Capítulo I
Yorkshire, Inglaterra
Novembro 1814
—W
ilson! Por que tinha de fazer isso?
A carruagem parou de repente, derrubando o
cesto onde havia potes de geleia de framboesa. Os potes
se quebraram. Alarmada, Arabella Hadley abriu a porta do
veículo e olhou para a noite escura.
— Ned? O que aconteceu?
— Venha depressa, srta. Hadley! — chamou o empregado. Rapaz simples de dezessete anos, ele também servia
de lacaio, menino de recados, assistente de cozinha, e fazia
todos os outros trabalhos pelos quais Arabella não podia
pagar. — Wilson fez aquilo de novo.
A voz do velho cavalariço se ergueu em protesto.
— Quieto, menino falastrão! Não precisa chamar a senhora.
Arabella passou por cima da geleia derramada e desceu da carruagem. Esperava que Wilson não houvesse atropelado outro porco miserável. Lorde Harlbrook ainda não
havia se recuperado da perda de seu precioso animal no
mês anterior. Ela parou diante da carruagem.
— Por que paramos?
Ned apontou para Wilson, que resmungava de cabeça
baixa.
Karen Hawkins
— Ele dirigia como um maluco e...
— Eu não! — Wilson protestou.
— Sim, você dirigia! E quando fez a curva, deve ter
assustado o cavalo daquele homem, porque ele empinou e...
— Que homem? — Arabella interrompeu.
Wilson apontou para a lateral da estrada.
Arabella se virou apreensiva. Na escuridão da noite, só
conseguia ver a silhueta de um homem caído no chão. Seu
coração quase parou quando ela identificou o casaco de
múltiplas camadas e o inconfundível brilho de um caríssimo
par de botas Hessian, polido com perfeição.
— Por Deus! — ela gemeu. — Ele está... morto?
— Não — Wilson apontou o polegar para uma árvore
grossa e frondosa. — Só bateu a cabeça no galho quando o
cavalo empinou.
O galho baixo e encurvado tremia como se ainda sofresse o impacto do golpe. Graças a Deus, Wilson não passara
por cima do pobre homem. A última coisa de que ela
precisava era a atenção de um oficial da lei.
O velho cavalariço desceu da carruagem e foi examinar
o homem caído, tocando-o com a ponta de sua bota gasta.
— Não devia estar muito atento, ou não teria perdido o
controle da montaria.
— Inexperiente — concordou Ned. — Pena o cavalo ter
fugido. Mestre Robert teria apreciado um animal tão bom.
— Meu irmão não precisa de um cavalo que se descontrola por qualquer coisa — Arabella disse com tom seco. —
Dê-me a lanterna. Preciso ver se esse homem está muito
ferido.
— Não se aproxime demais — Wilson a preveniu. — Ele
pode acordar, e não vai ficar feliz quando perceber que está
deitado no chão.
— Se ele me atacar, vocês têm permissão para atirar. —
Arabella se inclinou para examinar o homem à luz da lanterna. — A julgar pela qualidade de suas vestes, ele devia ser
o preço de uma noiva
um cavalheiro de recursos.
Wilson bufou.
— Ele pode parecer nobre, mas nunca se sabe. Não se
aproxime mais, srta. Arabella. lady Durham e lady Melwin
jamais me perdoariam se alguma coisa lhe acontecesse.
Arabella pensou que as tias ficariam mais aborrecidas
por não terem presenciado um episódio tão excitante. Tia
Emma e tia Jane eram ambas afeitas aos voos da fantasia romântica. Felizmente, a vida havia curado Arabella
desse grave defeito fazia muito, muito tempo.
Ela se debruçou sobre o homem caído. Ele estava deitado de lado, seus ombros se movendo num ritmo suave e constante que assegurava que ainda respirava. Negro
como a noite, seu cabelo caía sobre o grande e roxo calombo que se formava em sua testa, enquanto o restante do
rosto permanecia obscurecido pelas dobras de uma touca
de lã.
O vento ganhou força, carregando nele o sutil cheiro da
neve. Arabella fechou o manto como se quisesse se proteger melhor. Não tinha escolha. Devia levar o hóspede para
Rosemont. Suas tias cuidariam dele até o médico atender ao
chamado.
