Capítulo I Yorkshire, Inglaterra Novembro 1814 —W ilson! Por que tinha de fazer isso? A carruagem parou de repente, derrubando o cesto onde havia potes de geleia de framboesa. Os potes se quebraram. Alarmada, Arabella Hadley abriu a porta do veículo e olhou para a noite escura. — Ned? O que aconteceu? — Venha depressa, srta. Hadley! — chamou o empregado. Rapaz simples de dezessete anos, ele também servia de lacaio, menino de recados, assistente de cozinha, e fazia todos os outros trabalhos pelos quais Arabella não podia pagar. — Wilson fez aquilo de novo. A voz do velho cavalariço se ergueu em protesto. — Quieto, menino falastrão! Não precisa chamar a senhora. Arabella passou por cima da geleia derramada e desceu da carruagem. Esperava que Wilson não houvesse atropelado outro porco miserável. Lorde Harlbrook ainda não havia se recuperado da perda de seu precioso animal no mês anterior. Ela parou diante da carruagem. — Por que paramos? Ned apontou para Wilson, que resmungava de cabeça baixa. Karen Hawkins — Ele dirigia como um maluco e... — Eu não! — Wilson protestou. — Sim, você dirigia! E quando fez a curva, deve ter assustado o cavalo daquele homem, porque ele empinou e... — Que homem? — Arabella interrompeu. Wilson apontou para a lateral da estrada. Arabella se virou apreensiva. Na escuridão da noite, só conseguia ver a silhueta de um homem caído no chão. Seu coração quase parou quando ela identificou o casaco de múltiplas camadas e o inconfundível brilho de um caríssimo par de botas Hessian, polido com perfeição. — Por Deus! — ela gemeu. — Ele está... morto? — Não — Wilson apontou o polegar para uma árvore grossa e frondosa. — Só bateu a cabeça no galho quando o cavalo empinou. O galho baixo e encurvado tremia como se ainda sofresse o impacto do golpe. Graças a Deus, Wilson não passara por cima do pobre homem. A última coisa de que ela precisava era a atenção de um oficial da lei. O velho cavalariço desceu da carruagem e foi examinar o homem caído, tocando-o com a ponta de sua bota gasta. — Não devia estar muito atento, ou não teria perdido o controle da montaria. — Inexperiente — concordou Ned. — Pena o cavalo ter fugido. Mestre Robert teria apreciado um animal tão bom. — Meu irmão não precisa de um cavalo que se descontrola por qualquer coisa — Arabella disse com tom seco. — Dê-me a lanterna. Preciso ver se esse homem está muito ferido. — Não se aproxime demais — Wilson a preveniu. — Ele pode acordar, e não vai ficar feliz quando perceber que está deitado no chão. — Se ele me atacar, vocês têm permissão para atirar. — Arabella se inclinou para examinar o homem à luz da lanterna. — A julgar pela qualidade de suas vestes, ele devia ser o preço de uma noiva um cavalheiro de recursos. Wilson bufou. — Ele pode parecer nobre, mas nunca se sabe. Não se aproxime mais, srta. Arabella. lady Durham e lady Melwin jamais me perdoariam se alguma coisa lhe acontecesse. Arabella pensou que as tias ficariam mais aborrecidas por não terem presenciado um episódio tão excitante. Tia Emma e tia Jane eram ambas afeitas aos voos da fantasia romântica. Felizmente, a vida havia curado Arabella desse grave defeito fazia muito, muito tempo. Ela se debruçou sobre o homem caído. Ele estava deitado de lado, seus ombros se movendo num ritmo suave e constante que assegurava que ainda respirava. Negro como a noite, seu cabelo caía sobre o grande e roxo calombo que se formava em sua testa, enquanto o restante do rosto permanecia obscurecido pelas dobras de uma touca de lã. O vento ganhou força, carregando nele o sutil cheiro da neve. Arabella fechou o manto como se quisesse se proteger melhor. Não tinha escolha. Devia levar o hóspede para Rosemont. Suas tias cuidariam dele