Toby Clements
UMA JORNADA
NO INVERNO
1-º VOLUME DA SÉRIE
KINGMAKER
Tradução de Geni Hirata
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O
deão vem buscá-lo durante o Segundo Repouso, na hora em que
a noite está mais escura. Traz consigo um candeeiro de junco
e um bordão de madeira, usado como cajado ou arma, e o acorda com
uma forte estocada.
– Levante-se, irmão Thomas – ele diz. – O prior está perguntando
por você.
Ainda não é hora da Prima, Thomas sabe disso, e ele espera que, se
permanecer dormindo, o deão o deixará em paz e acordará um dos outros cônegos: o irmão John, talvez, ou o irmão Robert, que está roncando. No instante seguinte, seus cobertores são atirados para trás e o frio
logo toma conta do seu corpo. Ele senta-se com um salto e tenta pegá-los
de volta, mas o deão os retira.
– Vamos, vamos – ele diz. – O prior está esperando.
– O que ele quer? – Thomas pergunta. Ele já estava tiritando, os dentes batendo e o corpo desprendendo vapor.
– Você vai ver – o deão diz. – E traga sua capa. Traga seu cobertor.
Traga tudo.
Na claridade bruxuleante do candeeiro, o rosto do deão se resume
a sobrancelhas grossas e um nariz adunco, e a sombra de sua cabeça assoma contra as telhas de ardósia orladas de gelo do telhado acima. Thomas desembaraça sua capa endurecida de gelo e encontra seu gorro de lã
e seus tamancos. Ele enrola o cobertor em volta dos ombros.
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– Ande logo, vamos – o deão o apressa. Seus dentes também estão
trepidando.
Thomas levanta-se e o segue pelo dormitório, passando por cima das
formas encolhidas dos outros cônegos, e juntos eles descem os degraus
de pedra até a cela do prior, onde uma vela de cera de abelha tremula em
um castiçal preso à parede e o velho homem jaz em um grosso colchão
de palha com três cobertores puxados até o queixo.
– Que Deus esteja convosco, padre – Thomas começa.
O prior abana a mão descartando a saudação, sem tirá-la de baixo das
cobertas.
– Você não ouviu? – ele pergunta.
– Ouvi o quê, padre?
O prior não responde, mas ergue a cabeça estreita na direção da janela fechada. Thomas ouve apenas a respiração do deão atrás dele e o leve
chocalhar de seus próprios dentes. Então, ouve-se, ao longe, um grito
crescente, muito agudo, cortante como uma lâmina. Isso o faz estremecer e ele, sem conseguir se conter, faz o sinal da cruz.
O prior ri.
– Apenas uma raposa – ele diz. – O que você pensou que fosse? Uma
alma perdida, talvez? Um diabinho?
Thomas não diz nada.
– Provavelmente presa no bosque do outro lado do rio – sugere
o deão. – Um dos irmãos leigos planta suas armadilhas por lá. É o John
quem faz isso.
Faz-se silêncio. Eles devem mandar chamar esse John, Thomas pensa,
o que plantou a armadilha. Vão obrigá-lo a ir lá e matar a raposa. Acabar
com seu sofrimento.
– O mais rápido que puder, irmão Tom – diz o deão.
Thomas compreende o que querem dizer.
– Eu? – ele pergunta.
– Sim – diz o prior. – Ou você se acha bom demais para isso?
Thomas não diz nada, mas é exatamente isso que ele está pensando.
– Faça assim – diz o deão, imitando o gesto com o bordão, dando
uma pancada com a ponta da arma no crânio de uma raposa imaginária.
– Logo acima dos olhos.
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O deão esteve nas guerras na França e sabe-se que ele matou um
homem. Talvez até dois. Ele passa o bordão a Thomas. É quase de sua
altura, manchado em uma das pontas como se tivesse sido usado para
mexer um caldeirão.
– E não deixe de trazer o corpo – o prior acrescenta conforme o deão
conduz Thomas para fora do cubículo –, pois eu vou querer a pele e o enfermeiro, a carne.