Quando Arabella se virava para retornar à carruagem,
alguma coisa cintilou à luz da lanterna. Um anel de ouro
com um brasão e uma grande esmeralda quadrada adornava
um dedo da mão elegante do desconhecido. Quase sem perceber o que fazia, ela deixou a lanterna no chão gelado da
estrada e se ajoelhou.
Por Deus, não pode ser...
Era como se todos os pensamentos se congelassem em
sua mente.
— Olhe só para isso! — Wilson exclamou. — Deve ser
muito importante para usar um anel como esse. Espero
que ele não fique muito zangado comigo por ter caído do
cavalo!
Karen Hawkins
Com o coração latejando dentro do peito, Arabella mal
ouviu as palavras do empregado. Ela estendeu a mão para
a touca, entorpecida como se vivesse um sonho. Quando os
dedos tocaram a lã, a mão poderosa se fechou em torno de
seu punho como uma faixa de aço. O homem abriu os olhos
e a encarou.
Misterioso e sedutor, aquele olhar a fez cativa. Emoldurado
por cílios longos e espessos, os olhos verdes eram belos
como os de um anjo.
Conhecia aqueles olhos. Talvez os conhecesse até melhor
do que os dela. E também sabia o que encontraria sob a
touca: pele dourada e um nariz reto e ousado sobre uma
boca sensual criada para os prazeres proibidos.
— Lucien! — O nome era como uma carícia esquecida tocando sua boca. A mão ainda segurava seu punho, mas
ela conseguiu remover a touca e, com o movimento, os
dedos roçaram no queixo áspero pela barba. Uma onda
de calor intenso a invadiu penetrando pelos dedos e se
concentrou na região dos seios, descendo lentamente.
Arabella deixou cair os ombros ao sentir o impacto dessa reação, e um pânico imediato a inundou. Era assustador! Ainda estava sob o encanto de Lucien. Com uma força
que nem sabia possuir, ela se libertou dos dedos que seguravam seu braço, levando a mão ao peito como se a sentisse
queimar.
Os olhos encontraram a boca encurvada num sorriso
preguiçoso.
Mas Arabella se recusava a responder. O que quer que
fosse, não era mais uma mocinha inexperiente de dezesseis
anos.
— Por que voltou, Lucien?
Ele abriu a boca como se pretendesse responder, mas,
antes que pudesse emitir algum som, fechou os olhos e
sua cabeça caiu para o lado. A inconsciência o reclamava
novamente.
o preço de uma noiva
— Conhece esse homem, senhorita? — A voz de Wilson
hesitava entre o medo e a esperança.
Arabella levantou-se, as mãos segurando o tecido da
saia.
— Ele é Lucien Deveraux, o duque de Wexford.
— Um duque! Certamente serei enforcado.
Ned riu.
— Só por ter assustado o cavalo?
— Não me dou muito bem com a nobreza.
Arabella olhou para Lucien, odiando-o mais uma vez por
ter voltado a perturbar sua vida. Por um instante ela pensou
em deixá-lo onde estava, sozinho e inconsciente.
Contudo, o vento frio soprou mais uma vez, esfriando seu
rosto corado. A consciência e suas tias jamais permitiriam
tal coisa. Com um suspiro pesado, ela pegou a lanterna.
— Ajudem-me a colocá-lo na carruagem. Minhas tias
poderão cuidar dele até localizarmos sua montaria.
Resmungado contra a inconveniência, Wilson e Ned
carregaram Lucien para a carruagem e o empurraram sobre
o assento de couro. Arabella segurava a saia para subir
também, quando Ned parou assustado.
— Por Deus, senhorita — ele sussurrou com voz rouca.
Os olhos muito abertos estavam fixos em seus dedos.
Havia sangue neles.
Wilson empalideceu. Arabella empurrou Ned para o
lado e se acomodou no assento. Ela tentava afastar as inúmeras camadas do sobretudo de Lucien, puxando o tecido
para o lado. Ned correu a ajudá-la e, juntos, removeram o sobretudo e o casaco mais justo que o duque usava
por baixo.
