NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE AVALIAÇÃO EM ARTE/EDUCAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DA OI KABUM! EM BELO HORIZONTE Victor Ribeiro Guimarães [email protected] Associação Imagem Comunitária Paulo Emílio Andrade [email protected] Associação Imagem Comunitária Resumo A avaliação é hoje um tema de intenso debate. Especificamente em contextos de arte/educação, as práticas avaliativas enfrentam uma série de desafios, que as configuram como um dos principais dilemas do ensino de arte no Brasil. No intuito de contribuir com essas discussões, o objetivo deste artigo é apresentar e discutir algumas experiências de avaliação realizadas pela Diretoria de Pesquisa e Metodologia da Associação Imagem Comunitária na Oi Kabum! – Escola de Arte e Tecnologia, em Belo Horizonte. Nossa análise abarca três aspectos centrais: quais são as questões avaliadas; os métodos e procedimentos empregados; e os usos dos registros da avaliação. Palavras-chave: avaliação, arte/educação, Oi Kabum!, Oi Futuro, Associação Imagem Comunitária Abstract Nowadays, evaluation is a theme intensely debated. Specifically in contexts of art education, the evaluation practices face a range of challenges, which place them as one of the key issues of art teaching in Brazil. Attempting to contribute with these discussions, the goal of this article is to present and to discuss some evaluation experiences conducted by the Community Image Association’s Research and Methodology Team at Oi Kabum! – School of Arts and Technology, in Belo Horizonte. Our analysis covers three main aspects: the questions evaluated; the methods utilized; and the uses of the evaluation registries. Keywords: evaluation, art education, Oi Kabum!, Oi Futuro, Community Image Association Seja nas pesquisas atuais ou no cotidiano de escolas e centros educacionais brasileiros, cada vez mais a avaliação adquire espaço como uma dimensão central de qualquer processo educativo. Sua importância é inegável, e o volume das discussões recentes sobre avaliação é prova disso. O entendimento sobre o que está em jogo nas práticas avaliativas, entretanto, não é simples, nem isento de dissenso. A pergunta de Philippe Perrenoud é significativa: “algum dia teria havido, na história da escola, consenso sobre a maneira de avaliar (..)? (PERRENOUD, 1999, p. 9)” No entanto, se a discussão acadêmica é cheia de nuances e de algumas contradições, porém rica e abrangente, a prática educativa é plena de desafios. Para Celso Vasconcellos, no Brasil “a avaliação se tornou um dos principais problemas da educação escolar” (VASCONCELLOS, 2006, p. 14). Em outras palavras, o debate é instigante e intenso, mas permanece longe da realidade das salas de aula: “observa-se um descompasso em relação ao conhecimento da avaliação educacional, de seu emprego em diversos âmbitos e a discussão sobre seu significado social” (GATTI, 2003, p. 9). Mas quais são os principais desafios em relação à avaliação na prática educativa? Atualmente, é possível posicionar três questões relevantes que emergem da prática e dos debates atuais sobre avaliação no contexto da educação brasileira: para que serve a avaliação? Como ela é feita em geral? O que se faz com seus resultados? Tanto a discussão que propomos neste artigo quanto o estudo de caso que apresentamos aqui procura trazer subsídios para pensarmos essas três questões, no contexto específico da arte/educação. Em termos dos propósitos, Doug Boughton (2008) descreve quatro papéis mais comuns da avaliação em educação: avaliação como “medida de temperatura”, que se presta a indicar a performance de grupos selecionados de estudantes; avaliação somatória (ou “catraca”), utilizada para determinar o acesso de estudantes a outras oportunidades educativas; avaliação do tipo “diagnóstico”, que informa educadores e demais envolvidos no processo sobre metodologias e escolhas, e os auxilia no traçado de novos rumos; e a avaliação “formadora”, cujo objetivo é fomentar, nos próprios estudantes, a autocrítica e a análise do próprio desempenho. Essas diferentes compreensões podem ser observadas, separadamente ou de forma mista, no dia-a-dia da educação em todo o mundo. Cada uma dessas concepções sobre o propósito da avaliação, entretanto, possuem implicações