Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
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CLASSIFICAÇÃO BIOLÓGICA: UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA JUNTO A
ESTUDANTES DE UM CURSO DE FORMAÇÃO INTERCULTURAL DE
EDUCADORES INDÍGENAS
Rebeca Cássia Andrade (Engenheira Agrônoma, Licenciada em Biologia, Msc. Entomologia
Agrícola – Faculdade de Educação da UFMG)
Marina de Lima Tavares (Faculdade de Educação da UFMG)
Érica Dumont (Faculdade de Educação da UFMG)
Célio da Silveira Júnior (Faculdade de Educação da UFMG)
Juarez Melgaço Valadares (Faculdade de Educação da UFMG)
RESUMO
O objetivo desse texto é apresentar uma experiência pedagógica desenvolvida junto a
estudantes de licenciatura indígenas com relação ao tema classificação biológica dos seres
vivos. Apresentamos uma abordagem que visou abrir espaço para a explicitação e
compreensão dos modos de classificação dos seres vivos, avaliando e discutindo as diferenças
em relação à classificação biológica. Consideramos, que a contextualização da prática
pedagógica condizente com a proposta de formação de educadores indígenas é fundamental
para o fortalecimento da consciência crítica, emancipação indígena e valorização da cultura e
dos conhecimentos populares pela proposição que identifica as diferenças entre os diferentes
sistemas de conhecimento e não a supremacia de um sobre o outro.
Palavras chave: educação em ciências, educação intercultural, classificação biológica.
INTRODUÇÃO
Esse artigo objetiva apresentar uma experiência pedagógica desenvolvida junto a
estudantes do Curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FIEI/UFMG), na habilitação Ciências da
Vida e Natureza (CVN) ocorrida durante o processo de ensino do tema classificação biológica
dos seres vivos que buscou, dentre outros aspectos, dar destaque aos conhecimentos
cotidianos dos estudantes sobre biodiversidade.
O curso FIEI/UFMG é ofertado desde 2009 e tem como principal objetivo formar
educadores indígenas para a criação de uma escola indígena diferenciada. Tem duração de
quatro anos e está organizado em tempos/espaços diferenciados, com tempos de formação na
UFMG e tempos no próprio espaço de atuação e vivência dos estudantes – nas aldeias
indígenas – com ênfase nas dimensões sociocultural e política dos educandos.
Formação de conceitos, categorização e classificação
Os processos de sistematização e categorização são importantes para a formação de
conceitos (VYGOTSKY, 1934/1987; LAKOFF, 1987) que implicam no favorecimento das
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relações e compreensões dos sujeitos diante das situações cotidianas, assim como com o
aprendizado acadêmico. Barsalou (2009) ao tratar da formação do sistema conceitual
construído pelo indivíduo introduz a importância do contexto e da condição situacional na
qual o sujeito se insere, como fatores fundamentais para a formação dos conceitos e
aprendizagem. É importante considerarmos que o sujeito dialoga frenquentemente com suas
experiências no processo de aprender (VYGOTSKY, 1934/1987). Assim, o uso e percepção
dos conhecimentos prévios são primordiais na formação dos conceitos, e consequentemente,
dos sistemas de categorização e classificação construídos pelos sujeitos.
Lakoff (1987) discute que a relação do indivíduo com o mundo gera seu sistema de
categorização. As categorias intermediárias (ex.: cadeira), que se encontram entre
categorizações generalistas (ex.: móvel) e específicas (ex.: poltrona), são mais básicas e,
portanto, as primeiras a serem apreendidas e relembradas. Nesse sentido, o autor discute que a
maior parte dos conhecimentos é organizada nesse nível básico, também conhecido por
gênero na nomenclatura biológica. E foi também nesse nível que Lineu se baseou para formar
o sistema de classificação biológica por hierarquias, amplamente referido no ensino de
biologia da atualidade. Lineu utilizou para a construção do nível gênero características
cotidianas a partir das quais por generalizações geraram os níveis mais gerais como classe,
ordem, reino e etc. e por especificações passou à descrição dos níveis específicos (LAKOFF,
1987). Assim, é possível considerarmos a importância do nível básico de conceitos para a
construção cognitiva somada a sua forte relação com os conhecimentos cotidianos.