Da calça justa e elegante às dobras complexas de sua
gravata, Lucien Deveraux era a imagem perfeita do duque
de Wexford. Só o rasgo na camisa e o sangue que escorria
e manchava o tecido arruinavam a imagem de perfeição.
Ned balançou a cabeça, torcendo o nariz com desgosto.
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Karen Hawkins
— Nunca soube que um duque podia sangrar tanto. Não
deve comer muito pudim de pão.
Da porta da carruagem, Wilson viu Arabella manipular
os botões de madrepérola do colete, seu rosto pálido pela
ansiedade.
— Se ele morrer, certamente me enforcarão.
— Ele não vai morrer — ela disse com tom seco. —
Esperei dez anos para dizer a este canalha pestilento o que
penso dele, e não vou esperar mais por isto.
Wilson conseguiu rir, apesar do pavor.
— Sim, essa é uma boa maneira de convencê-lo a recobrar a consciência, senhorita. Continue e... — Ele parou
e olhou por cima de um ombro. — O que é aquilo?
O som de cães de caça latindo superou o ruído do vento. O eco atravessou a névoa úmida e se dissipou na noite
escura.
Wilson olhou para Arabella com o rosto muito pálido.
— São os cães do oficial Robbins.
Agora não. Por favor, Deus, agora não.
Havia sido tão cuidadosa! Tivera muita cautela para que
ninguém soubesse o motivo de suas excursões noturnas. Se
fosse descoberta, estaria perdida.
Sem tomar conhecimento da tensão, Ned coçou o queixo
onde uma barba rala começara a surgir recentemente.
— Ele deve estar procurando contrabandistas. Ouvi
dizer que jurou pegá-los antes do inverno.
Wilson engoliu de forma ruidosa.
— É melhor irmos andando, senhorita.
Os cachorros latiram novamente, um som sinistro e
sombrio. Arabella olhou para Lucien.
— Para Rosemont, Wilson. E depressa!
Ela o ouviu repetindo as ordens para Ned. O rapaz se
acomodou com as rédeas na mão, e Wilson sentou-se ao
lado dele. Segundos depois a carruagem retomava sua
jornada pela estrada escura.
o preço de uma noiva
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A lanterna balançava, o raio de luz tremulando sobre o
rosto pálido de Lucien. Arabella começou a afrouxar sua
gravata, mas o nó era difícil de desfazer. Frustrada, ela o
puxou para um lado e soltou a camisa, rasgando-a quando
esta resistiu ao esforço. A visão da pele nua a fez parar.
Lucien era mais musculoso do que se lembrava. Não
que ele houvesse sido menos do que forte e belo. Mas o
Lucien Deveraux que ela conhecera era um homem autoindulgente que cavalgava pelo campo enquanto esperava pelo
início da temporada.
Dono de uma beleza selvagem, ele havia sido hedonista declarado e elegante ao extremo, excedendo sempre em
todos os esportes, da esgrima à equitação. Mesmo assim,
ele não possuía a força e o poder que emanavam do homem
caído diante dela.
Arabella usou a ponta da camisa rasgada para limpar o
sangue de seu ombro, tentando examinar a ferida. O galho
da árvore causara mais dano do que o galo em sua testa. Um
corte seguia a curva de um ombro, atravessando músculos
e tendões. Apesar do sangramento abundante, o ferimento
não parecia ser profundo. Aliviada por ele não estar mortalmente ferido, olhou em volta tentando encontrar alguma
coisa que pudesse servir de bandagem, mas não encontrou
nada.
— Maravilhoso! — resmungou. — Suponho que terei
de usar meu saiote. Devia ter deixado você na estrada,
Lucien Deveraux, entregue aos ratos!
Com a testa franzida, ela ergueu a bainha da saia e rasgou uma longa tira do tecido de um dos saiotes. Depois,
dobrou o tecido num quadrado perfeito e o prendeu sobre
o ferimento com as tiras da touca, amarrando-as tão forte
quanto era possível.
— Aí está. Isso servirá para conter o sangue até chegarmos em Rosemont. — Tirou o pesado cobertor da carruagem
de baixo do banco e o agasalhou, mais para a própria paz
12
Karen Hawkins
de espírito, do que por estar preocupada com seu conforto.
Era desconcertante ficar sentada na carruagem tão próxima
de todos aqueles músculos e da pele dourada e firme.