políticas profundas. Escolher entre uma avaliação do tipo “catraca” ou “diagnóstico”, ou dar ênfase maior a uma ou outra, é uma decisão política. Embora reconheçamos que “toda avaliação é processo classificatório” (DEMO, 2006, p. 15), é necessário apontar também que “o grande entrave da avaliação é o seu uso como instrumento de controle, de inculcação ideológica e de discriminação social” (VASCONCELLOS, 2006, p. 32). Partindo do pressuposto de que a avaliação é um processo político, é necessário dizer que já se avançou muito em relação à discussão sobre seus propósitos. As teorizações recentes enfatizam cada vez mais a avaliação como um processo global, de acompanhamento da prática educativa e que busca influenciar as escolhas pedagógicas futuras. Cada vez mais se fala de avaliação formativa (PERRENOUD, 1999) e mediadora (HOFFMANN, 2005). No entanto, como apontam as pesquisas de Celso Vasconcellos, a idéia da avaliação como simples atribuição de notas ainda é predominante na educação brasileira. A resposta à pergunta sobre “como a avaliação é feita em geral?” precisa reconhecer que, em nosso sistema educacional, permanece ainda uma lógica quase exclusivamente classificatória, que distingue entre bons e maus alunos: “apesar de tudo o que já foi elaborado e divulgado em termos de avaliação, as pesquisas de cotidiano têm demonstrado que as mudanças não têm atingido o chão da sala de aula” (VASCONCELLOS, 2004, p. 1). Além disso, de acordo com Sandra Sousa (2009), embora a legislação brasileira tenha se transformado em direção à superação dessa lógica, com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394), de 1996, “as práticas escolares vigentes, em geral, conservam marcas de orientações remotas” (SOUSA, 2009, p. 17). E é preciso dizer também que o contexto geral da educação brasileira ainda é bastante inóspito às transformações nas práticas avaliativas apontadas pela teoria e pela legislação. Como aponta Jussara Hoffmann (2005), os desafios são muitos, e vão desde a oposição das famílias, que não aceitam a abolição de métodos tradicionais, até os problemas habituais relacionados a recursos e formação docente. Quanto aos usos, os desafios também são muitos. Embora haja diversas experiências de avaliações de caráter mais diagnóstico e formativo, permanecem ainda dificuldades quanto ao que fazer com os registros dessas avaliações. O retorno para educandos e educadores ainda é difícil, e a incorporação das indicações nas práticas pedagógicas cotidianas também. Embora se reconheça teoricamente que “devem-se programar tarefas avaliativas, tempos de análise de tarefas e devolução aos alunos, estratégias interativas decorrentes, etc. (HOFFMANN, 2005, p. 15), na prática as análises e retornos da avaliação são um processo difícil 1. Falta garantir tempo para refletir criticamente sobre os resultados, e faltam estratégias interessantes para o retorno dessas informações para educadores e educandos. Dilemas da avaliação em arte/educação O contexto da arte/educação não apenas está longe de ser isento de todos esses desafios, como apresenta alguns dilemas complementares em relação às práticas avaliativas. Doug Boughton afirma que, no ensino de arte, “conduzir uma avaliação permanece como uma das mais complexas tarefas que os professores enfrentam em sua vida diária” (BOUGHTON, 2008, p. 376). O debate sobre avaliação em arte/educação também é intenso e está em franca atividade: “Com o crescente movimento de reformas curriculares para o ensino de arte que vem ocorrendo em vários estados – São Paulo, Minas Gerais, Amapá, Goiás, Santa Catarina, etc. – o tema avaliação tem sido retomado, ampliado e debatido” (TOURINHO, 2010, p. 2095). Desse debate, é possível depreender alguns dilemas específicos da avaliação em arte/educação hoje. Em primeiro lugar, há um desafio básico em relação aos conceitos de avaliação empregados (BOUGHTON, 2008). Se práticas como a atribuição de notas já são um processo reducionista em outros campos, na arte/educação isso se complica, uma vez que é muito difícil expressar em números ou palavras os complexos resultados obtidos na produção artística. Além disso, outro desafio específico do campo da arte/educação são os critérios que embasam a avaliação. Como aponta a professora Irene Tourinho, “a