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e Historiografia Religiosa no Brasil
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GÊNERO, JUDAICO-CRISTIANISMO E IMPRENSA FEMININA: A IDÉIA DE MATRIMÔNIO CRISTÃO NAS REVISTAS “CLÁUDIA” E “QUERIDA”
______________________________________
Anna Marina Barbará Pinheiro
Doutora em História Social pela UFF
[email protected]
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Temos como objetivo, neste trabalho, refletir acerca da construção de gênero judaico-cristã, e de sua presença noutro tipo de produção discursiva que não o texto
teológico. Pretendemos analisar a produção discursiva da imprensa dita feminina,
de meados dos anos de 1960 ao início dos anos de 1970, no Brasil.1
Buscamos assim, lançar as bases para uma reflexão sobre a circularidade
cultural de uma construção de gênero que se ancora, basicamente, nas figuras bíblicas de Eva, Maria e Lilith. Objetivamos, contudo, concentrarmo-nos na identificação da idéia de matrimônio cristão, na produção discursiva analisada, bem como
na discussão acerca dos papéis sociais e sexuais que lhes são correlatos. Nesse sentido, retomaremos, em linhas gerais, as figuras bíblicas mencionadas para, posteriormente, passarmos à análise das fontes.
Responsável pelo pecado original no âmbito do pensamento teológicocatólico, Eva pode ser considerada como a própria encarnação do vício da luxúria
que reúne feminilidade, sexo e pecado. Embora tal representação de mulher não
predomine nos Evangelhos, ela se faz intensamente presente na Igreja das origens,
nas missões de São Paulo e, principalmente, nos ensinamentos dos Padres do Deserto; para eles que odeiam a carne, existem dois destinos que se confundem: o da
mulher e o do diabo.2
Extremamente prejudicial às mulheres, tal concepção de pecado se perpetuou por muito tempo no âmbito do pensamento teológico católico, em especial, por
ter sido capaz de adaptar-se ao processo histórico, flexibilizando sua rigidez medi1
Desta forma procedemos à leitura e fichamento dos meses de Maio, Agosto e Novembro de 1964
e 1973 da revista “Claudia”. Quanto à “Querida” lemos e fichamos os meses de Maio, Agosto e
Novembro de 1964 e 1968.
2
Para uma análise mais apurada acerca da significação no que tange à construção da identidade
feminina no Ocidente Cristão, ver: DUBY, Georges. Eva e os Padres: damas do século XII. São Paulo, Cia das Letras, 2001.
ante três intervenções principais: “a promoção da Virgem Maria, o estatuto do matrimônio cristão e a legalização da prostituição”. 3
As duas primeiras intervenções (a promoção da Virgem Maria e o estatuto do
matrimônio cristão) atuariam no sentido da criação de um dos pólos a partir dos
quais não apenas o pensamento teológico-católico como também uma ampla gama de vertentes do pensamento laico no Ocidente Cristão passaria a apreender a
condição feminina; o “pólo positivo” no qual se inscreveriam as mulheres tidas como legítimas, destinadas à reprodução da prole legítima, à perpetuação da linhagem (transmissão do nome de família) e à gestão do espaço doméstico, esposas e
“mães de família”.4
Em direção ao pólo oposto, o da ilegitimidade, estariam concubinas e prostitutas, mulheres destinadas a garantir a satisfação das demandas masculinas relacionadas à sexualidade e à afetividade, bem como a preservação da “honra” daquelas percebidas como legítimas. Nas duas posições extremas, representando, por
um lado, a bondade e perfeição absolutas, impossíveis às mulheres verdadeiramente humanas, estaria Maria, mãe que nunca conheceu o sexo; no outro extremo,
unindo sexo e falha, pecado e maldade, Eva. Entre ambas, encontra-se o pessimismo sexual cristão5, induzindo à classificação hierarquizante das mulheres, segundo
a atividade sexual que mantenham, ou não. Quanto mais isentas de sexo, mais próximas da perfeição e bondade representadas por Maria e mais distantes da maldade de Eva.