Lakoff (1987) exemplifica, ainda, a importância da formação e compreensão de outros
sistemas de classificação no auxílio do entendimento sobre a diversidade de seres vivos, a
citar os conceitos de evolução das espécies, que com a introdução do sistema cladístico, por
exemplo, permitiu compreendermos o sistema de classificação de Lineu como um processo
evolutivo. Desse modo, observamos que o ensino sobre a diversidade dos seres vivos, a partir
do sistema de classificação biológica, precisa abarcar contextos, sejam eles relacionados às
discussões de ajustes taxonômicos e sistemáticos comuns nos meios da ciência ocidental,
assim como daqueles relacionados aos conhecimentos locais sobre tal diversidade e que em
diversas situações são utilizados para complementação das informações hoje disponíveis
também para a ciência biológica ocidental.
O ensino sobre o sistema de classificação biológica
Para o nível fundamental e médio o ensino sobre a diversidade biológica, assim como
as descrições apresentadas nos livros didáticos, tem sido baseado nos estudos de classificação
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por níveis hierárquicos propostos por Lineu no século XVIII e no Sistema de Cinco Reinos de
Robert H. Whittaker da década de 1960 (ROMA; MONTOKANE, 2007).
No entanto, outros modos de classificação têm sido utilizados pelo homem ao longo
da história. Conhecer e sistematizar a diversidade dos seres vivos fazem parte dos modos de
convivência dos diversos grupos sócio-culturais humanos com os demais organismos, que
coabitam os variados nichos do planeta. A existência de diferentes sistemas de classificação
além do utilizado pela ciência biológica ocidental tem sido apresentada, por exemplo, pelos
estudos de Etnobiologia. Essas iniciativas buscam compreender os “conhecimentos biológicos
de um grupo étnico em particular – conhecimentos culturais sobre plantas e animais e suas
interações” (ANDERSON, 2011, p.1), gerando, inclusive, informações sobre como esses
grupos classificam os seres vivos conhecidos no seu cotidiano, modo de sistematização
denominado etnotaxonomia (COSTA-NETO; MAGALHÃES, 2007).
Tal proposta de estudo nos parece interessante por reconhecer que existem modos
diferentes de classificar os seres vivos, entretanto, a forma de conceber a ciência biológica
ocidental como referência “correta” para as análises não nos parece pertinente. Nesse
manuscrito apresentamos uma abordagem de ensino que visou abrir espaço para a
explicitação e compreensão dos modos de classificação dos seres vivos de alunos indígenas,
avaliar e discutir as diferenças em relação à classificação biologia sem, contudo, propor a
exclusão de um conhecimento por considerar o outro “o correto”.
O espaço escolar, com especial ênfase no ensino de ciências, está diretamente
relacionado com a divulgação de informações, no geral, advindas da ciência ocidental e a
concepção de ensino utilizada no Brasil, mesmo diante de tamanha diversidade sócio-cultural
baseia-se, em grande parte, na substituição dos saberes tradicionais pelos científicos
(BAPTISTA, 2010; MORTIMER, 1996). O ensino de ciências, por sua natureza, tem forte
relação com os conhecimentos locais, por proporcionar compreensões da natureza. A
oportunidade que o ensino de ciências tem, de discutir diferentes formas de interpretação da
natureza com a identificação de relações de semelhanças e diferenças com modo científico de
pensar, é essencial, como cita Baptista (2010) para o fortalecimento do poder de
argumentação dos estudantes, o que contribui para sua inserção político-social, consciência
crítica, emancipação e valorização de sua cultura. Assim, com a ampliação do universo de
conhecimentos, os estudantes têm a oportunidade de compreender e identificar legitimidades
entre diversas formas de interpretar o mundo, nesse caso, a diversidade de seres vivos do
planeta.
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O ensino de ciências na educação indígena em uma perspectiva intercultural
No curso FIEI, habilitação CVN, o grande desafio é o de trabalhar o ensino de
ciências em uma perspectiva intercultural, que pressupõe um conjunto de inter-relações no
âmbito tanto individual como coletivo, abertura ao diálogo com o outro, sínteses quando é
possível produzi-las e respeito a olhares diferenciados de conceber a realidade (CREPALDE
& AGUIAR JÚNIOR , 2012).