apreciação está intimamente ligada à análise e esta, à formulação de critérios. Para analisar, preciso definir focos, estabelecer prioridades, distinguir elementos para examiná-los criticamente” (TOURINHO, 2010, p. 2098). Essa formulação de critérios é bastante problemática, uma vez que, atualmente, os parâmetros para avaliar qualquer trabalho artístico – não apenas aqueles produzidos em contextos de arte/educação – são bastante nebulosos. Em anos recentes, as ideologias pós-modernas desafiaram severamente qualquer tentativa de atribuir valor ao trabalho artístico recorrendo somente aos valores formalistas tradicionais. Como aponta Boughton (2008, p. 379), há uma discussão viva e acesa sobre temas como a virtude da originalidade na produção artística e os méritos relativos entre “arte popular” e “belas-artes”. Isso torna o trabalho dos educadores-avaliadores mais complexo, pois torna-se mais difícil estabelecer uma base sólida sobre a qual seja possível avaliar a produção artística dos educandos. O que se observa em muitas escolas brasileiras é que, na maioria das vezes, a avaliação acaba por atender a critérios que são exclusivamente pedagógicos – comportamento, participação em sala de aula –, e não inclui questões que pertencem ao campo do trabalho artístico, propriamente. Diante da dificuldade em estabelecer critérios e dos desafios, a qualidade da produção artística dos educandos – ainda que seja discutível em que consiste essa qualidade – fica em segundo plano, ou é simplesmente desconsiderada. A Associação Imagem Comunitária e a avaliação na Oi Kabum! BH Tendo esses dilemas em vista, buscamos a partir daqui lançar um olhar sobre uma experiência educativa específica, e sobre o modo como ela lida com esses desafios. Contudo, antes de nos debruçarmos sobre as práticas de avaliação específicas que nos dispomos a apresentar e discutir, faz-se necessária uma pequena contextualização sobre a escola de arte e tecnologia na qual essas práticas acontecem e sobre a instituição responsável pelo projeto. A Associação Imagem Comunitária – Grupo de Pesquisa e Experimentação em Mídias de Acesso Público – é uma organização sem fins lucrativos com sede em Belo Horizonte. Fundada em 1993, a partir de uma experiência de extensão universitária, a ONG busca – por meio de diversos projetos – “construir espaços para que grupos socialmente excluídos ou com poucas oportunidades de visibilidade se coloquem no debate público” (LIMA, 2006, p. 29). Ao longo dos últimos 17 anos, a AIC vem buscando colocar em prática, por meio de experiências estético-expressivas em diversas mídias – rádio, jornal impresso, web e audiovisual –, um ideal de acesso público à comunicação baseado na produção coletiva, na experimentação com as diferentes linguagens e na efetiva ocupação de espaços de publicização. Em 2009, a convite do instituto Oi Futuro, a AIC tornou-se a ONG executora, em Belo Horizonte, da Oi Kabum! – Escola de Arte e Tecnologia. A Oi Kabum! 2 foi criada em 2001 pelo Oi Futuro com a intenção de ser um programa inovador que tivesse um impacto estruturante no desenvolvimento efetivo da juventude popular urbana, complementando os processos formais de educação. No alicerce da escola, estava o anseio por construir um programa educativo em arte capaz de despertar a curiosidade dos jovens, fomentar as capacidades de ação autônoma e coletiva e promover a expressão criativa. A aposta na arte e na tecnologia nasce, assim, dessa ambição por criar as condições de possibilidade para o desenvolvimento integral das capacidades dos jovens. A Oi Kabum! trabalha com jovens que estejam cursando o Ensino Médio em escolas públicas. Ao longo de 18 meses, eles participam de um amplo programa formativo em arte e tecnologia, especializando-se em uma de cinco áreas artísticas: Design Gráfico, Webdesign, Computação Gráfica, Vídeo e Fotografia. Além deste percurso, os jovens participam também das atividades em quatro núcleos transversais: História da Arte e Tecnologia, Ser e Conviver, Oficina da Palavra e Design Sonoro. Os jovens integram ainda grupos de trabalho, formados por educadores e educandos, que têm por objetivo cuidar da gestão de algum aspecto da escola 3. E, além disso, participam de um processo de orientação para projetos individuais e