Segurando o manto contra o peito, ela se encolheu no canto do banco e orou fervorosamente para que um coelho atravessasse o caminho dos cães do oficial Robbins.
Um sorriso pálido distendeu seus lábios. A ideia era
divertida, mas não o bastante para desfazer os nós de seu
estômago. Ainda não estava perto do sucesso. Mas se as coisas continuassem progredindo, tudo estaria resolvido no
próximo ano — as dívidas de seu pai, as despesas médicas
de Robert. Talvez tivesse até o suficiente para concluir as
melhorias em Rosemont. Só precisava de tempo. Tempo e
um pouco de sorte.
É claro, a sorte não parecia favorecê-la naquele momento. Ela olhou para Lucien. O duque continuava desfalecido,
resmungando a cada solavanco do veículo. Mesmo sabendo que o pensamento era infantil, Arabella desejava que
ele estivesse consciente para poder se divertir com seu
desconforto.
O veículo sacudiu ao passar por um buraco mais fundo,
e Lucien deixou escapar um gemido baixo e rouco, a mão
tateando o ombro ferido. Arabella a segurou apressada,
impedindo-o de remover o curativo improvisado. Com a
testa franzida, ele ainda tentava se livrar da bandagem.
Ela o continha com firmeza, segurando seu pulso com
as duas mãos. Depois de um momento, Lucien cedeu e deixou a cabeça cair para o lado, repousando-a em seu colo, a
respiração arfante, mas constante.
Arabella esperou até que ele relaxasse, e então ajeitou
o cobertor sobre seu corpo. Lucien parecia tranquilo, os
olhos fechados conferindo-lhe a expressão inocente de um
menino.
Mas ela não se deixava enganar. Conhecia-o bem.
Inclinando-se para a frente, sussurrou em seu ouvido:
o preço de uma noiva
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— Se você sobreviver a tudo isso, Lucien Deveraux,
talvez eu mesma acabe com sua vida.
Lucien despertou devagar, dominado por sensações
variadas. A cabeça repousava sobre uma superfície macia e
quente, e o cheiro de framboesas despertava visões de
preguiçosos dias de verão.
Exceto por um ou outro solavanco do veículo, conduzido com pouca habilidade, podia quase acreditar que repousava em um leito macio, recuperando-se de uma noite de
excessos.
Ele tentou se mover, e uma dor aguda desfez a agradável fantasia. Por mais que cometesse excessos, nada poderia
causar tão intensa dor. Ergueu a mão para tocar o ombro.
— Tome cuidado — disse uma voz feminina. Rouca e
baixa, com um suave sotaque de Yorkshire, ela despertava
uma lembrança distante. Por um momento, Lucien teve uma
visão clara de olhos castanhos e cintilantes e lábios de
pétalas.
Distraído de sua dor, ele abriu os olhos. Um rosto doce
se debruçava sobre o dele, a testa delicada franzida em
evidente apreensão.
Seu coração bateu mais depressa. Conhecia aqueles
olhos, e já sentira aquela boca sob a sua, havia muito
tempo.
— Bella...
A mão dela, antes repousando confiante sobre sua face,
cerrou-se.
— Talvez Vossa Graça possa considerar a conveniência
de falar-me olhando para meu rosto, não para meus seios.
Lucien detectou a frieza na voz firme. Ele a encarou e
sorriu como se pedisse perdão, mesmo sabendo que jamais
o teria. Cometera contra ela pecados que iam muito além
de uma simples impropriedade.
14
Karen Hawkins
Ela indicou o assento do outro lado do veículo.
— Mova-se.
Não havia nada a fazer além de obedecer. Permanecer ali
deitado com a cabeça em seu colo não o poria em posição
de vantagem em caso de discussão; sem mencionar o efeito
causado pela proximidade.
Ele se levantou, lutando contra a escuridão e a dor no
ombro.
— Meu Deus — gemeu. — O que aconteceu, afinal?
— Não se lembra?
— Não. — Não se lembrava de nada que fizesse sentido. As imagens de um penhasco no ar frio da noite, o cheiro
do oceano... Estava a caminho de... algum lugar.
Lucien tocou a testa, sentindo forte dor quando os
dedos encontraram uma área inchada.
