Ana Clara Bezerra Saraiva Sá
A NOIVA
Tudo começou com um sonho.
Uma porta que se aproximava a largas passadas. Lentamente, começava a perceber o que acontecia ao seu redor. O tapete vermelho.
Pessoas. E uma mão estendeu-se para abrir as portas duplas. E seus
olhos abriram.
A médica correu para acudir a paciente que acordava. Ela tossia
fortemente, enquanto tentava se livrar das agulhas e das máquinas.
Uma enfermeira chegou e a pôs de volta na cama, ajudando a médica a checar os sinais vitais. E esta última pegou o prontuário enquanto fixava-se nessa paciente tão incomum. Não por ter alguma
característica física diferente ou alguma força sobre-humana, mas
sim pelos seus trajes. Ela havia chegado vestida de noiva.
– Dra. Lília? – chamou a enfermeira. – Que há?
– Nada. Por favor, dê um calmante a esta paciente. Creio que dentro em breve ela poderá ir para casa.
A paciente deu um sorriso irônico que a enfermeira não viu, ao
dar-lhe as costas. Como se as palavras da médica parecessem engraçadas de alguma forma estranha. Lília olhou mais uma vez para
aquela figura, tentando entender a expressão. Tentando captar alguma explicação para o estado em que ali chegara, dois dias antes.
Já passava das dez da noite, já havia cessado o constante “entra e
sai” no hospital. Alguns pacientes eram encaminhados a outras
partes, alguns ainda estavam sendo atendidos enquanto outros dormiam em suas macas. E essa aparente calma foi quebrada com um
grito agudo e penetrante cortando a noite. Correram até as portas e
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viram um vulto cinzento, coberto de camadas de tecido. Quando o
ergueram, uma mulher vestida com algo que fora branco fixava-lhes
o olhar azul, sem nada ver. E então desmaiou.
Foi levada às pressas para o interior do hospital, a roupa rasgada e enlameada, mas com lantejoulas e pedrarias que lembravam algo elegante. E o véu que lhe envolvia a cabeça esclareceu tudo: era uma noiva.
Vinda de algum lugar desconhecido, sem identificação e sem parentesco com ninguém. A chuva a trouxera. E não se sabia até onde a levaria.
Os cortes foram tratados, os exames foram realizados, e tudo aparentava perfeita ordem. Exceto pelo fato de que a paciente custava a
acordar. E sua pulsação variava constantemente. Como se estivesse
angustiada. Como se sonhasse e tivesse um pesadelo.
Mas ela acordara, enfim. Com fundas olheiras e expressão nada
agradável. Um sorriso irônico. E sem uma palavra sequer proferida
até aquele momento.
– Você já sonhou com casamentos, doutora? – perguntou a voz rouca.
O braço que segurava o prontuário se retesou.
– Dizem que sonhar com noiva significa receber uma pequena herança, uma quantia em dinheiro, e ser uma noiva é sorte – respondeu.
A paciente deu um sorriso amarelo.
– Depende da cor do vestido da noiva, concorda?
– O quê?
– A morte também é uma noiva não é, doutora? – respondeu com
o mesmo sorriso.
E a porta do quarto se abriu quando uma atendente chamava o nome
da Dra. Lília. E ela imaginava o que a noiva quisera dizer com aquilo.
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A Marcha Nupcial ecoava pelas paredes da igreja. Virou para trás e
viu as portas se abrindo e a noiva entrando. O lugar era banhado de
luz como um casamento matinal parecia. Todos se curvavam àquela
entrada triunfal, uma linda visão. A própria noiva era uma visão.
O rosto coberto pelo véu, todo em rendas. O vestido com uma longa
cauda, tudo trabalhado. E quando a luz ofuscante cessou e a sombra
surgiu foi que ela percebeu. O vestido da noiva sem face era preto. E ela
acordou enquanto desfalecia.
Lília levantou a cabeça do balcão. Havia caído no sono em cima
da sua agenda, enquanto anotava os últimos detalhes, na sua hora
de repouso no plantão. Guardou a agenda na bolsa e vestiu o jaleco,
indo observar seus pacientes.
Enquanto passava pelo corredor, foi atraída pela janela de vidro
da paciente e sentiu o estômago despencar. Um vulto preto estava
em pé ao lado da misteriosa noiva, olhando para ela. Segurando sua
mão. Lília ficou paralisada onde estava, olhando fixamente a cena.
Uma mão escorregara para fora da manga do vulto preto. Uma mão
seca e ossuda, cinzenta e sem vida, contrastando com a mão jovem e
delicada da paciente. Esta fixou o olhar azul no de Lília, como que
pedindo desculpas.
E Lília viu. Viu a mão ossuda cintilar e como que “reviver” ao mesmo tempo em que a mão pulsante tornava-se pálida e sem vida, tão
rápido quanto uma respiração. E o vulto carregou a mulher no colo,
vestida de noiva como chegara ali, com a face plácida como se dormisse. E a cauda de renda do vestido de noiva preto saiu pela janela,
levando a outra noiva de branco. E o quarto estava vazio.
O bip contínuo acordou Lília do transe, enquanto a equipe corria
para o quarto, empurrando a porta. A mulher ainda estava ali. Porém, em parte, apenas. Estava morta. Lília pegou a mão dela depois
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que tentaram reanimá-la sem sucesso. Não estava magra e sem vida
como vira. Estava como antes, porém não tinha pulso.
Lília saiu perturbada. Estavam tomando todas as providências após
o óbito. Parada cardíaca, ao que parecia. Não havia outra explicação
já que, exceto pelo fato de estar morta, ela estava praticamente curada
de todos os ferimentos. Nenhum nome. Nenhum contato. Apenas o
corpo e o vestido rasgado, que acharam por bem lavar e consertar na
medida do possível, para dar-lhe, ao menos, um enterro digno.
A médica pegou o carro no estacionamento, tentando pôr os pensamentos em ordem. Não se lembrava de caso mais misterioso e tentava
colocar na cabeça que a visão da noiva de preto não havia sido real. E
ia conseguindo aos poucos. Já vira outros pacientes morrerem, mas
nunca de forma tão misteriosa ou com origem tão peculiar.
Estava esperando o semáforo ficar verde em uma rua pequena e,
quando o carro começou a andar, um vulto atraiu a sua visão. Aterrorizada, viu a noiva de véu preto caminhar lentamente na sua direção. Tentou desviar e fugir dali, mas não viu o carro que avançou
o sinal vermelho. Não viu a vida passar como um filme em alguns
segundos, não deu tempo. Viu apenas aquela mão ossuda segurar-lhe a mão sob os destroços do carro acidentado. Viu apenas aquela
noiva levar-lhe para longe, para o corredor com uma luz.
Mas naqueles segundos – naqueles míseros segundos que precederam a colisão – ela viu que a paciente tinha razão. Que a Morte é
muito mais astuta do que pensamos, que ela realmente é capaz de nos
levar para longe no abraço mortal sem percebermos. Que o último
suspiro da vida é como o sim para o casamento com a eternidade.
Afinal a Morte nem sempre é um ser encapuzado. Às vezes ela veste um véu de noiva.
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