A luz do deão conduz Thomas pela descida de mais alguns degraus
de pedra, até a fragrante escuridão do refeitório, onde ele é atraído para
o calor das brasas do fogo brilhando sob sua tampa, mas o deão já atravessou a sala e arrastou para o lado a barra de madeira que trancava a porta.
– Pelo sangue de Cristo! – ele exclama ao abrir a porta.
Do lado de fora, faz o tipo de frio que o congela na hora, o tipo que
derruba pássaros do céu, racha pedras de moinho.
– Vá, meu jovem – diz o deão. – Quanto mais cedo for feito, mais
cedo estará terminado. Depois volte aqui. Terei um pouco de vinho quen­
te para você.
Thomas abre a boca para dizer alguma coisa, mas o deão o empurra
para o frio e fecha a porta na sua cara.
Santo Deus. Em um instante ele está dormindo, quase aquecido, sonhando com o próximo verão, e agora: isto.
O frio aloja-se em sua garganta, faz sua cabeça doer. Ele enrola mais
a capa no corpo, hesita por um instante, em seguida se vira e parte, escolhendo o caminho pelo pátio até o portão dos pedintes, seus tamancos
ressoando no gelo.
Ele destranca o portão e o atravessa. Além dos muros do priorado,
a aurora já é uma presença pálida a leste e a neve estendida sobre o charco emana uma luz tão fria que chega a ser azul. Para o sul, onde o rio enrosca-se sobre si mesmo, a roda do moinho está parada no meio de uma
volta, congelada, como se abrisse a boca para dizer alguma coisa, e mais
além, a padaria, a cervejaria e as granjas dos irmãos leigos permanecem
desertas, as paredes cobertas de geada, os telhados arqueados sob o peso
da neve. Nada se move. Absolutamente nada.
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Então, a raposa grita novamente, um som alto e estridente. Thomas
estremece e volta-se outra vez para o portão, como se de algum modo
pudesse ter permissão para entrar novamente e retornar para a cama, mas
em seguida ele se recompõe, vira-se mais uma vez e se obriga a seguir em
frente. Um passo, dois, cuidadosamente se mantendo perto dos muros do
priorado, seguindo-os até onde a linha escura da velha estrada surge no
campo de visão em seu caminho através do charco, em direção a Cornford
e ao mar mais além. Houve uma época em que ela devia ser movimentada,
ele pensa, mesmo em uma manhã como esta. Mercadores estariam a caminho de Boston com sua lã para a esquadra que navegava para a Staple em
Calais, ou peregrinos estariam vindo para o santuário de Little St. Hugh,
em Lincoln. Atualmente, entretanto, nestas terras sem lei, qualquer pessoa fora de casa a esta hora do dia ou é um tolo ou um bandido, ou ambos.
Quando ele chega ao convento das irmãs, as canelas de Thomas estão
queimadas do frio, suas frieiras latejam e seus dedos já estão tão entorpecidos e rígidos que ele sabe que não será capaz de segurar seu delicado
instrumento de trabalho o dia inteiro, sabe que não fará nenhum progresso com seu saltério. Até seus dentes doem.
Ele para no portão das irmãs, faz uma pausa por alguns instantes,
olha para ele embora saiba que não deve, depois deixa a sombra do muro
do priorado e muda de direção, cruzando um campo onde os irmãos
leigos plantarão centeio na distante primavera. Há uma trilha antiga na
neve, uma fileira de pegadas que ele segue através do sulco do arado
e depois desce em direção ao monte de esterco à beira do rio. Ali, a trilha
termina em uma confusão de orifícios na neve e gelo quebrado, como se
alguém tivesse ido buscar água.
Thomas desce a margem baixa até o gelo, onde uma névoa se desenrola ao redor de seus tornozelos. Ele pisa com força no gelo, testando-o,
embora saiba que ele é bastante forte para suportar uma carroça de bois,
e atravessa-o depressa, com algumas poucas passadas largas e rápidas,
para mover-se cautelosamente através dos juncos orlados de gelo do outro lado. Exatamente quando ele está escalando a margem, a raposa grita
mais uma vez, um som áspero, cheio de dor. Thomas fica paralisado.