— Eu caí?
— Seu cavalo empinou, e você bateu com a cabeça em
um galho de árvore. — Ela parou como se não soubesse o
que dizer. — Meu condutor seguia em velocidade superior
à indicada para uma estrada tão estreita.
O olhar de Lucien sugeria que ela era, de certa forma,
culpada pelo mal que o acometera. Ele tocou a testa, onde
a dor aumentava a cada momento.
— Dói muito...
— Você vai sobreviver. É preciso mais que um galho
de carvalho para prejudicar essa cabeça tão dura.
Ah! Em algum ponto da jornada sua Arabella desenvolvera uma veia humorística e sarcástica! Ele a estudou.
Ela se mantinha ereta, com as mãos crispadas sobre as pernas, as faces tingidas por um rubor, os olhos dominados
por um evidente cansaço. Com seus cachos cor de mel e os
grandes olhos escuros, ela parecia mais jovem do que se
lembrava. Mais jovem e ainda mais linda.
Seu peito sofreu forte opressão, e o sorriso desapareceu
de seus lábios. Maldito Ministério do Interior por mandá-lo
o preço de uma noiva
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a Yorkshire. Recusara a missão ao ser informado sobre a missão. Era necessário que permanecesse em Londres, onde a
irmã se preparava para sua primeira temporada, mas seus
protestos haviam sido veementemente rejeitados.
Sem alternativa, ele planejara chegar protegido pelo manto da noite, descobrir tudo o que pudesse, e partir sem que
ninguém tomasse conhecimento de sua presença. É claro,
isso fora antes de o cocheiro de Arabella cruzar seu caminho
e causar o acidente.
Ele moveu o ombro e se encolheu sob a força da dor.
— Maldição! Tenho a sensação de que fui atingido por
um tiro!
— Se eu tivesse atirado, Lucien, você não estaria aqui
agora. Esteja certo disso.
Não. Se Arabella o houvesse alvejado, estaria morto,
enquanto ela dançaria sobre seu corpo sem vida em intensa celebração. Ele a ensinara os rudimentos da prática do
tiro ao alvo quando ela tinha apenas quinze anos, e naquele
tempo já notara nela uma impressionante habilidade.
Lucien tocou o curativo improvisado. Preso com firmeza,
continha o sangramento com eficiência.
— Suponho que deva agradecer por ter...
A carruagem parou. Sacudido pelo movimento brusco, Lucien bateu com o ombro contra a lateral do banco.
Manchas coloridas explodiram diante de seus olhos e uma
agonia intensa rasgou seu corpo. Tentando respirar, apesar
da dor, ele caiu para a frente e quase chegou ao chão antes
que Arabella conseguisse ampará-lo. Seus braços o envolveram, e ela o amparou contra o corpo.
A carruagem retomou a viagem, sacudindo muito enquanto, lentamente, ele voltava a respirar com alguma normalidade. Quando a dor perdeu parte da intensidade, Lucien
percebeu que tinha o peito apoiado nos seios de Arabella. O
cheiro de framboesas invadiu seus sentidos e ele se deliciou
com o contato, deixando-se inundar pelo calor feminino.
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Karen Hawkins
— Se não consegue ficar sentado sem ajuda, vou pedir
para o lacaio viajar aqui conosco e ampará-lo. — Gelada
como um sopro de vento da montanha, a voz dela o trouxe
de volta ao presente.
Lucien a fitou. Seus lábios estavam muito próximos dos
dela. Os olhos de Arabella tornaram-se mais escuros; o tom
profundo de chocolate ganhava reflexos dourados. Ele se
aproximou, os olhos fixos na boca rosada.
Devia sair da vida dela outra vez. Imediatamente. Mas o
corpo queimava com um calor que o deixava tonto, embriagado como um rapaz que prova seu primeiro caneco de
cerveja. Cada sensação parecia amplificada — a cadência
da voz de Arabella, a curva provocante dos seios, até o
farfalhar de suas saias engomadas. Uma fina camada de
suor brilhava sobre a boca benfeita, e ele teria trocado cada
centavo de sua fortuna para sentir seu sabor novamente ali,
naquele momento.
