguagem condensada e fulgurante, sarcasmo e humor, com
ausência de sentimentalismo e a presença de imagens novas, ousadas e criadoras. Em Marco
Zero, ele identifica a retórica naturalista com excessiva intenção ideológica.
Outro aspecto que o autor aborda é a questão da experiência pessoal e do humor
inseridos em suas obras. Segundo ele, o Par representa a melhor ficção oswaldiana, pois há
grande presença de experiência pessoal e humorismo; já A Trilogia é o oposto. Em MarcoZero não há nada de experiência pessoal e muito pouco humorismo. Assim, o autor defende
que o que “atrapalhou” parte da Trilogia foi a écriture artiste e o decadentismo e, em Marco
Zero, foi a documentação indigerida e a excessiva intenção ideológica.
59
Idem, p. 09
CANDIDO, Antônio. Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade. In: Vários escritos. 4. ed. SãoPaulo:
Duas Cidades; Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p. 33-61.
61
CÂNDIDO, Antônio. Os dois Oswalds. In: CANDIDO, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras,
1990, p. 36.
60
56
Cândido explora ainda a questão do sarcasmo e da relação de continuidade ou
descontinuidade técnica. Em relação à primeira, sempre que Oswald acerta no tom do
sarcasmo, da ironia ou da sátira, seus escritos têm melhor qualidade, o que acontece no Par a
despeito da Trilogia e de Marco Zero. Entretanto, não se trata apenas de sarcasmo, mas este
ligado aos processos poéticos, ou seja, Cândido considera seus melhores escritos os que
possuem sarcasmo-poesia. Ele acredita que o mal de Oswald foi ter forçado sua natureza
artística, sacrificando a composição sincopada em favor de sequências coesas, contínuas.
Dessa forma, ele sintetiza uma fórmula para caracterizar o melhor Oswald: Máximo de
descontinuidade + máximo de sarcasmo-poesia = máxima expressividade.
57
2.2 Produções teatrais
A literatura acerca da história do teatro no Brasil, de modo geral, aponta que tal arte
não conseguiu penetrar na vida social brasileira. Sábato Magaldi argumenta que essa visão
pessimista do teatro nacional possui como deficiência o desconhecimento da perspectiva
histórica e da situação do teatro mundialmente. E ainda expõe:
A eficácia de uma obra sobre o público está intimamente ligada à sua
contemporaneidade absoluta. As grandes épocas do teatro se fizeram com peças
criadas no momento, na língua original de representação. Um autor de gênio escreve
para ser ouvido, naquele instante, por um público ávido de reconhecer-se nos
diálogos. Fugir desta lei importa em trazer ao espetáculo outros valores, que não são
os da comunicação direta entre texto e platéia. Essa verdade elementar não desmente
pelas antecipações da obra de arte, que muitas vezes só pode ser plenamente
apreciada no futuro.62
Podemos utilizar a transgressão da lei entre a obra e a contemporaneidade, citada por
Magaldi, para promover análises que não se prendam somente à crítica interna das obras, mas
que possam refletir conceitos e representações da sociedade brasileira a partir do teatro.
No Brasil, a produção acadêmica sobre o teatro teve início a partir da década de 1970
em virtude do deslocamento de diversos artistas e intelectuais do gênero dramático para as
universidades – em razão da repressão e da censura instaurada pelo regime militar em 1964, e
aprofundada em 1968 com o AI-5 –, inaugurando uma nova etapa crítico-reflexiva do teatro
brasileiro, gerando pesquisas e aprofundamentos teóricos em variados setores da atividade
teatral.
Em meio à predominância da história política e econômica, tem início, na
historiografia brasileira, a preocupação em utilizar a literatura como fonte de pesquisa
histórica – sobretudo com o trabalho pioneiro de Nicolau Sevcenko, Literatura como Missão
– porém, o que se percebe nestes estudos, que contemplaram a literatura sobremaneira o
romance e a poesia, é a pequena inserção da temática teatral em uma perspectiva histórica.
A maioria das publicações acerca do assunto surgem das mãos de críticos teatrais,
cujos trabalhos, na maioria das vezes, priorizam questões formais, estéticas, comparativas e
descritivas, como História concisa do teatro brasileiro, de Décio de Almeida Prado, e
Panorama do Teatro Brasileiro, de Sábato Magaldi.
62
MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo: Global, 1999, p. 11.
58
Os estudos históricos recentes que tomam peças teatrais como objeto de análise
priorizam certos autores, temas e épocas, a exemplo de Nelson Rodrigues, da censura ao
teatro no Estado Novo e do período do regime militar de 1964, respectivamente. Percebe-se,
nessas formulações, que estes dois períodos guardam relações: um exemplo é o resgate, na
ditadura militar, da peça o Rei da Vela, de Oswald de Andrade, escrita no período de Vargas e
impossibilitada de ser apresentada devido à censura em 1937.
Oswald de Andrade tem sido tema de diversas dissertações e teses, em sua maioria na
área de Literatura, às quais primam por análises de juízos estéticos e formais, distanciando-se
de seus contextos sócio-culturais ou restringindo-se a discutir a arte como reflexo da
sociedade ou seu inverso, o que não é o foco em um estudo histórico. O mesmo ocorre com
Guilherme de Almeida, embora em número reduzido em comparação aos dedicados a
Oswald, limitando-se à fortuna crítica, biografia, sua contribuição para a cristalização de uma
identidade paulista e análise semiótica.
Quando se trata de Oswald e sua produção teatral, os estudos priorizam três peças: O
Rei da Vela, O Homem e o Cavalo e A Morta, consideradas produções antropofágicas em que
se devoram modelos literários estrangeiros ao invés de imitá-los, atacando os códigos sociais,
morais e literários por meio da paródia e do sarcasmo, a fim de se criar uma linguagem
literária brasileira e tratar dos problemas nacionais a partir de um nacionalismo político e
econômico. Nota-se que a escolha destas obras, longe de ser aleatória, reflete o interesse em
demonstrar que, além da poesia e do romance, o autor possuí características em sua produção
teatral de inovação radical, ruptura com um passado artístico e a construção de uma
linguagem nova.
Sábato Magaldi, em Teatro da Ruptura: Oswald de Andrade, utiliza-se da análise das
três peças supracitadas a fim de questionar o consenso da crítica teatral que considerava
Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, como marco da literatura dramática moderna no
Brasil, promovendo uma “justiça histórica” ao concluir que diversas inovações encontradas
nos textos do teatrólogo carioca já se faziam presentes nas três peças escritas na década de 30
por Oswald.
O norte-americano David George analisa o teatro no contexto da antropofagia,
considerando-o como arte autônoma e relacionando-o nesta fase ao nacionalismo do
Manifesto Antropofágico e a uma das metas principais do Modernismo: “superar a
dependência cultural em todas as suas manifestações, através da renovação dos paradigmas
59
primitivos da ontologia e da linguagem; conquistar a independência política, libertando a
nação do legado do colonialismo” 63. O autor utiliza-se de O Rei da Vela para demonstrar tais
características, incluindo o nacionalismo econômico presente na época.
Outro autor que se pauta nesta “trilogia da devoração”, como são consideradas as
peças, é Carlos Gardin64 – ator, diretor e pesquisador de teatro – que propõe observações e
experimentações semióticas e intertextuais, promovendo comparações entre outros contextos
e obras, e dialogando teoricamente com Brecht a fim de demonstrar a forma canibalesca
destes teatros, que considera de ação ética, estética e moral.
Por fim, há o trabalho de João José Cury65, em que o autor analisa a ideologia e a
intertextualidade nas três peças, traçando uma evolução ideológica em um movimento
dialético que vai da denúncia da estratificação social capitalista na primeira, segue por um
socialismo utópico na segunda e chega ao lirismo anarquista na última, nas quais Oswald usa
como bases teóricas autores como Marx, Engels, Lênin, Stalin, Trotsky, Rosa Luxemburgo,
entre outros.
Já Guilherme de Almeida conta com poucas produções teatrais, limitando-se às duas
peças em francês e o Estudante poeta, de 1943, em parceria com Jaime Barcelos. Entretanto,
seu maior reconhecimento em relação ao teatro consiste em suas traduções, como Entre
quatro paredes (Huis Clos), de Sartre, e Antígone, de Sófocles. É inegável, para a crítica, sua
capacidade em relação a traduções de diversas línguas para o português.
Viu-se, nos estudos acerca da literatura, que o teatro se encontra em segundo plano,
nas análises da obra oswaldiana há a predominância do enfoque na trilogia da devoração, e no
caso de Guilherme de Almeida, este começou apenas recentemente a receber a atenção da
academia. Sendo assim, são poucos os trabalhos que tratam das peças em francês.
Devido às peças se passarem em ambientes luxuosos, possuírem como personagens
pessoas da “alta” sociedade, terem sido escritas em francês e com declarada presença de
intelectuais franceses em sua composição, resgatar-se-ão as principais características do teatro
francês e brasileiro em vigência na época, enfocando as transformações pelas quais passaram
as artes na França fin-de-sciècle, no Brasil e em São Paulo em fins do século XIX e início do
XX.
63
GEORGE, David. Teatro e antropofagia. São Paulo: Global, 1985, p.17.
GARDIN, Carlos. O Teatro Antropofágico de Oswald de Andrade: da ação teatral ao teatro de ação. São
Paulo: Annablume, 1995.
65
CURY, José João. O teatro de Oswald de Andrade: ideologia, intertextualidade e escritura. São Paulo:
Annablume, 2003
64
60
Na França fin-de-scècle, houve modificação nas peças teatrais devido às mudanças de
gosto das elites burguesas do período, haja vista que passaram a cultivar novos hábitos. Este
teatro burguês versava, principalmente, acerca do amor, de aventuras românticas, do conflito
social, de feitos históricos, da ambição, enfim, perpassavam temas quase sempre ligados ao
dinheiro. Entretanto, o teatro popular era baseado em eventos cotidianos, com representações
ornamentais possibilitadas pelos avanços técnico e científico66.
Segundo Hobsbawn67, havia nessa fase uma crise de identidade burguesa que se
refletia nas transformações das artes, que perderam suas referências e inovaram-se. A arte
passa a atrair pessoas comuns, com exceção parcial da literatura, devido à junção da
tecnologia com a análise do mercado de massas. Além disso, há a elevação do poderio
econômico da classe média urbana, atentando-se mais à cultura, e o aumento da classe média
baixa e de setores das classes trabalhadoras mais instruídas, fatores que geraram o aumento
considerável do número de teatros na Europa e na América, de reprodução de telas, de
publicações, do número de leitores, da alfabetização em massa, entre outros.
No Brasil, os novos hábitos burgueses do início do século XX, ligados a um gosto
consumista, tiveram reflexos no teatro e no gosto do público. João do Rio é nome de destaque
do período, com A bela Madame Vargas no Teatro Municipal do Rio de Janeiro a partir de
1912. Tal autor construiu a peça a partir de dilemas e problemas ocorridos com Hortênsia
Vargas, viúva que luta para manter seu status social apesar das dívidas crescentes. Jeefrey
Needell68 afirma que as peças de João do Rio, assim como as de Coelho Neto, contemplavam
grande sucesso entre as elites, pois eram ligadas a aspectos europeus e associadas ao consumo
material.
Tinham grande sucesso o music-hall, o cabaré, a opereta, o vaudeville, a revista e o
circo, caracterizados pela alternância de quadros, danças, malabaristas, paródias, enfim, peças
que divertiam o expectador das novas metrópoles mundiais ocidentais, tendo como meios para
divisão social o preço dos ingressos e os gêneros das encenações.
Devido aos gêneros ligeiros, em alta, fazerem sucesso junto à plateia, autores e donos
de teatro começaram a promover o teatro por sessões a partir de 1908, no Rio de Janeiro, com
o objetivo de concorrer com a opereta, a revista e o cinematógrafo, dando origem aos cine66
WEBER, Eugen Joseph. França fin-de-sciècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras.
68
NEEDELL, J. D. Belle Époque tropical. Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século.
Trad. Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
67
61
teatros. Entretanto, a elite cultural passou a exigir uma arte e cultura nacionais de qualidade
que, no caso, ligar-se-ia ao estilo europeu69.
Assim como ocorrera com os literatos, pintores, historiadores, jornalistas, políticos,
entre outros já abordados, diversos intelectuais buscaram construir uma identidade nacional
por meio do teatro, unindo-se à Academia Imperial de Belas Artes e ao IHGB na luta pela
regeneração do teatro nacional a partir de uma estética realista. Havia iniciativas
governamentais, instituições de caráter cultural e políticos envolvidos nessa empreitada. Para
isso, haveria necessidade de se construir uma Literatura Dramática autenticamente nacional e
promover a educação estética do povo, a fim de configurar o Brasil entre os grandes
produtores e encenadores de teatro em âmbito internacional.
No Rio de Janeiro, em 1912, a Prefeitura contratou Eduardo Vitorino para promover
autores nacionais no Teatro Municipal. Surgiram, nessa fase, as Companhias: Leopoldo
Fróes, Dramática Nacional e Abigail Maia, com o objetivo de abandonar estrangeirismos,
criticar o teatro musicado e lutar em favor da constituição de um teatro de caráter nacionalista
que levava em conta o gênero literário e não o gosto do público.
A questão da representação da grandiosidade do povo paulista, que gerou o sentimento
de paulistanidade, ultrapassa os limites do Estado de São Paulo, fazendo-se presente até em
autores cariocas como João do Rio, representando o estado como civilizador, local do
progresso: “São Paulo é o civilizador! (...) Gente, gente de verdade, povo capaz, ativo, forte,
civilizado (...) neste país estou sempre bem. E o substantivo país sai-me como a verdade
espontânea e irreprimível”70.
Tendo contato com textos de Oscar Wilde, Maeterlinck, Henry Baille e Henry
Bernstein, assim como em um ambiente burguês da cena teatral brasileira, Oswald e
Guilherme têm seus primeiros contatos com o teatro e passam a trabalhar intelectualmente a
partir dos elementos a eles fornecidos por essa conjuntura.
69
MENCARELLI, F. A. Cena aberta: a absolvição de um bilontra e o Teatro de Revista de Arthur Azevedo.
Campinas: Editora da UNICAMP, Cecult, 1999.
70
SCHAPOCHINICK, Nelson (Org.). João do Rio: um dândi na Cafelândia. São Paulo: Boitempo Editorial,
2004, p. 44.
62
2.3 Mon coeur balance e Leur âme
Mon Coeur balance ocorre em um terraço de hotel de uma praia elegante do Guarujá,
litoral de São Paulo. Ao contrastar o conflito dos protagonistas com o clima de férias na praia,
temos Marcela, Gustavo e Luciano como protagonistas e uma gama de personagens como
plano de fundo.
Marcela é caracterizada fisicamente como loura e sua mãe afirma que ela tem
dezessete anos. Possivelmente descende de uma família de posses do Paraná em que seu pai,
já falecido, explorava uma vasta fazenda cercada de imensos pinheirais e não apreciava a vida
febril das grandes cidades. Ela estudou no Rio, no colégio interno Sacré-coeur da Tijuca e,
após a morte do pai, a propriedade é vendida e se muda com a mãe para uma mansão em São
Paulo. Luciano, em uma de suas conversas com Gustavo, diz que ela não é uma simples dona
de casa, pois tem umas “ideiazinhas” e, por isso, não é para ele.
Luciano é apresentado como um homem de 30 anos e empenha-se sempre em
aconselhar Gustavo, que se refere a ele, mais de uma vez, como alemão. Gustavo é
caracterizado como um rapaz barbeado e um blagueur. Luciano o vê como um jovem meio
leviano, um pouco maluco, idealista, um fazedor de sonhos que vive em um mundo irreal.
Os outros personagens que povoam o ambiente são Madame Doria, mãe de Marcela,
viúva, com aproximadamente 30 anos e Luciano a tem como aventureira; Madame Dunloup é
exilada belga antes da guerra e “está na idade em que não se tem idade” 71; Helena tem
dezesseis anos, é ingênua, totalmente colegial e é noiva de Carlos, um bacharel; Signora
Belloni é uma cantora de voz; Dr. Mendes é um médico sem clínica “muito bem cuidado,
muito cuidadoso, bastante idiota e muito convencido de que não é”72; o Coronel, sempre à
paisana, “não é guerreiro, nunca foi”73 e pertence a uma classe pacífica de coronéis da nossa
terra; Jornalista, “uma espécie de homenzinho caprichosíssimo no trajar”74; M. de SouzaCliff, pai de Helena, viúvo, tem fazendas, tem tiques, como o de pronunciar o nome completo
das pessoas, e tato; um Inglês o qual fica ao fundo lendo seu jornal e se move apenas no
71
ANDRADE, Oswald de. Mon coeur balance; Leur âme: em co autoria com Guilherme de Almeida. São
Paulo: Globo, 2003, p. 31.
72
Idem
73
Idem
74
Idem
63
terceiro ato, quando passa pela cena sem cumprimentar ninguém, de maiô muito curto e uma
toalha na mão; uma família inglesa; garçons; carregadores; e todo o universo da praia.
A peça é construída em quatro atos, característica do simbolismo, que dá à história o
andamento vagaroso da delicadeza e do meio-tom.
No primeiro ato, o cenário é apresentado com decoração tropical. Madame Dunloup
vende bilhetes de um cotillon para ajudar os órfãos belgas da guerra. Os diálogos guardam
uma aparente superficialidade que lembra o teatro de João do Rio, muito apreciado por
Oswald de Andrade, assim confessado pelo autor em suas memórias. Demonstra-se que
Gustavo ama Marcela, mas Luciano o adverte de que ele é muito jovem, inocente, de alma
sensível e que Marcela não é para ele, pois ela é muito inglesa, muito flirting-girl. Gustavo
não sabe se Marcela ainda o ama e, ao pressioná-la, ela muda de assunto e chama Luciano
para um passeio a três.