O grito para bruscamente, como se tivesse sido calado.
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Thomas hesita novamente, olha para trás, para o priorado, para o pequeno aglomerado de construções baixas de pedra, que se amontoam ao
redor do toco que restou da torre da igreja. Ele vê o telhado do refeitório
soltando fumaça no céu pálido e deseja que estivesse a salvo por trás daqueles muros outra vez, aprontando-se para a Prima, talvez, ou mesmo
ainda dormindo e sonhando novamente com o verão por vir.
Maldito prior. Maldito prior por tê-lo acordado. Maldito por enviá-lo
nesta missão.
E por quê? Por que ele? Por que não esse John que, para começar, foi
quem instalou a armadilha? Thomas é um copista, um ilustrador, não
um irmão leigo, não mais um garoto do campo. Ele planejara passar este
dia aplicando folha de ouro a uma das letras maiúsculas, polindo-a com
o instrumento do irmão Athelstan, um dente de cachorro montado em
um cabo. Mas agora seus dedos mais parecem salsichas.
Isso é ideia do prior, é claro. Thomas entende isso. O prior pretende
acabar com seu orgulho. Ele disse isso na noite anterior, quando pregara
contra o pecado durante a ceia. Thomas sentira os olhos do velho prior
sobre ele mais de uma vez durante a refeição, mas não dera muita importância. Ele não se mostrara bastante arrependido; era isso. Havia uma
lição ali.
Ele continua para onde a neve é mais profunda, intata desde que começara a cair, no dia seguinte ao Festival de São Martinho no ano passado. Ele quebra a crosta da neve, afundando até os joelhos, tropeça, patina.
Logo fica encharcado. Ele continua pela suave subida, até ficar a apenas
alguns passos das bordas emaranhadas do bosque. Dói respirar. Ele espreita através da malha de galhos desordenados. Não vê nada, somente
escuridão, mas existe algo lá dentro. Novamente os cabelos em sua nuca
ficam em pé. Ele ergue seu bordão para afastar um galho.
Ouve-se uma explosão. Um estrondo retumbante. Ouve-se um grito,
um som esganiçado, a batida de asas. Vem em sua direção, negro como
breu, direto para seu rosto, seus olhos.
Ele berra. Agacha-se, agita o bordão, atira-se na neve.
Mas o corvo desaparece antes mesmo que ele possa vê-lo.
Voa para longe com um lúgubre grasnado.
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O coração de Thomas está batendo com força. Ele ouve a si mesmo
balbuciando sem nexo. Quando consegue ficar de joelhos, suas mãos estão azuis, sua batina cheia de neve.
O corvo pousou em um mastro encimado de neve, perto do monte
de estrume.
– Pássaro desgraçado! – Thomas grita, brandindo o bordão. – Maldito, desgraçado!
O corvo o ignora. O sino começa a tocar no priorado e uma névoa
começa a subir do rio, densa como lã de carneiro. Thomas volta-se novamente para o bosque, agora com determinação, mas não consegue
entrar pelo emaranhado de arbustos. Ele os golpeia com seu bordão, dá
a volta ao bosque até encontrar um rasto; as pegadas do irmão leigo John,
ele imagina. Agacha-se por baixo dos primeiros arbustos e vai abrindo caminho à força. Os galhos puxam sua batina, a neve dos ramos acima cai
sobre ele. Thomas passa por cima de um tronco caído e se vê na borda
de uma pequena clareira, e algo o faz parar. Ele afasta um galho e lá está:
a raposa, uma mancha de pelos vermelhos emaranhados nas sombras.
Ele dá um passo à frente.
O pescoço e uma pata dianteira estão presos em um laço de arame
e o próprio arame está pendurado em um galho de árvore. A raposa está
sobre as pernas traseiras, parcialmente suspensa, parcialmente congelada, o focinho estreito enfiado no peito ensanguentado. A neve embaixo
foi raspada até a terra preta e congelada, e manchas de sangue e tufos de
pelos ruivos espalham-se por toda parte.