Passara a vida toda fugindo daquela mulher. O que fazia
agora, submetendo-se a esse prazer tão insuportável, a essa
tortura tão deliciosa?
Sim, era fato que não podia conter o impulso de tocála, como não podia impedir a própria respiração. Sem desviar os olhos dos dela, tocou uma mecha dos cabelos cor de
mel. Arabella entreabriu os lábios numa reação chocada.
Então, ele a beijou. Um beijo sutil, breve. O prazer que o
invadiu era como uma onda que poderia afogá-lo. Era difícil conter o impulso de esmagá-la contra o peito, exigir mais
e mais até ouvi-la gritar em êxtase.
Com um protesto sufocado, Arabella se soltou e o esbofeteou, a mão atingindo seu rosto com violência ruidosa.
A dor se espalhou em todas as direções, e o movimento
brusco da cabeça empurrada para o lado fez explodir novamente aquela agonia que brotava do ombro e se espalhava
em todas as direções.
— Maldição! — ele grunhiu.
o preço de uma noiva
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— Suas paixões não me interessam, Vossa Graça. Não
sou mais uma menina imatura de dezesseis anos. — O desgosto temperava cada palavra com seu veneno poderoso.
Tentando não permitir que ela visse o quanto esta decepcionado, Lucien resmungou:
— É uma pena... — Encarou-a e forçou um sorriso frio.
— Entendi bem sua colocação. E me manterei aqui, do meu
lado da carruagem. — E, depois desta noite, fora de sua
vida.
Uma luz perigosa iluminou os olhos dela.
— Tenho certeza de que sua esposa saberá apreciar seu
nobre esforço.
As palavras penetraram no cérebro de Lucien como
afiados cacos de vidro. Se Arabella acreditava que Sabrina
desaprovaria seus atos, estava enganada. Sua esposa teria
rido se o visse dominado pela paixão de forma tão intensa, tanto que esquecia tudo o que não fosse a mulher com
quem estava.
Mas Sabrina não estava ali. A culpa retornava como
uma dor aguda em suas entranhas.
— Minha esposa morreu há três anos.
Arabella recuou no assento. Ele a estudou sem dizer
nada. Isso era o que esperava, o que ele merecia. Felizmente, não possuía mais ilusões sobre quem ou o que ele era.
A morte de Sabrina cuidara disso. Lucian apoiou a cabeça
contra o encosto do banco e fechou os olhos.
— Sinto muito...
A voz de Arabella o tocou como o sopro de um anjo.
Lucien preferiu não encará-a. Não queria ver a piedade
que não merecia.
— Por favor, não lamente. Foi misericordiosamente
rápido. Para nós dois.
A carruagem concluiu uma curva e começou a reduzir a velocidade. Lucien olhou para as janelas cobertas por
cortinas.
18
Karen Hawkins
— Onde estamos?
— Na estrada para Rosemont.
— E meu cavalo?
— Saiu em disparada quando se assustou. Ned irá
procurar o animal assim que chegarmos em casa.
E ele estaria livre para concluir sua missão. Lucien colocou a mão sobre o casaco e tocou o volume formado pelo
pacote de couro no bolso. Felizmente, este não se perdera
na queda.
Tirou a mão e quase riu da própria atitude furtiva. Quem
teria imaginado que ele, Lucien Deveraux, sexto duque de
Wexford, era um dos mais reconhecidos agentes de infiltração do Ministério do Interior? Olhou para sua companheira de viagem, tentando determinar se ela desconfiava de
alguma coisa.
— Arabella, por que nós...
— Logo estaremos em Rosemont. Sugiro que repouse
e poupe suas energias.
O desapontamento superou a curiosidade. Então, era
esse o jogo que ela queria fazer. Muito bem. Devia isso a
Arabella, se não mais.
— É claro. Assim que meu cavalo for encontrado, eu
partirei.
— Se é a falta de montaria que o prende aqui, será um
prazer providenciar outro animal. Por certo não será da
mesma qualidade dos cavalos montados por Vossa Graça,
mas servirá como solução imediata.
Lucien inspirou profundamente. Odiava aquele tipo
de tratamento. Vossa Graça. Como se ele fosse um lorde
arrogante.