coletivos. Durante todo o processo formativo, os educandos recebem uma bolsa para participar das atividades. A primeira turma da Oi Kabum! BH, com 100 jovens, foi selecionada em julho de 2009 e o programa de formação teve início em agosto. Pouco tempo depois da implantação da Oi Kabum! em Belo Horizonte a escola tornou-se um espaço privilegiado para a produção de conhecimento, e as práticas de avaliação têm um papel central nesse processo. Desde seu início, a AIC sempre procurou aliar as intervenções sociais presentes em seus diversos projetos à produção de conhecimento a partir dos mesmos. A vinculação entre prática e reflexão teórico-metodológica sempre foi uma diretriz importante para a instituição, que tem investido cada vez mais na sistematização e na publicização de suas diretrizes e metodologias. Atualmente, a AIC conta com uma Diretoria de Pesquisa e Metodologia, responsável pela organização dos diversos conhecimentos produzidos cotidianamente nos projetos desenvolvidos pela instituição. A Diretoria realiza, juntamente com a equipe de cada projeto, procedimentos de avaliação processual dessas iniciativas. O objetivo, a curto prazo, é fornecer subsídios para o replanejamento e a reinvenção das práticas de cada projeto, além do intercâmbio de métodos e procedimentos entre os projetos da instituição. A longo prazo, o interesse é consolidar e fazer circular os conhecimentos teóricometodológicos que foram sistematizados a partir das experiências nessas iniciativas. Essas práticas convergem com a intenção do Oi Futuro em garantir que os conhecimentos produzidos no cotidiano das ações da Oi Kabum! possam contribuir com as práticas de ensino de arte em outros espaços educativos, especialmente a escola pública. Tendo essas diretrizes e esses objetivos em vista, a Diretoria realiza uma série de processos avaliativos junto aos diferentes públicos construtores da Oi Kabum! – educadores, jovens e coordenadores. Foram criados procedimentos de avaliação dos mais diversos, e que incluem vários olhares. Isso é natural, uma vez que “reduzir a avaliação a apenas uma ação é incorrer numa ameaça pedagógica – ou tudo ou nada – além de ser uma postura autoritária na educação” (TOURINHO, 2010, p. 2098). Na medida em que os processos educativos em curso na escola são múltiplos e complexos, procura-se atentar sempre para o fato de que: “Ao avaliar efetiva-se um conjunto de procedimentos didáticos que se estendem sempre por um longo tempo e se dão em vários espaços escolares, procedimentos de caráter múltiplo e complexo tal como se delineia um processo” (HOFFMANN, 2005, p. 13). Nesse sentido, a avaliação na Oi Kabum! é um processo constante e intenso, que acontece em vários espaços, serve-se de diferentes métodos e atende a propósitos específicos. Na sala de aula, ao final de cada ciclo formativo, os educadores realizam uma avaliação em conjunto com os jovens. Essas conversas têm o intuito de avaliar escolhas metodológicas e processos e, com isso, influenciar o planejamento das atividades subseqüentes. Também as reuniões entre educadores adquirem funções de avaliação e de planejamento, em processos realizados coletivamente por educadores e coordenadores. Além disso, há uma série de procedimentos criados pela Diretoria de Pesquisa e Metodologia da AIC que são postos em prática na Oi Kabum!. Em relatórios trimestrais, os educadores avaliam seu próprio trabalho, o desempenho dos educandos e a coordenação da escola, de acordo com parâmetros comuns estabelecidos em um modelo. Além disso, os jovens também respondem a um questionário auto-avaliativo periódico, em que avaliam a própria participação, o trabalho dos educadores e da coordenação. Periodicamente, a Diretoria consolida relatórios temáticos com os resultados dessas avaliações e realiza encontros de retorno e de discussão desses resultados. Além disso, mensalmente, um boletim voltado para os jovens é elaborado e distribuído na escola e em suas redes sociais, também com o intuito de sistematizar conhecimentos e influenciar práticas futuras. O objetivo desse artigo, contudo, não é dar conta de todos os processos avaliativos que acontecem cotidianamente na Oi Kabum!. A seguir, nos debruçamos sobre dois procedimentos de avaliação implementados na escola, suas questões