Thomas faz o sinal da cruz e fica parado, absolutamente imóvel, aten­
to. Ele ouve alguma coisa. Então, ele percebe que é a raposa, ainda viva,
ainda respirando, cada respiração um gorgolejo espumoso seguido de
uma exalação torturante que definha para um lamento rouco.
Após um instante, ela parece pressentir sua presença e levanta a ­cabeça.
Thomas prende a respiração e recua um passo.
A raposa está cega, os olhos devorados, cada órbita brilhante derramando um grosso filete de sangue.
O corvo grasna de fora do bosque cerrado.
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– Maldito pássaro! – Thomas exclama, soltando o ar. Faz novamente
o sinal da cruz.
Após um instante, a cabeça da raposa volta a cair, cansada, sobre
o peito.
Thomas prepara-se. Dá um passo à frente, ergue o bordão exatamente como o deão sugeriu e desce-o com força. Um estalo. A raposa dá uma
sacudidela no laço de arame. O sangue formou um delicado padrão na
neve. A raposa estremece. Dá um longo suspiro entrecortado; em seguida, está morta.
Thomas retira o bordão do meio dos ossos quebrados. Está sujo com
uma sopa de veios escuros de miolos cinzentos que ele limpa no montículo de neve embaixo da árvore. Feito isso, fica parado por alguns instantes, depois faz um derradeiro sinal da cruz sobre a raposa, abençoando-a
como uma das criaturas de Deus, e está prestes a se virar e ir embora
quando se lembra das instruções do prior.
Com um suspiro, ele deixa de lado o bordão e começa a seguir o fio
da armadilha desde o galho onde está preso, segurando-o entre o indicador e o polegar, passando pela moita molhada de cipó do reino até o pé
da árvore. É estranho. Seus dedos estão tão entorpecidos e o nó está no
gelo, apertado ainda mais pela luta da raposa.
Ele prossegue, tateando, agora de joelhos, o ouvido pressionado contra a casca áspera da árvore. Ele não consegue soltar as pontas do nó.
Ele precisa de sua faca, percebe, e está amaldiçoando seu esquecimento
quando ouve os gritos de homens e o repentino barulho de cascos de
cavalos na estrada.
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dia já está clareando quando irmã Katherine traz o balde da cela
da prioresa. Ela sai para o pátio onde o frio comprime seu peito.
– Deus a guarde, irmã Katherine.
É a irmã Alice, a mais jovem das freiras, recém-chegada, enrolada em
sua capa grossa, o hálito ondulando-se como uma pluma diante do seu
rosto.
– A você também, irmã Alice. Você não foi à capela?
– Uma caminhada, primeiro – diz irmã Alice, como se fosse algo muito
natural. Katherine franze a testa. Ela faz o mesmo trajeto todos os dias já há
sete anos e nem uma vez alguém veio com ela. Na verdade, está agradecida.
Um animal gritou durante a noite e ela sente um resquício de ansiedade.
– Agradeço a companhia, irmã Alice – ela diz. Ela segura o balde afastado de sua coxa, enquanto Alice ajuda-a com a tranca do portão. Os
dejetos se agitam dentro do balde e uma língua de vapor morno eleva-se
para lamber seu pulso. Sua pele se arrepia.
Depois do portão, seus pés quebram a nova crosta de neve endurecida à noite e uma névoa densa ergue-se do rio. Um corvo abandona seu
poleiro no topo de um mastro.
Alice para.
– Sempre detestei pássaros – ela diz. – São as penas.
Katherine se pergunta como seria ter tempo para tais luxos.
Ela continua em frente, seus passos ruidosos no silêncio congelado.
Quando chegam ao emaranhado das pegadas do dia anterior próximo
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ao monte de esterco, ela vê que alguém – um dos irmãos leigos, provavelmente – esteve ali desde ontem e atravessou o rio. Ela deixa de lado
o balde e abre a tampa do tambor com um estalido de gelo. É uma das
únicas vantagens do inverno, ela pensa, quando o frio parece manter
à distância as moscas preguiçosas que geralmente ficam zumbindo em
volta da boca aberta do tambor e o mau cheiro do processo a faz prender
a respiração. A irmã Alice tenta passar-lhe o balde. Ela escorrega e quase
o deixa cair.
