Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 CLASSIFICAÇÃO BIOLÓGICA: UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA JUNTO A ESTUDANTES DE UM CURSO DE FORMAÇÃO INTERCULTURAL DE EDUCADORES INDÍGENAS Rebeca Cássia Andrade (Engenheira Agrônoma, Licenciada em Biologia, Msc. Entomologia Agrícola – Faculdade de Educação da UFMG) Marina de Lima Tavares (Faculdade de Educação da UFMG) Érica Dumont (Faculdade de Educação da UFMG) Célio da Silveira Júnior (Faculdade de Educação da UFMG) Juarez Melgaço Valadares (Faculdade de Educação da UFMG) RESUMO O objetivo desse texto é apresentar uma experiência pedagógica desenvolvida junto a estudantes de licenciatura indígenas com relação ao tema classificação biológica dos seres vivos. Apresentamos uma abordagem que visou abrir espaço para a explicitação e compreensão dos modos de classificação dos seres vivos, avaliando e discutindo as diferenças em relação à classificação biológica. Consideramos, que a contextualização da prática pedagógica condizente com a proposta de formação de educadores indígenas é fundamental para o fortalecimento da consciência crítica, emancipação indígena e valorização da cultura e dos conhecimentos populares pela proposição que identifica as diferenças entre os diferentes sistemas de conhecimento e não a supremacia de um sobre o outro. Palavras chave: educação em ciências, educação intercultural, classificação biológica. INTRODUÇÃO Esse artigo objetiva apresentar uma experiência pedagógica desenvolvida junto a estudantes do Curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FIEI/UFMG), na habilitação Ciências da Vida e Natureza (CVN) ocorrida durante o processo de ensino do tema classificação biológica dos seres vivos que buscou, dentre outros aspectos, dar destaque aos conhecimentos cotidianos dos estudantes sobre biodiversidade. O curso FIEI/UFMG é ofertado desde 2009 e tem como principal objetivo formar educadores indígenas para a criação de uma escola indígena diferenciada. Tem duração de quatro anos e está organizado em tempos/espaços diferenciados, com tempos de formação na UFMG e tempos no próprio espaço de atuação e vivência dos estudantes – nas aldeias indígenas – com ênfase nas dimensões sociocultural e política dos educandos. Formação de conceitos, categorização e classificação Os processos de sistematização e categorização são importantes para a formação de conceitos (VYGOTSKY, 1934/1987; LAKOFF, 1987) que implicam no favorecimento das 6392 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 relações e compreensões dos sujeitos diante das situações cotidianas, assim como com o aprendizado acadêmico. Barsalou (2009) ao tratar da formação do sistema conceitual construído pelo indivíduo introduz a importância do contexto e da condição situacional na qual o sujeito se insere, como fatores fundamentais para a formação dos conceitos e aprendizagem. É importante considerarmos que o sujeito dialoga frenquentemente com suas experiências no processo de aprender (VYGOTSKY, 1934/1987). Assim, o uso e percepção dos conhecimentos prévios são primordiais na formação dos conceitos, e consequentemente, dos sistemas de categorização e classificação construídos pelos sujeitos. Lakoff (1987) discute que a relação do indivíduo com o mundo gera seu sistema de categorização. As categorias intermediárias (ex.: cadeira), que se encontram entre categorizações generalistas (ex.: móvel) e específicas (ex.: poltrona), são mais básicas e, portanto, as primeiras a serem apreendidas e relembradas. Nesse sentido, o autor discute que a maior parte dos conhecimentos é organizada nesse nível básico, também conhecido por gênero na nomenclatura biológica. E foi também nesse nível que Lineu se baseou para formar o sistema de classificação biológica por hierarquias, amplamente referido no ensino de biologia da atualidade. Lineu utilizou para a construção do nível gênero características cotidianas a partir das quais por generalizações geraram os níveis mais gerais como classe, ordem, reino e etc. e por especificações passou à descrição dos níveis específicos (LAKOFF, 1987). Assim, é possível considerarmos a importância do nível básico de conceitos para a construção cognitiva somada a sua forte relação com os conhecimentos cotidianos. Lakoff (1987) exemplifica, ainda, a importância da formação e compreensão de outros sistemas de classificação no auxílio do entendimento sobre a diversidade de seres vivos, a citar os conceitos de evolução das espécies, que com a introdução do