Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Biela e Ponciá: trajetória de mulher objeto à escre(vivência) do sujeito mulher na literatura brasileira Luciene Araújo de Almeida1 Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso ajudar a construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara para trás. E perceber que, por baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas havia. A vida era um tempo misturado do antes-agoradepois-e-do-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser. 2 Foi com esse excerto que iniciei a leitura dos livros selecionados para desenvolver esse trabalho com as alunas e alunos do ensino médio. Já de inicio eles/as foram convidados a adentrar nessas leituras com esse olhar de Evaristo, o olhar da ancestralidade, o olhar que entende que nunca falamos sozinhos, que nossa fala refrata e/ou reflete outros falares. Foram também advertidos que, no curso das estórias letradas, nem todas as histórias foram contadas, existindo aquelas que recentemente adentraram no campo literário para contar suas histórias e a dos seus. Acreditando no diálogo do discurso literário com as práticas sociais estabelecidas, apresentei aos alunos(as) os romances Ponciá Vicêncio (2003), de Conceição Evaristo, e Uma vida em segredo (1964) de Autran Dourado, sendo que os livros foram lidos e trabalhados ao longo do primeiro semestre. O trabalho se propôs a discutir a representação da mulher na literatura brasileira, e como essa representação se transformou, assim como os locais sociais das mulheres, quando observamos o rio do tempo. Inicialmente, as mulheres saíram do silêncio no lar, ou mordaças dos porões, para o 1 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás. 2 EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 2ª ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2005, p.127. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura silêncio na literatura, mas assim como os “sonhos voltam a pulsar nas veias ressecadas”, as mulheres tomaram à pena, anteriormente símbolo fálico de poder, e começaram a contar suas histórias. Não podemos negar que, com o Modernismo brasileiro, os excluídos ganharam a cena literária, mas será agora, na contemporaneidade, que esses sujeitos antes representados(as)/ objetivados(as) narram suas histórias. Os romances selecionados guardam algumas semelhanças, ambos narram à trajetória de duas personagens femininas que se deslocam do seu lugar de origem, cada uma por um motivo, sendo que as duas Ponciá e Biela se sentem deslocadas nesse novo contexto em que estão inseridas. No entanto, o foco da leitura a que nos propomos se preocupou mais com as diferenças entre esses dois romances que a principio guardam semelhanças. Relembrando sucintamente os romances, Uma vida em segredo, narra à história de Gabriela da Conceição Fernandes, conhecida por prima Biela, moradora do fundão, região rural, que ao ficar órfã vai morar na cidade com a família de seu primo Conrado, agora seu tutor legal. Tudo o que sabemos sobre ela nos é apresentado pelo narrador, ou pelo olhar das outras personagens. Prima Biela não se adapta à vida na cidade, sua morte no final do livro apenas reforça esse não lugar, essa não adequação ao espaço e costumes citadinos. Ponciá Vicêncio narra à trajetória de Ponciá, descendente de escravos, personagem marcada pelas agruras de um país de desigualdades raciais e de gênero. Ponciá, assim como Biela, deixa “sua” terra, fazenda dos antigos donos, para tentar a vida na cidade, descobrindo que as oportunidades na cidade grande também não são para todos, mesmo para ela que aprendeu a ler. A protagonista acostumada a fazer do barro sua arte, acaba por ser silenciada na cidade, no entanto seus momentos de lembrança\devaneio apresentam ao leitor a história da família Vicêncio, história essa que dialoga diretamente com a História do Brasil. Somos conduzidos por suas lembranças/retratos, também com uma narradora em terceira pessoa, mas que aqui apresenta um ponto de vista feminino, nos aproximando da protagonista do romance. A loucura anunciada no inicio da narrativa se cumpre, entretanto, o que percebemos nesse desfecho também trágico, é a resistên- Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura cia a um sistema opressor. A volta de Ponciá ao seio familiar metaforiza a volta de todo um povo as suas raízes de além mar. Ao observarmos a história recente do