O ESTRANHO E O FAMILIAR EM “PEQUENA PALESTRA COM UMA MÚMIA”, DE EDGAR ALLAN POE, E “UMA VISITA DE ALCIBÍADES”, DE MACHADO DE ASSIS Caroline Molinari ANDRADE163 (Letras Vernáculas e Clássicas G-UEL) Adilson dos SANTOS (Orientador) RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma leitura de dois contos: “Uma visita de Alcibíades”, de Machado de Assis (1839-1908), e “Pequena palestra com uma múmia”, de Edgar Allan Poe (1809-1849). O conto machadiano apresenta o confronto entre dois momentos distintos da História: a Idade Antiga grega e o século XIX carioca. Neste conto, o narrador-protagonista vivencia a insólita experiência de, após evocar espectro do grego Alcibíades, vê-lo materializar-se em sua sala. Com o irromper do extraordinário no ordinário, ambos os personagens travam um longo diálogo no qual são apresentados em contraste os costumes da Antiguidade e os da Modernidade e colocada à vista do líder ateniense as modificações ocorridas no mundo desde sua morte. Ao que tudo indica, este conto apresenta vínculos com o conto “Pequena palestra com uma múmia”, de Edgar Allan Poe. A narrativa poeana, tal como a de Machado, é narrada em primeira pessoa pelo protagonista da história que, juntamente com seus sábios companheiros, conseguem acordar uma múmia. Derrubadas as fronteiras temporais, no diálogo travado com a inusitada figura, são igualmente contrastadas as peculiaridades do Egito Antigo e as do século XIX norte-americano. PALAVRAS-CHAVE: Edgar Allan Poe; Machado de Assis; estranho. 163 Bolsista de Iniciação Científica UEL. 655 A questão do medo não é um assunto atual. Ele vem sendo posto em destaque desde as origens das sociedades primitivas. Um dos estudiosos do assunto, H. P. Lovecraft, em sua obra O horror sobrenatural em literatura, afirma que “a emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o tipo de medo mais antigo e mais poderoso é o medo do desconhecido” (2007, p. 13). Percorrendo-se a pesquisa empreendida por Sigmund Freud, verifica-se que, embora esse medo possa estar relacionado à ideia de algo desconhecido, na verdade, trata-se de uma emoção suscitada em função de um elemento familiar ao sujeito que o sente. De acordo com seu ensaio “O estranho” (1919), o medo seria causado pelo aflorar de algo que já faz parte do indivíduo, mas que, por alguma razão, ficou adormecido em seu inconsciente. O psicanalista relata que o provável agente para este sentimento seria o trauma, mais especificamente o de infância. Todavia, ele também pode residir na infância da humanidade. Uma vertente literária que lida com esse componente em boa parte das obras que a compõem é a do insólito. Nela, incluem-se gêneros como: o fantástico, o estranho e o maravilhoso. Estes três gêneros geram certa confusão entre si. Segundo Todorov (2004), quando se decide que a realidade permanece intacta e é possível explicar os fenômenos descritos, dizemos que uma obra está ligada ao “estranho”. Se novas perspectivas para aquela realidade são redefinidas, sendo o fenômeno explicado por elas, entramos no “maravilhoso”. O gênero literário “fantástico” se concretizaria como um momento de incerteza. Uma hesitação em relação ao que ocorre dentro de uma obra. Um dos sujeitos que fornecem esta primeira condição para o fantástico é o leitor: “O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (Todorov, 2004, p.31). Cabe ao leitor escolher se o que se passa faz parte da nossa realidade, um tanto familiar; ou se faz parte de um ambiente ilusório, sobrenatural, de certa forma, desconexo daquilo que conhecemos como real. Como vimos, esse momento de dúvida é o que se define por fantástico numa obra. Todorov acrescenta que a característica do medo pode estar relacionada ao fantástico, mas não necessariamente define uma obra como tal, isto é, uma obra independe do medo para ser caracterizada como fantástica. 