Essa perspectiva intercultural aparece no contexto das pesquisas sobre o ensino de
ciências, quando autores como Aikenhead (2009) e Mortimer (1996) tratam o ensino de
ciências como uma introdução do estudante no universo de outra cultura.
Segundo Aikenhead (2009) a visão que temos das coisas é construída pelo cruzamento
de várias subculturas, a subcultura da ciência, da religião, da família, da escola, etc. Ele
reconhece, nas aulas de ciências, a existência de vários grupos ou subgrupos que transitam
cotidianamente por várias subculturas e considera que a educação científica nas aulas de
ciências pode ser compreendida em termos do cruzamento de fronteiras culturais, a partir das
experiências vividas pelos estudantes dentro e fora de sala de aula (AIKENHEAD, 2009).
Para Mortimer (1996), a aprendizagem de ciências também envolve um processo de
“enculturação”, em que os estudantes são inseridos numa nova forma de explicar e pensar o
mundo natural, diferente das explicações disponíveis nas explicações do senso-comum. Tal
enculturação envolve um processo de socialização das práticas da comunidade científica e de
suas formas particulares de pensar e de ver o mundo (MORTIMER, 1996).
Sobre a relevância de identificar conhecimentos que estudantes de sociedades
tradicionais, como de comunidades indígenas, trazem para o contexto do ensino de ciências,
Baptista (2010) considera que ao reconhecer o que já conhecem, ou seja, pelo
desenvolvimento metacognitivo, os estudantes podem expandir sua zona de conhecimentos,
compreendendo assim novas formas de refletir sobre a natureza, que extrapolam seu
cotidiano. Tal expansão de zona de conhecimentos não desvalida ou valida nenhuma das
formas de compreender a natureza, apenas as disponibiliza para o uso próprio em cada
momento em que sejam requisitadas. Uma ideia semelhante a essa é apresentada por
Mortimer (1996) quando apresenta a noção de perfil conceitual, que entende a evolução das
idéias dos estudantes em sala de aula como a evolução de um perfil de concepções, em que as
novas idéias adquiridas no processo de ensino-aprendizagem passam a conviver com as idéias
anteriores, sendo que cada uma delas pode ser empregada no contexto conveniente
(MORTIMER, 1996).
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METODOLOGIA
Identificação dos sujeitos participantes
A experiência relatada ocorreu com a turma de alunos indígenas da habilitação em
ciências da vida e da natureza (CVN) durante a realização da disciplina Tópicos em Biologia
C, no ano de 2013. Os estudantes desta turma são provenientes de duas etnias, Xakriabá e
Pataxó, que vivem no norte de Minas Gerais e no sul da Bahia, e iniciaram o curso em 2011.
Participaram também dessa experiência, a professora da disciplina Biologia C e duas
bolsistas de pós-graduação, que planejaram e executaram as atividades das aulas em parceria.
Confecção dos painéis
Para o desenvolvimento da atividade, denominada “Agrupando os seres vivos”, os
estudantes foram, inicialmente, estimulados a se organizar em grupos de cinco a seis pessoas
e desenhar em folhas de papel ofício os seres vivos conhecidos de sua região. Nessa proposta
tinha-se como objetivo estimular a reflexão sobre a biodiversidade conhecida e reconhecida
localmente e pelas representações iconográficas proporcionar um meio a mais de expressão
para esses estudantes.
Após as representações dos seres vivos, foi sugerido que os estudantes organizassem
tal universo de organismos do modo como considerassem pertinente em painel de papel
pardo. Para contextualizar a proposta da atividade a professora exemplificou formas de
classificação e organização utilizadas no cotidiano, como a realizada em bibliotecas,
reforçando ainda, a importância desse processo para compreensão da diversidade de recursos,
nesse caso, obras disponíveis para leitura.
Desse modo, na sequência, os estudantes iniciaram as discussões para definição dos
atributos utilizados para a classificação e organização em grupos dos seres vivos desenhados
nos painéis de papel pardo, previamente disponibilizados. Tais representações deveriam
organizadas de acordo como os critérios utilizados pelo grupo, os quais seriam posteriormente
apresentados para toda a turma.
Apresentação
Cada grupo, após terminar a preparação dos painéis, foi convidado a compartilhar com
toda a turma e a justificar quais foram os critérios utilizados para classificar e organizar os
seres vivos ilustrados nas representações. O objetivo para a apresentação foi explicitar
diferentes modos de classificação e organização que pudessem surgir entre as propostas e
observar os comportamentos dos alunos diante da diversidade apresentada.