Brasil percebemos que as mulheres, principalmente as mulheres negras, não tinham voz, não se constituíam como sujeitos históricos, sendo assim, estavam impossibilitadas de contar sua própria trajetória. A História oficial sempre privilegiou a visão do homem branco, uma visão eurocêntrica, onde as mulheres estavam reservadas ao lar, ora na sala, ora nos quartos de empregadas, enquanto a vida pública pertencia apenas aos homens brancos da elite brasileira. Na literatura essa relação de poder não foi muito diferente, e durante muito tempo as mulheres também estiveram à margem, tanto na forma como eram representadas, como na produção de obras literárias. Como já dito anteriormente, será com o Modernismo que os excluídos ganharam a cena literária, sendo o romance Uma vida em segredo, herdeiro dessa tradição literária. No entanto, o que continuamos a observar no romance de Dourado é a perpetuação de alguns estereótipos do sujeito excluído socialmente, no caso a personagem feminina, prima Biela. Observemos a ironia do narrador ao se referir à protagonista já no inicio da leitura: Quando deu com aquela porção de olhos em cima dela, recuou medrosa assustada, como se alguma coisa a ameaçasse não só por fora mais por dentro. Que mundo aquele em que ia entrar. Meu Deus me ajude, talvez3 ela tenha pensado. 4 Ou ainda: “Eram as suas horas de meditação, se é que se pode chamar de meditação aquilo que ela praticava”. 5 Por esses excertos podemos inferir que o narrador não admite que essa personagem feminina no momento em que se recolhe, esteja pensando, e continua: “como sempre sentada na canastra que lhe lembrava a vida de antigamente. Cansada de ruminar 3 Grifo meu. 4 DOURADO, Autran. Uma Vida em Segredo. 27ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p.28. 5 DOURADO, Autran. Uma Vida em Segredo. 27ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p.51. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura sem fim as mesmas lembranças, agora ela não pensava precisamente em coisa nenhuma (...). Muitas vezes se perdia assim naquelas ausências, naquelas lerdezas”. 6 O narrador de Biela diz que ela está ruminando, ou seja, a todo o momento reforça a animalização da personagem, bem como afirma que ela está ausente. Ou ainda; E os olhos cerrados, o corpo solto no espaço, começou a viver uma lembrança, a antiga lembrança. E ouviu a cantiga mais bonita, mais mansa, mais feita das cores do céu. Uma sensação assim tão boa, mais tão diferente, só de noite na roça, o riachinho correndo, quando esticava o ouvido para ouvir o chuá-pá do mojolo: a água enchendo o cocho, o silencio, o ranger do cepo na tranqueta, o chuá da água, o barulho chocho da Mao caindo no pilão quando se pilava arroz, mais duro quando se esfolava milho, e tudo se repetia feito choro monótono e sem fim, o monjolo rangendo. 7 Sabemos pelo excerto que a personagem tem um passado do campo bucólico, suas lembranças sempre se voltam para esse momento, é mais uma lembrança das coisas da roça, que constituem nossa personagem, mostrando o quão simples são os seus desejos. E por fim: “como se subisse um morro, mesmo no plano, sem rumo certo, caminheira. Nenhuma graça, nenhum ritmo macio, nenhuma leveza, nada que revelasse naquele corpo uma alma feminina”.8 Percebemos novamente como o narrador a todo o momento ridiculariza sua protagonista. Como comprovamos pelos excertos acima, essa ideologia – de falar pelo excluído, ou o homem falar pela mulher – é arraigada de preconceito, visto que tenta denunciar uma esfera à outra. Tal condição sugere um preconceito justamente porque o narrador, enquanto pertencente à esfera da elite letrada, denuncia a esfera popular e não letrada, sem ao menos ter estabelecido um contato direto com a mesma, 6 DOURADO, Autran. Uma Vida em Segredo. 27ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p.56. 7 DOURADO, Autran. Uma Vida em Segredo. 27ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p.33-4. 8 DOURADO, Autran. Uma Vida em Segredo. 27ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p.44. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura criando personagens embasados em preconceitos criados pela sociedade em que vive. Diferente do narrado de Ponciá: “Ela gastava todo o tempo com o pensar, com o recordar. Relembrava a vida passada, pensava no presente, mas não sonhava e nem inventava nada para o futuro”.9 Observamos que mesmo quando a protagonista se encontra em estado de letargia, nos mostra que ela esta recordando sua infância, sua história, ou seja, reafirma seu lugar de sujeito histórico. Lembro aqui a intelectual Zilá Bernd que diz, acerca da escrita negra, Passado de outro a eu , o(a) negro(a) assume na poesia sua própria fala e conta a história de seu ponto de vista. Em outras palavras: esse eu representa uma tentativa de dar voz ao marginal, de contrapor-se aos estereótipos (negativos e positivos) de uma literatura brasileira legitimada pelas instancias consagradas. 10 Ou ainda como postula Duarte: Os versos enfatizam a necessidade do eu poético de falar por si e pelos seus. Esse sujeito de enunciação, ao mesmo tempo individual e coletivo, caracteriza não apenas os escritos de Conceição Evaristo, mas da grande maioria dos autores afro-brasileiros, voltados para a construção de uma imagem do povo negro infensa dos estereótipos e empenhada em não deixar esquecer o passado de sofrimentos, mas, igualmente de resistência à opressão. 11 Esse movimento proposto por Zilá e Duarte pode ser observado no romance de Evaristo que narra à trajetória de Ponciá, protagonista descendente de escravos que foram alforriados, mas não verdadeiramente libertos, 9 EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 2ª ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2005, p.19. 10 BERND, Zilá. 1988. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense. 11 DUARTE, Eduardo de Assis. O Bildungsroman afro-brasileiro de Conceição Evaristo. 2006, p.306. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura uma vez que não foram incorporados ao projeto de nação que o “Brasil” definiu. Ainda, segundo Duarte: Em Ponciá Vicêncio, a autora retoma o procedimento – que arriscaria chamar de brutalismo poético – ao narrar, numa linguagem concisa e densa de sentido, a vida de uma mulher oriunda do mundo rural, desde a infância até a “maturidade” desterritorializada na favela em que vegeta junto ao companheiro. 12 Compreendendo a fala do professor, mas buscando resignificá-la, lemos esse momento de letargia de Ponciá pela perspectiva da resistência, onde o “vegetar” tem um caráter de oposição frente à exploração da mulher negra pela mulher branca, e também, por seu marido negro. A história se constrói a partir das lembranças da protagonista, que carrega a marca da escravidão inclusive no nome Vicêncio. Ponciá, como Conceição, como eu, não aceitamos o lugar marcadamente histórico da mulher negra, buscando assim uma (re)colocação na sociedade patriarcal branca brasileira. O romance retoma passagens dolorosas da história afro-brasileira, não deixando de construir imagens, que embora já retratadas por escritores canônicos, ganham outro sentido no romance em questão. Pajem do sinhô-moço, escravo do sinhô-moço, tudo do sinhô-moço, nada do sinhô-moço. Um dia o coronelzinho, que já sabia ler, ficou curioso para ver se negro aprendia os sinais, as letras de branco e começou a ensinar o pai de Ponciá. O menino respondeu logo ao ensinamento do distraído mestre. Em pouco tempo reconhecia todas as letras. Quando sinhô-moço se certificou que o negro aprendia, parou a brincadeira. Negro aprendia sim! Mas o que o negro ia fazer com o saber de branco? O pai de Ponciá Vicêncio, em matéria de livros e letras, nunca foi 12 DUARTE, Eduardo de Assis. O Bildungsroman afro-brasileiro de Conceição Evaristo. 2006, p.306. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura além daquele saber. 13 Destacamos esse excerto para demostrar como o narrador aqui se posiciona de forma diferente em relação aos personagens excluídos, fazendo uma crítica à sociedade vigente, e não ao marginalizado. E como afirma Barbosa no prefácio do livro: Quase sempre este romance explora as complexidades das personagens. Raramente encontramos uma pessoa neste texto (mesmo as personagens-periféricas) que possam ser categorizadas usando-se uma simplicidade dualística, ou seja, como seres meramente bons ou maus. Para cada personagem, Evaristo apresenta sempre mais de uma faceta, ou busca causas sociais, históricas e emocionais para explicar os comportamentos, fugindo sempre de conclusões apressadas. 14 Diferente de Dourado que a todo o momento afirma: “Prima Biela era uma boa moça, via-se logo. Uma moça muito boazinha, agora diziam as mulheres gabando a compreensão, o discernimento, a escolha que prima Biela tinha feito. (...) Boazinha, prima Biela agora noiva. Uma noiva muito boazinha.” 