656 Dois autores que podem ter suas obras inseridas nessa vertente são Edgar Allan Poe e Machado de Assis. Poe foi um escritor que fez parte do período romântico americano, no século XIX. Suas obras são conhecidas universalmente e influenciaram diversos autores. Machado de Assis, autor brasileiro da vertente Realista, pode ser considerado um deles. Uma possível comparação entre ambos os autores poderia ser realizada através dos contos “Pequena palestra com uma múmia”, do escritor norte americano, e “Uma visita de Alcebíades”, do autor brasileiro. O primeiro foi publicado inicialmente na American Review, em abril de 1845, e inserido no volume Contos humorísticos. O segundo foi publicado, primeiramente, no Jornal das Famílias, em 1876, sob o pseudônimo de Victor de Paula, e, posteriormente, reformado na íntegra e inserido na coletânea Papéis avulsos, de 1882. Para evidenciar a possível influência de Poe sobre Machado, serão aqui analisados e comparados ambos os contos, levando-se em consideração a relação do insólito entre eles. No conto “Pequena palestra com uma múmia”, um dos personagens principais, após jantar, prepara-se para dormir. Esse personagem assume o papel de narrador, relatando os fatos em primeira pessoa. Após adormecer, ele é acordado por sua esposa que lhe entrega um bilhete de um amigo, Dr. Ponnonner, para que o encontre em sua casa para examinarem uma múmia. Todo o restante da narrativa se passa na casa dessa segunda personagem. Os fatos seguintes estão, pois, relacionados ao momento em que fora aberto o sarcófago no qual se encontrava a múmia. Posteriormente, há uma descrição do estado em que ela estava dentro desse sarcófago. Após terem-no aberto, os que ali estavam reunidos decidiram realizar uma experiência com a múmia, aplicando cargas elétricas em seus músculos. Logo que aplicaram alguns choques, notaram que algo diferente havia ocorrido. Seus olhos, antes fixos e abertos, encontravam-se, agora, fechados. Tal acontecimento gerou certa apreensão em todos os que ali se encontravam. Todavia, mesmo com ocorrido, continuaram a experiência. Com o último choque lançado ao corpo da múmia, uma série de fatos estranhos ocorreu: Em primeiro lugar, o cadáver abriu os olhos, e piscou com bastante rapidez, durante alguns minutos, como faz o Sr. Barnus, na pantomina; em segundo lugar, espirrou; em terceiro, sentou-se; em quarto, agitou o punho diante do rosto do Dr. Ponnonner; em quinto, voltando-se para os Srs. Gliddon e Buckingham, dirigiu-se-lhes, no mais puro egípcio, da seguinte maneira: ― Devo dizer-vos, cavalheiros, que estou tão surpreso quanto mortificado pela vossa conduta. (Poe, 1997, p. 599) 657 Como se pode constatar, a múmia havia acordado de seu sono milenar. À primeira vista, tal fato deveria causar espanto em todos os personagens, mas, ao contrário, todos se mostraram “fascinados” com a situação. O narrador-personagem tenta, então, deduzir os motivos pelos quais nenhum deles saiu correndo dali, amedrontados pelo fato de a múmia, que se chamava Allamistakeo, ter voltado à vida: Há de supor-se, sem dúvida, que [...], naquelas circunstancias, todos nós corremos para porta, ou caímos em violentos ataques histéricos, ou mesmo desmaiamos todos. Uma destas três coisas, digo eu, era de esperar. De fato, cada uma dessas três maneiras de proceder poderia ter sido seguida. E, palavra de honra, não posso compreender como ou por que foi que não fizemos nem uma coisa ou outra. Mas, talvez, a verdadeira razão esteja no espírito deste tempo que procede totalmente de acordo com a regra dos contrários e é agora usualmente admitida como solução de todos os paradoxos e impossibilidades. Ou talvez, afinal, foi somente o ar excessivamente natural e familiar da múmia, que despojava suas palavras de seu aspecto terrível. Seja o que for, os fatos são claros, e nenhum dos presentes demonstrou qualquer medo particular, ou pareceu acreditar que se houvesse passado qualquer coisa de especialmente irregular. (Poe, 1997, p. 599-600) A resposta para o despertar da múmia dentro da narrativa é dada pela por ela mesma. Ela havia sofrido um diferente processo de mumificação, que só era realizado em descendentes do sangue de Escaravelho: — Ora, é costume geral no Egito, antes de embalsamar um cadáver, extrair-lhe os intestinos e os miolos; só a raça dos Escaravelhos não se conformava com esse costume. Portanto, não tivesse eu sido um Escaravelho, e me haveriam extraído intestinos e miolos; e sem uns e outros é inconveniente viver. (Poe, 1997, p. 603) Muito fora discutido enquanto a múmia continuava acordada. Os presentes questionaram o egípcio com assuntos desde a criação do mundo; passaram por questões que envolviam o desenvolvimento científico e a arquitetura egípcia. Até que os que argumentavam começaram a comparar as épocas. No diálogo travado com a inusitada figura, foram derrubadas as fronteiras temporais e contrastadas as peculiaridades do Antigo Egito e as do século XIX norte-americano, tendo assim, uma disputa iniciada. O narrador- personagem fora o indivíduo que guiou tal ação durante a narrativa. Vários são os momentos em que se percebe essa comparação: Nisto perguntei ao conde se o seu povo era capaz de calcular eclipses. Ele sorriu, com certo desdém, e disse que era. [...] Quanto ao conde, perguntou-me simplesmente, a modo de réplica, se nós, modernos, possuíamos microscópios que nos permitissem gravar camafeus no estilo dos egípcios. [...] Perguntei então ao conde qual sua opinião a respeito de nossas estradas de ferro. 