norteadores e seus usos, com vistas a contribuir com o debate sobre avaliação em contextos de arte/educação a partir de uma experiência singular. Avaliação de processos educativos em arte na Oi Kabum! Belo Horizonte As práticas avaliativas que nos dispomos a apresentar e discutir aqui são parte de um grande conjunto de atividades que ocorre semestralmente na Oi Kabum! BH, coordenado pela equipe da Diretoria de Pesquisa e Metodologia da AIC: o Dia da Avaliação. Nas proximidades do fim de cada semestre do programa formativo, separamos um dia letivo para a realização de alguns procedimentos avaliativos com os jovens da escola. Em primeiro lugar, é preciso chamar atenção para as questões avaliadas durante esse dia. Em uma escola como a Oi Kabum! BH, os processos educativos em andamento são variados e complexos. São cinco áreas artísticas diferentes, mais os núcleos transversais, os grupos de trabalho e as atividades de orientação. Isso sem contar as atividades autonomamente inventadas pelos jovens a cada momento. No entanto, a partir das contribuições dos educadores e dos jovens 4, foram estabelecidos alguns grandes focos de avaliação. São eles: produções artísticas na escola; modos de ensinar e de aprender; relações no interior da escola; gestão coletiva; multiplicações fora da escola; relações com o mundo do trabalho. Essas questões estão em consonância com os objetivos estabelecidos no projeto pedagógico da escola, ou seja: a Oi Kabum! BH não tem o intuito único de formar jovens capazes de produzir bons trabalhos nas cinco áreas artísticas. É de interesse da escola a formação de sujeitos críticos em relação a seu ambiente e que conseguem agir autonomamente; sujeitos capazes de avaliar os procedimentos de seus educadores e colegas; de se relacionar com o outro, em sua heterogeneidade; de se apropriar de processos de gestão dos espaços e das práticas em que estão inseridos; de multiplicar os conhecimentos que adquiriram em projetos coletivos fora da escola; de se relacionar de forma madura com o mundo do trabalho. Todas essas dimensões são avaliadas na escola, pois cada uma delas está intimamente relacionada com o trabalho artístico em si. Afinal de contas, como já nos lembrava Susan Sontag (2004) para a fotografia, qualquer escolha artística inclui, necessariamente, aspectos éticos e políticos, indissociáveis das questões puramente estéticas. Em segundo lugar, apresentamos dois dos procedimentos realizados no Dia da Avaliação. Como aponta Jussara Hoffmann, “métodos e instrumentos de avaliação estão fundamentados em valores morais, concepções de educação, de sociedade, de sujeito” (HOFFMANN, 2005, p. 13). É nesse sentido que esses procedimentos são norteados tanto pelas questões centrais da avaliação – que já eram coerentes com o projeto pedagógico da escola – quanto pela experiência e pelos valores já defendidos pela AIC ao longo do tempo e que encontram eco na concepção da Oi Kabum!. Com objetivo de avaliar as produções artísticas na escola, foram formados dez grupos de análise das produções (um para cada área artística, um para cada núcleo transversal e um décimo grupo que analisou trabalhos artísticos realizados por jovens das outras escolas Oi Kabum! do Brasil). Previamente, os educadores e os jovens de cada turma selecionaram algumas produções que poderiam gerar uma discussão interessante (não necessariamente uma boa produção, mas algo que pudesse fomentar um debate rico). Esses agrupamentos foram formados da seguinte maneira: cada grupo contava com a presença de um mediador (que era um membro da equipe da Diretoria ou um educador de uma área artística que não fosse a que estava sendo avaliada), um educador da linguagem ou núcleo avaliado (que tinha a função de produzir um relato escrito das discussões) e dez jovens selecionados aleatoriamente entre as cinco áreas artísticas. A heterogeneidade do grupo era essencial para que a avaliação fosse feita a partir de olhares externos, que não compartilhavam das referências específicas de cada linguagem ou núcleo. Apesar de contar com um decisivo grau de liberdade, essa avaliação não era isenta de parâmetros. Afinal, “todo processo avaliativo bem-feito baseia-se em critérios construídos com fundamentação adequada” (DEMO, p. 100). No caso da avaliação dos