Entretanto, Eva teria tido apenas um parceiro sexual, de modo que o suposto
excesso de sensualidade interditado às mulheres neste imaginário, também mediante a interdição à elas, de múltiplos parceiros sexuais, requer uma referência à figura
bíblica de Lilith para ser melhor compreendida.
Segundo a Cabala judaica e a Vulgata latina de São Jerônimo (onde ela é
chamada de Lamia) Lilith teria sido achada por três anjos – Senoi, Sansenoi e Samanglof, enviados por Deus às margens do Mar Vermelho – copulando com inúmeros demônios. Ela teria sido assim, dada como esposa do diabo (Sammael), teria
sido uma de suas quatro mulheres e se tornado perseguidora dos recém-nascidos.
Feita por Deus da terra, do mesmo modo que o homem teria se rebelado porque,
no ato sexual, não queria ficar embaixo do parceiro, não era inferior porque viera
do mesmo barro que Adão.
Passando à análise das fontes, empreenderemos, inicialmente, o estudo da
revista Claudia, de modo que será necessário, nos reportarmos à década de 1960,
3
PILOSU, Mário. A Mulher, a Luxúruia e a Igreja na Idade Média. Lisboa, Editorial Estampa, 1995,
p.12.
4
Estamos resumindo algumas considerações realizadas em nossa tese de doutoramento. Ver: PINHEIRO, Anna Marina Madureira de Pinho Bárbara. Igreja Católica, Medicina e Imprensa Feminina:
representações sobre o corpo da mulher no Brasil Republicano. Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2004.
5
Retiramos tal expressão das reflexões desenvolvidas por Uta Ranke Heinemann acerca do lugar da
sexualidade na cosmovisão cristã. Quanto à esta discussão, ver: HEINEMANN, Uta Ranke. Eunucos
pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos
Tempos, 1996.
2
no que tange à questão de gênero, marcada pela importação do ideário feminista
para o país. Esta revista, nos números relativos a tal década refletia um momento de
crise de costumes no qual pretendia interferir, realizando um trabalho pedagógico
com suas leitoras, tendo em vista,identificar para elas a opressão de que eram vítimas na sociedade e que se manifestava em seus próprios lares (relação conjugal e
com os filhos).
Desta forma, a revista procurava explicar-lhes a origem desta sujeição e indicar os possíveis caminhos de superação da mesma. As saídas sugeridas sublinhavam a necessidade de reforço da auto-estima através de um processo de construção
da identidade que tivesse como principal referência a escolha profissional e não a
afetivo-conjugal.
Este projeto de divulgação das idéias feministas encontrava-se claramente
presente nos artigos assinados por Carmem da Silva, que também assinava a seção
de comportamento e a correspondência que a revista mantinha com as leitoras. Tal
seção transformava-se assim, a um só tempo, num importante instrumento de realização do projeto político de “Claudia” e de mensuração, tanto da extensão quanto
das possibilidades de execução deste projeto, como é possível perceber a partir do
seguinte diálogo travado entre Carmem da Silva e Maria de Lourdes Moraes, uma
leitora que escreve à revista de Santos, São Paulo, em Maio de 1964:
"... Lendo seu artigo ('você vive no tempo presente'?) achei a
argumentação brilhante, mas nada prática... Na prática, vivemos ainda no regime do casamentocasamento-emprego para a mulher. Em que pesem todas as conquistas da emancipação feminina, as jovens querem casar o mais breve possível. E poucos pais tem autoridade suficiente para dar às suas filhas uma
profissão, antes de entregá-las à um homem... A jovem altamente intelectualizada, que espera e escolhe um marido à sua
altura, estará fatalmente fadada à solteirice. E há muita gente
boa que ainda ache que profissão para mulher é derivativo
de casamento. Estupidez humana, mas é com essa estupidez
que temos que nos haver porque não podemos reformar o
mundo. ...6"
A este retrato resignado do mencionado contexto de crise de costumes, Carmem da Silva responde da seguinte forma:
... "Estou totalmente de acordo com seu diagnóstico da sujeição feminina. (...) Discordo, contudo, de sua afirmação de
que não se pode reformar o mundo; acho que se pode e se
deve fazêfazê-lo.