sistema cladístico, por exemplo, permitiu compreendermos o sistema de classificação de Lineu como um processo evolutivo. Desse modo, observamos que o ensino sobre a diversidade dos seres vivos, a partir do sistema de classificação biológica, precisa abarcar contextos, sejam eles relacionados às discussões de ajustes taxonômicos e sistemáticos comuns nos meios da ciência ocidental, assim como daqueles relacionados aos conhecimentos locais sobre tal diversidade e que em diversas situações são utilizados para complementação das informações hoje disponíveis também para a ciência biológica ocidental. O ensino sobre o sistema de classificação biológica Para o nível fundamental e médio o ensino sobre a diversidade biológica, assim como as descrições apresentadas nos livros didáticos, tem sido baseado nos estudos de classificação 6393 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 por níveis hierárquicos propostos por Lineu no século XVIII e no Sistema de Cinco Reinos de Robert H. Whittaker da década de 1960 (ROMA; MONTOKANE, 2007). No entanto, outros modos de classificação têm sido utilizados pelo homem ao longo da história. Conhecer e sistematizar a diversidade dos seres vivos fazem parte dos modos de convivência dos diversos grupos sócio-culturais humanos com os demais organismos, que coabitam os variados nichos do planeta. A existência de diferentes sistemas de classificação além do utilizado pela ciência biológica ocidental tem sido apresentada, por exemplo, pelos estudos de Etnobiologia. Essas iniciativas buscam compreender os “conhecimentos biológicos de um grupo étnico em particular – conhecimentos culturais sobre plantas e animais e suas interações” (ANDERSON, 2011, p.1), gerando, inclusive, informações sobre como esses grupos classificam os seres vivos conhecidos no seu cotidiano, modo de sistematização denominado etnotaxonomia (COSTA-NETO; MAGALHÃES, 2007). Tal proposta de estudo nos parece interessante por reconhecer que existem modos diferentes de classificar os seres vivos, entretanto, a forma de conceber a ciência biológica ocidental como referência “correta” para as análises não nos parece pertinente. Nesse manuscrito apresentamos uma abordagem de ensino que visou abrir espaço para a explicitação e compreensão dos modos de classificação dos seres vivos de alunos indígenas, avaliar e discutir as diferenças em relação à classificação biologia sem, contudo, propor a exclusão de um conhecimento por considerar o outro “o correto”. O espaço escolar, com especial ênfase no ensino de ciências, está diretamente relacionado com a divulgação de informações, no geral, advindas da ciência ocidental e a concepção de ensino utilizada no Brasil, mesmo diante de tamanha diversidade sócio-cultural baseia-se, em grande parte, na substituição dos saberes tradicionais pelos científicos (BAPTISTA, 2010; MORTIMER, 1996). O ensino de ciências, por sua natureza, tem forte relação com os conhecimentos locais, por proporcionar compreensões da natureza. A oportunidade que o ensino de ciências tem, de discutir diferentes formas de interpretação da natureza com a identificação de relações de semelhanças e diferenças com modo científico de pensar, é essencial, como cita Baptista (2010) para o fortalecimento do poder de argumentação dos estudantes, o que contribui para sua inserção político-social, consciência crítica, emancipação e valorização de sua cultura. Assim, com a ampliação do universo de conhecimentos, os estudantes têm a oportunidade de compreender e identificar legitimidades entre diversas formas de interpretar o mundo, nesse caso, a diversidade de seres vivos do planeta. 6394 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 O ensino de ciências na educação indígena em uma perspectiva intercultural No curso FIEI, habilitação CVN, o grande desafio é o de trabalhar o ensino de ciências em uma perspectiva intercultural, que pressupõe um conjunto de inter-relações no âmbito tanto individual como coletivo, abertura ao diálogo com o outro, sínteses quando é possível produzi-las e respeito a olhares diferenciados de conceber a realidade (CREPALDE & AGUIAR JÚNIOR , 2012). Essa perspectiva intercultural aparece no contexto das pesquisas sobre o ensino de ciências, quando autores como Aikenhead (2009) e Mortimer (1996) tratam o ensino de ciências como uma introdução do estudante no universo de outra cultura. Segundo Aikenhead (2009) a visão que temos das coisas é construída pelo cruzamento de várias subculturas, a subcultura da ciência, da