trabalhos artísticos produzidos pelos jovens, foram estabelecidos alguns focos, bem gerais, que deveriam orientar cada grupo. Eram eles: aspectos éticos, de linguagem e técnicos; tratamento da temática; relação entre realizadores e participantes das produções (formas de representação, reverberações sociais); inovação X clichê (relação entre deslocamentos e reprodução de lugares comuns). A idéia era que essas diretrizes, no entanto, fossem apenas orientações gerais, e que fossem necessariamente reformuladas – conjuntamente, por jovens e educadores, e tendo em vista as especificidades das produções – antes do início da discussão de cada grupo. Nesse sentido, o grupo que analisou as produções da Computação Gráfica, por exemplo, decidiu por guiar a apreciação por três critérios: interatividade (um dos focos dessa linguagem é a criação de peças interativas, e por isso analisar como esse elemento foi trabalhado em cada um dos trabalhos era uma questão importante); conteúdo/ética (os trabalhos avaliados atendem ao que se propõem? Como lidam com o conteúdo? No contexto em que estão, eles deslocam o olhar?) e estética (os trabalhos são bem resolvidos esteticamente? Quais foram as soluções estéticas adotadas pelos realizadores? O que poderia mudar?). Se o estabelecimento de critérios é um dos desafios centrais da avaliação em arte/educação hoje, a saída não parece ser a recusa da avaliação ou a adoção de parâmetros exógenos (puramente pedagógicos). Os grupos de avaliação das produções artísticas da Oi Kabum! demonstram que uma saída para esse dilema pode ser o estabelecimento compartilhado de critérios, que garante a legitimidade e a validade dos mesmos na medida em que são elaborados coletivamente, num processo de justificação pública. Como aponta Habermas (2003), uma decisão produzida na troca pública de argumentos não é apenas mais legítima, como tende a ter um ganho epistêmico significativo. Em seguida ao estabelecimento coletivo dos critérios, as produções foram mostradas e avaliadas em cada um dos grupos. O mediador era responsável por conduzir a discussão de forma respeitosa e, ao mesmo tempo, provocativa. Atentando para as respostas preguiçosas, como “gostei” ou “não gostei”, ele buscava lançar questões instigantes para os jovens. Esse procedimento de apreciação dos trabalhos, baseado não numa avaliação isolada, mas num debate entre os próprios jovens, se mostrou capaz de fomentar discussões interessantes sobre a produção artística, estimulando a autocrítica constante. Como aponta Doug Boughton, “o diálogo, apropriadamente conduzido, pode revelar valiosas percepções para o processo de fazer arte” (BOUGHTON, 2008, p. 384). Nesse sentido, a avaliação cumpre seu papel de diagnosticar e apontar caminhos, ao mesmo tempo em que está inserida num processo educativo, com conseqüências de aprendizagem para os jovens envolvidos ali. Para Zimmerman, um dos pressupostos da avaliação autêntica no campo da arte é “examinar tanto os procedimentos como os produtos de aprendizagem” (ZIMMERMAN, 2008, p. 406). É nesse sentido que a outra prática avaliativa que apresentamos aqui abarcou os demais focos de avaliação propostos. Cinqüenta jovens foram divididos em grupos de dez, para discutir alguma questão transversal importante no processo formativo da escola. Esses cinco grupos de discussão tinham a mediação de um integrante da Diretoria, e não contavam com a participação dos educadores. Todas as discussões foram registradas em áudio. Na tabela abaixo, listamos os grupos de discussão organizados e algumas perguntas geradoras de cada um deles. Grupo de discussão Algumas Questões Grupo 1: Modos de Ensinar e Aprender Quais são as diferentes estratégias de ensino dos educadores? Como esses métodos estão presentes nos espaços da escola (áreas artísticas, núcleos, orientação)? Objetivo: registrar a visão dos jovens sobre os processos pedagógicos em curso na escola, com ênfase nos métodos adotados pelos diferentes educadores. Como os educadores lidam com as dificuldades e potenciais específicos de cada jovem? Quais foram os aprendizados significativos do semestre? Grupo 2: Relações no interior da escola Objetivo: avaliar, com os participantes, a estrutura das relações entre jovens e entre eles e os educadores: dilemas, desafios e