lo A Sra. está amistosamente 'intimada' a depor seu
ceticismo (...) e colaborar na obra didática que Cláudia trata
de realizar entre as mulheres
mulheres....7
6
7
Revista Claudia, Ano IV, nº 32, p.
Revista Claudia, Ano IV, nº32, p.
3
A resposta da articulista que fala por “Claudia”, não deixa dúvidas quanto
ao conteúdo político-ideológico do projeto da revista em relação a suas leitoras,
trata-se de educá-las para o exercício da autonomia e da liberdade. Deste modo, a
crença no caráter revolucionário da educação, percebida como instrumento de
transformação social torna-se central a este projeto.
Quanto à revista Querida, pudemos notar que a mesma possuía um projeto
político-editorial de caráter mais conservador que o de “Cláudia”, restringindo as
possibilidades de construção da identidade feminina ao espaço privado e, por conseguinte, veiculando representações de mulher mais atreladas ao “correto desempenho” dos papéis de esposa e mãe.
Localizamos, por exemplo, duas outras visões acerca do casamento que julgamos elucidativas das posições da revista em relação ao mesmo; a carta de uma
mãe a sua filha (“carta à minha filha quando noiva”) publicada numa coluna de
“Querida” que se intitulava “Conversa de mulher” e uma matéria do médico Carlos
Alberto de Souza (“Casando passa”). Temos assim, a ouvir sobre este tema, a voz
de uma mãe de noiva e a de um médico-homem, vamos à mãe da noiva:
Minha filha, minha menina:
...”Ontem, quando em meio a uma de nossas familiares e
calorosas discussões, citei que ‘a medida do amor é a medida do sacrifício’, notei seu arzinho incrédulo, seu olhar um
tanto surpreso. Como se dissesse: ‘mamãe tem cada uma!’ E
mesmo quando justificava (...) que amor é dinâmico, que
amor se conquista ‘como um cruzado’, que a chama que dá
vida ao amor é a mesma que nos faz merecê-lo através do
sacrifício, que sofrimento não quer dizer ‘infelicidade’ — você
continuou olhando-me intrigada, quase sem acreditar em
tanta demagogia...8”.
Este parágrafo inicial resume, em linhas gerais a concepção de amor conjugal que a mãe tenta transmitir à sua filha, às vésperas de casar-se, as relações de
amor, na perspectiva da mãe, constituir-se-iam num processo de permanente construção que se realizaria a partir do sacrifício. Cabe salientar que, em nossa ótica a
relevância da carta está não apenas no fato de discutir tal concepção de casamento, mas principalmente, na reflexão que permite acerca da maternidade.
Nesse sentido, os momentos que antecedem ao mesmo, aparecem como
momentos privilegiados para as trocas afetivas entre mãe e filha, nas quais caberia
à primeira instruir a segunda sobre as felicidades, mas principalmente, sobre as agruras da nova vida, como podemos perceber quando avançamos na leitura da
carta:
8
Revista Querida, Maio de 1968, Nº341, p.
4
...”Atualmente estamos juntas, na mais íntima das funções.
Daqui a alguns meses você casa. É noiva ativa, descontraída,
(...). Moderna e solta — mas com um sentimento de segurança religioso que me aquece e tranqüiliza. Fez curso para noivas, conversou livremente com seu confessor (que é sacerdote
avançadíssimo e inteligente), seguiu aulas de educação sexual, não quis saber de enxoval rebuscado nem de recepção
após a cerimônia religiosa - duas decisões que (...) livraramme de trabalheiras e falsas gentilezas9.”...