No segundo ato, o diálogo ocorre principalmente no salão, pois está ocorrendo a festa
dos belgas. Gustavo declara seu interesse de casamento a Marcela, mas ela se esquiva
utilizando argumentos em relação à sua mãe, que poderia não aprovar. Luciano diz a Marcela
que a ama, mas esta também não se pronuncia em relação a ele. O ato deixa clara a figura da
mulher como criatura perturbadora, que não dá paz aos homens.
O terceiro ato começa com um diálogo entre Gustavo e Luciano, após passarem a
noite jogando e perderem. Eles conversam essencialmente sobre Marcela, Madame Dória e o
falecido Sr. Doria, sobre o qual a viúva pouco se pronuncia. Luciano aconselha Gustavo a
renunciar a Marcela, pois ela não é uma simples dona de casa e sua mãe é uma aventureira.
Gustavo diz que, com isso, ele a ama mais, pois a ama como se ama em Shakespeare,
aceitando por antecipação todos os quintos atos. Luciano, então, declara que rivaliza Marcela
e os dois brigam. Luciano afirma que apenas se aproximou de Marcela, pois é seu melhor e
único amigo e que, para o seu bem, estava se sacrificando por Gustavo. Não há dados
concretos na peça em que possamos nos basear para julgar se Luciano estava sendo honesto
ou falso. Marcela chega à cena e os dois exigem que ela faça sua escolha. Ela fica encabulada,
diz que seu coração balança – título da peça Mon Coeur Balance –, solta uma grande risada e
corre para o mar, terminando o terceiro ato.
No quarto ato, Gustavo informa a Luciano que Marcela partiu pela manhã,
contrastando com o clima de entusiasmo gerado pelo anúncio do noivado de Helena e Carlos.
Os dois parecem estar apartados dos outros hóspedes do hotel, que Luciano chama de
64
“multidão multicor e ignóbil”. Os dois, conversando, concordam que ela terá o mesmo futuro
que sua mãe e que um dia seu coração balançará entre lamentações e remorsos. Enquanto se
comemora o noivado, os dois lamentam. Gustavo usa uma imagem que será utilizada também
em O rei da vela: “Sempre marchas nupciais lado a lado das marchas fúnebres”. Gustavo e
Luciano estão de saída para um passeio na praia, convidam Carlos para acompanhá-los, o
qual, “preso” por Helena, não aceita. Luciano diz a Gustavo para irem, então, em direção à
vida, ao que Gustavo complementa que poderia ser em direção à morte. Luciano coloca as
mãos nos ombros de Gustavo e diz: “Entre a vida e a morte... nosso coração balança”.
Sendo assim, a peça foi rigorosamente divida em quatro atos, dos quais o primeiro
apresenta a indefinição de Marcela em relação a Gustavo; o segundo em relação a Luciano; no
terceiro, em que o coração dela balança entre os dois; e o quarto apresenta o desfecho, em que
ela vai embora repentinamente e ficam os dois sozinhos.
Na peça, os autores não discutem explicitamente acerca das questões mundanas, como
a Primeira Guerra Mundial, embora, implicitamente e a partir da caracterização das
personagens, possamos chegar a conclusões plausíveis sobre este assunto. Percebe-se que a
perspectiva não é a da mulher, mas dos homens, cujo principal assunto é a mulher
indecifrável, e os dados são apresentado pelos dois e não por frases da própria Marcela, a qual
desaparece sem deixar conclusões.
A peça Leur âme se passa em São Paulo, aproximadamente entre 1915/16, mas no
último ato dá um salto de sete anos. Os protagonistas são Natália, tratada pelos íntimos como
Natá, a mulher mais bela da cidade; George, o homem enganado; e Gastão, um virtuoso do
amor que sofre por sua qualidade.
Outros personagens servem de pano de fundo: Emma e Carlotinha, respectivamente
filhas mais velha e mais nova de Natália e George; Madame Lima, uma visita apressada e
inconveniente; Julieta, uma “criadinha”; Carlos, um jovem filósofo vegetariano; Motta-Pai, o
bom burguês; Motta-Filho, filho do bom burguês; Padre Giovanni; Yato, um criado japonês;
dois clubmen; clientes; garçom; criado; carregador.
O primeiro ato inicia-se na casa de Natália e George, no bairro Higienópolis, com
Natália marcando um encontro com Gastão. Como a peça tem início já com o diálogo, os
autores utilizam-se da visita de Madame Lima para pôr em voga os problemas ocorridos na
história, pois Natália comenta com ela sobre sua desconfiança em relação à fidelidade de
George, o qual a ignora. Madame Lima a aconselha a ter um caso e indica Gastão, ao que
65
Natália recusa. Madame Lima vai embora. George surge na cena com demonstrações de
carinho e, ao saber que Natália vai à casa de Henriqueta, não quer deixá-la, pois não gosta da
mulher e deixa perceber certo ciúme de Gastão, que sempre se encontra lá. Discutem. Gastão
diz que o amor não traz felicidade. Carlotinha aparece em cena e há uma demonstração de
amor e possessividade de Natália em relação a ela. Natália afirma a George que vai à casa de
Henriqueta e que vai levar Carlotinha.
No segundo ato, dividido em dois quadros, apresenta-se primeiramente a intimidade
de Natália e, posteriormente, a intimidade de George, em cenários divergentes. O primeiro
quadro se passa no quarto de Gastão em que, após terem tido relações sexuais, conversam. No
diálogo, Gastão diz que possui seu corpo, sua juventude, sua alma, sua honra, mas que quer
seu amor, seu coração. Ao dar a entender que Natália sonha com outro, ela confirma e diz que
George é o seu único amor verdadeiro. Após alterações de humores, afirma que é Gastão que
mais ama. Ele afirma que não suporta dividir o amor e fala em suicídio, pois comprometera
seu orgulho. Diz que sabe de todas as verdades sobre o passado de Natália – que ela mesma
contou –, como seu histórico de garota sensual, mas que é o presente que não o deixa em paz.
Saber do passado simboliza, para Gastão, ter a alma de Natália e, quando ela diz que é
ele seu maior amor, ele sente que perdeu sua alma, sua conquista mais “gloriosa e pungente”.
Natália altera seu discurso novamente, afirmando que está com ele, mas ama George. Ela sai e
ele, olhando para o espelho, diz para si mesmo: “Palhaço, eis o destino que você quis”, e
pensa em derrotar George no pôquer como forma de vingar-se.
No segundo quadro, em contrapartida à cena íntima de Natália e Gastão, ocorre um
diálogo em um salão de um grande clube elegante. George entra e logo tem início uma
conversa sobre a figura feminina entre ele, Carlos, Motta-Pai, Motta-Filho, chegando, mais
tarde, Gastão. George diz que a mulher só é inteiramente nossa quando começa a nos
aborrecer e Carlos chama George de “homem dos paradoxos”. George completa: axiomáticos.
George diz que a vida é a mulher. Carlos diz que não é a mulher e inicia-se uma discussão.
Gastão entra em cena e George pergunta a ele se a mulher é a vida. Gastão,
concordando com Motta-Pai, diz que tem que escolher o meio termo. Ele diz que Bourget é o
mais fino conhecedor do amor, pois afirma que o homem tem a idade de seu sexo,
complementando que a mulher também, não só a idade, mas a vida de seu sexo. George acusa
Gastão de só querer ver a mulher no lado material, de colecionar corpos frágeis, que por sua
natureza são incapazes de resistir aos homens. Diz a ele para procurar a alma delas e que
66
fracassará, pois fogem, são coisa fina, flexível, deslizam, e completa: “pensamos que temos,
mas escapam-nos sem percebermos, retomam seu misterioso voo para o vácuo, para o
nada...”. Carlos diz que é simples ilusão, que deviam criar a ótica do amor e George coloca
que “O amor nunca revela as almas. Veste-as muito bem: é um grande modista da Rue de La
Paix, isto que é”. George dá a entender, então, que o amor é superficial e consumista,
vinculando-o a uma mercadoria.
Carlos afirma que são inconcebíveis amor e paz, e George, de acordo, argumenta que a
paz é uma forma comodista da felicidade e o amor nunca nos dá felicidade. Ele racionaliza o
caso dando um exemplo como se fosse uma aventura do passado, mas fica claro que se trata
de Natália: fala que amou depois de ter tido o objeto amado, mas que pressentia uma sombra
se infiltrando entre ele e ela. “Querendo ser amado, eu amei”.
Carlos pergunta sobre a sombra. George diz que a sombra possuiu o corpo e o coração
dela, mas foi na alma que se agarrou. Gastão pergunta a George se não é a alma, o coração.
George diz que não. Nesse momento, há na conversa a tentativa de distinguir alma de
coração.
George afirma que a alma é sutil, assustadora, inatingível, mas que quando a
encontrou, ela estava fundida no corpo e no coração, e isso é o “amor-amor”. Motta-Pai diz
que tem amor-amizade apenas. George diz que isso é o que acontece com a maioria dos
homens. Gastão pergunta: casados? George confirma, mas diz que isso não impede que eles
tenham o amor-amor. Gastão pede um exemplo e ri com maldade. George se cala.
Motta-Pai diz que a felicidade está na família. Carlos pergunta o que Gastão acha. Ele
diz que traiu Adão e ele o pagou em dobro. Carlos diz “não admito que um belo homem como
você tenha feito corte à velha mãe Eva. Isso que dizer que você fala por símbolos” e Gastão
responde: “E no entanto foi mesmo com Eva. O meu caso é um triste incesto simbólico”.
Optou-se por descrever esse quadro de forma minuciosa, pois se percebe que Oswald e
Guilherme têm a intenção de promover uma análise psicanalítica do amor de Gastão pela
mulher inatingível.
O terceiro ato ocorre na casa de campo de George, localizada no subúrbio de São
Paulo, e inicia-se com um diálogo entre Gastão e Emma, agora com 12 anos, que ele não via
desde os sete, pois viajou durante cinco anos. Com a menina, retoma a discussão sobre a
diferença entre alma e coração, pois Emma comenta que o Padre Giovanni ensinou a ela que o
céu é para onde vão as almas. Ele pergunta o que é a alma e ela responde que é o coração.
67
Após uma pausa para o café, a menina comenta que adora fechar o seu cachorro na sala,
enquanto se põe ao piano, e o ouvir urrar. Gastão diz que quando ela for uma mulher, adorará
fazer isso com os homens. Emma, confusa, pergunta se ele a acha má. Ele diz que não, mas
que as mulheres fazem os homens berrarem de dor e ela nunca irá entender, fará isso “e
pronto”.
George adentra a sala, Emma sai de cena com a desculpa de George que iria mostrar
sua biblioteca de patologia, pois a solidão levou-o a esses estudos. George não contou à filha
que a mãe fugiu com um caixeiro-viajante – mentiu que morrera em um acidente –, sendo
egoísta na dor, saboreando-a sozinho. Gastão faz uma brincadeira, George diz que o inveja
por isso e Gastão diz que sempre se inveja a gaieté dos palhaços. George afirma que ainda
ama Natália e pergunta se, em suas viagens, Gastão a viu. Este diz que tem quase certeza que
a viu em Tenerife, acompanhada, mas sem Carlotinha – Natália levou-a quando fugiu. Gastão
afirma que, após ir se afastando da ilha, viu a trágica paisagem de sua alma.
Gastão diz que chegou a uma conclusão sobre a mulher: vê-a como uma irmã, pois a
mulher é igual ao homem em matéria de amor; não se engana sobre ela, mas sobre seu tipo
ideal, e que se resignou a fazer cinismo em matéria de amor. A partir de um exemplo dado, se
perguntam “Quem sabe se no amor não há, também, um desejo inconsciente de enganar
aquele que amamos?”, caindo no paradoxo. Gastão define a mulher como “animal subjetivo”,
pois o que ela faz e diz só faz sentido para ela. George diz que elas são “paradoxos de longos
cabelos, ligeiros e ondulantes, como sua alma”.
Na última cena, chega o Padre Giovanni para a aula de catecismo de Emma. George
sai para recebê-lo e ela se empolga. Gastão pega seu caderno e lê: “o amor é um dom de
Deus”. Ele pergunta se ela concorda, e a menina diz que antes o amor é obra do diabo, pois
todos os amores vêm do primeiro amor: “Adão e Eva... A Serpente...”. Diz que não contará
isso ao Padre, pois não é louca. Gastão a olha, chora e diz: “(...) eu amei uma mulher...”. Ema
pergunta: “Então?”. Gastão então conclui a peça dizendo: “Ela se parecia com você...”.
Em Leur âme há o mesmo ocorrido que em Mon coeur balance, a saber, a sedução de
dois homens pela mesma mulher a qual, ao final, os abandona sem dar explicações. Embora
haja uma aproximação entre as personagens das duas peças, as masculinas são invertidas, pois
na primeira Gustavo, blagueur, está mais ligado à Marcela e Luciano o abala; na segunda,
George é casado com Natália, enquanto Gastão, blagueur, é o amante.
68
Além dessas semelhanças, os autores apresentam, como afirma Magaldi, senso da
construção teatral e o diálogo leve e fluente, pois cada cena encadeia-se na anterior e prepara
a seguinte, crescente, até o desfecho.
69
3º CAPÍTULO
BRASIL-FRANÇA
70
3 BRASIL-FRANÇA
O fato de as peças terem sido escritas em francês em pleno fervor nacionalista pelo
qual passava o Brasil e o estado de São Paulo é um fator importante para o questionamento
acerca da elevada presença da cultura francesa no país. Além disso, são citados diversos
intelectuais franceses direta ou indiretamente ao longo das peças, mas podendo ser entendidos
de forma específica por Oswald e Guilherme, não sendo utilizados como mera cópia, mas
baseando-se em seus preceitos a fim de analisar a realidade em que viviam e questionavam.
Sábato Magaldi, ao entrevistar Guilherme de Almeida e questioná-lo sobre os motivos
pelos quais eles escreveram em francês, disse que foi ideia de Oswald, pois ele estava em um
relacionamento com uma francesa e a convivência dos dois era muito francesa, pois falavam
no idioma dela dentro de casa. Além disso, Guilherme afirmou que o autor de Serafim Ponte
Grande disse-lhe que, no Brasil, não tinha teatro ainda, mas que para ser universal era preciso
escrever em francês.
Até o momento, os raros autores que trataram das peças entenderam essa questão a
partir de um típico gesto “pré-modernista” ao sul do equador, ou deixaram a entender uma
possível radicalidade dos autores, ou ainda não se prestam a analisar estes fatores.
Afastando-se dessas abordagens, utiliza-se, aqui, uma bibliografia específica acerca do
assunto, buscando, em periódicos da época, a receptividade das peças e analisam-se as peças,
mesmo que parcialmente, à luz das ideias de autores franceses encontradas até o momento nas
obras.
71
3.1 Recepção das peças pela mídia escrita
As críticas das peças, encontradas na imprensa escrita de São Paulo até o momento e,
em alguns casos, nos Rio de Janeiro, são, na maior parte das vezes, elogiosas, mas em sua
maioria ou criticam o fato delas terem sido escritas em francês ou são indiferentes a isso.
Devido a diversos jornais anunciarem para as 15 horas do dia 06 de janeiro de 1916,
a leitura de Mon coeur balance na redação de A Cigarra, delimita-se primeiramente o mês de
janeiro para vasculhar tais publicações. O segundo período abarca o mês de dezembro de
1916, pois, como afirma Oswald em suas memórias e O Estado de S. Paulo no dia 17 de
dezembro, havia terminado, no dia anterior ao artigo no Teatro Municipal de São Paulo, uma
série de espetáculos organizados por Lugné Poe, sendo o último dia dedicado a autores
brasileiros que escreviam em francês, o que o jornal afirma serem poucos.
Sábato Magaldi, ao analisar um caderno de recortes de jornais de Guilherme de
Almeida, encontrou um artigo do Correio Paulistano em que o periódico coloca:
(...) concluíram há poucos dias uma bela peça teatral (...) A peça, para nós, não devia
ter sido, como foi, escrita em língua francesa. Se aquela literatura é já tão rica e a
nossa relativamente paupérrima, por que motivo moços de tão formosos talentos,
que todo mundo sabe que conhecem profundamente a formosa língua de Victor
Hugo, não se entregam exclusivamente à cultura do seu idioma, que foi também o de
Machado de Assis e Eça de Queiroz, e que afinal em nada é inferior àquele que tem
sido, infelizmente, o maior delírio das nossas gerações ilustres, medíocres e
desclassificadas? Questão de gosto, talvez, ou de opinião. E a isso nos referimos
apenas por um desencargo de consciência e talvez por extremado patriotismo, pois
não é agradável constatar que, na hora em que Bilac fala do ressurgimento do
nacionalismo, a nossa mocidade, tão brilhante e prometedora, fala, escreve e pensa...
em francês.75
Já no dia 07, começam a aparecer as críticas de cunho elogioso.
O Estado de S. Paulo escreve sobre as peças.
Conforme estava anunciado, (...) hontem, na redação d´”A Cigarra”, a leitura da
peça “Mon Coeur Balance”, dos Srs. Guilherme de Almeida e Oswald de Andrade,
estando presente um seleto e relativamente grupo de homens de letras.