– Deixe comigo – Katherine diz.
– Mas eu quero ajudar.
Mais uma vez, Katherine se pergunta o que Alice está fazendo ali.
Não parada à margem do rio e segurando um balde dos dejetos da prioresa, mas no priorado em si. Ela é jovem demais e bonita demais para ter
vindo esperar a morte, como as outras irmãs. Ela é muito magra, é verdade, mas assim são todos atualmente, exceto talvez a prioresa e a irmã
Joan. Entretanto, mesmo parada ali segurando o balde de excrementos,
mesmo com aquela gota de orvalho na ponta do nariz cor-de-rosa, Alice
parece de outro mundo, mais do que meramente uma das irmãs. Suas
roupas não têm nenhum remendo ou mancha, as contas do seu rosário
são finamente lavradas em marfim – um presente de um parente querido,
talvez – e ela possui uma leveza, como se mal tocasse o chão.
– Por que está aqui, irmã Alice? – Katherine pergunta.
– Eu lhe disse – Alice responde. – Quero ajudar.
– Não, não – Katherine continua. – Quero dizer aqui. Aqui no convento.
Alice sorri.
– Oh – ela diz. – Eu sou uma noiva de Cristo.
Ela até levanta a mão para lhe mostrar a aliança de ouro em seu dedo.
– E você? Você não é uma noiva de Cristo também?
Katherine não sabe dizer se Alice está pilheriando, mas pensa em si
mesma: deixada na esmolaria de uma igreja quando recém-nascida, com
apenas uma bolsa e algumas cartas, e agora a pessoa encarregada de esvaziar o balde da prioresa toda manhã.
– Eu?! – ela exclama finalmente. – Eu sou como isto.
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E ela entorna os dejetos no tambor, com cuidado para guardar os sólidos para o monte de esterco. Depois de fazer isso, ela esvazia o pesado
balde sobre o monte de esterco, três ou quatro resíduos marrom-escuros
sobre a neve. As duas freiras dão um passo para trás e Alice estremece.
Viram-se, então, e começam a caminhar de volta pelo campo em direção ao priorado.
– Por que é sempre você quem esvazia o balde noturno da prioresa?
– Alice pergunta.
– Simplesmente é assim – Katherine diz.
Alice abre a boca para perguntar mais alguma coisa, mas fecha-a em
seguida. Talvez ela tenha perguntas demais e não consiga escolher a pergunta certa. Continuam a andar em silêncio, ouvindo seus passos, os cliques do rosário de Alice e sua respiração entrecortada; Katherine está
absorta em seus próprios pensamentos e assim é que não ouve os cavalos
na estrada acima delas até ser tarde demais.
Quando percebe, para no meio de um passo. Seu coração dá uma
guinada.
Homens a cavalo. Mais de um. Mais de dois.
– Rápido – ela sussurra.
Ela faz sinal para Alice e as duas seguram as saias e correm. Ela ouve
um dos homens gritar. Santo Deus. Elas foram vistas. Ela continua a correr. Os homens estão atiçando os cavalos para fora da estrada, atravessando o rio congelado, querendo alcançá-las antes que cheguem ao portão
dos pedintes.
Faltam apenas uns cem passos, mas Katherine e Alice estão derrapando em seus tamancos e saias, e o balde é pesado, mas ela não ousa
abandoná-lo por medo do que a prioresa vá dizer. Então, Alice cai com
um grito. Katherine arrasta-a e a coloca de pé. Os homens já estão no
campo agora, gritando como se praticassem um esporte, fustigando seus
cavalos pela neve, um deles adiantando-se à frente.
Katherine vira-se e começa a correr novamente, mas em um instante o primeiro cavalo as alcança. Ela se agacha enquanto corre, tentando
evitar o golpe esperado, mas o cavaleiro ultrapassa-as a toda brida, como
um furacão. Então, ele fica em pé nos estribos e puxa as rédeas. Coloca
o cavalo sobre as patas traseiras e bloqueia o caminho delas.