até o médico atender ao chamado. Quando Arabella se virava para retornar à carruagem, alguma coisa cintilou à luz da lanterna. Um anel de ouro com um brasão e uma grande esmeralda quadrada adornava um dedo da mão elegante do desconhecido. Quase sem perceber o que fazia, ela deixou a lanterna no chão gelado da estrada e se ajoelhou. Por Deus, não pode ser... Era como se todos os pensamentos se congelassem em sua mente. — Olhe só para isso! — Wilson exclamou. — Deve ser muito importante para usar um anel como esse. Espero que ele não fique muito zangado comigo por ter caído do cavalo! Karen Hawkins Com o coração latejando dentro do peito, Arabella mal ouviu as palavras do empregado. Ela estendeu a mão para a touca, entorpecida como se vivesse um sonho. Quando os dedos tocaram a lã, a mão poderosa se fechou em torno de seu punho como uma faixa de aço. O homem abriu os olhos e a encarou. Misterioso e sedutor, aquele olhar a fez cativa. Emoldurado por cílios longos e espessos, os olhos verdes eram belos como os de um anjo. Conhecia aqueles olhos. Talvez os conhecesse até melhor do que os dela. E também sabia o que encontraria sob a touca: pele dourada e um nariz reto e ousado sobre uma boca sensual criada para os prazeres proibidos. — Lucien! — O nome era como uma carícia esquecida tocando sua boca. A mão ainda segurava seu punho, mas ela conseguiu remover a touca e, com o movimento, os dedos roçaram no queixo áspero pela barba. Uma onda de calor intenso a invadiu penetrando pelos dedos e se concentrou na região dos seios, descendo lentamente. Arabella deixou cair os ombros ao sentir o impacto dessa reação, e um pânico imediato a inundou. Era assustador! Ainda estava sob o encanto de Lucien. Com uma força que nem sabia possuir, ela se libertou dos dedos que seguravam seu braço, levando a mão ao peito como se a sentisse queimar. Os olhos encontraram a boca encurvada num sorriso preguiçoso. Mas Arabella se recusava a responder. O que quer que fosse, não era mais uma mocinha inexperiente de dezesseis anos. — Por que voltou, Lucien? Ele abriu a boca como se pretendesse responder, mas, antes que pudesse emitir algum som, fechou os olhos e sua cabeça caiu para o lado. A inconsciência o reclamava novamente. o preço de uma noiva — Conhece esse homem, senhorita? — A voz de Wilson hesitava entre o medo e a esperança. Arabella levantou-se, as mãos segurando o tecido da saia. — Ele é Lucien Deveraux, o duque de Wexford. — Um duque! Certamente serei enforcado. Ned riu. — Só por ter assustado o cavalo? — Não me dou muito bem com a nobreza. Arabella olhou para Lucien, odiando-o mais uma vez por ter voltado a perturbar sua vida. Por um instante ela pensou em deixá-lo onde estava, sozinho e inconsciente. Contudo, o vento frio soprou mais uma vez, esfriando seu rosto corado. A consciência e suas tias jamais permitiriam tal coisa. Com um suspiro pesado, ela pegou a lanterna. — Ajudem-me a colocá-lo na carruagem. Minhas tias poderão cuidar dele até localizarmos sua montaria. Resmungado contra a inconveniência, Wilson e Ned carregaram Lucien para a carruagem e o empurraram sobre o assento de couro. Arabella segurava a saia para subir também, quando Ned parou assustado. — Por Deus, senhorita — ele sussurrou com voz rouca. Os olhos muito abertos estavam fixos em seus dedos. Havia sangue neles. Wilson empalideceu. Arabella empurrou Ned para o lado e se acomodou no assento. Ela tentava afastar as inúmeras camadas do sobretudo de Lucien, puxando o tecido para o lado. Ned correu a ajudá-la e, juntos, removeram o sobretudo e o casaco mais justo que o duque usava por baixo. Da calça justa e elegante às dobras complexas de sua gravata, Lucien Deveraux era a imagem perfeita do duque de Wexford. Só o rasgo na camisa e o sangue que escorria e manchava o tecido arruinavam a imagem de perfeição. Ned balançou a cabeça, torcendo o nariz com desgosto. 