Deus, como amara essa mulher! Sentira por ela o amor
temperado pela paixão indisciplinada de um voluntarioso
rapaz de vinte anos, mimado pela família e pelas circunstâncias. Amara-a, mas fora forçado a deixá-la partir.
Como teria sido a vida de Arabella nesses anos? Ela
o preço de uma noiva
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se casara com um cavalheiro de sua região? Com um fazendeiro, talvez?... Com um típico habitante de Yorkshire, um
homem grande, simples, de mãos calejadas e sorriso largo?
Pensar que tal criatura simplória poderia tocá-la todas as
noites era suficiente para fazer seu estômago protestar. Ele
meneou a cabeça para superar a náusea. Devia estar mais
gravemente ferido do que havia imaginado. A lateral do
corpo doía, e ele sentia a boca seca e amarga.
A carruagem parou de repente. Arabella se inclinou e
afastou a cortina.
— Ah, que ótimo! — exclamou, aborrecida. — É o
oficial Robbins e seus homens.
— O que eles querem?
— Meu cocheiro acredita que eles estão procurando
contrabandistas.
— Ah, sim... Uma noite escura como essa é perfeita para
trazer o carregamento de uma embarcação para terra firme.
— E você fala como se tivesse grande conhecimento
sobre o assunto.
Qual era o problema com ele, afinal? Por que se sentia
tão tonto e confuso?
— Ah, eu... Sei muito sobre muitas coisas.
— Imagino que sim — Arabella disse com evidente
indiferença, olhando outra vez pela janela.
Devia estar satisfeito com o desinteresse dela, mas estava incomodado. Vozes soavam do lado de fora, e de repente ele percebeu que haveria sérias consequências para
Arabella, caso ela fosse surpreendida em sua companhia. Já
a desonrara uma vez; não repetiria a vergonhosa façanha.
Uma discussão acalorada se desenrolara do lado de fora
da carruagem, mas foi breve. Um silêncio tenso seguiu as
vozes alteradas. Lucien tentava se manter sentado e ereto, porém a cabeça latejava terrivelmente. Ele removeu um
cantil do bolso do casaco e tentou retirar a tampa, mas a
mão parecia entorpecida. O braço pesava.
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Karen Hawkins
Praguejando em voz baixa, ele entregou o cantil a
Arabella.
— Abra, por favor.
Ela olhou para a embalagem com desaprovação. Como
ele podia pensar em beber num momento como aquele?
Certamente, não percebia o quanto estava em jogo ali.
— Não seria melhor se...
— Arabella, abra o cantil!
Notando a intensa e súbita palidez no rosto dele, ela reconheceu a firmeza em seu tom de voz. Esse Lucien não era
mais o rapaz de sua infância. Era um homem maduro, mais
velho, e mais perigoso do que nunca.
Do lado de fora, uma voz fria e determinada pedia ajuda. Passos se aproximaram da porta, detidos pelo protesto
veemente de Wilson. Arabella abriu o cantil, torcendo o
nariz ao reconhecer o forte aroma de brandy.
Lucien sorveu o líquido dourado com um murmúrio de
aprovação.
Arabella tentou não notar como ele puxava a gravata,
exibindo o pescoço musculoso. A imagem lhe despertava
lembranças quentes, perigosas. Ela uniu as mãos e disse:
— Por favor, componha-se. Não vai ser bom se o oficial
o surpreender nesse estado.
— É claro — ele murmurou, bebendo mais um gole de
brandy sem desviar os olhos dos dela.
Belo e dissoluto, Lucien Deveraux era letal. Mas ela não
fraquejaria. Não dessa vez. Determinada, baniu da mente todas as lembranças doces, agarrando-se às mais dolorosas e usando-as como um escudo contra o poder sedutor
daquele homem.
— Direi ao oficial Robbins que você é amigo de Robert
e sofreu uma queda do cavalo. Isso vai explicar por que
estou aqui sem um acompanhante.
— Não será suficiente.
— Será, se você fechar os olhos. Não pode me seduzir
o preço de uma noiva
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enquanto dorme.
Ele a encarou em silêncio por um longo instante, pensativo. Depois disse:
— Só aceito essa condição para poupá-la do constrangimento. — Sério, ajeitou-se sob o cobertor e fechou os
olhos uma fração de segundo antes de a porta ser aberta.