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Trabalho escrito
Para finalizar a atividade, cada estudante deveria responder um roteiro disponibilizado
junto ao material didático da disciplina. Nesse roteiro, solicitava-se que os alunos
explicitassem os critérios utilizados por seu grupo para organizar as ilustrações dos seres
vivos e comparassem esses critérios com critérios definidos pelos colegas dos outros grupos.
O objetivo desta complementação da atividade foi promover mais uma oportunidade para que
os alunos observassem a diversidade de seres apresentada e também a diversidade de modos
possíveis de classificar e organizar os seres vivos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Além de levantar os conhecimentos prévios dos estudantes sobre a diversidade e
discutir a classificação biológica dos seres vivos desenvolvida pela ciência ocidental, a
atividade buscou discutir as diversas possibilidades de classificação biológica. E a partir
dessas possibilidades, discutir também a existência de diferentes tipos de conhecimentos e
seus possíveis usos.
Foi interessante verificarmos que além de diferentes formas de classificação, os
estudantes ilustravam e traziam categorias muito relacionadas aos organismos e as relações
que mantinham com os seres vivos de suas aldeias. Observamos, assim, que os
conhecimentos prévios dos estudantes estavam muito relacionados com as práticas de cada
aldeia. Esta constatação foi favorecida pela organização dos grupos por etnias (Pataxó e
Xakriabá). Apesar de terem a possibilidade de se organizar de forma espontânea para a
realização da atividade, houve uma separação dos alunos por etnias e por comunidades em
que vivem. Esse modo de organização já é habitual na turma e parece ter relação tanto com
afinidade quanto com maior viabilidade de realizar trabalhos em grupo nos tempos em que os
alunos estão em suas aldeias. A turma, que apresenta menor proporção de estudantes da etnia
Pataxó, teve nessa atividade a união desses estudantes em um mesmo grupo. Os demais
estudantes, todos Xakriabás, se dividiram em outros quatro grupos. Com relação ao gênero a
maior parte dos grupos foi mista, incluindo o grupo Pataxó, com apenas um grupo Xakriabá
formado apenas por mulheres, que representam a maioria dos estudantes da turma.
O resultado da atividade de construção dos painéis apresentou diferença com relação
aos seres vivos representados por Xakriabás (Figura 1 A, B, C e D) e Pataxós (Figura 2),
assim como pelos critérios definidos para a classificação dos organismos.
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A
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B
C
D
Figura 1 – Paineis produzido pelos grupos (a), (b), (c) e (d) da etnia Xakriabá. CVN, FaE/UFMG, janeiro de
2014.
Figura 2 – Painel produzido por grupo da etnia Pataxó. CVN, FaE/UFMG, janeiro de 2014.
A partir da análise dos painéis construídos pudemos observar que os critérios de
classificação utilizados por grupos compostos por estudantes da etnia Xakriabá se
relacionaram basicamente com as semelhanças com relação ao ambiente em que tais seres
vivem (ex. vivem na água) e pelo modo de alimentação (ex.: só comem vegetal; não come
carne, só folhas; etc.) (Figura 1 B e C). Dois dos quatro grupos com estudantes Xakriabás não
representaram vegetais, apenas animais (Figura 1 A e D). Os outros dois grupos apesar de
terem representado alguns vegetais utilizaram apenas uma subdivisão para englobar todos os
tipos, já os conjuntos com representações de animais apresentaram mais subdivisões na
classificação.
O grupo de estudantes da etnia Pataxó utilizou critérios de classificação mais
próximos do Sistema de Classificação dos Cinco Reinos utilizado no ensino formal clássico
de biologia (Figura 2). Assim como alguns grupos de estudantes Xakriabás os Pataxós
construíram mais subdivisões para animais e apenas uma para vegetais.
Os organismos representados por estudantes da etnia Xakriabá tiveram maior relação
com animais e plantas domesticados, por exemplo: rato, sapo, pombo, cachorro, cavalo, boi,
bode, porco, galinha, peru, pato, coelho, burro, jegue, gato de casa; e entre os vegetais foram
representados: cenoura (representada por mais de uma pessoa em um mesmo grupo), maçã
(fruta bastante apreciada no geral por esses estudantes), cebola, manga, cana, beterraba, alface
e samambaia. O porco foi um dos organismos mais citados, mais de uma vez em um mesmo
grupo e em todos os grupos dessa etnia.