10 Karen Hawkins — Nunca soube que um duque podia sangrar tanto. Não deve comer muito pudim de pão. Da porta da carruagem, Wilson viu Arabella manipular os botões de madrepérola do colete, seu rosto pálido pela ansiedade. — Se ele morrer, certamente me enforcarão. — Ele não vai morrer — ela disse com tom seco. — Esperei dez anos para dizer a este canalha pestilento o que penso dele, e não vou esperar mais por isto. Wilson conseguiu rir, apesar do pavor. — Sim, essa é uma boa maneira de convencê-lo a recobrar a consciência, senhorita. Continue e... — Ele parou e olhou por cima de um ombro. — O que é aquilo? O som de cães de caça latindo superou o ruído do vento. O eco atravessou a névoa úmida e se dissipou na noite escura. Wilson olhou para Arabella com o rosto muito pálido. — São os cães do oficial Robbins. Agora não. Por favor, Deus, agora não. Havia sido tão cuidadosa! Tivera muita cautela para que ninguém soubesse o motivo de suas excursões noturnas. Se fosse descoberta, estaria perdida. Sem tomar conhecimento da tensão, Ned coçou o queixo onde uma barba rala começara a surgir recentemente. — Ele deve estar procurando contrabandistas. Ouvi dizer que jurou pegá-los antes do inverno. Wilson engoliu de forma ruidosa. — É melhor irmos andando, senhorita. Os cachorros latiram novamente, um som sinistro e sombrio. Arabella olhou para Lucien. — Para Rosemont, Wilson. E depressa! Ela o ouviu repetindo as ordens para Ned. O rapaz se acomodou com as rédeas na mão, e Wilson sentou-se ao lado dele. Segundos depois a carruagem retomava sua jornada pela estrada escura. o preço de uma noiva 11 A lanterna balançava, o raio de luz tremulando sobre o rosto pálido de Lucien. Arabella começou a afrouxar sua gravata, mas o nó era difícil de desfazer. Frustrada, ela o puxou para um lado e soltou a camisa, rasgando-a quando esta resistiu ao esforço. A visão da pele nua a fez parar. Lucien era mais musculoso do que se lembrava. Não que ele houvesse sido menos do que forte e belo. Mas o Lucien Deveraux que ela conhecera era um homem autoindulgente que cavalgava pelo campo enquanto esperava pelo início da temporada. Dono de uma beleza selvagem, ele havia sido hedonista declarado e elegante ao extremo, excedendo sempre em todos os esportes, da esgrima à equitação. Mesmo assim, ele não possuía a força e o poder que emanavam do homem caído diante dela. Arabella usou a ponta da camisa rasgada para limpar o sangue de seu ombro, tentando examinar a ferida. O galho da árvore causara mais dano do que o galo em sua testa. Um corte seguia a curva de um ombro, atravessando músculos e tendões. Apesar do sangramento abundante, o ferimento não parecia ser profundo. Aliviada por ele não estar mortalmente ferido, olhou em volta tentando encontrar alguma coisa que pudesse servir de bandagem, mas não encontrou nada. — Maravilhoso! — resmungou. — Suponho que terei de usar meu saiote. Devia ter deixado você na estrada, Lucien Deveraux, entregue aos ratos! Com a testa franzida, ela ergueu a bainha da saia e rasgou uma longa tira do tecido de um dos saiotes. Depois, dobrou o tecido num quadrado perfeito e o prendeu sobre o ferimento com as tiras da touca, amarrando-as tão forte quanto era possível. — Aí está. Isso servirá para conter o sangue até chegarmos em Rosemont. — Tirou o pesado cobertor da carruagem de baixo do banco e o agasalhou, mais para a própria paz 12 Karen Hawkins de espírito, do que por estar preocupada com seu conforto. Era desconcertante ficar sentada na carruagem tão próxima de todos aqueles músculos e da