658 ― Nada de particular ― respondeu ele. Eram um tanto fracas, um tanto mal projetadas e toscamente construídas. Não podiam ser comparadas, por certo, com as estradas vastas, planas, retas e raiadas de ferro, sobre as quais os egípcios transportavam templos inteiros e sólidos obeliscos, de quarenta e cinco metros de altura. [...] Mencionei depois nosso aço, mas o estrangeiro levantou o nariz e perguntou-me se nosso aço podia ter executado o duro trabalho de insculpir os obeliscos, realizado totalmente com instrumentos de cortantes de cobre. [...] Estávamos agora em iminente perigo de ser derrotados. (Poe, 1997, p. 605- 607) Quando achavam que seriam vencidos pelos argumentos de Allamistakeo, Dr. Ponnonner pergunta “se o povo do Egito pretendia seriamente rivalizar com os modernos em todas as importantíssimas particularidades do traje” (Poe, 1997, p. 607-608). Para surpresa de todos, a múmia, que havia há pouco tempo analisado as roupas modernas, simplesmente permaneceu em silêncio: Aguardávamos com profunda ansiedade uma resposta, mas foi em vão. A resposta não chegava. O egípcio enrubesceu e baixou a cabeça. Jamais houve triunfo mais consumado; jamais derrota alguma foi suportada de tão má-vontade. (Poe, 1997, p. 608) Percebendo que de nada adiantava ficar ali, o narrador-personagem resolve, então, retirar-se da casa de seu amigo e voltar a sua residência. Lá, refletindo sobre o que havia acabado de acontecer, resolve escrever algumas notas: Ao chegar em casa, já passava das quatro horas e fui imediatamente para cama. São agora dez horas da manhã. Estou de pé desde as sete, escrevendo estas notas, em benefício de minha família e da humanidade. Quanto à primeira, não mais a verei. Minha mulher é uma víbora. A verdade é que estou nauseado, até o mais íntimo, desta vida e do século dezenove em geral. Estou convencido de que tudo vai indo de pernas viradas. Além disso, estou ansioso por saber quem será o presidente, em 2045. Portanto, logo que acabar de barbear-me e tomar uma xícara de café, irei até a casa de Ponnonner fazer-me embalsamar por uns duzentos anos. (Poe, 1997, p.608). Com este fragmento, nota-se certa curiosidade do personagem em relação ao futuro. Além disso, também é possível deduzir que o mesmo tem medo da morte, pois “para muitas pessoas é extremamente inquietante [estranho] tudo o que se relaciona com a morte” (Freud, 2010, p. 360). Tal aspecto é percebido porque ele se dispõe a sofrer o mesmo processo pelo qual a múmia havia passado há alguns milênios. Essa preocupação, esse medo da morte, não se caracteriza como algo atual. Conforme afirmação de Sigmund Freud, dificilmente existe outra questão, no entanto, em que as nossas ideias e sentimentos tenham mudado tão pouco desde os primórdios dos tempos, e na qual formas rejeitadas tenham sido tão completamente preservadas sob escasso disfarce, como a 659 nossa relação com a morte. Duas coisas contam para o nosso conservadorismo: a força da nossa reação emocional original à morte e a insuficiência do nosso conhecimento científico a respeito dela. A biologia não conseguiu ainda responder se a morte é destino inevitável de todo o ser vivo ou se é apenas um evento regular, mas ainda assim talvez evitável, da vida. (2006, p. 259) Por se tratar de uma ficção, o conto possibilita a concretização do impossível, ou seja, essa capacidade de se poder driblar a morte mostrando um processo em que um indivíduo é posto para dormir durante centenas de anos e depois retorna. No que se refere ao conto de Machado de Assis, percebemos alguns aspectos semelhantes aos do conto analisado. O primeiro deles é o fato de o protagonista também exercer a função de narrador. Além disso, Desembargador X, como no conto de Poe, relata o seu fim de noite. Todavia, em vez de ir deitar-se, sentou-se e abriu um livro para passar o tempo: Acabado o jantar, enquanto esperava a hora do Cassino, estirei-me no sofá e abri um tomo de Plutarco [...] e sucedeu o que sempre se dá comigo quando leio