religião, da família, da escola, etc. Ele reconhece, nas aulas de ciências, a existência de vários grupos ou subgrupos que transitam cotidianamente por várias subculturas e considera que a educação científica nas aulas de ciências pode ser compreendida em termos do cruzamento de fronteiras culturais, a partir das experiências vividas pelos estudantes dentro e fora de sala de aula (AIKENHEAD, 2009). Para Mortimer (1996), a aprendizagem de ciências também envolve um processo de “enculturação”, em que os estudantes são inseridos numa nova forma de explicar e pensar o mundo natural, diferente das explicações disponíveis nas explicações do senso-comum. Tal enculturação envolve um processo de socialização das práticas da comunidade científica e de suas formas particulares de pensar e de ver o mundo (MORTIMER, 1996). Sobre a relevância de identificar conhecimentos que estudantes de sociedades tradicionais, como de comunidades indígenas, trazem para o contexto do ensino de ciências, Baptista (2010) considera que ao reconhecer o que já conhecem, ou seja, pelo desenvolvimento metacognitivo, os estudantes podem expandir sua zona de conhecimentos, compreendendo assim novas formas de refletir sobre a natureza, que extrapolam seu cotidiano. Tal expansão de zona de conhecimentos não desvalida ou valida nenhuma das formas de compreender a natureza, apenas as disponibiliza para o uso próprio em cada momento em que sejam requisitadas. Uma ideia semelhante a essa é apresentada por Mortimer (1996) quando apresenta a noção de perfil conceitual, que entende a evolução das idéias dos estudantes em sala de aula como a evolução de um perfil de concepções, em que as novas idéias adquiridas no processo de ensino-aprendizagem passam a conviver com as idéias anteriores, sendo que cada uma delas pode ser empregada no contexto conveniente (MORTIMER, 1996). 6395 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 METODOLOGIA Identificação dos sujeitos participantes A experiência relatada ocorreu com a turma de alunos indígenas da habilitação em ciências da vida e da natureza (CVN) durante a realização da disciplina Tópicos em Biologia C, no ano de 2013. Os estudantes desta turma são provenientes de duas etnias, Xakriabá e Pataxó, que vivem no norte de Minas Gerais e no sul da Bahia, e iniciaram o curso em 2011. Participaram também dessa experiência, a professora da disciplina Biologia C e duas bolsistas de pós-graduação, que planejaram e executaram as atividades das aulas em parceria. Confecção dos painéis Para o desenvolvimento da atividade, denominada “Agrupando os seres vivos”, os estudantes foram, inicialmente, estimulados a se organizar em grupos de cinco a seis pessoas e desenhar em folhas de papel ofício os seres vivos conhecidos de sua região. Nessa proposta tinha-se como objetivo estimular a reflexão sobre a biodiversidade conhecida e reconhecida localmente e pelas representações iconográficas proporcionar um meio a mais de expressão para esses estudantes. Após as representações dos seres vivos, foi sugerido que os estudantes organizassem tal universo de organismos do modo como considerassem pertinente em painel de papel pardo. Para contextualizar a proposta da atividade a professora exemplificou formas de classificação e organização utilizadas no cotidiano, como a realizada em bibliotecas, reforçando ainda, a importância desse processo para compreensão da diversidade de recursos, nesse caso, obras disponíveis para leitura. Desse modo, na sequência, os estudantes iniciaram as discussões para definição dos atributos utilizados para a classificação e organização em grupos dos seres vivos desenhados nos painéis de papel pardo, previamente disponibilizados. Tais representações deveriam organizadas de acordo como os critérios utilizados pelo grupo, os quais seriam posteriormente apresentados para toda a turma. Apresentação Cada grupo, após terminar a preparação dos painéis, foi convidado a compartilhar com toda a turma e a justificar quais foram os critérios utilizados para classificar e organizar os seres vivos ilustrados nas representações. O objetivo para a apresentação foi explicitar diferentes modos de classificação e organização que pudessem surgir entre as propostas e observar os comportamentos dos alunos diante da diversidade apresentada. 