pele dourada e firme. Segurando o manto contra o peito, ela se encolheu no canto do banco e orou fervorosamente para que um coelho atravessasse o caminho dos cães do oficial Robbins. Um sorriso pálido distendeu seus lábios. A ideia era divertida, mas não o bastante para desfazer os nós de seu estômago. Ainda não estava perto do sucesso. Mas se as coisas continuassem progredindo, tudo estaria resolvido no próximo ano — as dívidas de seu pai, as despesas médicas de Robert. Talvez tivesse até o suficiente para concluir as melhorias em Rosemont. Só precisava de tempo. Tempo e um pouco de sorte. É claro, a sorte não parecia favorecê-la naquele momento. Ela olhou para Lucien. O duque continuava desfalecido, resmungando a cada solavanco do veículo. Mesmo sabendo que o pensamento era infantil, Arabella desejava que ele estivesse consciente para poder se divertir com seu desconforto. O veículo sacudiu ao passar por um buraco mais fundo, e Lucien deixou escapar um gemido baixo e rouco, a mão tateando o ombro ferido. Arabella a segurou apressada, impedindo-o de remover o curativo improvisado. Com a testa franzida, ele ainda tentava se livrar da bandagem. Ela o continha com firmeza, segurando seu pulso com as duas mãos. Depois de um momento, Lucien cedeu e deixou a cabeça cair para o lado, repousando-a em seu colo, a respiração arfante, mas constante. Arabella esperou até que ele relaxasse, e então ajeitou o cobertor sobre seu corpo. Lucien parecia tranquilo, os olhos fechados conferindo-lhe a expressão inocente de um menino. Mas ela não se deixava enganar. Conhecia-o bem. Inclinando-se para a frente, sussurrou em seu ouvido: o preço de uma noiva 13 — Se você sobreviver a tudo isso, Lucien Deveraux, talvez eu mesma acabe com sua vida. Lucien despertou devagar, dominado por sensações variadas. A cabeça repousava sobre uma superfície macia e quente, e o cheiro de framboesas despertava visões de preguiçosos dias de verão. Exceto por um ou outro solavanco do veículo, conduzido com pouca habilidade, podia quase acreditar que repousava em um leito macio, recuperando-se de uma noite de excessos. Ele tentou se mover, e uma dor aguda desfez a agradável fantasia. Por mais que cometesse excessos, nada poderia causar tão intensa dor. Ergueu a mão para tocar o ombro. — Tome cuidado — disse uma voz feminina. Rouca e baixa, com um suave sotaque de Yorkshire, ela despertava uma lembrança distante. Por um momento, Lucien teve uma visão clara de olhos castanhos e cintilantes e lábios de pétalas. Distraído de sua dor, ele abriu os olhos. Um rosto doce se debruçava sobre o dele, a testa delicada franzida em evidente apreensão. Seu coração bateu mais depressa. Conhecia aqueles olhos, e já sentira aquela boca sob a sua, havia muito tempo. — Bella... A mão dela, antes repousando confiante sobre sua face, cerrou-se. — Talvez Vossa Graça possa considerar a conveniência de falar-me olhando para meu rosto, não para meus seios. Lucien detectou a frieza na voz firme. Ele a encarou e sorriu como se pedisse perdão, mesmo sabendo que jamais o teria. Cometera contra ela pecados que iam muito além de uma simples impropriedade. 14 Karen Hawkins Ela indicou o assento do outro lado do veículo. — Mova-se. Não havia nada a fazer além de obedecer. Permanecer ali deitado com a cabeça em seu colo não o poria em posição de vantagem em caso de discussão; sem mencionar o efeito causado pela proximidade. Ele se levantou, lutando contra a escuridão e a dor no ombro. — Meu Deus — gemeu. — O que aconteceu, afinal? — Não se lembra? — Não. — Não se lembrava de nada que fizesse sentido. As imagens de um penhasco no ar frio da noite, o cheiro do oceano... Estava a caminho de... algum lugar. Lucien tocou a