alguma coisa antiga: transporto-me ao tempo e ao meio da ação ou da obra. Depois de jantar é excelente. Dentro de pouco acha-se a gente numa via romana, ao pé de um pórtico grego ou na loja de um gramático. Desaparecem os tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a Rua do Ouvidor, o circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga, e de graça. Uma verdadeira digestão literária. (Assis, 1997, p. 352) Outro ponto interessante observado, que pode ser comparado ao conto de Poe, tem relação com o momento em que o Desembargador X, deixando sua mente viajar pelo remoto passado, pensa como seria se o personagem do livro que lia, Alcebíades, se deparasse com a forma de se vestir do século XIX. Após se indagar sobre esse assunto, como havia há pouco se tornado espiritista, ele procura evocá-lo. Seu desejo era que o fantasma de Alcebíades aparecesse em sua casa para que os dois pudessem conversar sobre a história, mas especificamente, que Alcebíades relatasse os fatos como eles realmente ocorreram: Conjeturar qual fosse a impressão de Alcibíades era despender o tempo, sem outra vantagem, além do gosto de admirar a minha própria habilidade. Determinei, portanto, evocar o ateniense; pedi-lhe que comparecesse em minha casa, logo, sem demora. E aqui começa o extraordinário da aventura. Não se demorou Alcibíades em acudir ao chamado; dois minutos depois estava ali, na minha sala, perto da parede; mas não era a sombra impalpável que eu cuidara ter evocado pelos métodos da nossa escola; era o próprio Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego autêntico, trajado à antiga, cheio daquela gentileza e desgarre com que usava arengar às grandes assembleias de Atenas, e também, um pouco, aos seus pataus (Assis, 1997, p. 353). 660 Atento ao elemento estranho, Luis Eduardo Veloso Garcia, em seu artigo, O inquietante em “Uma visita de Alcebíades”, de Machado de Assis, diz que o [...] caráter inquietante se faz indiscutivelmente perceptível, por se tratar da inusitada aparição de um morto restituído à vida. Tal aparição ganha contornos ainda mais intensos ao se tratar de um cadáver ilustre, como o caso de Alcibíades (451 a.C. – 404 a.C.), que é considerado uma das figuras mais importantes, e também ambíguas da antiga Grécia, e que teve sua imagem imortalizada por Plutarco (50 a 120 d. C.) numa das biografias de sua série vidas paralelas. (2011, p. 143-144) Segundo Sigmund Freud, um dos sentimentos do estranho está relacionado à pronta realização de desejos. O psicanalista recorre a vários exemplos para ilustrar esse possível provocador do sentimento do estranho. Em um deles, Freud (2006, p. 256) cita a experiência de um de seus pacientes. Ao retornar ao estabelecimento de tratamento hidropático, tal paciente percebeu que outro indivíduo encontrava-se no quarto que ele queria ficar. Assim que presenciou tal fato, o paciente simplesmente desejou que o sujeito que ocupava seu espaço morresse. Duas semanas depois, tal desejo fora concretizado. Outro exemplo dado pelo psicanalista encontra-se na ficção: “Na história de ‘O Anel de Polícrates’, o rei do Egito afasta-se horrorizado do seu anfitrião, Polícrates, porque vê que cada desejo do seu amigo é imediatamente satisfeito, cada cuidado seu prontamente anulado por um amável destino. O anfitrião tornou-se ‘estranho’ para ele”. (2006, p. 256, grifo nosso) Logo que o Desembargador X pensou em invocar o fantasma do ateniense, o mesmo surge instantaneamente na sala da casa do personagem. Tal fato causa certa estranheza no personagem, levando-o a se questionar se aquilo não seria efeito de uma má digestão: Juro a V. Ex.ª que não acreditei; por mais fiel que fosse o testemunho dos sentidos, não podia acabar de crer que tivesse ali, em minha casa, não a sombra de Alcibíades, mas o próprio Alcibíades redivivo. Nutri ainda a esperança de que tudo aquilo não fosse mais do que o efeito de uma digestão mal rematada, um simples eflúvio do quilo, através da luneta de Plutarco; e então esfreguei os olhos, fitei-os, e... (Assis, 1997, p. 353) Alcebíades pergunta ao Desembargador X o que ele queria. Um tanto quanto espantado, o personagem principal fica em silêncio. Após alguns minutos, ambos começam a conversar. Assim como no conto de Poe, fatos relacionados à Antiguidade grega vêm à tona. Entretanto, no conto de Machado, não há uma disputa de períodos, mas sim uma espécie de conversa informativa: 661 Limitei-me a responder ao que ele queria; pediu-me notícias de Atenas, dei lhas; disse-lhe que ela era enfim a cabeça de uma só Grécia, narrei-lhe a dominação muçulmana, a independência, Botzaris, lord Byron. O grande homem tinha os olhos pendurados da minha boca. [...] ― Vá, continua, dizia-me ele, quando eu parava de lhe dar notícias. [...] Cada século, meu caro Alcibíades, muda de danças como muda de ideias. Nós já não dançamos as mesmas coisas do século passado; provavelmente o século XX não dançará as deste [...]