A comédia (cremos não errar chamando-lhe assim) é em quatro atos e escrita em
frances. Por que em francês? Perguntará o leitor, intrigado, achando que um
Almeida e um Andrade, escrevendo no Brasil, para brasileiros, estavam na
obrigação de escrever na língua deles e do País. Não podemos responder à pergunta,
e não nos admiramos se os próprios autores da peça não souberem responder
75
Correio Paulistano, 13.01.1916
72
satisfatoriamente. Diremos apenas que eles são moços, quase uns meninos, e que o
verdor dos anos explica essa e outras extravagâncias.
O enredo é simples. No Guarujá, no meio de um pequeno mundo frívolo e brilhante
de fazendeiros viajados, de estrangeiros ricos e de “parvenus” indígenas e
alienígenas (...) um quadro de costumes com uma “tranche de vie”76,
O Pirralho, em 8 de janeiro, assinado por Dolor de Brito, apresenta:
O pirralho compõe-se de uma roda literária (...) mas que vai se impondo
guilhardamente no meio literário brasileiro, desde Juó Bananére, o popular cronista
tão elogiado pelo Estado e que a política (arceanhou?) do nosso meio para uma
revista de opposição ao candidato à presidência do Estado, passando por Cornelio
Pires, uma quase creatura nossa, até Oswald de Andrade e Guilherme de Andrade e
Almeida, duas genuínas individualidades literárias creadas e desenvolvidas pelo
Pirralho, brejeiro e traquinas.
Guilherme de Andrade e Almeida é o brilhante poeta cujos primeiros vôos foram
iniciados aqui e aqui continua luzindo e brilhando, dando-nos de preferência a
primazia da publicidade dos versos admiráveis que compõe e que quase em todos os
nossos números ornamentam as nossas colunas.
Oswald de Andrade, muito moço ainda fundou o Pirralho, já lá vão cinco annos, e
aqui brilhou desde a satyra mais leve até ao mais pesado artigo de fundo, dirigindo
com raro brilho o Pirralho que elle ama, estima, apesar de agora, estar de nós
separado.
A mim também identificado com o Pirralho a que empresto há quatros annos o
obscuro (concurso?) da minha intelligencia, é me gratíssimo noticiar o
apparecimento da peça theatral de Oswald de Andrade e Guilherme, esses dois
dedicados companheiros amados de jornada literária.
Foi na noite de natal.
Convidados pelos auctores eu e Sampaio Freire, o primoroso poeta, gostosamente
nos dirigimos para a residência de Oswald e, com o Maximo interesse nos
predispuzemos a ouvir a Mon coeur balance, que nasceu de uma brincadeira literária
e se transformou numa peça de valor.
Francamente não acreditávamos na existência de uma peça theatral.
Antonio Define, um dia, com os olhos illuminados de enthusiasmo, numa mesa de
(...), já me havia fallado do Mon coeur balance, cheio de fé, com ridor vibrante do
contentamento.
Quis o bom fado que na noite de Atal, natal também para mim de uma peça
admirável que faz honra aos seus dois talentosos auctores, eu fosse me convencer da
realidade de um grande acontecimento literário.
De facto Mon coeur balance era uma peça em quatro actos, leves, (?),
magnificamente bem apanhados, cheios de emoção e de vida.
A leitura começou as duas da madrugada. A´s 4 e meia, ainda estávamos presos ao
seu encanto.
As obras perfeitas, não podem ser assim escriptas quase de um jacto entre uma iada
e uma phrase de espírito, mas os moços de talento ás vezes de uma palestra
intelligente tiram e concebem obras literárias quase perfeitas.
É o caso de Guilherme de Andrade e Oswaldo.
Um dia, combinaram fazer uma peça, que não seria publicada, para os íntimos, mero
entretenimento literário.
Mas a peça saiu tão bôa, que os amigos exigiram a publicidade, e se possível for a
representação e o Correio Paulistano teve a primazia, publicando acompanhada de
rasgados elogios, uma scena de Mon Coeur Balance.
De facto a nóva peça está talhada a ruidoso successo.
76
O Estado de São Paulo, 07.01.1916.
73
É uma scena da vida real.
(Ma céils???), esse conhecido typo de profissional do flirt, habitue das praias
elegantes de banho e Gustave e Lucien, um, romântico e apaixonado, outro, se
blazonando de forte, mas apaixonado também, são os principaes heroes do Mon
coeur balance.
Afora esses ha Momes, um coronel e um jornalista, figuras conhecidíssimas que
todo publico já vio e que se parecem com creaturas com quem temos convivido,
com quem temos tratado.
Em torno dessa paixão romântica de um, e forte de outro, por essa encantadora
creatura que é Marcelle, gira toda a peça.
É uma comedio drama, moderna, real, encantadora.
Há scenas de uma admirável naturalidade e de encantos literários extraordinários.
Terá Mon Coeur balance senões em matéria de thechnica theatral? Não sabemos.
Como dramatisação de acontecimento da vida real é perfeita a peça que Guilherme
Almeida e Oswaldo de Andrade em bôa hora escreveram.
Só isso basta para recommendar a peça á consideração intellectual de São Paulo e do
Paiz, muitos applausos merecendo, os dois talentosos moços.
Mon coeur balance é escripta em francês. Acham uns que é um defeito. Acham
outros que não.
Sendo a peça conjuncto de scenas refinadamente elegantes, acham os segundos que
só em francês poderia ser escripta.
Os nacionalistas, os fascinados pela palavra mágica de Bilac, pensam que não.
Emfim as obras de valor, uma vez accessíveis ás nossas intelligencias, sejam
escriptas em qualquer língua, serão sempre valiosas e dignas da nossa admiração.
Por isso annuncio com prazer esse acontecimento literário de Anno Novo e daqui
envio o meu grande abraço a Guilherme e Oswaldo, os talentosos auctores do Mon
coeur balance, convicto do brilhante successo que os espera 77.
Vida Moderna, em 13 de janeiro:
Mon Coeur Balance é este o título de uma comedia em quatro atos, em língua
francesa, da qual os seus auctores, os srs. Oswaldo de Andrade e Guilherme de
Almeida, fizeram a leitura, há dias, na redação da “Cigarra”, perante alguns homens
de letras. Os auctores são muito jovens, mas cheios de talento e com uma
accentuadíssima inclinação para a literatura theatral.
A peça é em Francez. Isso não vem ao caso e nem porisso se lhes pode fazer
nenhum reproche.
Machado de Assis também, na sua primeira mocidade, escrevia comedias em
francez, que eram representadas por amadores em theatinhos particulares. De resto,
elles são moços, e aos moços todas as audácias são permitidas.
Durante a leitura, logo após as primeiras scenas, todos começaram a interessa-se
pela comedia. É uma composição fina, onde os episódios de amor são tratados com
muita intensidade. A acção passa-se numa praia de banhos, em Santos, e as suas
personagens são todas brasileiras. Não tem precisamente um enredo. A acção
desenrola-se suavemente, naturalmente, num hotel da praia, entre o “hall” das
refeições e o salão de jogo, entre pessoas elegantes durante uma curta estação de
águas. Há um episodio de amor a ligar as scenas principaes, e nelle é que reside todo
o interesse da peça. Os actos são curtos, e a dialogação succede-se com bastante
graça, cheia, ás vezes, de uma vivacidade que surpreende.
Ao fim de cada acto, os applausos não se fizeram esperar. Foram expontaneos e
enthusiasticos. Terminada a leitura, os auctores foram abraçados por quanto tiveram
o prazer de ouvir a leitura da interessante comedia78.
77
78
O Pirralho, 08.01.1916.
Vida Moderna, 13.01.1916.
74
A Gazeta de Noticias, 16 de janeiro, do Rio de Janeiro:
Em um dos últimos dias da semana finda, reuniu-se na redacção da “Cigarra”, um
grande grupo de homens de letras e jornalistas de S. Paulo, para assistirem a leitura
de uma peça de teatro, escrita em francez, por dois moços brasileiros. “Mon Coeur
Balance” é o título comédia, e são dois autores: Oswaldo de Andrade e Guilherme
de A. e Almeida.
São dois nomes muito queridos no nosso meio literário, onde, apezar de seus verdes
annos, tem eles tentado impor-se pelo talento.
A sua tentativa, que produziu estranheza por ser em língua estrangeira, agradou
plenamente e atingiu, de modo brilhante, o fim almejado.
Mon Coeur Balance é uma peça leve, cheia de verve e de encanto: o diálogo flue
natural e espontâneo, a contextura é acabada, o assumpto é real, verdadeiro e
attraente.
Nesses quatro actos que, fáceis, deslizam no quadro suggestivo de uma praia durante
uma estação (?), a vida palpita inteira com todas as suas (?) amargores, (...)
Uma trafega moçoila, uma travessa, uma “flirting girl”, inquieta e desmiolada e dois
homens que a disputam, fazem numa trilogia de magníficos personagens. É uma
peça que faz rir muitas vezes pelo seu espírito fino, mas deixa, no espírito uma tênue
sombra de tristeza íntima: há nella (?) nostálgico. Enfim, é como a vida, e basta.
Aos jovens literatos, os nossos aplausos, elles os merecem, e calorosos 79.
O Pirralho, em 22 de janeiro, lança um artigo para defender a peça da crítica da
revista O Queixoso. Após a afirmação categórica das capacidades literárias e intelectuais dos
dois autores, que “abrilhantaram” nos quadros de O Pirralho, diz que O Queixoso, tendo
opiniões divergentes do “restante da imprensa autorizada de São Paulo”, deu um “arroto de
superioridade... ‘A peça não é má – dizem’ escreveu ‘O Queixoso’” e nada mais depois de ter
feito crítica ao fato de serem escritas em francês. Critica o fato de O Queixoso ter chamado os
autores de cabotinos, pois escreveram em francês para chamar a atenção e que, com aquele
texto em português não provocariam barulho. E conclui:
Numa cidade como a nossa em que á parte o trabalho de alguns poucos escriptores
de tempera, a literatura vive num entorpecimento ininterrupto, á mercê de meia
dúzia de enxovedos, que nos aborrecem com chronicas pífias ou versos de pés
quebrados, o apparecimento de “Mon coeur balance” que, incontestávelmente,
revela grandes qualidades, quer literariamente, quer sob o ponto de vista da téchnica
teatral, devia ser registrado pelo “O Queixoso” com palavras, já não dizemos mais
benévolas, mas pelo menos mais intelligentes.
Mas não só os redactores d´ “O Queixoso” não se animaram a escrever uma
apreciação séria sobre “Mon Coeur Balance” e a dispensar aos jovens escriptores
uma palavra de enthusiasmo e incentivo, como se julgaram obrigados a verberar
acerbamente a muito explicável velleidade que levou os autores da comedia a
escreverem em francês e a castigal-os com o apitheto de cabotinos...
79
A Gazeta de Noticias, 16.01.1916.
75
Nós temos muita confiança no talento dos redactores da revista em questão, mas
temos também a quase certeza de que elles todos reunidos não seriam capazes de
escrever um acto siquer de “Mon coeur balance”...
Em todo o caso ahi fica o repto. Delicatus 80.
Como se pode perceber, a crítica jornalística, salvo O Queixoso, não se preocupa com
o fato de as peças terem sido escritas em francês, demonstrando que não era um fato de
grande importância, apesar da campanha civilista de Bilac.
80
O Pirralho, 22.01.1916.
76
3.2 Presença francesa no Brasil
Jorge Schwartz, em nota introdutória à versão bilíngue das peças, traça um panorama
rápido sobre a publicação das peças no idioma francês, considerando este fato como um típico
gesto pré-modernista, “representativo das contradições existentes entre uma tradição
simbolista-decadentista e uma vanguarda incipiente”
81
, inserindo, dessa forma, o Brasil em
um contexto de vanguarda afrancesada ao Sul do Equador; ou seja, infere que este
afrancesamento ocorria em países periféricos nos quais a herança colonial da adoção de
valores metropolitanos ainda prevalecia nos anos 1920. Na mesma edição, Eudinyr Fraga82
detecta a ausência de preocupações sociais e estrutura revolucionária nas peças, características
frequentes em outros escritos de Oswald de Andrade, assim como resume e comenta tais
produções à luz de outros autores e obras teatrais da época; o autor foca-se exclusivamente
nas peças em si.
A presença francesa no Brasil pode ser encontrada em diversas instâncias, como
linguagem, cultura, política, filosofia, literatura, música e afins, que perpassam por diversos
momentos da história nacional, gerando hipóteses e argumentações acerca do porquê teria
sido a França tal irradiadora cultural presente entre as elites brasileiras.
Essa presença ocorreu já no período colonial, com empreendimentos de caráter
contestatórios ao tratado de Tordesilhas e tentativas de se formar colônias francesas ao longo
do território dominado pela Coroa portuguesa. Nessa perspectiva, franceses se instalaram no
Maranhão, formando a França Equinocial; na Paraíba, no Rio Grande do Norte e no Rio de
Janeiro, formando a França Antártica, promovendo relações amigáveis com os indígenas.
Embora tenham sido expulsos pelos portugueses, principalmente por questões territoriais e
religiosas, tais eventos deixaram rastros históricos, culturais e simbólicos na colônia.
Nos primeiros movimentos que se opunham ao domínio econômico português, as
ideias iluministas francesas estavam presentes entre os revoltosos, como é o caso da
Conjuração Baiana (1798), que teve como base Rousseau, Volney e Boissy d´Anglas, e da
Inconfidência Mineira (1789), que se pautara em Voltaire, Montesquieu, Condillac, Domat,
Mably e Bossuet.
81
SCHWARTZ, Jorge. Nota introdutória. In: ANDRADE, Oswald de. Mon coeur balance; Leur Âme: em coautoria com Guilherme de Almeida. São Paulo: Globo, 2003.
82
FRAGA, Eudinyr. As peças em francês. In: Idem.
77
A entrada das ideias iluministas ocorria de diversas maneiras. Gilberto Pinheiro
Passos83 defende que esta presença foi fruto de uma colonização intelectual ainda portuguesa,
mesmo com um Brasil independente politicamente, haja vista que, já no século XVIII, jovens
portugueses poderiam receber bolsas para estudar em outros países europeus, incluindo a
França, sendo que tais países já haviam presenciado o expansionismo cultural francês.
Outro evento que deve ser levado em consideração é a presença, no Brasil, do
iluminista Pierre Plancher, editor francês que apoiara Napoleão e que, com sua queda, passou
a ser perseguido devido à restauração dos Bourbons. Nesse contexto, fugiu para o Rio de
Janeiro e, depois de ser preso por ser considerado um falsário, foi libertado a pedido de D.
Pedro I, instalando a loja de Plancher no Rio.
Montou uma tipografia que recebeu do imperador o título de “Imperial Tipografia –
Impressor Imperial”, conquistando prestígio e respeito nos círculos culturais da cidade.
Vendia e alugava livros franceses que contribuíram para a formação da cultura política da
época, publicou almanaques, folhinhas, guias da cidade do Rio de Janeiro e boletins de
sociedades literárias e científicas. Vendia romances franceses, agora mais acessíveis ao
público brasileiro. “Essas realizações culturais pela via impressa tinham importância
estratégica na perspectiva de construção do Estado Nacional”
84
. Fundou o Jornal do
Commércio, uma cópia da versão parisiense.
A instituição do Poder Moderador pela Constituição de 1824 e pela Carta
Constitucional Portuguesa de 1826 geraram discussões que também tiveram como base ideias
de autores franceses, tanto a favor (Benjamin Constant, Ancillon, Lanjumais, Guizot e Hello)
quanto contra (Emmanuel Sieyès).
Algumas instituições e conceitos portugueses que foram transpostos para o Brasil já
eram herdeiros de modelos franceses, como é o caso do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, fundado em 1838 e que marcou a intelectualidade brasileira na segunda metade do
século XIX e início do XX, ficando encarregado de construir uma história nacional nos
moldes da escola metódica francesa, mantendo o Brasil como continuidade da história
portuguesa.
83
PASSOS, Gilberto Pinheiro. O Napoleão de Botafogo. Presença Francesa em Quincas Borba de Machado de
Assis. São Paulo: Annablume, 2000
84
SALDANHA, Nelson. Trajetória e crise das “leituras francesas”. Revista Brasileira. Rio de Janeiro: Estudio
Castellani, fase VII, abril-maio-junho, ano XI, nº 43, p. 3329-334, 2005.
78
Outra instituição de origem francesa transportada para o Brasil foi a Academia
Brasileira de Letras, tanto em relação à produção intelectual institucionalizada quanto ao
número de catedráticos, totalizando 40. Sua fundação gerou discussões acirradas na imprensa
escrita do período, tendo como um dos principais contestadores Monteiro Lobato85.
Alguns eventos foram significativos para a adoção de modelos culturais franceses no
Brasil do século XIX, época em que houve intensa disseminação dessa cultura, como a vinda
da família real e elite portuguesa ao país, em 1808, já imbuída de marcas francesas; a chegada
da missão artística francesa, em 1816; a existência de uma colônia francesa na Tijuca,
representada fundamentalmente pela família Taunay; filhos de brasileiros que iam estudar em
Portugal ou na França; em 1833, alunos da Faculdade de Direito de São Paulo criam a Revista
da Sociedade Filomática, com a pretensão de colocar o Brasil mais próximo, ou menos
distante, da Europa, entre outros86.
Se a cultura francesa penetrou no pensamento e costumes da sociedade brasileira, logo
sua presença seria fecunda na literatura.
Em relação ao Romantismo, houve a presença de Vitor Hugo nas três gerações do
nosso romantismo, representados essencialmente por Castro Alves, Álvares de Azevedo e
José de Alencar. Dessa maneira, Pinto87 afirma que no romantismo brasileiro o nacionalismo
foi tolhido de sua expansão devido ao encantamento e inculcação da cultura francesa, como
filosofia, política, linguagem e afins, caracterizando a literatura brasileira como uma cópia da
francesa, movimento que, com o passar do tempo, foi diminuindo, chegando ao modernismo
não mais como uma cópia, mas como suporte para legitimar ideias, para se promover a arte
brasileira.
