O Verbo se fez carne
“Muitas vezes e de diversos modos
outrora falou Deus aos nossos pais pelos profetas.
Ultimamentente nos falou por seu Filho, que
constituiu herdeiro universal” Hb 1,1s
A prática da leitura das Sagradas Escrituras tem vindo a aumentar consideravelmente
em toda a Igreja. Mediante um impulso pastoral, muitos fiéis redescobriram o valor inestimável
de rezar com a Bíblia, de nutrir-se dessa “substância vital de nossa alma” (cf. S. Ambrósio, Exp.
Os 118, 11, 29). Leem-na em encontros de catequese, reuniões de pastoral, em momentos de
formação e até mesmo no seio familiar. Os cristãos foram despertados por uma sede de ouvir a
palavra de Deus (cf. Am 8,11). O próprio contato com as Leituras Sagradas, como é bem de
conhecimento geral, provoca uma mudança imediata no curso da vida do homem, pois ela “é
viva, eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois gumes e atinge até as divisas da alma
e do corpo, das juntas e medulas” (cf. Hb 4,12). Todavia, se não compreendemos a forma que a
Igreja sempre acolheu a Palavra – como revelação das obras de Deus – tomá-la-emos como um
texto qualquer; lê-la-emos como a um livro puramente humano, olvidando-se de sua
transcendência e sacralidade.
A Palavra, o Logos, sempre esteve presente na própria pessoa do Pai; daí partiu,
permanecendo voltada para Ele (cf. Jo 1,1s). Sua primeira ação descendente foi a de criação do
cosmos. Poderíamos dizer, então, que sua primeira inscrição foi feita nas próprias criaturas que,
intimadas por Ela, vieram à existência. A segunda forma de manifestação dessa Palavra, é a que
chamamos de profética: palavra que se dirige ao homem, e dele faz um porta-voz. O profeta,
ouvindo a própria Palavra, transmite-a aos homens, anunciando-lhes a vindoura plenitude da
Revelação, plenitude essa, que é o próprio Cristo: Nele a Palavra se encarna e entra em contato
direto conosco de forma definitiva. Todo esse progresso da revelação do plano de Deus para o
homem encontra-se descrito textualmente nos livros que compõem a Bíblia. A priori,
poderíamos concluir que os textos bíblicos foram escritos em função da documentação da ação
de Deus em determinado momento da história do homem; de um acontecimento já realizado –
Deus agiu, logo, o homem viu a necessidade de escrever tal acontecimento; eles nada teriam
de atual, seriam letras com força meramente instrutiva que se afastam do homem
proporcionalmente ao tempo em que se realizou. Porém, Deus é imutável. Sua Palavra,
diferentemente da nossa, é uma força plasmadora e perene, tal como canta o salmista: “as
palavras do Senhor são eternas” (cf. Sl 118, 89). Deus, quando fala, opera; sua palavra não é
mero discurso, mas força criadora. Isaías, qual oráculo veraz, anunciará: “Tal como a chuva e a
neve caem do céu e para lá não volvem sem ter regado a terra, sem a ter fecundado, e feito
germinar as plantas, sem dar grão a semear e o pão a comer, assim acontece à palavra que
minha boca profere: não volta sem ter produzido seu efeito, sem ter executado minha vontade
e cumprido sua missão” (Is 55,10s).
Mas como permanece viva e atual a Palavra de Deus? Por meio de sua Igreja. Jesus
Cristo, que é a própria Palavra, ao voltar ao Pai, envia seu Espírito aos apóstolos (cf. At 1,1ss);
enviou-O para que cumprissem seu mandato de anunciar o Evangelho a toda criatura (cf. Mc
16,25; Mt 28,19). A Igreja é, portanto, a fiel intérprete de sua Palavra (cf. DV 10). Cristo atribuiu
aos discípulos o espírito para que compreendessem as Escrituras e as transmitissem (Cf. Lc
24,45). Esse espírito é confiado aos sucessores dos apóstolos e assegurado pelo Magistério vivo
da Igreja. Se, no Antigo Testamento, os acontecimentos dependem da Palavra criadora de
Deus, as do Novo Testamento dependem da Palavra de Cristo, e as obras da Igreja dependem,
consequentemente, das próprias palavras de Cristo, proferidas pela boca dos apóstolos: “Eis
que coloco minhas palavras sobre teus lábios” (Jr 3,16); “Dei-lhes a tua Palavra” (Jo 17,14a). É
Cristo – a Palavra – que sempre operou ao longo da história da humanidade: ontem, hoje e
sempre. Portanto, quando um ministro legítimo do Verbo encarnado a proclama, faz-se
presente o próprio acontecimento no hodie da História.