testa, sentindo forte dor quando os dedos encontraram uma área inchada. — Eu caí? — Seu cavalo empinou, e você bateu com a cabeça em um galho de árvore. — Ela parou como se não soubesse o que dizer. — Meu condutor seguia em velocidade superior à indicada para uma estrada tão estreita. O olhar de Lucien sugeria que ela era, de certa forma, culpada pelo mal que o acometera. Ele tocou a testa, onde a dor aumentava a cada momento. — Dói muito... — Você vai sobreviver. É preciso mais que um galho de carvalho para prejudicar essa cabeça tão dura. Ah! Em algum ponto da jornada sua Arabella desenvolvera uma veia humorística e sarcástica! Ele a estudou. Ela se mantinha ereta, com as mãos crispadas sobre as pernas, as faces tingidas por um rubor, os olhos dominados por um evidente cansaço. Com seus cachos cor de mel e os grandes olhos escuros, ela parecia mais jovem do que se lembrava. Mais jovem e ainda mais linda. Seu peito sofreu forte opressão, e o sorriso desapareceu de seus lábios. Maldito Ministério do Interior por mandá-lo o preço de uma noiva 15 a Yorkshire. Recusara a missão ao ser informado sobre a missão. Era necessário que permanecesse em Londres, onde a irmã se preparava para sua primeira temporada, mas seus protestos haviam sido veementemente rejeitados. Sem alternativa, ele planejara chegar protegido pelo manto da noite, descobrir tudo o que pudesse, e partir sem que ninguém tomasse conhecimento de sua presença. É claro, isso fora antes de o cocheiro de Arabella cruzar seu caminho e causar o acidente. Ele moveu o ombro e se encolheu sob a força da dor. — Maldição! Tenho a sensação de que fui atingido por um tiro! — Se eu tivesse atirado, Lucien, você não estaria aqui agora. Esteja certo disso. Não. Se Arabella o houvesse alvejado, estaria morto, enquanto ela dançaria sobre seu corpo sem vida em intensa celebração. Ele a ensinara os rudimentos da prática do tiro ao alvo quando ela tinha apenas quinze anos, e naquele tempo já notara nela uma impressionante habilidade. Lucien tocou o curativo improvisado. Preso com firmeza, continha o sangramento com eficiência. — Suponho que deva agradecer por ter... A carruagem parou. Sacudido pelo movimento brusco, Lucien bateu com o ombro contra a lateral do banco. Manchas coloridas explodiram diante de seus olhos e uma agonia intensa rasgou seu corpo. Tentando respirar, apesar da dor, ele caiu para a frente e quase chegou ao chão antes que Arabella conseguisse ampará-lo. Seus braços o envolveram, e ela o amparou contra o corpo. A carruagem retomou a viagem, sacudindo muito enquanto, lentamente, ele voltava a respirar com alguma normalidade. Quando a dor perdeu parte da intensidade, Lucien percebeu que tinha o peito apoiado nos seios de Arabella. O cheiro de framboesas invadiu seus sentidos e ele se deliciou com o contato, deixando-se inundar pelo calor feminino. 16 Karen Hawkins — Se não consegue ficar sentado sem ajuda, vou pedir para o lacaio viajar aqui conosco e ampará-lo. — Gelada como um sopro de vento da montanha, a voz dela o trouxe de volta ao presente. Lucien a fitou. Seus lábios estavam muito próximos dos dela. Os olhos de Arabella tornaram-se mais escuros; o tom profundo de chocolate ganhava reflexos dourados. Ele se aproximou, os olhos fixos na boca rosada. Devia sair da vida dela outra vez. Imediatamente. Mas o corpo queimava com um calor que o deixava tonto, embriagado como um rapaz que prova seu primeiro caneco de cerveja. Cada sensação parecia amplificada — a cadência da voz de Arabella, a curva provocante dos seios, até o farfalhar de suas saias engomadas. Uma fina camada de suor brilhava sobre a boca benfeita, e ele teria trocado cada centavo de sua fortuna para sentir seu sabor novamente