Nesta passagem a mãe traça um perfil cuidadoso de sua filha identificandoa como “moderna e descontraída”, mas portadora de uma modernidade limitada
pela religião, presente, não apenas na segurança de seus sentimentos “uma segurança religiosa”, mas também em sua inserção na Igreja Católica. Já se encontram,
assim, presentes no texto os elementos que serão desenvolvidos posteriormente e
que giram em torno das visões diferenciadas de mãe e filha acerca do amor e da
felicidade. Desta forma, prossegue Maria Luiza Bonfim, dirigindo-se à sua filha:
...”Noto em você, (...) uma certa ‘insolência’ em relação à felicidade. Como se ser feliz fosse algo matematicamente proporcional aos seus merecimentos e tão gratuito e involuntário
como ter nascido com olhos azuis e nariz arrebitado! Amparada por testes e conferências por lições e estudos, conquistou
uma certeza absoluta de que tudo dará certo entre vocês
dois.(...)
Fico pensando que, se você confia demais em teorias pode
negligenciar a prática. E agora, um parêntese para lembrar
que em país amigo, famoso por sua eficiência estatística, ficou constatado que 90% das mulheres são amorosamente
desajustadas: o excesso de educação sexual faz com que se
preocupem, na hora do amor, em adotar a atitude exata ou
os ensinamentos corretos - e, como quem decora verso e esquece uma estrofe, perdem-se completamente...10.”
Neste momento da narrativa à concepção materna acerca da felicidade conjugal, exposta nos parágrafos iniciais da carta, contrapõe-se a percepção que a
mãe atribui à filha da felicidade como gratuita e involuntária. Manifesta-se também,
um incômodo por parte desta mulher, supostamente detentora de um saber que lhe
é dado pela experiência, com relação a um suposto excesso de educação sexual
por parte de sua filha. Incômodo e desconfiança que, se constituem na expressão
de uma crise geracional, social e historicamente construída, como será possível identificar nos parágrafos conclusivos do texto. Avançando na leitura, encontraremos
Maria Luisa tentando convencer sua filha de que a sua perspectiva em relação ao
amor e à felicidade conjugal é a mais correta:
9
Revista Querida, Op. Cit. p.
Revista Querida, Maio de 1968, Nº341, p.
10
5
...”Hoje tirei o dia para conversar com você, minha filha. Para pedir-lhe que acredite quando falo na beleza do sacrifício.
(...) Falo em um sacrifício positivo, em uma espécie de 'sofrimento alegre, fértil e robusto', que nos leva ao encontro de
algo que realmente, nos pertence, pois foi conquistado, merecido.
(...) No amor, você deve ter sempre o sim como sua
resposta mais corajosa e lúcida. (...) Diga sim, minha filha, à
tolerância: como exigir perfeição de um ser humano? Importante não é amar as qualidades, mas tolerar com calma e
bom humor, os defeitos dos mais próximos...
Diga sim, minha filha,, ao espírito de renúncia: porque
não restringir um pouco mais suas ambições, aceitando com
mais serenidade o que a vida nos nega, sabendo calar ou fechar os olhos às limitações e às ausências? ...” 11
Numa disputa sutil pela verdade em relação à idéia de amor conjugal, a visão materna vai adquirindo contornos mais nítidos, trata-se da visão tradicional católica acerca deste amor que, em última instância, nega a possibilidade da existência de individualidades no interior de um casamento. O casal deve diluir as individualidades, especialmente, no caso das mulheres, daí o caráter fundamental que o
sentimento de renúncia adquire no âmbito desta concepção de amor e de casamento. Depois de falar em renúncia a mãe passa a enfatizar a dimensão de troca desta
relação ou, como diriam os teólogos católicos, do caráter de “mutualidade “do matrimônio cristão:
...”Diga sim ao diálogo sincero e profundo, que deve
uni-los, afastando sombras e abrindo horizontes, estreitando
laços e (isto é importante minha filha!) fazendo com que atinjam sempre juntos as lágrimas e as risadas, o prazer físico e a
paz espiritual, de mãos fortemente entrelaçadas (...).