6396 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Trabalho escrito Para finalizar a atividade, cada estudante deveria responder um roteiro disponibilizado junto ao material didático da disciplina. Nesse roteiro, solicitava-se que os alunos explicitassem os critérios utilizados por seu grupo para organizar as ilustrações dos seres vivos e comparassem esses critérios com critérios definidos pelos colegas dos outros grupos. O objetivo desta complementação da atividade foi promover mais uma oportunidade para que os alunos observassem a diversidade de seres apresentada e também a diversidade de modos possíveis de classificar e organizar os seres vivos. RESULTADOS E DISCUSSÃO Além de levantar os conhecimentos prévios dos estudantes sobre a diversidade e discutir a classificação biológica dos seres vivos desenvolvida pela ciência ocidental, a atividade buscou discutir as diversas possibilidades de classificação biológica. E a partir dessas possibilidades, discutir também a existência de diferentes tipos de conhecimentos e seus possíveis usos. Foi interessante verificarmos que além de diferentes formas de classificação, os estudantes ilustravam e traziam categorias muito relacionadas aos organismos e as relações que mantinham com os seres vivos de suas aldeias. Observamos, assim, que os conhecimentos prévios dos estudantes estavam muito relacionados com as práticas de cada aldeia. Esta constatação foi favorecida pela organização dos grupos por etnias (Pataxó e Xakriabá). Apesar de terem a possibilidade de se organizar de forma espontânea para a realização da atividade, houve uma separação dos alunos por etnias e por comunidades em que vivem. Esse modo de organização já é habitual na turma e parece ter relação tanto com afinidade quanto com maior viabilidade de realizar trabalhos em grupo nos tempos em que os alunos estão em suas aldeias. A turma, que apresenta menor proporção de estudantes da etnia Pataxó, teve nessa atividade a união desses estudantes em um mesmo grupo. Os demais estudantes, todos Xakriabás, se dividiram em outros quatro grupos. Com relação ao gênero a maior parte dos grupos foi mista, incluindo o grupo Pataxó, com apenas um grupo Xakriabá formado apenas por mulheres, que representam a maioria dos estudantes da turma. O resultado da atividade de construção dos painéis apresentou diferença com relação aos seres vivos representados por Xakriabás (Figura 1 A, B, C e D) e Pataxós (Figura 2), assim como pelos critérios definidos para a classificação dos organismos. 6397 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 A V Enebio e II Erebio Regional 1 B C D Figura 1 – Paineis produzido pelos grupos (a), (b), (c) e (d) da etnia Xakriabá. CVN, FaE/UFMG, janeiro de 2014. Figura 2 – Painel produzido por grupo da etnia Pataxó. CVN, FaE/UFMG, janeiro de 2014. A partir da análise dos painéis construídos pudemos observar que os critérios de classificação utilizados por grupos compostos por estudantes da etnia Xakriabá se relacionaram basicamente com as semelhanças com relação ao ambiente em que tais seres vivem (ex. vivem na água) e pelo modo de alimentação (ex.: só comem vegetal; não come carne, só folhas; etc.) (Figura 1 B e C). Dois dos quatro grupos com estudantes Xakriabás não representaram vegetais, apenas animais (Figura 1 A e D). Os outros dois grupos apesar de terem representado alguns vegetais utilizaram apenas uma subdivisão para englobar todos os tipos, já os conjuntos com representações de animais apresentaram mais subdivisões na classificação. O grupo de estudantes da etnia Pataxó utilizou critérios de classificação mais próximos do Sistema de Classificação dos Cinco Reinos utilizado no ensino formal clássico de biologia (Figura 2). Assim como alguns grupos de estudantes Xakriabás os Pataxós construíram mais subdivisões para animais e apenas uma para vegetais. Os organismos representados por estudantes da etnia Xakriabá tiveram maior relação com animais e plantas domesticados, por exemplo: rato, sapo, pombo, cachorro, cavalo, boi, bode, porco, galinha, peru, pato, coelho, burro, jegue, gato de casa; e entre os vegetais foram representados: cenoura (representada por mais de uma pessoa em um mesmo grupo), maçã (fruta bastante apreciada no geral por esses estudantes), cebola, manga, cana, beterraba, alface e samambaia. O porco foi um dos organismos mais citados, mais de uma vez em um mesmo grupo e em todos os grupos dessa etnia. 