ali, naquele momento. Passara a vida toda fugindo daquela mulher. O que fazia agora, submetendo-se a esse prazer tão insuportável, a essa tortura tão deliciosa? Sim, era fato que não podia conter o impulso de tocála, como não podia impedir a própria respiração. Sem desviar os olhos dos dela, tocou uma mecha dos cabelos cor de mel. Arabella entreabriu os lábios numa reação chocada. Então, ele a beijou. Um beijo sutil, breve. O prazer que o invadiu era como uma onda que poderia afogá-lo. Era difícil conter o impulso de esmagá-la contra o peito, exigir mais e mais até ouvi-la gritar em êxtase. Com um protesto sufocado, Arabella se soltou e o esbofeteou, a mão atingindo seu rosto com violência ruidosa. A dor se espalhou em todas as direções, e o movimento brusco da cabeça empurrada para o lado fez explodir novamente aquela agonia que brotava do ombro e se espalhava em todas as direções. — Maldição! — ele grunhiu. o preço de uma noiva 17 — Suas paixões não me interessam, Vossa Graça. Não sou mais uma menina imatura de dezesseis anos. — O desgosto temperava cada palavra com seu veneno poderoso. Tentando não permitir que ela visse o quanto esta decepcionado, Lucien resmungou: — É uma pena... — Encarou-a e forçou um sorriso frio. — Entendi bem sua colocação. E me manterei aqui, do meu lado da carruagem. — E, depois desta noite, fora de sua vida. Uma luz perigosa iluminou os olhos dela. — Tenho certeza de que sua esposa saberá apreciar seu nobre esforço. As palavras penetraram no cérebro de Lucien como afiados cacos de vidro. Se Arabella acreditava que Sabrina desaprovaria seus atos, estava enganada. Sua esposa teria rido se o visse dominado pela paixão de forma tão intensa, tanto que esquecia tudo o que não fosse a mulher com quem estava. Mas Sabrina não estava ali. A culpa retornava como uma dor aguda em suas entranhas. — Minha esposa morreu há três anos. Arabella recuou no assento. Ele a estudou sem dizer nada. Isso era o que esperava, o que ele merecia. Felizmente, não possuía mais ilusões sobre quem ou o que ele era. A morte de Sabrina cuidara disso. Lucian apoiou a cabeça contra o encosto do banco e fechou os olhos. — Sinto muito... A voz de Arabella o tocou como o sopro de um anjo. Lucien preferiu não encará-a. Não queria ver a piedade que não merecia. — Por favor, não lamente. Foi misericordiosamente rápido. Para nós dois. A carruagem concluiu uma curva e começou a reduzir a velocidade. Lucien olhou para as janelas cobertas por cortinas. 18 Karen Hawkins — Onde estamos? — Na estrada para Rosemont. — E meu cavalo? — Saiu em disparada quando se assustou. Ned irá procurar o animal assim que chegarmos em casa. E ele estaria livre para concluir sua missão. Lucien colocou a mão sobre o casaco e tocou o volume formado pelo pacote de couro no bolso. Felizmente, este não se perdera na queda. Tirou a mão e quase riu da própria atitude furtiva. Quem teria imaginado que ele, Lucien Deveraux, sexto duque de Wexford, era um dos mais reconhecidos agentes de infiltração do Ministério do Interior? Olhou para sua companheira de viagem, tentando determinar se ela desconfiava de alguma coisa. — Arabella, por que nós... — Logo estaremos em Rosemont. Sugiro que repouse e poupe suas energias. O desapontamento superou a curiosidade. Então, era esse o jogo que ela queria fazer. Muito bem. Devia isso a Arabella, se não mais. — É claro. Assim que meu cavalo for encontrado, eu partirei. — Se é a falta de montaria que o prende aqui, será um prazer providenciar outro animal. Por certo não será da mesma qualidade dos cavalos montados por Vossa Graça, mas servirá como solução imediata. Lucien inspirou profundamente. Odiava aquele tipo de tratamento. Vossa Graça. Como se ele