O cientificismo francês, representado por Taine, Comte e Renan, foi fortemente
incorporado pela elite brasileira, assim como os naturalistas franceses diretamente
influenciados por tais autores. Segundo Bede, Flaubert, Bernard e Zola fizeram presença no
Brasil, citando o último como base para a construção de O mulato, de Aluísio de Azevedo.
O simbolismo/decadentismo francês também esteve presente no Brasil, principalmente
a partir de autores como Baudelaire, Goncourt, Bourget, Prévost, Maupassant. Segundo Bede,
85
BEDE, Ana Luiza Reis. Monteiro Lobato e a presença francesa em a barca de gleyre. São Paulo:
Anablume/Fapesp, 2007.
86
CANDIDO, Antonio. Pré-romantismo franco-brasileiro. IN: Formação da literatura brasileira. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1981. v. 1. p. 279- 286.
87
PINTO, Maria Cecília de Queirós Moraes. Alencar e a França. Perfis. São Paulo: Annablume, 1999.
79
como característica marcante da literatura dos anos dez e vinte, pode-se apontar a estreita
ligação com a França.
Em relação ao teatro brasileiro, tímido até a primeira metade do século XX, Sábato
Magaldi explana que, até 1829 as apresentações teatrais brasileiras foram promovidas
principalmente por Companhias portuguesas, mas que estas apresentavam um número elevado
de peças francesas, de Vitor Hugo, Scribe, Bouchardy, D´Ennery, Fourrieu, Dumas, Voltaire e
Delavigne. Com o surgimento das Companhias de teatro brasileiras, tais peças começaram a
ser copiadas e apresentadas.
Acerca da presença de autores franceses no teatro brasileiro, Magaldi dá alguns
exemplos, dentre eles: Martins Pena, José de Alencar, e França Junior influenciados por
Molière; Gonçalves dias por Voltaire; Pinheiro Magalhães por Victor Hugo; Machado de
Assis por Dumas com expressão cênica de Musset e Roberto Gomes por Racine.
Outra abordagem consiste em demonstrar que alguns intelectuais brasileiros visaram
substituir os modelos portugueses pelos ideais franceses buscando se afastarem do passado
colonial.
Antonio Cândido destaca o papel da literatura francesa como mediadora, pois com ela
tivemos acesso a outras culturas, como traduções para o francês de obras de autores russos,
alemães, ingleses. Dessa forma, durante o século XIX e até meados do XX, a França foi nossa
via de acesso à “grande cultura”, como o grego e o latim para os europeus.
Sendo assim, as elites cariocas e paulistas acabavam reproduzindo as formas mais
características da França, como o convívio da alta sociedade em salões organizados pelos seus
representantes (políticos, comerciantes, intelectuais, diplomatas), que possuíam um
conhecimento sobre a alta cultura francesa, transplantada para colégios de renome como o
Pedro II. Havia sessões em jornais que abordavam especificamente a moda franco-inglesa.
Nomes franceses foram dados a livrarias, cabarés e cafés. Dessa forma, a presença francesa
privilegia o mundo urbano e a vida mundana.
Jefrey D. Needell88 explana que a Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, possuía muitas
vitrines de comércio elegante, casas de chá, confeitarias, livrarias, redações de jornal e que,
em termos simbólicos, tal rua era a Europa, sendo diferente de qualquer outra daquela cidade.
88
NEEDELL, J. D. Belle Époque tropical. Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século.
Trad. Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
80
Nicolau Sevcenko, em Literatura como Missão, mostra que, com a transição do
Império para a República, o Rio de Janeiro conhece mudanças sociais, políticas e econômicas,
acelerando o ritmo de vida da sociedade carioca. Há a penetração do capital estrangeiro e a
cidade torna-se o maior centro comercial, populacional e cosmopolita da nação, quadro que
gerou forçosamente a inserção da cidade ao Art-Nouveau rebuscado dos fins da Belle Époque.
Segundo o autor, tais transformações exigiam quatro princípios fundamentais:
a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional;
a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a
imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos
grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o
desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo,
profundamente identificado com a vida parisiense. 89
Este cosmopolitismo, também estudado pelo autor em relação à cidade de São Paulo
em Orfeu Extático na Metrópole, inverte o “desejo de ser brasileiros” do período da
independência para um “desejo de ser estrangeiros” com advento da República. Sevcenko
ainda explica que o início da Primeira Guerra Mundial, fase em que Mon coeur balance e
Leur âme foram escritas, coincidiu com o auge desse comportamento mental cosmopolita,
época em que o Prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, importara para a cidade pardais –
símbolos de Paris –, período em que as pessoas, ao se cruzarem nas ruas e praças, ao invés de
trocarem um “boa tarde”, trocavam um “Viva a França”; enfim, época em que “Quand la
France joue du violon, tout le monde se met a danser”
90
. Entretanto, este tout le monde
representava, no Brasil, apenas as elites, às quais estão inseridos Oswald Andrade e
Guilherme de Almeida.
Pode-se inferir que a incorporação do idioma e da cultura francesa por tais autores, em
1916, revela não só uma atividade reprodutora de tais modelos citados, mas a utilização de
teorias ou ideias presentes entre a intelectualidade na França, a fim de exprimir características
acerca da realidade brasileira – e especificamente paulista. Pode-se tomar como exemplos a
pluralidade de nacionalidades dos personagens descritos nas peças – característica de uma
sociedade brasileira cosmopolita que se desejava –, os juízos de valor colocados à prova a
partir de teorias racistas elaboradas por cientificistas do século XIX – como é o caso do
sentimento de repulsa apresentado por um dos personagens brasileiros de Mon Coeur Balance
89
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p, 30.
90
Idem.
81
ao comentar sobre uma moça chinesa –, até as citações diretas de autores como Charles
Baudelaire, ou mais discretas como a alusão a uma frase encontrada na peça de Edouard
Pailleron (1834 – 1899).
Tanto Oswald quanto Guilherme de Almeida parecem ter superado rapidamente, com
a obra de estreia, a etapa francófona, mas Oswald volta a redigir em 1924 o projeto Histoire
de La fille du roi: Ballet brésilien, com cenários de Tarsila e música de Villa-Lobos. Havia
um projeto de apresentá-lo em Paris, mas como não deu certo, apresentou traduzido no Brasil.
82
3.3 Presença francesa, biografia e crítica social
A presença francesa nos teatros, além do fato de serem escritas no cito idioma,
apresenta-se sob diversas formas, que vão desde a estética, montagem do texto, citações
diretas e indiretas de autores, pintores, músicas, entre outras. Além disso, as peças apresentam
forte ligação com a biografia de Oswald de Andrade e, contrariando os estudiosos que as
interpretam como tendo ausência de crítica social, as análises aqui feitas, multifacetadas,
demonstram o contrário.
É necessário fazer uma diferenciação entre a dramaturgia e o teatro como fenômeno
cultural, pois a personagem teatral cria vida e atinge certas finalidades a partir da
representação do autor e supervisão do autor/diretor, enquanto na leitura de uma peça somos
levados pela imaginação a identificar as intenções do autor, inclusive em seus aspectos
irônicos e sarcásticos, entretanto não se pode afirmar quais eram as intenções do autor, pois a
partir do momento em que ele escreve, a obra não pertence mais a ele. Tal tarefa se torna
ainda mais complexa quando se trata de Oswald de Andrade, caracterizado pela maioria dos
autores como do mestre do blague e do sarcasmo.
A análise dos teatros em contraposição à memória de Oswald deixa entrever diversos
pontos de contato. Oswald, em Um homem sem profissão, dá a dica:
Leio Leur Âme para um grupo de amigos. Vazei, principalmente nessa peça, que nos
café escrevi em francês com Guilherme de Almeida, toda a crise amorosa que me
oprimiu. Suzanne Depré, de passagem por São Paulo, representeou um Lugne Poe
um ato dela no Teatro Municipal. Eu e Guilherme estávamos por detrás do palco 91
Refletem elas a descoberta da mulher, verídica no seu sexo e no seu destino. Foi a
descoberta das vacilações de Landa, aumentada pelos meus preconceitos e pela
minha formação patriarcal92.
Tendo contato com os textos de Oscar Wilde, Maeterlinck, Henry Bataille e Henry
Bernstein, assim como em um ambiente burguês da cena teatral brasileira, Oswald e
Guilherme têm seus primeiros contatos com o teatro e passam a trabalhar intelectualmente a
partir dos elementos a eles fornecidos por essa conjuntura. Para os autores, nas pegadas de
Strindberg, a mulher é a criatura perturbadora que rouba a paz do coração masculino.
91
ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão. Memórias e Confissões. Sob as ordens de mamãe. São
Paulo: Globo, 2002, p. 143.
92
Idem, p.148.
83
A análise de uma obra a partir da vida do autor pode gerar importantes traços
psicológicos, entretanto temos que pensar no aspecto político-social. Confrontar a ideologia e
a biografia do autor pode gerar detalhes ilustrativos, mas também interessa buscar na trama
recursos discursivos e estilísticos para uma melhor compreensão.
Um caso de amor de Oswald, em sua primeira viagem para a Europa em 1912, parece
ter sido a inspiração do autor para a construção das personagens Marcela e Natália, marcando
sua estreia literária. Conta Oswald que, em sua viagem, conheceu Landa Kosbach, uma garota
bailarina, loira, de aproximadamente onze anos, que pretendia estudar e aperfeiçoar seu
talento no Scala de Milão. Nas palavras de Oswald: “Logo nos primeiros dias notei, entre céu
e mar, ao lado de uma velhota cheia de vidrilho, uma criança loira e linda que não teria onze
anos e dançava como uma profissional” 93; “Landa encheu meus dias de bordo” 94.
Oswald convence a guardiã de que deveria ser padrinho de Landa, batizando-a no
Duomo, em Roma.
Chegando à Europa, vai à França e conhece Kamiá, com quem mantém relações de
“amor livre”. Conhece a Europa e volta com ela ao Brasil. Vai com Kamiá a Roma para se
encontrar com Landa e, segundo Oswald, cria-se aí um drama de ciúmes que daria, mais
tarde, em aborrecimentos, pois Kamiá percebeu na menina uma séria rival. Futuramente,
Kamiá será a mãe do primeiro filho de Oswald.
Com a possibilidade real de explodir a Grande Guerra, Landa volta ao Brasil com sua
tutora e o autor hospeda-as em sua casa. Os dois têm um caso e, quando este vem à tona,
Kamiá e o “seu Andrade” ficam contra o casal. Oswald então as transfere para um hotel.
Certo dia, por descobrir o caso de amor entre os dois, Madame Schindelar muda-se para o Rio
de Janeiro com Landa e não deixa o endereço.
Nessa fase de angústia e paixão, Oswald toma enormes bebedeiras e faz muitas
viagens de trem à capital do país. Acreditando que os recuos da menina poderiam ocorrer
devido à recusa da avó, planeja o rapto de Landa com a ajuda dos amigos Guilherme de
Almeida, Ignácio e Vicente, mas Landa não aprova: “Landa me afirma que não aceitou as
minhas sugestões de fuga porque se deixou levar pela velha para contatos com homens que a
procuravam (...) Era uma infame!”95.
93
Ibidem, p. 112-113.
Ibidem, p. 108.
95
Idem.
94
84
Um tempo depois se encontram, e Landa acusa a avó de tentar afastá-los. A partir
disso, Oswald procura o advogado Vicente Rao para pedir a tutela de Landa. Há, então, uma
briga pública que chega à imprensa. Mme. Schindelar insiste que a motivação de Oswald é
um caso de amor, enquanto ele rebate dizendo que a avó explora a vida amorosa e profissional
da menina.
Diante do caso, a menina acaba internada em um colégio de freiras, rebelando-se por
isso. Na cidade do colégio, corre o boato de que a bailarina está grávida e isso é o suficiente
para que a sociedade conservadora peça sua retirada. De lá ela devia ir a um asilo de
prostitutas. Oswald procura o arcebispo, amigo de seu pai, e diz que se a garota fosse
mandada para lá, casar-se-ia com ela.
O escândalo continua pelos jornais e em casa. Oswald tem uma crise de ciúme devido
à possível gravidez da garota.
Acabam-se as esperanças de Oswald. Landa desaparece de cena. Passado algum
tempo, revê a bailarina atravessando o viaduto do Chá. Ela comunica a Oswald que vai ser
freira. Anos mais tarde, estabelecia-se em São Paulo uma professora de balé, madame
Carmem Brandão, que seria a professora de sua filha Marília – com Maria Antonieta
d´Alkmin –. Por coincidência, a Mme. Brandão era Landa.
Dessa forma, esse amor avassalador serviu de base para a criação das personagens das
peças Marcela e Natália.
As peças apresentam características do simbolismo/decadentismo merterlinckanos,
pois são teatros estáticos, de espera, com imagens vagas, suaves e pálidas. Maurice
Maeterlinck (1862-1949), ensaísta, dramaturgo e poeta belga em língua francesa, foi um dos
principais expoentes do teatro simbolista.
Para o autor, os “poetas-dramáticos” tinham a obrigação de se voltarem para a análise
da alma do homem, o que se percebe em ambas as peças, um pouco menos em Mon coeur
balance e mais em Leur âme, cujo próprio nome prediz, sua alma.
Na segunda peça há, desde o primeiro ato, citações e tentativas de definições sobre a
alma da mulher. George sugere que o consumismo representa a alma das mulheres. No
primeiro quadro do segundo ato, há a sugestão de que possuir a alma de uma mulher seria
conhecer todas as suas verdades, seu passado mais sombrio. Gastão afirma possuir a alma de
Natália, mas agora necessitava de seu amor, seu coração.
85
Lílian Henrique de Azevedo96 aponta para uma ocorrência curiosa ao analisar a
Revista O Pirralho. A autora coloca que, mesmo sendo recheada de anúncios, as revistas
alertavam, por meio de caricaturas, charges e anedotas, para o perigo do consumismo. Estas
anedotas reforçavam estereótipos, pois se apoiavam em imagens depreciativas que enalteciam
a superioridade e a racionalidade masculina, que naturalmente os protegeria dos excessos. Em
relação às mulheres, estas estavam imbuídas de inveja, de competitividade, na perseguição
irracional da moda, nos interesses materiais que provocariam necessariamente a infelicidade
masculina, levando pais e maridos à ruína.
Uma passagem d´O Pirralho satiriza a questão:
Amores à Antiga
- Trago flores; Exma., e as flores são o que mais sublime e poético a divina mão de
Christo creou...
- Perdão, meu caro; mas as mãos dos homens já lhes levam vantagem. Temos hoje
as jóias...97
No segundo quadro há uma discussão intensa entre George, Gastão, Carlos, Motta-Pai
e Motta-filho sobre a alma da mulher, diferenciando-a do coração, promovendo a relação
entre materialidade (corpo) e imaterialidade (alma). George afirma que a alma é coisa fina,
flexível, esguia, que deslizam, não são tangíveis, e que o amor nunca revela as almas, mas
veste-as muito bem. Traçam ainda uma diferenciação entre amor-amor, que seria a junção de
amor e alma, e amor-amizade, característica do casamento.
A partir dessa exposição, podemos considerar que a concepção de amor inscrita nas
peças pelos autores segue o padrão das peças de teatro nesta fase, ou seja, a nostalgia da
pureza, a idealização do amor, sendo que não se percebe apelo sexual de Gustavo e Luciano
por Marcela e minimamente de George e Gastão por Natália. Ao contrário, há a valorização
da instituição do casamento, outra características da concepção de amor do teatro dessa fase,
atributos da concepção do amor do teatro simbolista.
Anne Martin-Fugier98, ao analisar o cotidiano francês do século XIX, atém-se à
presença da mulher nas funções de dona de casa, pilar da moral e da educação dos filhos,
mesmo que seu espaço fosse preponderantemente do lar. Assim, ela deveria dominar códigos
96
AZEVEDO, Lílian Henrique de. Mulher em revista: representações sobre o feminino nas revistas paulistanas
O Pirralho e A Cigarra (1914-1918). Dissertação de Mestrado: Assis, 2000.
97
O Pirralho. 30.05.1914
98
MARTIN-FUGIER, Anne. Os ritos da vida privada burguesa. In História da Vida Privada. Vol. 4, Da
Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo, Companhia das Letras, pp 193-261, 1991
86
sociais e as fontes que os difundiam, como manuais e guias direcionados às donas de casa.
Estas deveriam administrar o espaço privado, fomentando o bem-estar do marido e, em
segundo lugar, dos filhos.
O homem, ao contrário, deveria ter posição e notoriedade político-social, o domínio
intelectual dos membros do lar e, mesmo que a mulher tivesse um poder aquisitivo elevado,
deveria saber administrar a criadagem.
Sendo ou não provenientes das elites, o discurso prioritário afirmava, em resumo, que
a mulher estava destinada à função de transmitir valores morais aos filhos, à manutenção da
ordem no lar e à satisfação do esposo, chefe da casa, e ao homem estava delimitado os limites
de prover o lar e promover a confiança e o equilíbrio material e o bem-estar da família.
Fornecendo as bases para médicos e juristas do período, as teorias oitocentistas
partiam de “verdades científicas” e impunham às pessoas limitações naturais. Empregadas
pela Igreja, ensinadas na Faculdade de Direito e de Medicina, legitimadas pelo Estado e
divulgadas pela imprensa, a crença na inferioridade racional e em uma biologia especialmente
configurada para a maternidade e para o trabalho doméstico eram argumentos e ideias
correntes entre as pessoas de variadas classes sociais99.