O oficial Robbins, precedido pelo característico cheiro de
alho, lançou a luz de sua lanterna para o interior do veículo.
— Boa noite, srta. Hadley.
— Boa noite, oficial. Algum problema?
Ele olhou desconfiado para o interior da carruagem.
— Quem é esse?
— Um amigo de meu irmão. Ele chegou hoje à tarde.
— Ah, verdade?
— Sim. Minhas tias e eu esperamos que ele parta em
breve.
O oficial se animou com a menção às tias de Arabella.
— Lady Melwin prometeu que mandaria um tônico para
minhas cabras. Disse que a poção as faria produzir o dobro
de filhotes.
— Perguntarei a ela sobre o tônico.
— Não é necessário. Eu mesmo posso ir perguntar. —
Ele inspirou profundamente, sentindo o cheiro de brandy
no ar. — Bêbado como um gambá, não?
Arabella olhou para Lucien com ar de repulsa.
— Felizmente, ele vai embora amanhã.
— Tão ruim assim? Seu irmão devia escolher melhor os
amigos que leva a Rosemont.
Arabella forçou um sorriso, o que serviu para desviar a
atenção do oficial, que sorriu de volta e esqueceu Lucien.
— Sua preocupação é um grande conforto para mim. As
coisas têm sido difíceis desde a morte de meu pai, e depois
Robert voltou para nós e...
— Ora, ora, não precisa chorar. — O policial olhou em
volta como se precisasse de ajuda. — Não a teria parado,
22
Karen Hawkins
não fosse por uma denúncia dando conta de um carregamento
de brandy... — Ele olhou outra vez para Lucien.
Arabella notou que o cobertor escorregara de seu ombro,
deixando à mostra o ferimento ensanguentado e a camisa
manchada de vermelho.
— É geleia — ela se apressou em dizer.
— Geleia?
— Sim, de framboesa. — Ela apontou para o chão
sujo. Parte da lambança fora causada mesmo pela geleia,
mas havia sangue na mistura. Tratou de tocar o que era realmente geleia, e aproximou os dedos do nariz do oficial.
— Sente o aroma? Um coelho saltou na frente da carruagem. Os cavalos se assustaram, e quando Wilson conseguiu
recuperar o controle, o cesto já havia caído do assento
e vários potes de geleia se quebraram.
— De fato?
— Sim, ficamos cobertos de framboesa!
Ele riu, reconhecendo o cheiro adocicado da compota.
— Encontrou alguma coisa? — perguntou uma voz
estridente do lado de fora.
O oficial encolheu os ombros como se quisesse se
desculpar com Arabella.
— Lorde Harlbrook fez questão de vir — ele explicou.
— O homem tem certeza de que os contrabandistas estão
usando Red Rooster para esconder suas mercadorias.
Pessoalmente, acho que ele está zangado por ter perdido sua
parte nos lucros.
A voz de Harlbrook se ergueu novamente na noite
escura.
— Robbins! O que é isso?
— Não é nada, milorde. A srta. Hadley e o amigo do irmão
dela estão cobertos de geleia de framboesa.
Uma figura rechonchuda tomou o lugar de Robbins na
porta.
— O jovem Hadley não tem amigos.
o preço de uma noiva
23
Arabella rangeu os dentes para resistir ao impulso de
plantar um pé bem no meio da testa de lorde Harlbrook.
— Não creio que conheça todos os amigos de Robert,
milorde. Talvez...
— Já disse para me chamar de John, minha cara. Quem
é esse homem?
Furiosa, ela adotou um tom altivo, quase arrogante.
— Esse é Lucien Deveraux, o duque de Wexford.
— Duque?
— Sexto duque, para ser mais precisa. É claro, o senhor
só chegou recentemente a esta região, por isso não pode
saber que ele e a família costumavam vir todos os anos
para a temporada de caça. Ele e Robert se correspondem há
muito tempo.
A incredulidade de lorde Harlbrook era palpável. Arabella
fez uma oração silenciosa de gratidão por não ter sido
interceptada duas horas antes, quando a carruagem estivera
repleta de barris de conhaque francês.
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Capítulo I - Romances Nova Cultural