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Houve também a representação de animais, apenas, potencialmente nativos, como
onça, iguana, teiú, jacaré, calango, cobra, veado, peixe, garça, tatu, tamanduá, minhoca,
borboleta, gafanhoto, besouro, beija-flor, raposa, cocár (pássaro), ema, mico, lobo, quenquém
(pássaro), canário, pássaro, aves e gato do mato.
Um dos grupos de estudantes da etnia Xakriabá foi o único a representar o homem
como um dos organismos conhecidos por eles e classificado entre aqueles organismos que
comem carne e vegetais, junto ao porco e o cachorro. Observa-se nesse registro iconográfico
ainda, a forte relação que os Xakriabás têm com a agricultura, pois a representação do homem
esteve também relacionada com o plantio, de hortaliça.
Já os Pataxós representaram mais organismos nativos, que domésticos. Os organismos
representados foram: arara, pássaro, guarapirá (tipo de pássaro), camaleão, jacaré, cobra, tatu,
rato, paca, jumento, polvo, peixe, tubarão, golfinho, peixe elétrico, mukutura (tipo de réptil
marinho), agulhão, baleia, caramuru (tipo de réptil marinho), gafanhoto, besouro, siri, ouriço,
aratu (Figura 3A), lagosta, concha; entre os vegetais: tento (árvore em que as sementes são
utilizadas para o artesanato), couve-flor (representada pela preferência do estudante), e o
mata-passo (arbusto que tem suas sementes utilizadas para o artesanato – Figura 3B).
A
B
Figura 3 – Representações de organismos de importância local para estudantes da etnia Pataxó. (A) aratu,
crustáceo, encontrado nos mangues da região e utilizado como base da alimentação (B) mata-passo leguminosa
utilizada para produção de artesanato, importante fonte de renda para os aldeados. CVN, FaE/UFMG, janeiro de
2014.
As aldeias onde moram os estudantes Xakriabá ficam nos municípios de São João das
Missões e Itacarambi (ANAÍ, 2010), localizados na região do parque do Peruaçu, no norte de
Minas Gerais. Esta região é caracterizada por fitofisionomia de mata seca, com períodos de
seca bastante pronunciados e agravados nos últimos anos, de acordo com o relato de alguns
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estudantes aldeados. Tal descrição ambiental pode ser considerada justificativa para as
representações de alguns dos organismos nativos feitas por estes estudantes, tal como iguana,
teiú, calango, veado, tamanduá, raposa, cocár, ema, tatu, lobo e gato do mato. Ainda assim, a
amplitude da área onde se encontram os Xakriabá possibilita microambientes diferenciados,
como da aldeia Rancharia, que está próxima a uma área alagada, o que pode ter contribuído
para as representações de organismos como jacaré e garça. Tem-se nesses relatos
iconográficos a presença da onça para mais de um grupo, o que pode implicar na relação com
animais em extinção presentes na área que compõe as aldeias Xakriabás.
O povo Pataxó tem uma relação de ocupação territorial bastante peculiar, pois por
sofrerem por muitos anos com a pressão fundiária na sua área de ocupação mais antiga, nas
aldeias-mãe de Barra Velha e Coroa Vermelha, localizadas no sul da Bahia, próximo ao
município de Porto Seguro e tiveram de se dispersar por outras regiões. Entre as novas
regiões de ocupação desses grupos estão Carmésia, Dores de Guanhães e Senhora do Porto,
Araçuaí, Açucena, Itapecerica, Teófilo Otoni e Guanhães (ANAÍ, 2010). O aspecto
evidenciado no painel produzido pelo grupo de estudantes em sala de aula foi a forte relação
que eles desenvolvem com o litoral, mesmo com as novas ocupações em regiões apresentando
características ambientais distintas das aldeias mães. Isso pode ser justificado, talvez, por
apenas uma estudante do grupo não viver nas proximidades das aldeias mães. No entanto,
mesmo essa estudante, em seus relatos em sala de aula, demonstra conhecer e valorizar as
relações que o povo pataxó tem estabelecido com o mar e com o mangue ao longo de sua
história. Entre os organismos representados e citados acima, que indicam esta forte relação
com o litoral estão: polvo, tubarão, golfinho, peixe elétrico, mukutura (tipo de réptil marinho),
agulhão, baleia, caramuru (tipo de réptil marinho), siri, ouriço, aratu, lagosta e concha.