Assim, o caso do casamento também foi tema de estudos científicos, pois visavam
proteger a qualidade das gerações futuras, chegando a ser conhecido como “casamento
higiênico”, pois visava promover um saneamento da população sexualmente ativa. Dessa
forma, mulheres tidas como sedutoras, não representantes da moral e dos bons costumes, que
possuíssem uma libido “exagerada” poderiam ser acusadas penalmente e condenadas a
instituições de saúde reservadas para alienados.
Percebeu-se, nos teatros, a multiplicidade de símbolos utilizados, selecionados como
exemplos uma fábula contada, a evocação de peças teatrais de Shakespeare, de personagens
históricos, de diversos estilos musicais, de pinturas, de elementos da natureza, de lugares,
enfim, de elementos que vêm da necessidade simbolista de exprimir algo fugidio e vago a
partir de uma sucessão de palavras e de imagens com o objetivo de provocar no
leitor/espectador a sugestão do ocorrido.
Outra característica do simbolismo maeterlinkiano encontrada nas peças provém do
uso constante de metáforas, tanto na construção do texto quanto em afirmações das
99
MALUF, M. & MOTT, M. L. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau. História da vida
privada no Brasil, V. 3.
87
personagens, como Carlos afirmando que George é o homem dos axiomas paradoxais e que
Gastão fala por símbolos.
A questão da morte, cara à dramaturgia simbolista, também está presente nos teatros,
em que podemos tomar como exemplos as ameaças de suicídio, desejo da morte do outro e
sentimentos de luto. É interessante citar, de Mon coeur balance, uma frase dita por Gustavo
quando os dois sofriam pela ausência de Marcela e comemorava-se o casamento de Carlos e
Helena: “sempre as marchas nupciais lado a lado com as machas fúnebres”; frase, aliás,
utilizada em O rei da vela (1933) e no final de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues.
Acredita-se que, em Leur âme, Emma, que surge apenas no terceiro ato, representa
Natália e que a questão da morte encontra-se aí impressa. Com George, ao mentir para Emma
que sua mãe morreu em um acidente, temos o símbolo da morte como um cumprimento de
ciclo de vida e o início de outro, representado pela interpretação pessoal de Emma acerca de
ideias católicas, como alma e amor. Reinicia-se, dessa maneira, outro ciclo a partir do
momento em que Gastão chora a perda de Natália, pois ele diz que amou muito uma mulher e
que ela parecia-se com Emma.
Esse movimento propunha, portanto, uma renovação da arte, afastada da ciência, da
realidade, dos problemas sócio-políticos, do positivismo, enfim, para apresentar respostas a
indagações existenciais.
Pelo viés literário da segunda metade do século XIX, há a publicação de Madame
Bovary em 1857, que deu a Gustave Flaubert a reputação de contestador da moral pública e
religiosa, entretanto a partir da realidade de uma classe privilegiada, não dando voz ao povo, o
que foi reivindicado primeiramente por Vitor Hugo, com “Os miseráveis”, em 1862 e, depois,
pelos irmãos Goncourt, com Germinie Lacerteux, em 1865, cuja heroína, segundo Bede, foi
inspirada em uma antiga empregada, abordando uma vida miserável num estudo bem
documentado. A autora ainda cita Introduction à La médecine expérimentale, de Claude
Bernard, de 1865, como reforço à via do estudo social. Essa obra influencia a produção de
Emile Zola ao adotar uma perspectiva científica na elaboração do romance, promovendo o
estudo das paixões humanas à maneira como o médico examina o corpo.
Nos teatros, percebe-se a presença da ideia de Zola ao tentar analisar cientificamente
as paixões humanas principalmente em dois momentos. Em Mon coeur balance, Mendes diz
que o traço que o aproxima de Madame Dunloup é a curiosidade científica, pois a considera
um caso patológico, e necessita se aprofundar no “seio misterioso dos homens e das coisas”,
88
concluindo que as mulheres têm um grau de intuição mais elevado do que os homens,
exemplificando a partir das meninas, que tem o instinto maternal antes mesmo que consigam
andar, cuja boneca é seu sonho, um primeiro espécime do recém-nascido.
No último ato de Leur âme, quando Gastão e George conversam sobre Natália, a alma
da mulher e o amor, o último confessa que a solidão o fez entregar-se aos estudos da patologia
e, após Gastão indagar se a mulher poderia ter as mesmas reações que o homem em relação ao
ciúme, George diz que sim e que elas são mais comuns do que eles imaginam, são casos
patológicos. Logo após, parte para uma indagação a partir de um paradoxo: “Quem sabe se no
amor não há, também, um desejo inconsciente de enganar aquele que amamos?”.
Ao analisar estes aspectos, é impossível não pensar em uma presença do cientificismo
francês nas obras. São encontrados alguns exemplos que podem relaciona-se a esse
pensamento: não há nenhuma personagem considerada negra; a repulsa e a maneira pejorativa
de Gustavo ao comentar sobre uma chinesa presente no hotel; Luciano referencia-se às
pessoas presentes no hotel como “corja multicor e ignóbil”; O único japonês, Yato, é o criado
da casa de campo de George.
Essa questão pode ser analisada a partir da entrada, no Brasil, dos ideais cientificistas
de Taine, Comte e Renan, dissimulando o positivismo, o evolucionismo e o darwinismo. Tais
concepções, adaptadas à questão da raça, demonstravam a inferioridade brasileira devido ao
problema da alta miscigenação, sendo considerada uma degeneração humana e vinculada a
um problema social. Essas teorias foram incorporadas pelos intelectuais brasileiros a fim de
justificar a hierarquia existente no país.
Lilia Schwarcz, em O espetáculo das raças, demonstra que havia a hierarquização
entre brancos e negros, mas que os chineses, e em alguns casos os japoneses, eram
considerados pelos intelectuais brasileiros da época ainda mais degenerados, fato que explica
essa aversão de Gustavo pela chinesa.
Em relação à presença de autores franceses na peça, há maior atenção em Charles
Baudelaire, Alfred de Musset, Irmãos Goncourt e Paul Bourget.
Charles Baudelaire (1821-1967), considerado por muitos autores como modelo da
poesia moderna e um dos precursores do simbolismo, teve alcance e penetração em diversos
países ocidentais, inclusive no Brasil. Sua poesia rompe com a tradição da bela poesia ao aterse ao grotesco, ao feio, ao disforme, ao satânico. O alcance e a originalidade do autor levaram
a diferentes interpretações e assimilações de sua obra no Brasil.
89
Baudelaire é citado explicitamente em Mon coeur balance, sempre por Gustavo. Uma
delas ocorre dias depois de Marcela dizer que seu coração balançava entre ele e Luciano. Ao
ser indagado por Souza-Cliff acerca do que ele estava lendo, Gustavo responde que não pode
dizer diante das senhoras, apenas à Mme. Dunloup: “é um livro cheio de carcaças: As flores
do mal... Do senhor Charles Baudelaire”. Logo em seguida, interrompe uma conversa citando
um trecho do poema: “Adoro-a, como adoro a abóbada noturna (...) Oh! Vasa de tristeza...”.
Ninguém o entende e ele volta à leitura.
Tal passagem pode ser facilmente deixada de lado se não for interpretada em suas
características simbolistas. Tal trecho foi escolhido a fim de dar a sugestão dos aspectos
psicológicos pelos quais passava a personagem, assim como criar uma imagem do sentimento
que Gustavo guardara de Marcela. A afirmação é explicada pelo fato de partes do texto serem
suprimidas, que seguem:
Je t'adore à l'égal de la voûte nocturne,
Ô vase de tristesse, ô grande taciturne,
Et t'aime d'autant plus, belle, que tu me fuis,
Et que tu me parais, ornement de mes nuits,
Plus ironiquement accumuler les lieues
Qui séparent mes bras des immensités bleues.
Je m'avance à l'attaque, et je grimpe aux assauts,
Comme après un cadavre un choeur de vermisseaux,
Et je chéris, ô bête implacable et cruelle !
Jusqu'à cette froideur par où tu m'es plus belle ! 100
Sugere-se, então, uma autoanálise de Gustavo, demonstrando sua tristeza perante a
situação, mas que a ama mais por/quando ela fugir/foge dele, que se sente como em um
abismo, como um cadáver em meio aos vermes, e que mesmo a frieza de Marcela a torna mais
bela. Dessa maneira, utilizando-se de Baudelaire, Gustavo é mostrado na solidão da própria
interioridade reflexiva, pois se sente distante de Marcela devido à sua indecisão, mas isso o
faz desejá-la mais.
Walter Benjamin101, grande estudioso da obra baudelaireana, acredita que
Baudelaire, em As flores do Mal, descreve os olhos que perderam a capacidade de olhar,
tornando-se frios. Tais olhares, não compartilhados, geram uma melancolia imensa, pois a
100
Eu te amo como se ama a abóbada noturna,/Ó taça de tristeza, ó grande taciturna,/E mais ainda te adoro
quando mais te ausentas/E quanto mais pareces, no ermo que ornamentas,/Multiplicar irônica as celestes léguas
/Que me separam das imensidões sem tréguas./Ao assalto me lanço e agito-me na liça,/Como um coro de vermes
junto a uma carniça,/E adoro, ó fera desumana e pertinaz,/Até essa algidez que mais bela te faz!
101
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas III: Charles Baudelaire, um Lírico no Auge do Capitalismo. São
Paulo: Brasiliense, 1991.
90
alma não encontra mais em si mesmos vestígios de transcendência, lançando-os à busca do
longínquo e essa busca dá vida ao desejo e deseja a vida, gerando solidão, reflexão e
interioridade.
Em Leur âme é constante a discussão acerca da alma feminina e, em um dos
diálogos, Gastão cita Paul Bourget (1852-1935) como o maior conhecedor do amor existente,
afirmando que o homem tem a idade de seu sexo. Bourget, autor francês de romances
psicológicos, crítico do naturalismo, promove as crises de consciência de seus personagens,
assim como a conexão entre psicologia e moralidade.
As personagens masculinas parecem sentir atração pelo abismo, perdendo o
autocontrole em algumas cenas, entretanto as únicas que não desmoronam são Marcela e
Natália, que brincam com os sentimentos dos homens, sendo frias, indefinidas, gerando uma
visão do eterno e misterioso feminino. Essa abordagem está de acordo com as convenções
literárias da época: tão misterioso como o mar que ruge e canta sem parar, misterioso e vago,
seu canto de amor e dor. Marcela identifica o mar como fortalezas móveis, e Gustavo
complementa: “como as mulheres”.
Elas nunca se deixam envolver, são como espelhos multifacetados, um quebra-cabeça,
como diz Luciano. Gustavo tenta aproximá-la da jovenzinha da fábula que conta, que feriu
mortalmente o coração de um homem, mas sem maiores explicações, já que as fábulas não
precisam de explicações. Oswald, nas memórias, fala sobre Landa: “Quero certezas para
repicar e somente colho dúvidas e desesperos. Sinto delírios auditivos. Desce sobre mim uma
vaia lúgubre” 102.
Marcela demonstra afeto por Gustavo e por Luciano, mas quando os dois a
pressionam, no fim do terceiro ato, para que se decida, ela diz “Meu coração... mas meu
coração... balança!” e sai correndo pela escada dando uma grande risada. Na manhã seguinte,
ela e sua mãe vão embora do hotel sem despedirem-se de ninguém. Em Leur âme, Natália
também não se entrega totalmente a George e a Gastão, assumindo, inclusive, que tem mais
um apaixonado. No início do quarto ato, descobre-se que ela fugira com um caixeiro-viajante.
Nas duas peças, as mulheres têm pelo menos três amores, característica que
encontramos nas memórias, quando Oswald demonstra ter sentido um imenso ciúme pelo fato
de Landa dizer a ele: “- Tenho três amores com o teu” e “- Amo um, amo outro, não sei...”.
102
ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão. Memórias e Confissões. Sob as ordens de mamãe. São
Paulo: Globo, 2002, p. 135.
91
Isto se explicita em uma conversa entre Natália e Gastão, no primeiro quadro do segundo ato,
quando ele pergunta se ela estava sonhando com outro e se este era seu marido. Ela afirma
que não era seu marido e que tinha outro apaixonado em sua vida.
Natália é a uma revivescência de Marcela, anos mais tarde, depois que deixou seu
coração pender para algum lado. Antes teria que se decidir por um ou outro, mas agora decide
por um terceiro, gerando uma situação conflitante.
Em Leur âme, após Natália sumir, Gastão sai em viagem pela Europa e confessa a
George que procurou muito por ela. Oswald parece ter incluído tal construção devido à Mme
Schindelar, após descobrir uma carta de amor de Landa endereçada a ele, ter-se mudado para
o Rio de Janeiro, sem deixar sua localização. Assim, conta Oswald que fez trinta viagens para
a capital carioca pelo noturno paulista, sem leito, pois o dinheiro faltava com os reflexos da
Primeira Guerra. “Vou e volto, tonto, trágico (...) Tomo porres de uísque, abordo possíveis
amigos comuns. Tudo inútil”.
Entretanto, o autor passa em frente ao Catete e avista Landa de longe, mandando-lhe
beijos pela janela. Em Leur âme, Gastão diz a George que avistou Natália, de longe, em
Tenerife. Tenerife é outro local encontrado nas memórias, quando Oswald está indo para a
Europa pela primeira vez e conhece Landa no navio.
A descrição da ilha guarda similaridade entre a peça e as memórias. Gastão, assim
descreve-a ao se afastar a bordo do navio: “vi, pouco a pouco, erguerem-se e estenderem-se,
como tapete desenrolado, para além da cidade insignificante, montanhas enormes, verdes e
áridas”. Oswald, em Um homem sem profissão, descreve: “E como o dia chegasse muito
pálido, eu distingui, para lá da cidade insignificante, montanhas enormes, verdes e áridas”.
Mantendo um diálogo vivo, com excessos de lugares-comuns, a linguagem tem função
referencial e as insinuações são completadas por outra personagem, demonstrando ao público
que a sua situação é parecida.
No fim de Mon coeur balance, os dois amigos questionam o futuro de Marcela,
chegando à conclusão de que será parecido com o de sua mãe, pois Luciano diz que ela, um
dia, encontrará em seu caminho algum homem “vago e insosso”, alguém como seu falecido
pai, que a aceitará tranquilamente. Quem sabe terá uma filha e esse senhor não morrerá
sozinho na velha casa de fazenda entre coqueiros de palmas repousantes. Enquanto ela, a
linda viúva, irá arrastar seu luto à beira mar, talvez nesse mesmo hotel de praia, e encontrará
92
outro Doutor Mendes, e a filha dela um outro Gustavo e um outro Luciano. Gustavo concorda
e diz que o coração de sua filha, como o dela, como o de todas as mulheres, sempre balançará.
Esse diálogo aponta diretamente para Leur âme, pois Natália parece ser a
revivescência de Marcela, anos mais tarde, casada, com filhas, depois que deixou seu coração
pender para um lado. Antes teria que decidir por um dos dois e agora decide por um terceiro.
Em ambas as peças há a certeza de que essa história sempre se repetirá, pois no terceiro ato de
Leur âme, Emma, descrita por Mme. Lima como idêntica fisicamente à Natália, conversa com
Gastão, muito tempo depois de sua mãe ter desaparecido, e diz que está mudada, pois estuda
bastante e sabe catecismo.
Emma diz que aprendeu com o Padre Giovanni que o céu é para onde vão as almas.
Gastão questiona e ela diz que a alma é o coração. A garota diz que gosta de trancar seu
cachorrinho Topsy no salão e o ouvir urrar. Gastão diz que ela, por ser mulher, vai gostar de
fazer isso com os homens. Após ver os deveres de Emma, pergunta se ela acredita que o amor
é um dom de Deus. Ela diz achar que antes é obra do diabo, pois todos os amores vêm do
primeiro amor, citando Eva e a serpente. Gastão então chora e diz que amou uma mulher que
se parecia com ela.
Aqui vale ressaltar o diálogo final do segundo ato entre Gastão e Carlos. Gastão
afirma a Carlos que traiu Adão, pois ele fez corte à velha mãe Eva, e ele lhe devolveu
dobrado. Carlos afirma que ele fala por símbolos, e Gastão completa que seu caso é um triste
incesto simbólico. Com esse diálogo, promoveu-se, aqui, uma análise psicanalítica desse
amor inatingível. Natália seria então Eva, a primeira mulher, a mãe, o repouso, se ele a tivesse
desvendado. Natália, Eva, Landa e Marcela são inacessíveis, assim como a mãe de Oswald
que morrera enquanto o autor estava na Europa. Logo, por Natália escapar-lhe entre os dedos,
representa-se um incesto simbólico. Supomos então que Emma, ao dizer que o amor vem do
diabo, da história entre Eva e a Serpente, reabre um ciclo constante, e Gastão chora por ela
representar seu amor original.
O triângulo amoroso em plano mental recorre-se então pela impossibilidade de
prender a mulher amada. Eles têm seu corpo, seu coração, mas nunca a alma, pois as mulheres
não se deixam subjugar, apenas amar. A mulher, para eles, é considerada como um animal
subjetivo, nunca podendo decifrá-la, pois se o fizer, desvanecerá e terá o tédio.
*
93
Os estudiosos das obras de Oswald, entre literatos, teatrólogos, críticos literários e
historiadores, caracterizam as peças em francês como simbolistas, não contendo aspectos
ligados ao Oswald crítico social das obras O Rei da Vela, O Homem e o Cavalo e de A Morta.