6398 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Houve também a representação de animais, apenas, potencialmente nativos, como onça, iguana, teiú, jacaré, calango, cobra, veado, peixe, garça, tatu, tamanduá, minhoca, borboleta, gafanhoto, besouro, beija-flor, raposa, cocár (pássaro), ema, mico, lobo, quenquém (pássaro), canário, pássaro, aves e gato do mato. Um dos grupos de estudantes da etnia Xakriabá foi o único a representar o homem como um dos organismos conhecidos por eles e classificado entre aqueles organismos que comem carne e vegetais, junto ao porco e o cachorro. Observa-se nesse registro iconográfico ainda, a forte relação que os Xakriabás têm com a agricultura, pois a representação do homem esteve também relacionada com o plantio, de hortaliça. Já os Pataxós representaram mais organismos nativos, que domésticos. Os organismos representados foram: arara, pássaro, guarapirá (tipo de pássaro), camaleão, jacaré, cobra, tatu, rato, paca, jumento, polvo, peixe, tubarão, golfinho, peixe elétrico, mukutura (tipo de réptil marinho), agulhão, baleia, caramuru (tipo de réptil marinho), gafanhoto, besouro, siri, ouriço, aratu (Figura 3A), lagosta, concha; entre os vegetais: tento (árvore em que as sementes são utilizadas para o artesanato), couve-flor (representada pela preferência do estudante), e o mata-passo (arbusto que tem suas sementes utilizadas para o artesanato – Figura 3B). A B Figura 3 – Representações de organismos de importância local para estudantes da etnia Pataxó. (A) aratu, crustáceo, encontrado nos mangues da região e utilizado como base da alimentação (B) mata-passo leguminosa utilizada para produção de artesanato, importante fonte de renda para os aldeados. CVN, FaE/UFMG, janeiro de 2014. As aldeias onde moram os estudantes Xakriabá ficam nos municípios de São João das Missões e Itacarambi (ANAÍ, 2010), localizados na região do parque do Peruaçu, no norte de Minas Gerais. Esta região é caracterizada por fitofisionomia de mata seca, com períodos de seca bastante pronunciados e agravados nos últimos anos, de acordo com o relato de alguns 6399 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 estudantes aldeados. Tal descrição ambiental pode ser considerada justificativa para as representações de alguns dos organismos nativos feitas por estes estudantes, tal como iguana, teiú, calango, veado, tamanduá, raposa, cocár, ema, tatu, lobo e gato do mato. Ainda assim, a amplitude da área onde se encontram os Xakriabá possibilita microambientes diferenciados, como da aldeia Rancharia, que está próxima a uma área alagada, o que pode ter contribuído para as representações de organismos como jacaré e garça. Tem-se nesses relatos iconográficos a presença da onça para mais de um grupo, o que pode implicar na relação com animais em extinção presentes na área que compõe as aldeias Xakriabás. O povo Pataxó tem uma relação de ocupação territorial bastante peculiar, pois por sofrerem por muitos anos com a pressão fundiária na sua área de ocupação mais antiga, nas aldeias-mãe de Barra Velha e Coroa Vermelha, localizadas no sul da Bahia, próximo ao município de Porto Seguro e tiveram de se dispersar por outras regiões. Entre as novas regiões de ocupação desses grupos estão Carmésia, Dores de Guanhães e Senhora do Porto, Araçuaí, Açucena, Itapecerica, Teófilo Otoni e Guanhães (ANAÍ, 2010). O aspecto evidenciado no painel produzido pelo grupo de estudantes em sala de aula foi a forte relação que eles desenvolvem com o litoral, mesmo com as novas ocupações em regiões apresentando características ambientais distintas das aldeias mães. Isso pode ser justificado, talvez, por apenas uma estudante do grupo não viver nas proximidades das aldeias mães. No entanto, mesmo essa estudante, em seus relatos em sala de aula, demonstra conhecer e valorizar as relações que o povo pataxó tem estabelecido com o mar e com o mangue ao longo de sua história. Entre os organismos representados e citados acima, que indicam esta forte relação com o litoral estão: polvo, tubarão, golfinho, peixe elétrico, mukutura (tipo de réptil marinho), agulhão, baleia, caramuru (tipo de réptil marinho), siri, ouriço, aratu, lagosta e concha. Durante as apresentações foi interessante observar a troca de experiências entre os estudantes das duas etnias, visto que como já citado, as condições ambientais das áreas das aldeias dos estudantes Pataxós e Xakriabás diferem bastante e, isso foi explicitado,nas representações iconográficas dos seres vivos e mesmo nos modos de classificação apresentados nos painéis. Com relação ao modo de representação dos organismos nos painéis, observamos que com raras exceções as nomenclaturas e iconografias estiveram relacionadas com o nível de gênero, ou básico, corroborando com os dados apresentados por Eleanor Rosch em seus estudos