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O cavalo é enorme, castanho, com cascos agitados, uma barba de imun­
dos pingentes de gelo e globos oculares do tamanho de punhos cerrados.
O cavaleiro é jovem, mas forte, e seu rosto ilumina-se de prazer com
o que capturou. Ele ri. Sem pensar, Katherine dá um passo para o lado
e, usando cada músculo de seu corpo, cada qual aprimorado por anos de
trabalho pesado, dá um impulso no pesado balde. Deixa-o voar.
O balde atinge o cavaleiro com o estalo de uma porta de armadilha
se fechando.
Ele voa para trás, por cima dos flancos do animal, as mãos no rosto.
Alice grita. O cavalo se lança para a frente outra vez. Elas se jogam para
o lado conforme ele passa por elas em disparada.
O homem está gritando. Ele rola de costas, os joelhos erguidos, as
mãos pressionando o rosto, o sangue escorrendo pelo meio de seus dedos cobertos com luvas de couro. Está por toda parte, manchando a neve
e seu tabardo branco.
Mas agora o outro cavalo alcançou-as, um cavalo cinza, montado por
um homem com uma longa capa vermelha. Ele carrega uma espada.
Katherine coloca-se na frente de Alice e o enfrenta. Ela já está além
do medo agora.
O cavaleiro vem para cima dela, o braço erguido. Ela o encara. Algo,
porém, acontece. Um objeto vem pelo ar, uma mancha escura. Ele bate
no cavaleiro, atingindo-o na cabeça. O homem vacila, deixa cair a espada, em seguida desmorona, como se não tivesse ossos. Ele rola da sela
e espatifa-se na neve. O cavalo se vira, foge a meio galope.
E repentinamente há mais alguém ali com elas. Um homem a pé, em
uma capa preta, tamancos nos pés. É um dos cônegos, vindo correndo da
direção do rio. Ele vem gritando e agitando os braços, e suas saias ondulam ao redor de seus joelhos nus.
O terceiro cavaleiro vira-se para encarar a nova ameaça e o quarto cavaleiro, um gigante em um cavalo de tração grande e forte, hesita ­também.
Katherine agarra a mão de Alice, elas se viram e disparam em direção
ao portão. O cônego vacila no meio de seus passos, vira-se bruscamente,
quase escorrega, e depois corre atrás das duas jovens. O terceiro cavaleiro
tira um martelo de cabo longo de seu alforje e finca os calcanhares nos
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flancos do animal. O quarto cavaleiro – o gigante – salta do cavalo e corre
para eles a pé. Ele está descalço, mas é rápido como um lobo, carrega um
monstruoso machado de guerra, e vem urrando enquanto corre.
Katherine encontra o portão dos pedintes e puxa Alice para dentro.
Em seguida, o cônego também se arremessa pelo portão. Ela fecha a porta de carvalho na cara do gigante e desce a barra da tranca. As tábuas
chacoalham e a barra de madeira fica abaulada sob o impacto do ombro
do sujeito, mas a porta aguenta firme, ainda que por pouco.
Katherine recua alguns passos. Mal consegue respirar. Pode sentir
seu coração pulsar nos dentes. Ela faz o sinal da cruz, mas não consegue
deixar de lançar um olhar furtivo ao cônego. Ele está curvado, com as
mãos sobre os joelhos, arfando com o esforço despendido, uma longa
chaminé de hálito saindo em rolos da boca aberta. Nesse momento, ele
se endireita e olha para ela – e por um instante seus olhos se encontram.
Ele tem olhos azuis, cabelos ruivos.
Então, Alice fala. Ela está sentada na neve salpicada de palha do pátio,
apontando para os tamancos do cônego, encolhendo-se, encobrindo os
olhos para não ver o resto do rapaz.
– Ele precisa ir embora! – ela diz.
É verdade. Se ele for visto, Katherine mal pode imaginar a penitência
que os três terão que enfrentar. Neste instante, porém, uma voz vem do
outro lado do muro.
– Irmão monge?