fosse um lorde arrogante. Deus, como amara essa mulher! Sentira por ela o amor temperado pela paixão indisciplinada de um voluntarioso rapaz de vinte anos, mimado pela família e pelas circunstâncias. Amara-a, mas fora forçado a deixá-la partir. Como teria sido a vida de Arabella nesses anos? Ela o preço de uma noiva 19 se casara com um cavalheiro de sua região? Com um fazendeiro, talvez?... Com um típico habitante de Yorkshire, um homem grande, simples, de mãos calejadas e sorriso largo? Pensar que tal criatura simplória poderia tocá-la todas as noites era suficiente para fazer seu estômago protestar. Ele meneou a cabeça para superar a náusea. Devia estar mais gravemente ferido do que havia imaginado. A lateral do corpo doía, e ele sentia a boca seca e amarga. A carruagem parou de repente. Arabella se inclinou e afastou a cortina. — Ah, que ótimo! — exclamou, aborrecida. — É o oficial Robbins e seus homens. — O que eles querem? — Meu cocheiro acredita que eles estão procurando contrabandistas. — Ah, sim... Uma noite escura como essa é perfeita para trazer o carregamento de uma embarcação para terra firme. — E você fala como se tivesse grande conhecimento sobre o assunto. Qual era o problema com ele, afinal? Por que se sentia tão tonto e confuso? — Ah, eu... Sei muito sobre muitas coisas. — Imagino que sim — Arabella disse com evidente indiferença, olhando outra vez pela janela. Devia estar satisfeito com o desinteresse dela, mas estava incomodado. Vozes soavam do lado de fora, e de repente ele percebeu que haveria sérias consequências para Arabella, caso ela fosse surpreendida em sua companhia. Já a desonrara uma vez; não repetiria a vergonhosa façanha. Uma discussão acalorada se desenrolara do lado de fora da carruagem, mas foi breve. Um silêncio tenso seguiu as vozes alteradas. Lucien tentava se manter sentado e ereto, porém a cabeça latejava terrivelmente. Ele removeu um cantil do bolso do casaco e tentou retirar a tampa, mas a mão parecia entorpecida. O braço pesava. 20 Karen Hawkins Praguejando em voz baixa, ele entregou o cantil a Arabella. — Abra, por favor. Ela olhou para a embalagem com desaprovação. Como ele podia pensar em beber num momento como aquele? Certamente, não percebia o quanto estava em jogo ali. — Não seria melhor se... — Arabella, abra o cantil! Notando a intensa e súbita palidez no rosto dele, ela reconheceu a firmeza em seu tom de voz. Esse Lucien não era mais o rapaz de sua infância. Era um homem maduro, mais velho, e mais perigoso do que nunca. Do lado de fora, uma voz fria e determinada pedia ajuda. Passos se aproximaram da porta, detidos pelo protesto veemente de Wilson. Arabella abriu o cantil, torcendo o nariz ao reconhecer o forte aroma de brandy. Lucien sorveu o líquido dourado com um murmúrio de aprovação. Arabella tentou não notar como ele puxava a gravata, exibindo o pescoço musculoso. A imagem lhe despertava lembranças quentes, perigosas. Ela uniu as mãos e disse: — Por favor, componha-se. Não vai ser bom se o oficial o surpreender nesse estado. — É claro — ele murmurou, bebendo mais um gole de brandy sem desviar os olhos dos dela. Belo e dissoluto, Lucien Deveraux era letal. Mas ela não fraquejaria. Não dessa vez. Determinada, baniu da mente todas as lembranças doces, agarrando-se às mais dolorosas e usando-as como um escudo contra o poder sedutor daquele homem. — Direi ao oficial Robbins que você é amigo de Robert e sofreu uma queda do cavalo. Isso vai explicar por que estou aqui sem um acompanhante. — Não será suficiente. — Será, se você fechar os olhos. Não pode me seduzir o preço de uma noiva 21 enquanto dorme. Ele a encarou em silêncio por um longo instante, pensativo. Depois disse: — Só aceito essa condição