15 Como podemos perceber a narradora de Ponciá se aproxima dos griots africanos, que buscam manter viva a história de sua comunidade, Evaristo colocou os marginalizados, principalmente a mulher, como protagonista de sua história. Gostaria de ressaltar que em momento algum as obras foram hierarquizadas, sendo que o objetivo da leitura foi destacar como a mulher foi representada de forma diferente nos dois romances. Discutindo com as alunas e alunos, inclusive o período de publicação, e as implicações sócio13 EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 2ª ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2005, p.18. 14 EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 2ª ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2005, p.09. 15 DOURADO, Autran. Uma Vida em Segredo. 27ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p.82. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura históricas dos autores uma vez que o fazer literário também está ligado aos grupos sociais, às heranças culturais a qual os autores pertencem, o intuito inicial foi discutir as mudanças na forma de se representar as personagens femininas na literatura brasileira. E assim como afirma Rita Therezinha Schmidt: A afirmação da positividade da identidade “mulher” a partir de sua reconstrução pelo eixo identidade/subjetividade, o que significou dar visibilidade a um imaginário até então encoberto e silenciado; nesse imaginário, o amor, a sexualidade, o corpo, o desejo, o trabalho, a maternidade, a amizade, a memória, a história, e a nacionalidade adquirem novos sentidos, traçam novas paisagens, recompondo o outro lado da história e levantando, nesse processo, a questão da relação entre linguagem, poder e resistência. 16 Essa afirmação se faz presente no romance de Evaristo, que realmente coloca a mulher no centro da narrativa apresentando as questões relacionadas ao universo feminino, e discutindo os lugares e práticas sociais, anteriormente imutáveis, silenciando as mulheres no factual e no ficcional. Concluo essa breve reflexão com as palavras de Evaristo, que discute com muita propriedade a questão da representação da mulher na literatura brasileira, em um ensaio publicado na revista Palmares: Assenhoreando-se “da pena”, objeto representativo do poder falo-cêntrico branco, as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de uma auto-representação. Criam, então, uma literatura em que o corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo do “outro” como objeto a ser descrito, para se impor como sujeito-mulher-negra que se descreve, a partir de uma 16 SCHMIDT, Rita Therezinha. Recortes de uma história: a construção de um fazer/saber. In: Literatura e feminismo: propostas teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Elo, 1999, p.32. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura subjetividade própria experimentada como mulher negra na sociedade brasileira. Pode-se dizer que o fazer literário das mulheres negras, para além de um sentido estético, busca semantizar um outro movimento, ou melhor, se inscreve no movimento a que abriga todas as nossas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se toma o lugar da vida.(...) Pode-se concluir que na escre(vivência) das mulheres negras, encontramos o desenho de novos perfis na literatura brasileira, tanto do ponto de vista do conteúdo, como no da autoria. 17 17 EVARISTO,Conceição, Da representação à auto-apresentação da Mulher Negra na Literatura Brasileira. Revista Palmares, São Paulo, n. 1 p 52-57, agosto 2005. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Bibliografia BERND, Zilá. 1988. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense. DOURADO, Autran. Uma Vida em Segredo. 27ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p.82. DUARTE, Eduardo de Assis. O Bildungsroman afro-brasileiro de Conceição Evaristo. 2006, p.306. EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. 2ª ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2005, p.127. EVARISTO, Conceição. Da representação à auto-apresentação da Mulher Negra na Literatura Brasileira. Revista Palmares. São Paulo, n. 1, p 52-57, agosto 2005. SCHMIDT, Rita Therezinha. Recortes de uma história: a construção de um fazer/ saber. In: Literatura e feminismo: propostas teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Elo, 1999, p.32.