Durante as apresentações foi interessante observar a troca de experiências entre os
estudantes das duas etnias, visto que como já citado, as condições ambientais das áreas das
aldeias dos estudantes Pataxós e Xakriabás diferem bastante e, isso foi explicitado,nas
representações iconográficas dos seres vivos e mesmo nos modos de classificação
apresentados nos painéis.
Com relação ao modo de representação dos organismos nos painéis, observamos que
com raras exceções as nomenclaturas e iconografias estiveram relacionadas com o nível de
gênero, ou básico, corroborando com os dados apresentados por Eleanor Rosch em seus
estudos sobre os sistemas de categorização de cores do povo Dani (LAKOFF, 1987). Um
exemplo de maior especificação na classificação utilizada foi a representação de caracteres
botânicos típico das leguminosas apresentada pelos estudantes da etnia Pataxó (Figura 4b). A
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forte relação que esse povo tem com esta espécie botânica, utilizada na produção de
artesanato, favorece o reconhecimento de caracteres bastante específicos, que aparecem de
forma notória nesse registro icnográfico.
Após as apresentações dos grupos a professora fez algumas colocações que reforçaram
algumas diferenças apresentadas por Pataxós e Xakriabás, diferenças essas descritas
individualmente nos relatórios entregues para a professora ao final da atividade. Ao final das
apresentações a professora discutiu, também, com os estudantes quais poderiam ser as
contribuições do Sistema de Classificações dos Cinco Reinos da ciência biológica ocidental,
descrito nos livros didáticos e utilizado, geralmente, no ensino fundamental e médio, para
explicar diversidade ali apresentada, sem, no entanto, exprimir juízos de valor e legitimidades.
Assim, após a realização da atividade que favoreceu a explicitação, pelos estudantes das duas
estudantes etnias, das diferenças de contextos, diversidade de seres vivos e modos de
organizá-los em grupos, foi possível discutir os conceitos da ciência biológica de forma a
contribuir para um novo aprendizado, sem desvalorizar os modos cotidianos de sistematizar e
classificar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consideramos que o ensino de biologia deve ser contextualizado com as experiências
prévias dos estudantes, em especial, em propostas como da educação intercultural indígena,
que lida diretamente com as relações culturais e busca pela autonomia desses povos. Podemos
considerar também, a importância que esta atividade teve sobre a interação e valorização dos
diferentes conhecimentos apresentados entre as próprias etnias, o que reforça ainda mais a
relevância do local e as especificidades nos processos de contextualização das práticas
pedagógicas.
A classificação e sistematização são processos naturais para a formação de conceitos e
cognição.
Nesse sentido, também, classificar os organismos vivos é parte da relação
construída entre seres humanos e a natureza. Portanto, é extremamente pertinente a
consideração e expressão dos conhecimentos prévios sobre as relações entre estudantes e a
biodiversidade conhecida por eles para o ensino de um ou mais tipos de sistemas de
classificação biológica, por exemplo, o dos cinco reinos ou o filogenético cladístico.
Sobretudo, cabe apresentar que existem diversas formas de se interpretar e organizar os seres
vivos para nossa melhor compreensão e que a escolha por um método ou outro implica em
conhecer, para enfim possibilitar a autonomia para escolha.
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Vale ressaltar, ainda, que a contextualização da prática pedagógica condizente com a
proposta de formação de educadores indígenas, que convivem, frequentemente, nos processos
de ensino e aprendizagem com a relação político-social, é fundamental para o fortalecimento
da consciência crítica, emancipação indígena e valorização da cultura e dos conhecimentos
populares pela proposição simétrica que identifica as diferenças entre os diferentes sistemas
de conhecimento e não a supremacia de um sobre o outro. Ou seja, entre os sistemas de
classificação biológica ocidental e classificações baseadas nos conhecimentos populares
locais, há uma riqueza de informações que passam a estar disponíveis para uso diante das
diferentes situações.
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Análise de uma visita de alunos indígenas do curso de