descobertas. Grupo 3: Gestão coletiva Objetivo: avaliar o andamento do projeto de gestão coletiva da Oi Kabum! BH. A intenção é produzir uma reflexão, com os jovens, sobre a forma como as decisões são tomadas na escola, e em que medida eles se vêem como participantes dessa decisão. Grupo 4: Multiplicações fora da Oi Kabum! Objetivo: discutir as iniciativas individuais ou coletivas no campo da arte e da mobilização social que eventualmente estejam sendo feitas pelos jovens, fora do espaço da escola. mais Como os jovens percebem as relações entre eles e os membros da equipe (coordenação, educadores, administrativo)? Como lidar com as diferenças diversas? Há rivalidades? De que tipo? Como elas são processadas cotidianamente? O que os jovens entendem como gestão coletiva? Como essa noção pode ser observada no cotidiano da escola? Como a gestão coletiva é vivenciada na prática? Como se dá a participação dos jovens? Quais são as movimentações dos jovens em suas comunidades? Os conhecimentos trabalhados na escola estão sendo, de alguma forma, reapropriados em outros campos da vida deles? Quais são os exemplos dessas multiplicações? É interessante que elas existam? Por quê? Grupo 5: Relação com o mundo do trabalho Objetivo: discutir as relações atuais dos jovens com o mundo do trabalho e seus projetos para o futuro. O foco é em como a experiência da Oi Kabum! se insere nas oportunidades – presentes ou futuras – de trabalho para os jovens. Qual é a importância da escola para as escolhas no mundo do trabalho? Na opinião dos jovens, de que forma a Oi Kabum! influencia nas decisões sobre a inserção no mundo do trabalho, e o que a escola tem a contribuir com isso? Alguém já conseguiu oportunidades profissionais que se relacionam inserção na escola? com a Tabela 1: Grupos de discussão e algumas questões Inicialmente, o mediador explicava a natureza daquele encontro e a posição dos jovens, que, naquele momento, eram mais avaliadores do que avaliados. No dizer de Zimmerman, “essa reorientação desfaz a autonomia tradicional dos pesquisadores, requerendo que pesquisadores e sujeitos tornem-se coinvestigadores” (ZIMMERMAN, 2008, p. 417). Na discussão, embora o mediador conduzisse a conversa por meio de perguntas geradoras, o grupo funcionava mais como um bate-papo, em que os participantes poderiam interromper uns aos outros livremente. Segundo Jussara Hoffmann, “é função da avaliação a promoção permanente de espaços interativos” (HOFFMANN, 2005, p. 16). Essa característica é fundamental para que possamos perceber nuances e detalhes da avaliação dos jovens, que muitas vezes ficam em segundo plano, por exemplo, num questionário escrito. Finalmente, apresentamos alguns usos que fazemos dos registros dessas avaliações, e as conseqüências delas em diferentes âmbitos. Acreditamos que dar retorno dos processos de avaliação aos diversos membros da escola é fundamental, uma vez que “somente se constitui o processo como tal, se ocorreram os três tempos: observar, analisar e promover melhores oportunidades de aprendizagem” (HOFFMANN, 2005, p. 14). Ao fim e ao cabo, a avaliação na Oi Kabum! BH serve a três objetivos principais: construir uma visão mais ampla sobre o que acontece na escola; alimentar o movimento da escola de se adaptar e incorporar mudanças; e sistematizar e compartilhar conhecimentos. Nesse sentido, os registros são utilizados para a confecção de relatórios temáticos semestrais, que consolidam uma visão geral sobre os processos da escola. Esses relatórios são redigidos pela Diretoria e lidos pela coordenação e pelos educadores. Esse documento é importante para o compartilhamento de informações entre educadores, que muitas vezes se vêem isolados em sua área artística ou núcleo específico. Num segundo momento, esse relatório é peça fundamental para o replanejamento das atividades e dos espaços da escola, em diferentes âmbitos. As reuniões de planejamento sempre levam em conta o que foi aferido a partir da avaliação. Várias mudanças já foram realizadas tendo como referência as análises feitas a partir dos registros das práticas avaliativas. Além disso, foi criado recentemente o boletim Recado da Pesquisa, com o objetivo de fazer com que esses resultados da avaliação cheguem também aos jovens, e possam fomentar discussões. O