. De longe em longe, acrescentei, um ou outro poeta, um ou outro prosador alude aos restos da teogonia pagã, mas só o faz por gala ou brinco, ao passo que a ciência reduziu todo o Olimpo a uma simbólica. Morto, tudo morto. ― Morto Zeus? ― Morto. ― Dionisos, Afrodita?... ― Tudo morto. (Assis, 1997, p. 353-355). Com todas as informações possíveis dadas ao grego, Desembargador X, que havia comentado que iria a um baile, se vê em uma enroscada tamanha, pois Alcebíades queria acompanhá-lo. Procurando um modo de se livrar, ele pensa que a melhor forma seria dirigir-se até rua: Fiquei aterrado, disse-lhe que não, que não era possível, que não o admitiriam, com aquele trajo; pareceria doido; salvo se ele queria ir lá representar alguma comédia de Aristófanes, acrescentei rindo, para disfarçar o medo. O que eu queria era deixá-lo, entregar-lhe a casa, e uma vez na rua, não iria ao Cassino, iria ter com V. Ex.ª. Mas o diabo do homem não se movia; escutava-me com os olhos no chão, pensativo, deliberante. Calei-me; cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o vulto ia desfazer-se, e que eu ficava ali com as minhas calças, os meus sapatos e o meu século. ― Quero ir ao baile, repetiu ele. Já agora não vou sem comparar as danças. ― Meu caro Alcibíades, não acho prudente um tal desejo. Eu teria certamente a maior honra, um grande desvanecimento em fazer entrar no Cassino, o mais gentil, o mais feiticeiro dos atenienses; mas os outros homens de hoje, os rapazes, as moças, os velhos... é impossível. ― Por quê? ― Já disse; imaginarão que és um doido ou um comediante, porque essa roupa... ― Que tem? A roupa muda-se. Irei à maneira do século. Não tens alguma roupa que me emprestes? Ia a dizer que não; mas ocorreu-me logo que o mais urgente era sair, e que uma vez na rua, sobravam-me recursos para escapar-lhe, e então disse-lhe que sim (Assis, 1997, p. 355). Após vestir-se de acordo com a época, Desembargador X foi mostrar-se ao grego que explicitou estar surpreso com todas aquelas peças estranhas que o outro usava. A cada peça que o personagem principal ia descrevendo, cada vez mais o grego ia ficando surpreso. Até que a certa altura, o “fantasma de carne e osso” perde novamente a vida. Aqui, como no conto de Poe, o contato com o vestuário moderno leva à eliminação do ancestral: 662 “Alcibíades olhou para mim, cambaleou e caiu. Corri ao ilustre ateniense, para levantá-lo, mas (com dor o digo) era tarde; estava morto, morto pela segunda vez”. (Assis, 1997, p. 357). Após analisar os contos, foi possível perceber que, em ambas as narrativas, o elemento “estranho”, tal como apresentado por Freud, faz-se presente. Além disso, acreditamos que nossa análise tenha demonstrado a influência de Poe sobre Machado. Tendo em vista a obtenção de tais resultados positivos, espera-se que essa pesquisa possa contribuir com os estudos sobre a obra de Poe, de Machado, bem como com aquelas pesquisas que procuram abordá-los lado a lado. 663 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, Machado. Uma visita de Alcebíades. In:______. Obra completa. Vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 352-357. FREUD, Sigmund. O estranho. In:______. História de uma neurose infantil e outros trabalhos (1917- 1919). Trad. Eudoro Augusto Macieira de Souza. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 235-273. FREUD, Sigmund. O inquietante. In: ______. Obras completas. Vol. XIV. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 328-376. GARCIA, Luis Eduardo Veloso. O inquietante em “Uma visita de Alcebíades”, de Machado de Assis. O insólito e a literatura infanto-juvenil. Anais. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2011. p. 143-152. LOVECRAFT, H. P. O horror sobre natural em literatura. Trad. Celso M. Paciornik. São Paulo: Iluminuras, 2007. POE, Edgar Allan. Pequena conversa com uma múmia. In: ______. Ficção completa, poesia & ensaios. Trad. Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2004. 664