Aceite essa carta, minha filha, com sua pieguice e veemência, (...) como sendo um gesto de carinho e muito amor.
Quase como aquela temível
‘conversa pré-nupcial’ de nossos
t
antepassados! Lembro-me do meu pavor quando sua avó, na
véspera de meu casamento, chamou-me para ‘uma conversa’.
Fiquei gelada: como poderia aquela ‘santa senhora’, tão querida, mas tão fora da realidade, aconselhar-me? Mas coitada:
desejava apenas oferecer-me o ‘Livro das Noivas’; de Júlia
Lopes de Almeida... Aqui está, portanto, também a minha carta para uma noiva. Minha noiva tão querida. Que deve acreditar que a medida do amor é a medida do sacrifício. Verdade que, há 36 anos, entesourou e reparte, diariamente, com
oito filhos, esta que é muito sua amiga,
11
Revista Querida, Maio de 1968, Nº341 p.
6
A mamãe...12.”
Por fim, nestes parágrafos conclusivos, manifesta-se uma idealização da união conjugal que a exime de conflitos e imagina ser possível que marido e mulher
estejam sempre juntos, nas alegrias e dores do casamento.
No parágrafo subseqüente, revela-se que o mesmo descompasso verificado
entre esta mãe e sua filha teria, igualmente, ocorrido, tempos atrás, entre a mesma
e sua mãe, a avó da noiva. Com relação a tal fato, podemos observar que, também naquela época as informações relativas à educação sexual eram transmitidas
às jovens mulheres por outros meios (no caso, por um livro), externos à relação
mãe-filha, o que denota certa “incompetência” cultural e historicamente construída,
das mães como “educadoras sexuais”.
Quanto à mensagem que Maria Luisa tenta transmitir à sua filha, do sacrifício e da renúncia da mulher, tanto na condição de esposa, quanto na de mãe (último parágrafo) acreditamos que a mesma se relacione à percepção das mulheres
como “pilares” necessários para a manutenção dos casamentos tidos como bons.
Amplamente condizente com a concepção católica de “família regular”, tal percepção acerca dos casamentos e do papel das mulheres no interior deles é hegemônica em se tratando das representações de feminilidade reproduzidas pela revista
“Querida”.
Resta-nos, entretanto, verificar o que a medicina, através da voz masculina
de Carlos Alberto de Souza, tem a nos dizer acerca deste assunto. Na primeira
quinzena de maio de 1968, nosso médico-jornalista publica sobre o casamento, o
artigo: “Casando passa” que pretende discutir o ditado popular que identifica tal
instituição como cura para uma série de males. Antes, contudo, de tentar averiguar
quais seriam estes males, o médico procura desconstruir a própria formulação da
sabedoria popular:
...”O casamento traz uma série de vantagens, mas não é remédio. E por seu intermédio e pelos filhos ou doenças subseqüentes, faz aparecer grandes males ou desordens permanentes, que só o tempo, cuidado e paciência são capazes de salvar (...).
(...) O que pode acontecer à mulher com o matrimônio é
uma satisfação íntima. Ela deixa de ser a jovem aflita ou afoita para quem o sexo é negado. As angústias, o medo e, sobretudo a não realização de uma função que não foi criada
pelo homem e, portanto não é pecado algum passa a ter sua
execução normal e sem constrangimentos ....13”
Identificando no casamento vantagens e desvantagens para a mulher, o autor discorre sobre o mesmo, classificando qualquer outra alternativa de vivência da
12
13
Revista Querida, Maio de 1968, Nº 341, p.
Revista Querida, Maio de 1968, Nº 341, p.