boletim é distribuído entre os jovens e publicado também na rede social Ning, juntamente com o relatório completo. Importante citar que as descrições e análises que aparecem nos relatórios para coordenadores e educadores e nos boletins para os jovens respondem, também, ao objetivo de sistematizar conhecimentos elaborados a partir das práticas nos projetos em que a AIC atua. As metodologias e experiências podem ser trocadas entre os projetos, e também com outras instituições com objetivos semelhantes. Por meio da publicação e divulgação dos resultados das análises, esses conhecimentos podem contribuir para discussões importantes. Este artigo é uma tentativa de atuar nesse sentido. 1 Inclusive na Oi Kabum! BH esse é um processo difícil. Ainda hoje estamos procurando a melhor maneira de consolidar informações e de promover os retornos das avaliações para educadores e jovens. 2 Há quatro unidades da Oi Kabum! em funcionamento. Além de Belo Horizonte, elas estão localizadas no Rio de Janeiro (realizada em parceria com o CECIP), no Recife (cujo parceiro é a ONG Auçuba) e em Salvador (desenvolvida parceria com a Cipó – Comunicação Interativa). 3 No último semestre, os seguintes grupos funcionaram na escola: Grupo Diálogo com o Ensino Médio, Grupo depesquisa e práticas sustentáveis, Grupo de gestão da biblioteca, Grupo de pesquisa artística, Grupo Ensinar e Aprender e Conselho Gestor. Todos esses grupos são formados por educadores e jovens. 4 Nos dias anteriores ao Dia da Avaliação, os jovens do Conselho Gestor da escola realizaram uma pesquisa junto aos colegas, que buscava apreender quais seriam, na opinião dos jovens, as principais questões a serem avaliadas na escola. Essas questões foram importantes para a definição dos focos da avaliação. _____________________ BIBLIOGRAFIA BOUGHTON, Doug. “Avaliação: da teoria à prática”. In: BARBOSA, Ana Mae (org.). Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2008. DEMO, Pedro. Avaliação: para cuidar que o aluno aprenda. São Paulo: Editora Criarp, 2006. GATTI, Bernardete A. “Reflexões à margem sobre o tratamento dado a questões de avaliação educacional – a propósito de uma leitura”. In: FREITAS, Luiz Carlos de (org). Questões de avaliação educacional. Campinas: Komedi, 2003. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. HOFFMANN, Jussara. O jogo do contrário em avaliação. Porto Alegre: Editora Mediação, 2005. LIMA, Rafaela (org.) Mídias comunitárias, juventude e cidadania. Belo Horizonte: Autêntica/Associação Imagem Comunitária, 2006. PERRENOUD, Philippe. Avaliação: da excelência à regulação das aprendizagens – entre duas lógicas. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. SOUSA, Sandra Maria Zakia Lian. “Avaliação da aprendizagem na legislação nacional: dos anos 1930 aos dias atuais”. Estudos em Avaliação Educacional, v. 1, p. 1-18, 2009. TOURINHO, Irene. “Retomando um tema delicado: avaliação e ensino de arte”. Anais do 19º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas “Entre Territórios”. Cachoeira – Bahia – Brasil. 20 a 25/09/2010. VASCONCELLOS, Celso dos Santos. “Superação da lógica classificatória e excludente: a avaliação como processo de inclusão”. In: Anais do Seminário de Educação de Arcos, 3., Minas Gerais. 2004. _____________. Avaliação: concepção dialética-libertadora do processo de avaliação escolar. São Paulo: Libertad, 2006. ZIMMERMAN, Enid. “Avaliação autêntica de estudantes de Arte no contexto de sua comunidade”. In: BARBOSA, Ana Mae (org.). Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2008. _____________________ MINI-CURRÍCULO Victor Ribeiro Guimarães é graduado em Comunicação Social Integrante do Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública Diretoria de Pesquisa e Metodologia da Associação Imagem Atualmente, é o profissional responsável pela sistematização avaliativas em curso na Oi Kabum! Belo Horizonte. pela UFMG. (EME) e da Comunitária. das práticas Paulo Emílio de Castro Andrade é mestre em Educação pela UFMG. Diretor de Projetos Educacionais da Associação Imagem Comunitária, atuando na coordenação da Oi Kabum! Belo Horizonte. Foi coordenador de projetos da ONG Humbiumbi – Arte, Cultura e Educação, à qual é associado. Foi diretor do Centro Cultural Maria Lívia de Castro (1998 a 2008).