Entretanto, como se demonstrará, tais características não se encontram explícitas como nas
peças anteriores, mas incorporadas em sua característica simbolista.
Sérgio Augusto Queiroz Norte103 apresenta ideias acerca da formação e atitude de um
intelectual engajado na literatura libertária. Neste estudo não se deseja caracterizar as peças de
acordo com alguma vertente libertária, mas também não se quer cair no relativismo absoluto.
Com esse objetivo, elencar-se-ão algumas características do intelectual envolvido com
questões sociais e políticas na Primeira República.
Como já apresentado, após a viagem à Europa, com a possibilidade real de deflagrar a
Primeira Guerra Mundial, a garota volta da Europa, agora com dezesseis anos, acompanhada
de sua guardiã que se faz passar por sua mãe, mas na verdade avó, a Mme Schindelar. A
menina conta a Oswald que conheceu a verdadeira mãe na Alemanha vivendo a “vida
desgraçada”.
Nesse ponto, em Mon coeur balance, Marcela aparece como a garota “loura. Sua mãe
afirma que ela tem dezessete anos”. Os autores não dão a certeza da idade da garota, sendo
possível fazer um paralelo entre as personagens de Marcela e de sua mãe, a Mme. Dória, pois,
além de Marcela possuir as características físicas e idade aproximada de Landa, a incerteza
acerca de sua idade pode relacionar-se ao fato de Mme. Schindelar mentir sobre a
maternidade de Landa.
Além disso, a verdadeira mãe de Landa, como nos conta o autor de Os Condenados,
levava a vida desgraçada na Alemanha. A discussão de Gustavo e Luciano acerca do passado
de Mme. Dória leva o leitor ao desconhecimento da verdadeira história de Marcela,
desconfiando inclusive da honra de sua mãe. Luciano afirma que ela não passa de uma
aventureira.
Em Um homem sem profissão, existe a mesma observação, pois acusando a Mme.
Schindelar de aproveitar-se da vida profissional e amorosa de Landa, diz que vai “salvar uma
103
NORTE, Sergio Augusto Queiroz. Ars Anarchica: Arte, Vida e Rebeldia. Rev. bras. Hist.[online]. 1998,
vol.18, n.35, pp. 133-164.
94
criança da escravatura branca”
104
, lutando só. O mesmo ocorre em Mon coeur balance, pois
mesmo imaginando que a menina possa ser filha de uma mulher de leito pago, Gustavo diz
que quer salvá-la e, que assim, a ama mais.
Aqui se destaca uma questão fundamental: a presença do novo X velho, ou seja, o
moderno X a tradição patriarcal, relação cara aos intelectuais do período.
Em suas memórias, Oswald apresenta um enxerto em que Landa assume que sua avó
estava contra seu relacionamento e que a velha disse-lhe: “Você terá príncipes em sua cama!”.
Além disso, Oswald evoca a figura do seu pai, que teria a fúria dos vingadores do Patriarcado
contra aquele romance simples e seu sentimento, cujo principal argumento é o neto, filho de
uma mulher afável e prestimosa (Kamiá). Entretanto, o autor afirma que já havia dito à
Kamiá, inclusive na Europa, que não assumiria compromisso sério: “Afinal que poderia eu
desejar mais, voltado à literatura, do que fazer minha vida com uma linda criança devotada à
arte e à dança? Que monstruosidade havia nesse sonhado casamento?”105.
Ao hospedar as duas em sua casa, a contragosto do “seu Andrade” e de Kamiá,
empenha-se em promover a bailarina, apresentando-a a fotógrafos e repórteres nas redações
dos jornais. O piano de Kamiá serve para os exercícios de Landa, que encena a Morte do
Cisne. Oswald conta que ela dança todas as expressões do romantismo europeu, desde a
Dança das Horas até as Ruínas de Atenas, de Beethoven, executando passos e volteios,
seminua, na penumbra, onde claudica ao piano Madame Schindelar. Esta diz a Oswald que
seu marido, o americano Schindelar, é preposto do milionário Farqhuar.
Oswald conta que seu pai, imbuído de todos os complexos feudais e religiosos,
ameaça não entregar os resultados de seus “setenta anos honrados”, ou seja, o deserdaria se
decidisse casar com Landa. O “seu Andrade” era contra ele envolver-se com uma “cômica”,
“uma mulher de teatro”, ameaçando até suicídio.
Da mesma forma que o pai de Oswald fica contra o casamento em nome dos valores
religiosos e patriarcais, Luciano não aceita e discursa contra os sentimentos de Gustavo
devido aos valores inscritos naquela sociedade:
“ela é muito inglesa, muito flirting-girl” (...) “eu conheço a família de que você vem.
Os seus pais jamais consentirão que se fale num casamento desses! Sei que são
idéias burguesas isto que lhe digo, meu velho, mas pense na sua família. Eu sei
104
ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão. Memórias e Confissões. Sob as ordens de mamãe. São
Paulo: Globo, 2002, p. 131.
105
Idem, p. 131-132.
95
como é: não há nada mais triste, mais doloroso para um rapaz do que as amolações
de família” (...) Na intimidade, vamos reconhecer, ao lado dela você poderá ser o
mais feliz dos homens. Mas em sociedade, oh, em sociedade! Marcela não é uma
simples dona de casa, nada disso, Gustavo! Não! Ela não é mulher para você! (...) 106
Prossegue:
Você não passa de um fazedor de sonhos. Você vive num mundo irreal, totalmente
diferente daquele onde você está. Você não conhece a realidade, é um idealista e o
seu mal é esse: imagens demais, juízo de menos (...) Ela é uma pobre menininha
que talvez nem tenha conhecido o pai (...) É preciso ter a certeza de que ela o
conheceu. 107
Pois bem. Seja. Ele (o senhor Dória) não existiu, Marcelle é uma filha sem pai, uma
pobre criança anônima, saída de um leito de amor, talvez pago... que importa? Eu a
amo e agora mais do que nunca... (...) E, portanto, tenho de segui-la, tenho de
protegê-la, tenho de salvá-la!”108
Assim, Luciano representa os valores patriarcais, defendendo os valores familiares, o
casamento visto com finalidades econômicas e a vida em sociedade como sendo os mais
importantes para serem levados em conta quando o assunto é casamento.
Da mesma maneira que o “seu Andrade” não aprova o relacionamento de Oswald com
Landa, defendendo Kamiá e seu neto, ameaçando deserdá-lo e se matar, Luciano, no terceiro
ato, declara a Gustavo que, por ser seu melhor e único amigo, aproximou-se amorosamente de
Marcela para mostrar-lhe seus princípios levianos e que, para salvá-lo desse destino, ofereceuse para sua desgraça, se sacrificando por ele.
Logo no início de Mon coeur balance, Gustavo provoca Luciano ao dizer que ele
estava lendo Musset para a Mme. Dunloup a fim de conquistá-la e este retribui a piada
dizendo que quando as pessoas se sentem meio solteiras começam a ler Musset para as velhas.
A referência ao poeta identifica Luciano ao antigo, haja vista que este poeta é considerado um
exemplo do romantismo francês e os autores parecem defender diversos aspectos do
simbolismo, representado como novo.
A questão da luta do novo versus o velho, crítica cara aos autores em sua luta pelo
nacionalismo na arte, deixa-se entrever a partir da dedicatória de Mon coeur balance a
Washington Luís – abordado no item 2.3 do presente trabalho –, em que os autores tratam as
106
Idem, p. 43.
Ibidem, p. 121-123.
108
Ibidem, p. 127.
107
96
peças como escudo de combate, assim como pode ser o alterego dos autores em sua dicotomia
em meio a uma cidade em constante transformação.
Como dito anteriormente, as conversas entre Gustavo e Luciano definem um dos
aspectos supracitados, pois Luciano, logo no primeiro ato, caracteriza Gustavo como novo,
meio leviano, maluquinho, idealista, um fazedor de sonhos que vive em um mundo irreal.
Gustavo, por sua parte, refere-se a Luciano como boche, termo depreciativo para referir-se à
pessoa de origem alemã. Em suas memórias, Oswald informa que em sua viagem à Europa
em 1912 passou rapidamente pela Alemanha e que esta ainda guardava características feudais,
lhe parecendo lírica, colorida como uma litografia, “uma mancha colorida”, e que sua paixão
foi pela França.
Em meio à Primeira Guerra Mundial, Gustavo, lendo e citando Baudelaire em algumas
cenas do teatro, pode ser identificado à França, enquanto Luciano à Alemanha, gerando a
primeira diferenciação simbólica entre os dois, em lados opostos na Grande Guerra, pois
travarão uma batalha por Marcela no fim do terceiro ato. Fica clara também, a partir do
depoimento de Oswald, a luta entre o velho (Alemanha) e o novo (França). Há outras
passagens na peça em que Gustavo é tratado como o novo, inexperiente, e Luciano como um
velho globe-trotter.
Tal relação de oposição é apresentada também em relação à literatura, pois, enquanto
Gustavo lê Baudelaire, considerado simbolista e moderno, Luciano lê Musset, autor também
francês, mas identificado ao romantismo:
Luciano – Quando a gente também se sente meio solteirão, começa a ler Musset
para as velhas.
Gustavo – Pois eu me sinto moço.109
Traçada essa relação de oposição, Luciano e Gustavo dialogam diversas vezes sobre
Marcela, em que o primeiro desaconselha e desaprova o amor de Gustavo por Macela, com
argumentos próprios da elite rural e conservadora em relação ao casamento, alertando-o sobre
o desconhecimento do passado de sua mãe, sobre sua filiação ser supostamente proveniente
de um leito pago, afirmando que sua família não aceitaria uma relação dessas, enfim,
colocando em cheque os valores acerca do casamento, visto pela elite rural brasileira a partir
da honra e da moralidade.
109
ANDRADE, Oswald de. Mon coeur balance; Leur âme. São Paulo: Globo, 2003, p. 35.
97
Além disso, o casamento é tratado como um negócio, uma mercadoria, podendo ser
identificada nos teatros certa consciência de classe, pois Luciano diz que sabe que são ideias
burguesas que está dizendo, mas que era para ele pensar em sua família. É importante lembrar
que a burguesia citada pelos autores ainda não está configurada nos moldes europeus, pois a
cidade de São Paulo está na fase inicial de sua industrialização, em que a antiga elite rural
investe nos setores industriais, sendo tratados também como burguesia, ainda que incipiente.
O casamento como negócio pode ser percebido em outra passagem do texto, em que
Gustavo e Marcela conversam sobre sua relação e ela afirma a ele que talvez sua mãe não
consentisse seu casamento com ele:
Marcela – Mamãe, sim! O que é que você quer? Ela é minha mãe, pronto!
Gustavo – Mas você já não é uma menina; você tem direitos, iguais aos dela.
Marcela – Tenho deveres, antes de mais nada.
Gustavo – Mas, então, se ela quisesse lhe impor quem quer que fosse, contra a sua
vida, contra a sua vontade?
Marcela – Eu obedeceria.
Gustavo – Isso é monstruoso!
Marcela – Monstruoso ou não, assim é que é!
Gustavo – Mesmo se ela lhe propusesse um casamento... repugnante?
Marcela – Eu aceitaria! 110
Gustavo então lança toda a sua decepção à Marcela e, antes de terminar a frase “e
pensar que antes de te conhecer”, chegam pessoas ao salão e ela desconversa, dizendo que ele
estava fazendo mais um de seus blagues. Ele completa dizendo que estava falando de um
imbecil e ainda por cima um imbecil famoso. Helena, que chega à cena, pergunta de quem ele
estava falando, ao que ele completa: “O Rei de Tule, senhorita!”.
Nesta cena, Gustavo enfurece-se com o fato de Marcela aceitar todas as imposições de
sua mãe, ou seja, as velhas ideias conservadoras acerca do relacionamento amoroso e do
casamento. Com a referência ao Rei de Tule, de Goethe, os autores criam a imagem de que
Marcela era a pessoa a quem ele era mais fiel e que havia deixado tudo por ela, inclusive seu
passado.
Oswald e Guilherme demonstram a relação entre casamento e negócio quando
Gustavo conta a fábula da fanfarra, em que um sujeito recebe uma fanfarra mágica que
deveria acompanhá-lo, sem ser ouvida pelos outros, tocando conforme as situações um tipo de
música diferente. Mas um dia, ele, que conquistara o coração de mulheres e homens, caiu
110
Idem.
98
ferido com a morte na alma, pelo amor de uma menina. Ele tinha perdido sua fanfarra mágica.
Nesse momento, a Senhora Dória, o Coronel e Mendes não entendem, dando a entender que
as formas de amor que Gustavo demonstra eram incompreensíveis para as personagens, que
viam o amor como negócio, representado pelo casamento.
Outro aspecto deixa entrever questões libertários na construção da personagem.
Gustavo, ao dizer que Marcela já não é uma menina e que tem os mesmos direitos que a mãe,
traz à tona uma questão que contraria os padrões de uma sociedade patriarcal e Marcela, de
prontidão, refuta suas ideias dizendo que antes tem deveres. Deveres com sua mãe, com sua
consciência de classe, com os princípios burgueses.
Além do recurso simbólico da fanfarra, percebe-se que isso ocorre também em relação
à musica, dando pistas ao expectador acerca do que ocorrerá. No segundo ato, o jornalista
anuncia que a Senhora Belloni cantará a Traviata. Em coro, o Coronel diz que vai ser soberbo,
a Senhora Dória diz que ela tem topete, Madame Dunloup diz para irem e Mendes diz que
será lindo, clássico.
A Traviata é uma ópera de Giuseppe Verdi, baseada em A Dama das Camélias, de
Alexandre Dumas Filho. Ela, biograficamente, conta os encontros e desencontros de um amor
impossível vivido por Dumas Filho, em que uma cortesã francesa e Armand vivem uma
grande paixão impossível pela segregação social da sociedade burguesa. O pai de Armand
convence a Dama de que o romance representará a ruína da família e do futuro do filho. Ela
comove-se e renuncia a Armand, ficando conhecida como a guardiã da falsa moral burguesa.
A Traviata, então, anuncia a conversa seguinte, entre Gustavo e Marcela, em que ele
afirma a estar perdendo e ela diz que a mãe poderia não consentir com o seu casamento, mas
que aceitaria qualquer um imposto pela mãe. Assim como A Dama das Camélias resigna-se
diante do amor, Marcela vai embora do hotel sem se despedir de ninguém.
Nesse ponto, há a questão do já comentado amor burguês, mas também, entre a
Traviata e a conversa entre Gustavo e Marcela, há uma rápida cena de ciúmes entre a Senhora
Dória e Mendes, em que os autores mostram a hipocrisia dessa sociedade, pois revela Marcela
obedecendo aos desígnios morais impostos pela sua mãe, enquanto ela, viúva, tem encontros
amorosos com um homem.
Uma passagem de Leur âme deixa perceber essa relação. No segundo quadro do
segundo ato, em uma discussão sobre a diferenciação entre alma e amor, os autores afirmam
que apenas se possui uma mulher quando se tem amor-amor, mas que a maioria dos homens
99
casados só tem amor-amizade. Motta-Pai, o bom burguês, diz que só encontrou amoramizade, ou seja, um casamento imposto, sem amor verdadeiro, uma relação negociada.
Os autores parecem apresentar consciência das classes sociais e da sua forma de
existência na sociedade brasileira a partir da caracterização da figura do Coronel: “Sempre à
paisana. Não é guerreiro, nunca foi. Pertence a uma classe pacífica de coronéis da nossa
terra”. Os escritores, ao longo da peça, demonstram a decadência da velha elite rural e a
defesa da modernidade, inclusive paulista, ao construir sua figura, pois o Coronel acha o
sertão interessantíssimo e, além da visão de Gustavo ser negativa em relação a ele, com frases
do tipo “pouco estou ligando para o coronel” e “Como quer que me interessem as histórias
desse imbecil do coronel!”, mostram-no, após um jogo de baralho, que ele perdera e está
arruinado: “Sim, tudo, tudo mesmo! Tudo e tudo! (...) Estou arruinado, mas sem vintém,
completamente!”.
Uma figura semelhante aparece em Leur âme, representada por Motta-Pai. No início
do segundo quadro do segundo ato, dois Clubmen, também coronéis, conversam acerca da
decadência econômica de Motta, mas não se sabe se são boatos ou realidade.
Outro ponto a se destacar é que o Coronel pode ser vinculado à figura do caipira, pois
o caipira, figura recorrente nas encenações teatrais dos palcos paulistas, não é o pobre e
inculto morador do campo, mas uma pessoa rica. Além disso, o Coronel parece possuir uma
cultura maior que outras personagens da peça, pois quando a Senhora Belloni expõe que o
tempo está uma morbidezza, o Coronel afirma que ela quis dizer que o tempo está formidável,
enquanto Mendes o corrige, erradamente, dizendo que ela falou que o tempo estava mórbido.
Entretanto, quando lhe é perguntado se lê Baudelaire, ele diz que não tem necessidade,
pois “Eu me basto a mim mesmo”. Assim, o antigo não quer modernizar-se, se basta a si
mesmo.
Claramente Gustavo despreza a figura de diversas personagens. Considera Mendes,
com insultos diretos e indiretos, um arrivista, imbecil, e afirma que não sabe ler. A honra e o
passado da Senhora Dória são colocados em cheque. Em tom de blague, afirma que Madame
Dunloup é desprovida de sentido. O jornalista parece sempre causar conflito. Souza-Cliff
pouco aparece, mas é criticado também. Com Luciano tem uma briga, sente nele um opositor
e falso, embora no final saiam juntos para dar um passeio. Marcela é desprezada em alguns
momentos, mas desejada. Carlos e Helena são a representação do casamento por interesses
patriarcais.