7
sexualidade feminina, que não através dele, como anormal e constrangedora. Nesta perspectiva, as aludidas vantagens e desvantagens que identifica na instituição
referem-se, na verdade, a existência, ou não de atividade sexual por parte da mulher. Encontra assim, benefícios na realização desta atividade e a descola da idéia
de pecado, desde que a mesma, pelo menos para as mulheres, se circunscreva ao
casamento. Tal posição vai ficando mais clara, na medida em que avançamos na
leitura do texto:
...” No entanto, em qualquer época, a cessação das relações
sexuais, principalmente entre mulheres e homens jovens, traz
grandes prejuízos. O corte inesperado, pela viuvez, pelo desquite, ou por incompatibilidades, desta atividade, produz os
mais desastrados resultados que a maioria julga com severidade, sem saber que não se pode bitolar os demais pelo nosso raciocínio e maneira de ver as coisas.
A ânsia de amar e ser amado faz com que a gente realize
tentativas estéreis, infrutíferas, desastrosas, quase sempre,
deixando amargo travo na boca. Mas a chama da esperança
faz com que se prossiga. E pode bem ser que um dia se encontre a alma gêmea. Se isso no homem é perdoável e pode
até ser cartaz, na mulher é abertamente censurado. Por quê?
Não se esqueçam de que de uma boa conversa ninguém está
livre. Esperando encontrar o que lhe falta, o que lhe quebra
os nervos, que lhe faz passar noites em claro, a mulher cede.
E se o cavalheiro não tem boas intenções ou se deseja passar
o tempo? Vai ela, então, para nova tentativa, pois não tem
vocação para freira. O rosário é, não raro, longo e, muitas
vezes não encontrarão o companheiro ideal. Então, passa a
ser chamada 'aquela’...14".
Nestas passagens de texto o autor parece estar explicitando, o discurso que
atribui a homens e mulheres, moralidades sexuais diferenciadas. Não parece ainda
incorporá-lo, ou defendê-lo, mas apenas, estar descrevendo o que acontece com
homens e mulheres sexualmente ativos, quando são confrontados com a interrupção abrupta de suas vidas sexuais.
Nesta sua descrição, estão claramente presentes, elementos do, como a busca do par perfeito/idealizado e a confusão entre amor e sexo. O mito do amor romântico estigma do passivo sexual também se manifesta pela utilização do verbo
“ceder” como referência a participação feminina no ato sexual: a mulher cede aos
apelos masculinos, nunca procura o sexo por si só e, ao fazê-lo revela-se fraca.
Prosseguindo na leitura:
...”Por que o sexo, para o homem não tem freios? Mesmo
mau marido, a esposa, em casa, vive a bater gemadas, a fa14
Revista Querida, Maio de 1968, Nº 341, p.
8
zer mingaus e pratos saborosos para reconquistar-lhe o amor
e as boas graças. Mas se é ela que entra à procura da luz
que lhe falta e do calor de amizade que necessita, todos se
munem de pedras, esquecendo as palavras de Cristo: atire a
primeira pedra. E se, como vi na Jordânia, em Jerusalém, na
Palestina, em Tel Aviv, em Haifa, tudo é pedra e areia, os
nossos petardos não saem das mãos, mas da boca, que é livre e fala tudo que não deve(...). E crucifica, então, a que pecou por amor.
Casando passa, sim, muita coisa. Mas se você casa bem. Do
contrário, que o diga quem me está lendo e que errou na escolha ..."15
Fazendo uso da imagem bíblica do apedrejamento público de prostitutas e
mulheres que descumprissem a regra da monogamia nos tempos de Cristo, o autor,
não apenas classifica o descumprimento desta regra pelas mulheres de seu tempo
como pecado, mas ainda demonstra enorme dificuldade em nomear a demanda
feminina por sexo. Assim, a mulher casada, mas sexualmente insatisfeita que procura satisfazer-se fora do casamento, em seu texto, procura “luz” e “calor de amizade”, ao invés de sexo. E quando encontra o que procurava, “peca por amor”.