sobre os sistemas de categorização de cores do povo Dani (LAKOFF, 1987). Um exemplo de maior especificação na classificação utilizada foi a representação de caracteres botânicos típico das leguminosas apresentada pelos estudantes da etnia Pataxó (Figura 4b). A 6400 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 forte relação que esse povo tem com esta espécie botânica, utilizada na produção de artesanato, favorece o reconhecimento de caracteres bastante específicos, que aparecem de forma notória nesse registro icnográfico. Após as apresentações dos grupos a professora fez algumas colocações que reforçaram algumas diferenças apresentadas por Pataxós e Xakriabás, diferenças essas descritas individualmente nos relatórios entregues para a professora ao final da atividade. Ao final das apresentações a professora discutiu, também, com os estudantes quais poderiam ser as contribuições do Sistema de Classificações dos Cinco Reinos da ciência biológica ocidental, descrito nos livros didáticos e utilizado, geralmente, no ensino fundamental e médio, para explicar diversidade ali apresentada, sem, no entanto, exprimir juízos de valor e legitimidades. Assim, após a realização da atividade que favoreceu a explicitação, pelos estudantes das duas estudantes etnias, das diferenças de contextos, diversidade de seres vivos e modos de organizá-los em grupos, foi possível discutir os conceitos da ciência biológica de forma a contribuir para um novo aprendizado, sem desvalorizar os modos cotidianos de sistematizar e classificar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Consideramos que o ensino de biologia deve ser contextualizado com as experiências prévias dos estudantes, em especial, em propostas como da educação intercultural indígena, que lida diretamente com as relações culturais e busca pela autonomia desses povos. Podemos considerar também, a importância que esta atividade teve sobre a interação e valorização dos diferentes conhecimentos apresentados entre as próprias etnias, o que reforça ainda mais a relevância do local e as especificidades nos processos de contextualização das práticas pedagógicas. A classificação e sistematização são processos naturais para a formação de conceitos e cognição. Nesse sentido, também, classificar os organismos vivos é parte da relação construída entre seres humanos e a natureza. Portanto, é extremamente pertinente a consideração e expressão dos conhecimentos prévios sobre as relações entre estudantes e a biodiversidade conhecida por eles para o ensino de um ou mais tipos de sistemas de classificação biológica, por exemplo, o dos cinco reinos ou o filogenético cladístico. Sobretudo, cabe apresentar que existem diversas formas de se interpretar e organizar os seres vivos para nossa melhor compreensão e que a escolha por um método ou outro implica em conhecer, para enfim possibilitar a autonomia para escolha. 6401 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Vale ressaltar, ainda, que a contextualização da prática pedagógica condizente com a proposta de formação de educadores indígenas, que convivem, frequentemente, nos processos de ensino e aprendizagem com a relação político-social, é fundamental para o fortalecimento da consciência crítica, emancipação indígena e valorização da cultura e dos conhecimentos populares pela proposição simétrica que identifica as diferenças entre os diferentes sistemas de conhecimento e não a supremacia de um sobre o outro. Ou seja, entre os sistemas de classificação biológica ocidental e classificações baseadas nos conhecimentos populares locais, há uma riqueza de informações que passam a estar disponíveis para uso diante das diferentes situações. REFERÊNCIAS AIKENHEAD, G. S. Educação Científica para todos. Trad. Maria Teresa Oliveira. Lisboa: Edições Pedago, 2009. ANAÍ – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE AÇÃO INDIENISTA. Povos indígenas de Minas Gerais. Salvador, 2010. Disponível em: <http://www.anai.org.br/povos_mg.asp#QUADRO>. Acesso em 18 abr. 2014. ANDERSON, E. N. Etnobiology: overview of a growing field. In: Anderson, E. N.; Pearsall, D.; Hunn, E.; Turner, N. Etnobiology, p. 1-12. New Jersey: Wiley-Blackwell, 2011. BAPTISTA, G. C. S. Importância da demarcação de saberes no ensino de Ciências para sociedades tradicionais. Ciência e Educação (Bauru), Bauru, v. 16, n. 3, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151673132010000300012&lng=en&nrm=iso>Acesso em: 18 abr. 2014. 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