Ademais, existe um espaço na Igreja privilegiado para a escuta da Palavra: a Liturgia.
Nela os acontecimentos tornam-se atuais. Já não são textos que informam ao homem histórias,
mas o próprio Cristo que atua, por intermédio de seus ministros, sua missão salvadora. Ao
ouvirmos a proclamação de uma passagem bíblica, é Deus quem fala diretamente a um povo
presente e atual. Quando escuto “da mesma forma vós, considerai-vos morto para o pecado e
vivos para Deus em Cristo Jesus” (Rm 6, 11), não ouço apenas uma exortação dirigida a uma
comunidade cristã de Roma do século I d.C, mas também a uma comunidade viva. O Espírito
Santo age sobre a assembleia litúrgica, concedendo-lhe a graça da compreensão espiritual da
Palavra de Deus (cf. CEC 1101); é a Liturgia que oferece ao homem, em plenitude, a capacidade
de receber a Palavra e, portanto, de realizá-la. Ela cria um clima de escuta, por reunir uma
comunidade de fiéis em oração; nela a Palavra não é lida, mas celebrada. Além disso, concedenos a oportunidade de ouvir o próprio Deus, pois “é ele mesmo que fala quando se leem as
Sagradas Escrituras na Igreja” (SC 7). Enfim, na Liturgia, graças à sua eficácia sacramental, a
Palavra alcança sua máxima capacidade salvífica; a história sagrada torna-se realidade atual,
porque se torna presente o ato no qual se consuma a vida do mundo e se realiza o nosso
destino.
Entrementes, o que dissemos até aqui, não tem por finalidade desmotivar as diversas
formas de contato com os Textos Sagrados. A Igreja sempre estimulou tanto a leitura pessoal,
quanto os estudos bíblicos; eles, certamente, podem levar os cristãos ao amadurecimento da
fé, dando-lhes uma compreensão mais clara da Palavra, capazes de receber não apenas o leite
espiritual, mas também um ensinamento mais sólido (cf. ICor 3,1s). Porém, se estiverem
desassociadas do contexto eclesial, essa práxis pode produzir um efeito deformador,
considerando que fora do Corpo não há unidade com o Cristo-Cabeça (cf. Cl 2,18s); alheias à
Liturgia da Igreja, à Comunhão dos Santos, perdem o sentido cristão de “escuta da Palavra”. Já
não se escuta a Deus, mas apenas a um balbuciar de afirmações sobre Deus. O homem, assim,
assemelha-se aos que não conhecem a Cristo: permanecendo com os olhos obscurecidos pelo
véu da incredulidade, afastando-se da vida de Deus (cf. ICor 3,13-18; Ef 4,18). Deus não é texto,
mas Palavra Viva. E a palavra só é viva quando quem a proclama está presente; apenas
quando Cristo profere suas próprias palavras o texto ganha vida. Por conseguinte, a Igreja,
“que é o seu corpo, o receptáculo daquele que enche todas as coisas sob todos os aspectos” (Ef
1,23), é o lugar privilegiado para ouvirmos claramente a Voz de Deus, tornando-nos “perfeitos
e capacitados para toda boa obra” (cf. IITm 3,17).
Enfim, “Deus, o revelador, não quis permanecer 'solus Deus, solus Christus” (Deus
sozinho, Cristo sozinho), Ele quis prover-se de corpo, encontrar uma noiva – procurar a
resposta. No fundo, a Palavra foi pronunciada por essa razão” (cf. Joseph Ratzinger,
“Introdução ao espírito da liturgia”). Tal busca de comunicação tem como principal agente a
Palavra proclamada. Ela foi transmitida aos homens pelo próprio Verbo (cf. IIPd 1,20); Palavra
que gera comunhão e nunca sectarismo. Se assim A compreendermos e A acolhermos, Deus
conceder-nos-á a graça de, a exemplo dos primeiros ouvintes de seu Filho, sermos “um só
coração e uma só alma” (cf. At 4,32a).
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