Para coroar tal narrativa tão plena de misoginia, o Dr. Carlos Alberto de
Souza, retoma o ditado popular que deu origem ao artigo para, desta vez, legitimálo: casando muita coisa passa, mas só se a escolha do marido for “bem feita”. A
esta altura, fica claro que se está a falar de mulheres e que a dupla moralidade sexual entre as mesmas e os homens foi incorporada pelo autor.
Nesta perspectiva, voltando à questão da escolha do cônjuge, o bom marido é, também, aquele que deve satisfazer sexualmente sua mulher. Entretanto, se a
sexualidade pré-conjugal não lhe é permitida, a escolha do cônjuge por ela, pelo
menos neste quesito será, invariavelmente, feita “no escuro”. Em tais condições,
acertar passa a ser questão de sorte e, se o vínculo conjugal for vivenciado como
vitalício, só lhe restará o sacrifício e a renúncia, tão propalados no artigo-carta de
Maria Luisa Bonfim.
Estamos assim, em pleno ano de 1968, num veículo de comunicação, supostamente laico, confrontados com a defesa da idéia de matrimônio cristão. E devemos sublinhar que tal defesa não é realizada por nenhum representante oficial da
Igreja Católica, mas por uma mulher, mãe de oito filhos, e por um médico.16
Assim, quanto ao projeto político-editorial de cada uma das revistas, constatamos que “Claudia”, incorporando o discurso feminista da época e, objetivando
difundi-lo entre as mulheres da classe média urbanizada no país, se utilizará de aspectos do discurso médico, bem como da idéia de modernidade, tendo em vista a
15
Revista Querida, Maio de 1968, Nº 341, p.48-49.
Isso não significa, entretanto que esta instituição também não se fizesse presente noutros espaços
deste veículo, através de seus representantes oficiais. Ver, por exemplo, matéria intitulada: “Casamento: conselhos, verdades e tabus”. Revista Querida; Maio de 1968.
16
9
realização deste objetivo. Mesmo assim, o discurso da revista não será homogêneo
em relação às questões de gênero e sexualidade, sendo possível identificar permanências de conservadorismo em espaços da mesma, que não nos artigos e seções
assinadas por Carmem da Silva.
No que diz respeito à “Querida”, alinhando-se, claramente ao regime militar
e, portanto, incorporando também o conteúdo do projeto político militar relativo
aos costumes, a revista, adaptará o discurso médico ao seu projeto. Para isso, contará com o trabalho de um intelectual militante do anti-feminismo, o médico Carlos
Alberto de Souza.
Em relação à identificação da idéia de matrimônio cristão em ambas as revistas, identificamos um forte enrraizamento da mesma em “Querida”, que nesse
sentido contrapõe-se à “Claudia”. Apresentando-se articulada, tanto à aspectos do
ideário médico, tal como evocado pelo discurso de Carlos Alberto de Souza, quanto
ao discurso peculiar de Maria Luisa Bonfim, tal idéia não se encontra tão presente
em “Claudia” em função do comprometimento da revista, na figura de Carmem da
Silva, com o ideário feminista.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DUBY, Georges. Eva e os Padres; damas do século XII. São Paulo, Cia das Letras,
2001.
HEINEMANN, Uta Ranke. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a
Igreja Católica. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1996.
PILOSU. Mário. A Mulher, a Luxúria e a Igreja na Idade Média. Lisboa: Editorial
Estampa, 1995.
PINHEIRO, Anna Marina Madureira de Pinho Bárbara. Igreja Católica, Medicina e
Imprensa Feminina: Representações sobre o Corpo da Mulher no Brasil Republicano. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.
SICURETI, Roberto. Lilith, a lua negra. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.
10
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A idéia de Matrimônio Cristão nas revistas “Cláudia”