para poupá-la do constrangimento. — Sério, ajeitou-se sob o cobertor e fechou os olhos uma fração de segundo antes de a porta ser aberta. O oficial Robbins, precedido pelo característico cheiro de alho, lançou a luz de sua lanterna para o interior do veículo. — Boa noite, srta. Hadley. — Boa noite, oficial. Algum problema? Ele olhou desconfiado para o interior da carruagem. — Quem é esse? — Um amigo de meu irmão. Ele chegou hoje à tarde. — Ah, verdade? — Sim. Minhas tias e eu esperamos que ele parta em breve. O oficial se animou com a menção às tias de Arabella. — Lady Melwin prometeu que mandaria um tônico para minhas cabras. Disse que a poção as faria produzir o dobro de filhotes. — Perguntarei a ela sobre o tônico. — Não é necessário. Eu mesmo posso ir perguntar. — Ele inspirou profundamente, sentindo o cheiro de brandy no ar. — Bêbado como um gambá, não? Arabella olhou para Lucien com ar de repulsa. — Felizmente, ele vai embora amanhã. — Tão ruim assim? Seu irmão devia escolher melhor os amigos que leva a Rosemont. Arabella forçou um sorriso, o que serviu para desviar a atenção do oficial, que sorriu de volta e esqueceu Lucien. — Sua preocupação é um grande conforto para mim. As coisas têm sido difíceis desde a morte de meu pai, e depois Robert voltou para nós e... — Ora, ora, não precisa chorar. — O policial olhou em volta como se precisasse de ajuda. — Não a teria parado, 22 Karen Hawkins não fosse por uma denúncia dando conta de um carregamento de brandy... — Ele olhou outra vez para Lucien. Arabella notou que o cobertor escorregara de seu ombro, deixando à mostra o ferimento ensanguentado e a camisa manchada de vermelho. — É geleia — ela se apressou em dizer. — Geleia? — Sim, de framboesa. — Ela apontou para o chão sujo. Parte da lambança fora causada mesmo pela geleia, mas havia sangue na mistura. Tratou de tocar o que era realmente geleia, e aproximou os dedos do nariz do oficial. — Sente o aroma? Um coelho saltou na frente da carruagem. Os cavalos se assustaram, e quando Wilson conseguiu recuperar o controle, o cesto já havia caído do assento e vários potes de geleia se quebraram. — De fato? — Sim, ficamos cobertos de framboesa! Ele riu, reconhecendo o cheiro adocicado da compota. — Encontrou alguma coisa? — perguntou uma voz estridente do lado de fora. O oficial encolheu os ombros como se quisesse se desculpar com Arabella. — Lorde Harlbrook fez questão de vir — ele explicou. — O homem tem certeza de que os contrabandistas estão usando Red Rooster para esconder suas mercadorias. Pessoalmente, acho que ele está zangado por ter perdido sua parte nos lucros. A voz de Harlbrook se ergueu novamente na noite escura. — Robbins! O que é isso? — Não é nada, milorde. A srta. Hadley e o amigo do irmão dela estão cobertos de geleia de framboesa. Uma figura rechonchuda tomou o lugar de Robbins na porta. — O jovem Hadley não tem amigos. o preço de uma noiva 23 Arabella rangeu os dentes para resistir ao impulso de plantar um pé bem no meio da testa de lorde Harlbrook. — Não creio que conheça todos os amigos de Robert, milorde. Talvez... — Já disse para me chamar de John, minha cara. Quem é esse homem? Furiosa, ela adotou um tom altivo, quase arrogante. — Esse é Lucien Deveraux, o duque de Wexford. — Duque? — Sexto duque, para ser mais precisa. É claro, o senhor só chegou recentemente a esta região, por isso não pode saber que ele e a família costumavam vir todos os anos para a temporada de caça. Ele e Robert se correspondem há muito tempo. A incredulidade de lorde Harlbrook era palpável. Arabella fez uma oração silenciosa de gratidão por não ter sido interceptada duas horas antes, quando a carruagem estivera repleta de barris de conhaque francês.