É uma voz refinada, nasalada e forte. A voz de um homem acostumado a ter outros sob suas ordens.
– Irmão monge? Irmã freira? Sei que podem me ouvir. Você maltratou gravemente o meu rapaz, irmã freira, e você me derrubou do meu
cavalo, irmão monge. Pela minha honra, não posso deixar isso passar.
Saiam agora e nós faremos o que temos que fazer, depois seguirei meu
caminho como se nada disso tivesse acontecido. Está me ouvindo, irmã
freira? Irmão monge?
Sua voz está muito perto, bem do outro lado da porta, a um palmo de
distância apenas. Há uma pausa de umas duas ou três batidas do coração
e então a voz se faz ouvir novamente.
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– Bem, irmã freira e irmão monge, já que vocês não vão sair, então
eu terei que entrar. E quando eu o fizer, eu lhes prometo uma coisa: eu
vou encontrá-los. Encontrarei você primeiro, irmão monge, e quando
eu o fizer, deixarei meu homem Morrant aqui cuidar da sua morte. Então, irei atrás de você, irmã freira, você e sua garota chorosa. Depois que
Morrant acabar com você, vou pregar seus corpos nesta mesma porta
aqui, sabe, esta atrás da qual vocês estão se escondendo, e então acenderei uma fogueira embaixo de vocês. Verei vocês implorarem ao TodoPoderoso para levá-las. Estão me ouvindo?
Em seguida, ouve-se um rápido giro de cascos do outro lado do portão e os cavaleiros vão embora. Katherine olha fixamente para os seus tamancos de madeira molhados sob a bainha pesada de neve de seu hábito.
Alice está choramingando.
– Eu tenho que ir embora – o cônego murmura. – Tenho que ir.
Ela olha para ele uma última vez. É um homem corpulento e alto,
meia cabeça mais alto do que ela, de ombros largos, os cabelos ruivos
cortados bem curtos, um disco de pele completamente raspada no alto.
Fora os cavaleiros do outro lado do muro, ele é o primeiro homem que
ela se recorda de ter visto na vida. Ela quase estende a mão para tocar
seu rosto.
Ele se vira e atravessa correndo o pátio até o muro que divide o priorado, sobe atabalhoadamente no telhado do barraco de guardar lenha.
Seus tamancos fazem a neve deslizar, mas ele agarra o topo do muro
e consegue se içar. Ele para, olha para trás, em seguida desaparece, de
volta ao seu próprio mundo. Somente então é que ela lamenta não ter
lhe agradecido.
– Temos que contar à prioresa – Alice se lamuria, ainda no chão. –
Temos que avisar todas as irmãs.
– Não! – Katherine diz, ajudando-a a se levantar. – Não. Não ­podemos.
Não podemos. Não devemos contar a ninguém. Nada de bom pode resultar daí.
Ela olha à volta, para as janelas e aberturas. Teria o cônego sido visto?
Ela acha que não. Não há ninguém por perto.
– Mas e quanto àquelas ameaças? – Alice retruca.
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– Eles não podem fazer nada – Katherine diz – enquanto estivermos
dentro dos muros do priorado. Vamos agradecer a Deus por aquele cônego, quem quer que ele seja, e vamos rezar para que ele não tenha sido
visto aqui do nosso lado.
– Nós faremos nossa própria penitência, irmã – acrescenta. – Mil avemarias e dois mil credos diante do santuário da Virgem, e dispensaremos
o pão até a festa de São Gilberto.
Alice balança a cabeça sem muita convicção. Somente Katherine sabe
que faltam apenas alguns dias para a festa de São Gilberto.
– Tenho certeza de que Deus ficará satisfeito – Alice diz finalmente,
e parece prestes a dizer mais alguma coisa, quando, neste exato momento, o sino começa a tocar chamando para a Prima. Elas se entreolham, depois limpam a neve de seus trajes, ajustam o véu, enfiam as mãos dentro
das mangas e caminham em direção ao convento e à segurança da igreja.
Nenhuma das duas ouve a leve batida de uma janela sendo fechada
acima de suas cabeças.
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