100
A partir das ideias abordadas acerca das possibilidades do intelectual no Brasil entre o
fim do século XIX e início do XX, resgatamos que Oswald, por ter resguardo financeiro
familiar, poderia dar-se o direito de promover obras mais autônomas. Nas memórias, Oswald
afirma que se identificava mais com as rodas boêmias dos cafés e bares do que com a
literatura vigente e com seus pares na faculdade de Direito, assim como assistiu a comícios
anarquistas em Santos e travou discussões com anarquistas em sua boemia. Seguem alguns
trechos:
Na roda noturna de Indalécio e Ricardo Gonçalves travei relações com o
anarquismo, vindo a conhecer o agitador Oreste Ristori, depois meu amigo.
Guardo um íntimo horror pela mentalidade da nossa escola de Direito. Por instinto e
depois conscientemente, sempre repeli esse Direito ali ensinado para engrossar a
filosofia do roubo que caracteriza o capitalismo. Aliás, já nesse tempo eu me
declarava anarquista. Velhos alunos cretinos. Atraso colonial. Preferia a roda de
Indalécio.
Sendo assim, os autores elegem a figura de Carlos, bacharel, como a imagem do
conservador, reprodutor dos costumes coloniais, casado justamente com Helena, cuja
descrição de Marcela “ainda cheira a convento”. Uma união, por interesse mercadológico
levado a cabo por um bacharel e com o consentimento da Igreja Católica, com quem Oswald
afirma estar em um dissídio nesta época. Esse casamento, ao que parece, suprime o princípio
supremo da liberdade, principalmente quando, no final da peça, Gustavo e Luciano chamam
Carlos para um passeio e ele recusa por Helena o estar prendendo. Defesa, então, do amor
livre e da livre união.
Gustavo, quase no fim da peça, diz que irá se vingar de Marcela e de todos fazendo-os
cheirar as flores do mal. Nessa passagem, Baudelaire e as As flores do mal parecem
representar o poder da modernidade contra aquelas personagens caricatas, consistindo no
brasão de luta dos autores em meio à sociedade, defensores de um amor livre, da queda e
morte dos antigos preceitos e moralidade antiga, burguesa. Gustavo e Luciano caracterizam
aquele ambiente de “mundo onde se é imbecil” e de “corja multicor e ignóbil”.
Entretanto, essas questões não são explícitas. Talvez uma encenação, com sotaques,
ironias, cenário, enfim, talvez a montagem da peça pudesse deixar entrever tais questões, mas
é certo que foi escrita para uma elite burguesa e culta, pela gama de símbolos e referências
imagéticas exploradas pelos autores.
101
Na festa de noivado de Carlos e Helena, Gustavo solta um aforismo: “sempre as
marchas nupciais lado a lado com as marchas fúnebres”. Logo que pronunciada a frase,
escuta-se do salão o refrão de uma canção de Tosti: Torna caro ideal! Torna caro ideal!
Depois Gustavo diz que, apesar de tudo, queria o amor de Marcela e Luciano diz que queria
tê-la amado.
Após a vitória da tradição, Gustavo está em marcha fúnebre por ter perdido Marcela,
justamente para a tradição. Com a frase “volte, querido ideal”, Gustavo deseja o amor de
Marcela e Luciano a vontade de tê-la amado.
Walter Benjamin, ao analisar as obras de Baudelaire, coloca que o cerne da
experiência moderna exposta pelo poeta encontra-se no primeiro ciclo de poemas de As flores
do mal. Para Baudelaire, o spleen seria a angústia de uma existência ameaçada pela
estranheza do mundo e pela temporalidade moderna, gerando uma vontade autodestrutiva que
só é suspensa a favor da evocação de uma felicidade primeira e original, ou seja, o Ideal, que
está de antemão perdido.
Assim, os autores, pelo papel de Gustavo, parecem se erguer contra o status quo em
sua luta rebelde pela destruição da tradição e afirmação da mentalidade moderna, embebecida
por questões sociais. A atitude rebelde é definida por Erich Auerbach dessa maneira:
a rebeldia que extrapola o próprio romantismo é encontrável em toda a Europa, na
Alemanha, na Itália, na Inglaterra; mantém-se mesmo, um tanto modificada, após a
época do romantismo até a primeira guerra mundial; por vezes, transforma-se em
ódio, ódio ao burguês, ódio à sociedade, outras vezes torna-se indiferença orgulhosa,
esnobismo ou esoterismo deliberado; um culto extremado do indivíduo daí resulta;
as formas dessa atitude, originariamente romântica, são variadas em demasia para
que possam ser enumeradas aqui, mas o que é comum a todas é o abismo que se abre
entre o poeta e a sociedade111
Os teatros reproduzem a hipocrisia da sociedade e dos costumes do começo do
século, pois demonstram a importância de certos hábitos, como o casamento, a importância de
se manter ruma reputação, de origem familiar e nobre.
Pode-se não explicitar uma crítica ao capitalismo, entretanto apresenta apenas
questões similares às criticas feitas pelos anarquistas da Primeira República, como a crítica ao
fato de as elites tradicionais fazerem da cidade um mercado de casamentos por conveniência,
cujas relações pessoais são tidas como transações comerciais, em que homens e mulheres são
reduzidos a portadores físicos de bens e rendas, ou seja, mercadorias expostas como em um
111
AUERBACH, E. Introdução aos Estudos Literários. São Paulo, Cultrix, 1970, pp. 229-230.
102
mercado. Sua luta ocorreria por meio da arte, mas ainda não apresentava contornos bem
definidos como seus futuros trabalhos.
Percebe-se a dicotomia de Gustavo, defensor do amor livre que, por uma mulher,
abandona seus ideais e acredita na instituição do casamento. Entretanto, depois de passar por
uma nova desilusão, tanto amorosa quanto em relação à sociedade patriarcal, revolta-se
aclamando os valores da modernidade.
103
3.4 Entre ciganas, cortesãs, prostitutas e madames: a mulher fatal tupiniquim
Antes de adentrar em questões relativas ao campo dos estudos sobre as mulheres, fazse indispensável tecer algumas considerações acerca de valores e mitos que caracterizaram as
mulheres ao longo da história. Assim, busca-se, no decorrer do trabalho, encontrar um meio
termo entre a sua exclusão e sua exaltação em diferentes épocas e lugares sociais.
Nesse caminho, os papeis que representavam homens e mulheres no início do século
XX são permeados pelas discussões de gênero, permitindo-nos delinear, em torno das
produções discursiva, literária e científica do período, as representações e o imaginário social
acerca do ser homem/ser mulher no Brasil do início do século passado, afinal, como afirma
Bassanezi112, os significados do masculino e do feminino e as relações entre os sexos
possuem historicidade e são socialmente constituídos:
Representações baseadas nas diferenças sexuais perceptíveis, o “ser homem”, “ser
mulher”, “ser dona de casa” e outras identidades ou papéis, assim como as oposições
binárias – “mãe/puta”, “moça-família/leviana”, “masculino/feminino”, etc. – que são
aparentemente fixos – são percebidos, na perspectiva da categoria de gênero, como
situações e concepções produzidas, reproduzidas e transformadas ao longo do tempo
nos diversos contextos sociais.113
A Revista O Pirralho continha diversas fotografias, em sua grande maioria de
mulheres, com o intuito de adornar o periódico. Todavia, dando amplo espaço às mulheres,
podemos perceber que era ampla sua presença em locais públicos, ou seja, que as mulheres
ultrapassaram as fronteiras do privado, do lar, indicando mudanças sociais em relação aos
hábitos, costumes e lugar reservado.
Pelo caráter elitista do jornal, as mulheres trabalhadoras ou operárias, que há tempos
haviam quebrado estas barreiras físicas e sociais, não eram retratadas nas páginas do
periódico, o qual se atinha às mulheres famosas por seus sobrenomes e outras que haviam
alcançado sucesso e notoriedade pelos seus feitos artísticos, a exemplo de Carmen Lídia
(Landa), com que Oswald teve um romance turbulento.
Em Mon coeur balance, temos a figura de Signora Belloni, uma cantora lírica,
considerada por Madame Dunloup como caruso feminino.
112
BASSANEZI, C. Virando as páginas, revendo as mulheres: relações homem-mulher e revistas femininas,
1945-1964. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH/USP, 1992.
113
Idem, p. 09.
104
Dentre os adjetivos utilizados pelas personagens para caracterizá-la, identificam pelo
menos duas formas divergentes. De algumas mulheres, como a Senhora Dória, há a
desaprovação devido ao seu modo de ser e sua profissão, caracterizando-a como meio leviana.
Já outras personagens femininas e quase a totalidade das masculinas parecem ter apreço por
ela. Um comentário, em especial, chama a atenção:
SEHORA DÓRIA – Ah, eu não suporto essa signora Belloni. É uma verdadeira
comediante.
MENDES – Não, senhora, está enganada. Ela tem uns modos um pouco levianos,
mas é uma artista.
MADAME DUNLOUP – Ah, sim, eu compreendo! Quando se tem uma garganta
célebre!
A imagem da artista, comumente aplicada em sentido depreciativo, como sinônimo de
vida fácil, não se empregava ao exemplo supracitado, pois eram, em sua maioria, mulheres da
elite ligadas às atividade artísticas ditas “nobres”, como cantoras líricas, bailarinas clássicas,
musicistas, entre outras.
Sendo assim, percebe-se a dupla concepção da imagem da artista naquela sociedade.
De um lado, tem-se a desaprovação da carreira artística das mulheres, associando-a à imagem
da artista oitocentista, que percorria os espaços públicos e era tida como leviana,
perturbadora, pessoa que ia contra a moral e os bons costumes burgueses e, de outro,
possuindo jeito de ser e regalias que eram justificadas pelo fato de possuir dotes artísticos,
portanto aceitos e em certa medida até incentivados por alguns setores da elite.
Essa contradição pode ser verificada se pensada nos sentidos diferenciados que a
concepção modernidade assume para os homens e para as mulheres do período.
O trabalho fora de casa não era considerado próprio à constituição feminina além, é
claro, do magistério e da enfermagem. Tais concepções são frutos da visão cientificista
característica do século XIX, que se estendeu ao início do século XX, em que foram
reforçadas as noções diferenciais entre os sexos, determinando tarefas específicas a homens e
mulheres na tentativa de estabelecer atributos físicos e psicológicos ao sexo “forte” e ao sexo
“frágil”.
A vida fora do lar era compreendida como abarrotado de vícios, embora a nova
realidade (urbanização, formas de sociabilidade) característica da modernidade começasse a
mudar. É fundamental não se esquecer dos estudos de Comte, que defendia a natureza pura e
delicada das mulheres, aptas ao lar, de onde não deveriam afastar-se. Como aponta Caulfield:
105
Em alguns casos, modernidade tinha uma conotação de progresso social e
econômico e de relações sexuais e familiares saudáveis e racionais, porém podia
significar, também, degeneração moral, degradação dos valores tradicionais da
família e dissolução dos costumes. Quando atribuída ao homem, a modernidade era
geralmente entendida em seu sentido positivo de racionalidade progressiva. Quando
atribuída à mulher, a modernidade implicava em moral licenciosa e estilo de vida
desregrado.114
N´O Pirralho, embora defendesse certa liberdade para as moças e senhoras,
apresentava os limites dessa liberdade. Assinalamos uma passagem de Mon coeur balance,
em que as personagens discutem sobre músicas:
O CORONEL (Gesticulando) – Senhor Luciano, pode er certeza de que todos me
achariam soberbo se a sua dama (Marcela) consentisse em dançar comigo um tango
argentino! (...)
MENDES (À senhora Doria e Madame Dunloup.) – A daça tem origem religiosa.
As primeiras danças foram executadas nos templos pagãos.
CARLOS - E dizer que o papa as proíbe!
HELENA – Com exceção do maxixe...115
A partir do trecho, pode-se inferir que o Tango era proibido pela Igreja Católica e,
consequentemente, considerado imoral pela sociedade e leviano para as mulheres que
dançavam. Um artigo d´O Pirralho reafirma essa questão, dando conselhos a uma senhora da
alta sociedade.
Mlle decididamente não se constrange em dançar o “Tango” com aquele
desembaraço que seria comum num casino, ma snunca num Skating. É ter
coragem... Mal sabe Mlle, que a sua leviandade tem dado margem para conjecturas
nada recomendáveis ao seu nome.116
Assim, sendo o Tango proibido pelo papa e mal visto aos olhos da sociedade, Marcela
não responde ao coronel, ou por escolha própria ou por ser tolhida com o comentário de
Mendes e de Helena.
Outra questão consiste em que a mulher não participava do processo produtivo em
termos tradicionais, estando em situação de total dependência econômica. Sua “participação
política” estava relegada às obras humanitárias, como sugeridas nas normas de bem viver dos
114
CAULFIELD, Sueann. Que virgindade é esta?. Revista Acervo, V. 09, jan/dez 1996.
Idem, p. 81.
116
O Pirralho, 30.05.1914.
115
106
manuais e guias destinados às donas de casa apreciados na Europa e difundido às nossas
elites. Tais questões são encontradas tanto n´O Pirralho quanto em Mon coeur balance.
Baseando-se nessas normas, as mulheres das camadas mais abastadas divulgavam a
organização de eventos como reuniões, bailes, chás, festas, destinadas à caridade. Seria
necessário ocupar o tempo com tais preocupações, que eram tidas nas revistas como deveres
de sociedade e trazia prestígio e fama àquelas que as organizavam.
As notas sociais da Revista cobriam tais eventos, sendo estes importantes inclusive
para a manutenção de algumas seções do periódico, extremamente numerosos no período da
Grande Guerra. Em Mon coeur balance, percebem-se esses aspectos principalmente em
relação à Mme. Dunloup.
LUCIANO – Puxa vida! Quando é que vai acabar essa história de festas de
caridade? Imagine que já me anunciaram mais um cotillon para sábado (...)
GUSTAVO – A culpa é dos alemães. Você é alemão, tem de arcar com as
consequências, mais do que a Madame Dunloup, que é aliada e belga.
LUCIANO – Não. Mas, diga lá, será que todos nós temos de ficar arruinados para os
órfãos belgas ficarem milionários? Isso é um absurdo! (...)
Dessa forma, o trecho deixa entrever uma das atividades principais relegada às
mulheres no meio público e, ao mesmo tempo, culpabiliza os alemães pela Primeira Guerra
Mundial. Também se percebe uma crítica pelo fato de os alemães terem desrespeitado a
neutralidade belga no conflito para atingir seus objetivos de destruir a França e a Holanda.
As tarefas de caridade, então, elevavam o gênero feminino a um ser mais sensível e de
maior responsabilidade às causas sociais, características que seriam intrínsecas à constituição
do sexo feminino. O Pirralho satiriza a questão quando acreditavam que as festas de caridade
estavam virando moda e muitas pessoas as faziam apenas devido à publicidade.
Mas a tia Ambrósia, que Deus lhe dê o Inferno quando morrer, tem também a mania
chic de fazer esmolas, só para ver o seu nome nos jornaes, e d´elles receber elogios
de caritativa, virtuosa etc. etc. Ora, eu que sei que o tio Ambrozio, dois annos depois
de casado requereu o divórcio, tenho vontade de desmascará-la, quando vejo tantos
adjetivos, homenageando o seu passado e enaltecendo as suas virtudes. Como se vê,
as manias da minha tia, são a moléstia da época. Todos querem fazer esmolas, tendo
em mira os elogios e os retratos na Imprensa. Eu sou pela esmola calada, sem
espalhafato (...)117.
117
O Pirralho, 16.05.1914.
107
Tanto nos artigos d´O Pirralho quanto nos teatros, diversas personagens femininas,
com seus sonhos, desejos, ideais, podem ser considerados como expectativas em relação à
mulher ideal ou seu reverso, portanto, as construções femininas foram feitas pelo universo
masculino e carregam construções simbólicas sobre o masculino e o feminino imperantes,
contribuindo assim para a difusão de perfis e papéis femininos e a cristalização de valores e
padrões de comportamento social desejáveis. Assim como lembra Sevcenko:
A exigência metodológica que se faz, contudo, para que não se regrida a posições
reducionistas anteriores, são de que se preserve toda a riqueza estética e
comunicativa do texto literário, cuidando igualmente para que a produção discursiva
não perca o conjunto de significados condensados na sua dimensão social. Afinal,
todo escritor possui uma espécie de liberdade condicional de criação, uma vez que
os seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são fornecidos ou sugeridos pela
sua sociedade e seu tempo – e é destes que eles falam. Fora de qualquer dúvida: a
literatura é antes de mais nada um produto artístico, destinado a agradar e a
comover; mas como se pode imaginar uma árvore sem raízes, ou como pode a
qualidade dos seus frutos não depender as características do solo, da natureza do
clima e das condições ambientais?118.
Tanto na Revista quanto nos teatros, foi extremamente comum a comparação da
essência feminina com a mentira, a inveja, o demoníaco e o sutil dom da sedução. Entretanto,
em oposição à imagem principal causadora dos males da humanidade e de desnortear a vida
dos homens, por vezes aparece como a detentora da maravilhosa missão redentora da
maternidade, assim como responsável por regenerar homens adeptos de uma vida desregrada,
como é o caso de Gustavo ao se comparar ao rei de Tule e de Natália ao aparecer casada, com
filhas, anteriormente abordados.
Guilherme de Almeida publicou n´O Pirralho uma série composta por onze sonetos,
intitulada Perfis Femininos, em que o autor, de maneira poética, traça contornos de mulheres
de origens diversas:
I
A ITALIANA
Branca Madonna, celestial belleza,
pallida Laura, Beatriz amante!
Quanto Cezar, nas pompas da grandeza,
sacrificou-lhe a purpura arrogante!
Ha no seu coração toda a pureza
do céo napolitano; no semblante,
118
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 20.
108
a palidez da lua de Veneza;
na voz, os versos divinaes do Dante!
Mas o que nella existe de indizivel,
um não sei que de santo e de intangivel,
disse-o em côres um pincel divino.
- Pois nella se e nella habita
a mesma vida intensa que palpita
nas telas magistraes de Perugino!119
II
A ALLEMÃ
Loira edelweiss beijada pelo Rheno
á sombra de cyprestes solitarios;
traz reflectida no seu rosto ameno
a candidez gelada dos sudarios.
Grandes, ingenuos, de um azul sereno,
seus olhos são dous vivos relicarios
em que se repercute o doce threno
do lied dos nibelungen legendarios...
Faz relembrar a branca Margarida
e a loira Dorothéa comprimida
no velludilho negro do corpête.
- Ella traduz o mesmo pensamento,
a mesma vida, o mesmo sentimento
das canções melancolicas de Goethe!120
III
A INGLEZA
Languida filha de Albion, tem finas
e brancas mãos; a face côr-de-rosa;
é loira; o azul do céo traz nas retinas;
pouco loquaz, fleugmatica e nervosa.
Seu corpo, de serpente venenosa,
tem a attracção das libras esterlinas;
fria... e, na propria rigidez, formosa
como o nevoeiro das manhãs londrinas...
Não se move, não ri e o seu olhar
tem dous gelados raios de luar;
nelle sua alma inteira se reflécte.
Ninguem, ao vêl-a, em lhe sorrir se atreve;
é fria... mas é fria como a neve
que ao primeiro calor já se derrete!121
IV
119
ALMEIDA, Guilherme de Andrade, O Pirralho, 21.11.1914.
Ibidem.
121
Idem. 05.12.1914.
120
109
A JAPONEZA
Envolta em tantas sedas baralhadas,
adeja o leque e passa farfalhante...
Chrysantemo que abriu nas alvoradas
das amarellas bandas do Levante!
Pés pequeninos, fôrmas delicadas,
olhar obliquo, vivo e provocante:
- eil-a, sentada em fôfas almofadas,
num kiosque leve, exótico e elegante...
E a Geisha, a flôr mimosa de Tokio,
assim vestida num kimono esguio,
toda seda e marfim, vaidosa e ufana,
Sorvendo o chá que tanto lhe appetece,
- essa filha do Sol até parece
um raro bibelot de porcellana...122
V
A PORTUGUEZA
E’ trigueira a cachopa, appetitosa,
ancas roliças, formulas sensuaes;
a sua vóz parece uma estrondosa
gargalhada de um bando de pardaes...
De argollões nas orelhas, buliçosa,
rubra como a papoula dos trigaes,
- é de vêl-a tão fresca, tão viçosa,
a namorar em festas d’arraiaes...
E seu amor então? – Todo pureza,
todo poesia e todo singeleza...
Si algum saloio audaz a quer beijar,
Córa, foge e, de longe, lhe sorri
bradando: << Homem de Deus! tem mão em ti,
que isto não vae assim tão a matar! >>123
VI
A RUSSA
Flôr do Caucaso – a terra mysteriosa
do negro despotismo – o seu olhar
reflecte a luz cambiante e explendorosa
das auroras boreaes... Serva do Czar
branca e delgada, passa vaporosa
como as troikas na steppe a deslizar;
na vóz, traduz a musica nervosa
do Volga, em seu gelado marulhar...
Vivendo embora lá entre esses flancos
em que se animam lerdos ursos brancos,
que fogo e que calor seu peito encerra!
122
123
Ibidem.
Idem. 12.12.1914.
110
Certo, o seu coração, lançado um dia
nesse torrão glacial, derreteria
as montanhas de gelo de tal terra!124
VII
A JUDIA
Rosa de Jerichó, branca açucena,
do Carmello nas faldas altaneiras!
Como os cedros do Libano é serena,
trescalam nardo as suas cabelleiras...
No rosto estampa o alvor da Magdalena;
seu beijo é como o fructo das figueiras;
tem na voz a melliflua cantilena
da brisa a farfalhar nas oliveiras...
Seu pranto é salutar ao coração
como as magicas aguas do Jordão...
E o seu amor tão puro e iluminado,
que a gente, sem querer, logo a compara
á tal mulher a quem Jesus perdoára,
porque ella havia por demais amado!125
VIII
A ORIENTAL
Mulher sensual, lasciva, seductora,
que faz sonhar e que embriaga até
como a espiral de fumo inebriadora
que se evola subtil de um narghilé.
A sua bôcca menos tentadora
que o néctar de uma támara não é;
no olhar tem a magia promissora
do paraizo ideal de Mahomet.
E’ de vêl-a bailar ante o Sultão
- austero como as normas do Al-Korão,
nos seus scismares graves e profundos, Toda a se contorcer, recúa, avança,
elastica e ligeira; e gyra e dansa
bamboleando seus quadris rotundos... 126
IX
A HESPANHOLA
Flôr Morena de graça, alma casquilha
das rondallas de amôr, guapa hespanhola!
Mórde um cravo e, entre as franjas da mantilha,
requebra no salero e na manola
Beija – e seus beijos como a castanhola
124
Ibidem.
Idem. 26.12.1914.
126
Ibidem.
125
111
estalam, matam como a mancenilha;
fala – e dir-se-ia o resmungar da viola
nas luarentas noites de Sevilha...
A todos ama dentre o rapazio;
Convida a todos para um desafio...
Mas ai! d´aquelle que se aventurar
quando ella brada: <<Foge cavalheiro,
que o meu amôr é campeão toureiro,
elle tem farpas que vão te matar >> !...127
X
A CIGANA
Mulher sem patria, bella e desgraçada;
sem Deus nem ideal, bohemia vadia!
Olhos maus, formas – rudes, tez bronzeada,
a cabelleira negra e luzidia...
Deitando as cartas chama a rapaziada,
e a buena-dicha a todos annuncia;
depois, rufa o pandeiro e, esfarrapada,
Vertiginosamente rodopia...
Essa pobre cigana aventureira
que vaga pelo mundo a vida inteira,
dos occasos aos aureos rosiclères;
que, si a todos despreza, a todos ama,
- quem quer que a veja assim logo a proclama
A syntese de todas as mulheres!128
XI
A BRAZILEIRA
Patricia minha, não te esqueço, não!
Bella, gentil, romantica trigueira!
Palpita no teu grande coração
a poesia da terra brazileira!
Trazes no talhe a graça da palmeira;
n’alma, a grandeza virgem do sertão;
nos olhos a poesia feiticeira
das nossas longas noites de São João!
Tens no amôr a nobreza de Iracema,
o heroísmo de Lindoya e de Moema
que te arrebata ás ráias da loucura!
Esposa... filha... mãe... – terna e singela --,
és como o Amôr, supremamente bella,
Como a verdade eternamente pura!129
127
Idem. 02.01.1915
Ibidem.
129
Ibidem.
128
112
A cigana foi tida como a síntese de todas as mulheres: volúveis, a todos ama, amorais,
boêmias, vadias, mas a brasileira tida como a redenção: pura, verdadeira mulher, porto seguro
dos homens, esposa, mãe.
Nas peças, a figura feminina é, desde o início, um misto de sedução e negatividade
social. Mon coeur balance deixa subentendido que Marcela é uma personagem de condição
social inferior, bela, misteriosa e atraente, personificando o amor juvenil, marca inicial da
afetividade ligada à casa, aos costumes patriarcais.
A literatura vem, há muito tempo, construindo a figura destruidora feminina. Os
românticos, ligados à ideia de marginalidade e êxtase, dão vida a cortesãs famosas, ciganas
deslumbrantes, desembocando na oitocentista Mulher Fatal, que contrastava com a vida
burguesa.
Autores, como Machado de Assis, baseiam-se nestas personagens, mas trazendo-as
para a realidade patriarcal brasileira, ou seja, retiram-na no público vulgar e assustador
europeu e as colocam na realidade familiar privada, como é o caso de Capitu130.
Em Mon coeur balance, a construção de Marcela não a coloca como a Cortesã, nem
cigana, nem familiar, mas dúvidas são levantadas a todo momento acerca de suas opções, sua
vida e a história de sua família; ao contrário de Natália, que já é enquadrada no espaço
familiar por excelência, ou seja, há, nas duas personagens, certos traços da Mulher Fatal, mas
que as diferem da Cortesã Fatal europeia: elite social, influxo religioso, vida doméstica e
certos aspectos da mulher fatal são, portanto, nosso universo131.
Diferentemente da Tradição Clássica, que considerava o ciúme em leis universais e
atemporais, grande parte da literatura moderna da Belle Époque realiza a fusão entre
sentimento e aspecto social e há a adaptação do tema europeu nos desencontros das classes
sociais brasileiras, isto é, universalismo e localismo se fundem.
As ficções francesas e portuguesas haviam considerado o adultério um baluarte contra
os hábitos franceses. Como nos mostra Passos, em Capitu, os traços da cortesã ou da cigana
imoral fazem Brasil e Europa se unirem para embasar a figura feminina, morta
simbolicamente no velho continente, de onde veio parte de sua inspiração, ao passo que Dom
Casmurro continua no Brasil, representando nossa visão patriarcal.
130
PASSOS, Gilberto Pinheiro. Capitu e a mulher fatal: presença francesa em Dom Casmurro. São Paulo:
Annablume, 2003.
131
Idem.
113
Em relação a estes aspectos, sugere-se que as escolha dos nomes das personagens
femininas não ocorreu de forma arbitrária. Elencam-se, nesse estudo, três Mulheres Fatais que
podem condizer com as três principais personagens femininas dos teatros.
Primeiramente, pode-se comparar Marcela, de Mon coeur balance, com Marcela, de
Memória Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Marcela, de Oswald e Guilherme é
uma jovem bela, solteira, mais próxima da amizade de rapazes, que está em um hotel de elite
aparentemente à procura de um homem rico para se casar, dissimulada, mentirosa, que brinca
com os sentimentos de Luciano e Gustavo. Marcela, de Machado, é uma prostituta de elite,
sensual, mentirosa, amiga de rapazes e de dinheiro, cujo amor por Brás Cubas duraria “quinze
meses e onze contos de réis”. Neste caso, Oswald e Guilherme dão a entender que Marcela
estava sendo levada por sua mãe para um casamento muito lucrativo nos moldes burgueses.
Em Leur âme, Natália, cujo apelido é Nata, guarda relações com Naná, de Emile Zola.
Naná é uma bela cortesã da alta sociedade francesa do Segundo Império que possui
clientes/amantes, aos quais promete fidelidade e exclusividade. Humilha-os e consegue tudo o
que quer e nem mesmo assim eles a abandonam. Natália faz parte da alta sociedade paulista, é
casada com George, amante de Gastão e, em uma de suas conversas com o último, da a
entender que existem mais. Os homens com quem mantém relação parecem atender a todos os
seus caprichos e não conseguem controlá-la.
Dentre todas as mais famosas mulheres fatais que fizeram parte do imaginário europeu
do século XIX, apenas Naná é mãe, como é o caso de Natália, o que deixa entrever que a
personagem feminina se deixa “dominar”, pelo menos parcialmente, e que ela é uma parceira
da continuidade. Representam, ao mesmo tempo, elementos danosos presentes na mãe e na
família. Traz-se para o lar, intrínseco à figura materna, a corporificação da mulher
abrasileirada.
Emma, filha de Natália, possui o mesmo nome de outra obra de Flaubert, Madame
Bovary. Embora ainda criança, apresenta opiniões maduras para a sua idade, sempre
influenciada por ideias e livros religiosos e inclinada à fantasia.
Flaubert parece estar presente nas obras dos autores na medida em que todas as
discussões sobre a alma da mulher, sobre o amor, sobre a atitude feminina, sobre o adultério,
serem permeadas por análises de dados biológicos, ou seja, os autores tentam explicar as
mulheres e todos os problemas decorrentes de seus relacionamentos a partir da biologização
114
dos problemas. Emma, de Oswald e Guilherme, com suas ideias, representa a ofensa à moral e
à religião.
Na literatura dos séculos burgueses, há uma vitória da sociedade, a que deverá se
seguir o desaparecimento físico. É necessário que a mulher transgressora seja punida com a
morte. Nesse caso, a morte simbólica de Marcela e de Natália põe fim ao risco, não somente
porque rearticula a moral, fazendo com que haja o retorno à ordem anterior, mas porque a
refaz. Com a configuração de Emma, a mulher nunca deixa de ser Fatal.
Cria-se, então, uma mescla de dados da Mulher fatal e a esposa recatada, o público e o
doméstico.
115
CONSIDERAÇÕES FINAIS
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como proposto no projeto inicial, a partir dos dados colhidos nas peças e nos jornais,
resgata-se o contexto das transformações de São Paulo de fins do século XIX e início do
século XX no que consiste principalmente em identificar a mudança de configuração da
cidade com o desenvolvimento financeiro do setor cafeeiro, planejamento urbanístico,
sociabilidade e a produção teatral nas capitais carioca e paulista, a fim de averiguar a entrada
da cidade de São Paulo na modernidade.
A partir desses aspectos, foi possível ter uma visão mais clara acerca das vertentes
nacionalistas existentes no país e da intenção da elite política e intelectual da cidade de São
Paulo em promover a identificação do paulista com o bandeirante, considerado responsável
pela grandeza da nação brasileira. Esse fato contribuiu para que tivesse início a identificação
da nacionalidade brasileira com o paulista, que agora requer seu espaço na política nacional
devido à pujança econômica do estado.
O ideário da paulistanidade foi formulado pelas principais instituições intelectuais da
época, gerando produções historiográficas que refletiram nas crônicas, na literatura, na
pintura, na música e na atividade teatral, ultrapassando os limites do estado de São Paulo.
Com estas informações à mão, foi possível verificar características tanto do ufanismo
quanto da paulistanidade nas obras de Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida, que
pareciam, a essa época, compartilhar das mesmas vertentes, até haver uma ruptura efetiva a
partir do manifesto da poesia Pau-Brasil e o da formação do grupo verde-amarelo.
Verificada essa proximidade de autores tão diferentes em relação à produção literária
após a Semana de Arte Moderna, foram verificadas as possibilidades de inserção na carreira
intelectual e literária no Brasil da Primeira República, representadas pela literatura oficial de
Machado de Assis, Olavo Bilac e Coelho Neto, que limitavam a liberdade e a autonomia de
literatos interessados em promover mudanças a partir de novas propostas estéticas e temáticas,
o que foi possível aos autores devido às suas redes de sociabilidade, capital financeiro,
cultural e social. Assim, conseguimos identificar aproximações e distanciamentos de Oswald
e de Guilherme, que resultaram em obras escritas a quatro mãos.
117
O esquecimento ou a intencionalidade de deixar de lado análises das peças em francês
pelos críticos e estudiosos, por parecerem um desvio literário ou obras menores, que pouco ou
nada teriam de similar em relação ao conjunto de suas obras, instigou a verificar a produção
teatral de ambos ao longo de seus itinerários profissionais e colher características que foram
encontradas nas peças, como a hibridez de suas técnicas e estéticas, e sua ligação às principais
vertentes literárias da época. Ao nos ater às características dos principais representantes do
simbolismo francês, adquirimos maior sensibilidade no tratamento das obras, extremamente
marcadas por símbolos sugestivos que, com uma simples referência a um autor ou uma obra,
ampliavam consideravelmente as possibilidades de interpretação dos textos.
Com o uso de símbolos, da sinestesia, da música, de pinturas, de mitologia, enfim, de
uma gama de elementos, os autores deram pistas de suas convicções e intenções, o que
permitiu verificar inclusive críticas sociais, elemento cuja existência era negada pelos raros
estudos que tomaram as peças como seu objeto ou consideravam-nas em suas abordagens
acerca das produções teatrais e literárias de Oswald e Guilherme. Outro elemento importante
foi a comparação das peças com a biografia de Oswald, pois possibilitou um maior
entendimento tanto das obras quanto do autor de Os Condenados.
Um dos problemas encontrados foi em relação às fontes jornalísticas, pois foi
necessário dispensar bastante tempo com sua coleta, leitura e organização, com
deslocamentos constantes aos acervos, e não se mostraram tão frutíferas quanto se imaginava.
Entretanto, nessas pesquisas, a periódico que mais possibilitou comparações com os teatros
foi O Pirralho, pois se pôde compreender de maneira mais clara as ideias e intenções dos
autores em relação à construção de suas personagens e a mistificação da Mulher Fatal nos
moldes brasileiros.
A análise da presença francesa no Brasil demonstrou como esta arte esteve incutida na
realidade brasileira desde os tempos da colonização, quais autores eram mais lidos por uma
parcela da intelectualidade paulista da época e de que maneira Oswald e Guilherme utilizaram
suas ideias para refletir e criticar a realidade nacional. Estas leituras também foram
fundamentais para que os autores criassem sua própria versão da Mulher Fatal, brasileira,
aventureira, mãe, inserida no seio da família tradicional paulista do início do século XX.
Assim, apesar de escritas em francês e terem sidos utilizados, direta e indiretamente, autores
franceses, as peças não deixam de possuir um caráter nacional.
118
Descobriu-se, no decorrer da pesquisa, que ainda há muito que se pesquisar sobre o
tema, em geral, e sobre os teatros, em particular, haja vista que, a partir de uma ótica
simbolista, são abertos inúmeras visões acerca da sociedade em questão.
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“Uma geração que fora à escola em bondes puxados por cavalos se