UMA BALA BASTAVA! – VIOLÊNCIA, JUSTIÇA, LITERATURA E SOCIEDADE: NA
CRÔNICA “MINEIRINHO”, DE CLARICE LISPECTOR
LOBO NETO, João Ferreira
[email protected]
Bolsista do CNPq
Universidade Regional do Cariri – URCA
MARTINS, Edson Soares.
[email protected]
Professor da Universidade Regional do Cariri – URCA.
A violência possui papel fundamental na história da humanidade. Ela ultrapassou os séculos
com vários nomes e várias formas de interpretação, mas o fato é que destruiu civilizações e, ao
mesmo tempo, construiu outras, pois sempre foi o instrumento mais eficaz de controle e dominação.
Exemplos não faltam, temos as conquistas do Império Romano, a escravidão de negros e índios, e,
sem nos afastarmos muito historicamente, a ditadura militar brasileira. Mas um fato curioso
caminha linearmente: tudo isso aconteceu ao mesmo tempo em que se fortaleceu o discurso de
superioridade da raça humana devido, principalmente, a nossa racionalidade, o que significaria que
teríamos superados nossos instintos – que nos faziam primatas – e com a razão teríamos nos
tornado seres civilizados. Então como pode ser assimilado que seres racionais tenham evoluído
utilizando a violência – característica instintiva – e continuarem com o seu status de civilizados?
Contudo, dedicaremos a nossa sociedade ocidental capitalista com seus valores que assumiram
múltiplos discursos para validar o interesse de alguns.
No discurso religioso cristão, a violência possui, basicamente, duas interpretações:
purificador e ato desumano. Como educativo, podemos lembrar do período da Santa Inquisição em
que se queimavam mulheres para provocar o medo e assim conter as mudanças sociais. E, passado a
Idade Média, com os adventos da modernidade, assume-se, no primeiro plano, o mandamento
“Amai os outros como a ti mesmo”. Podemos perceber que invoca a necessidade que o homem
possui de viver em comunidade fazendo-o lembrar da relação eu e o outro. O amor também é
importante nesse discurso, pois ele condiciona a forma de se relacionar; não será apenas por
respeito, mas uma relação em que se reconheça no outro um irmão – amor como ágape. Só assim –
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religiosamente falando – compreendendo a comunidade como um núcleo familiar a violência seria
banida.
A distinção dualística entre homem e animal, civilizado e instinto, é um outro discurso
associado para a construção da sociedade. Neste caso, podemos ressaltar os estudos de Foucault em
que ele demonstra a atuação do Biopoder. O desenvolvimento da medicina – incluindo aqui a
psicanálise – construiu um discurso cuja violência, como representação, foi interpretada como um
impulso natural de sobrevivência de todos os seres vivos. Mas não se podia assumi-la como
necessária para os homens civilizados, pois esses lidariam não mais com seus instintos, eles teriam
uma faculdade exclusiva – a razão. Opondo razão e instinto – com a valorização do primeiro – se
configura a idéia do “homem justo” como o ser superior da natureza, pois a violência é
desarticulada das ações humanas, sendo condenada à condição de enfermidade.
Destacando o discurso psicanalítico, a violência é aceita como constitutiva da natureza
humana, mas é reformulada pelas necessidades civilizatórias. Assim, o homem saudável não é
aquele que conserva suas características iniciais, mas sim aquele que consegue se controlar, que
aceita os mecanismos sociais “de humanização”. Os indivíduos que se utilizam da violência são
vistos pela psicanálise como doentes e necessitam de tratamento específico para se inserirem na
sociedade.
Contudo, com esses e tantos outros discursos que purificam a raça humana da violência, por
que mesmo assim ela sempre foi instrumento de fortalecimento e de imposição do poder? Esse é o
tipo de pergunta que possuem várias e nenhuma resposta. Uma das melhores respostas é pensar que
ela ainda é a forma mais eficaz de imposição de poder, idéias e ideais, uma vez que ela própria
conseguiu se afirmar no campo da racionalidade.
Pretendemos utilizar a crônica “Mineirinho”, de Clarice Lispector, a fim de demonstrar
como a violência se articula em discursos extremos para defender a propriedade. Tanto ela pode ser
vista como necessária, como ela pode ser rejeitada. O que vai depender será a articulação de dois
elementos: necessidade com o medo.
Inicialmente, é preciso contextualizar a crônica que será trabalhada. “Mineirinho” foi escrito
paralelamente a repercussão que se desenvolveu na mídia brasileira sobre a execução de um
assassino chamado Mineirinho. O fato chocou a opinião pública porque estavam envolvidos
policiais que, sem misericórdia e rompendo com todos os direitos humanos e legais, o fuzilaram
com treze tiros.
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Em uma entrevista concedida a Júlio Lerner, quando interrogada sobre quais de seus escritos
ela tinha um carinho especial, Clarice Lispector responde que são “O ovo e a galinha” e a crônica
“Mineirinho” e comenta sobre essa:
Eu não me lembro muito bem, já foi a bastante tempo. Alguma coisa assim: o
primeiro tiro o espanto, o segundo tiro num sei o que, terceiro tiro coisa, o décimo
segundo me atinge e o décimo terceiro sou eu. Eu era... me transformei em
Mineirinho mascarado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma
bala bastava o resto era vontade de matar, era prepotência.
Assim, justificamos a primeira frase que intitula esse artigo.
A crônica começa mostrando que a função do intelectual diante do fato ocorrido é de
investigar o grande mal-estar social, vejamos: “É, suponho que é em mim, como um dos
representantes de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é
que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes” (p.123).
É válido ressaltar que Clarice Lispector pertence e representa um certo grupo de intelectuais
de classe média, então poderia se pensar que sua investigação só poderia se estender a esse campo
social, mas a sensação que ela se propõe a descrever ultrapassa essa camada, de forma que,
estrategicamente, ainda no primeiro parágrafo, a escritora escreve a conversa com a cozinheira;
essa, atônita, responde: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era
criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu” (p.123). Dessa forma, cria-se
a idéia de um sentimento que não é apenas de uma classe social, mas, é algo que corrói as entranhas
sociais.
Mesmo as duas mulheres sendo de classes diferentes, podemos perceber que as duas
compartilham da mesma fé: “Respondi-lhe que ‘mais do que muita gente que não matou” (p.123).
A diferença é que essa narradora-personagem – que se configura como sendo mulher, burguesa e
que exerce a profissão de intelectual – se propõe a desmascarar o conteúdo religioso empregado no
discurso conformista: “Por quê? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vidas
insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é minha maior garantia: assim não me matam, porque eu
não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim”
(p.123).
Esse desmembramento do discurso nos mostra em que está realmente focalizado no apelo de
cunho religioso: no “eu-pessoal” e com a sua defesa no campo das relações sociais; e para
comprovar o que afirmamos, de forma sucinta, destacamos os pronomes pessoais repetidos: “me” e
“para mim”, além do verbo querer conjugado na primeira pessoa.
Vejamos a descrição da seqüência dos 13 tiros:
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Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro
como um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto
desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu
ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está
trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo
segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o
outro. Porque eu quero ser o outro (p.123-124).
A conduta de Mineirinho rompia com o pacto social de não matar, o que provocaria a
sensação de segurança com a sua morte. O que fica demonstrado nos dois primeiros tiros. Podemos
fazer a ligação entre a defesa do eu-pessoal com o “alivio” em relação aos primeiros tiros. Nesse
contexto, a violência alcança a posição de justiça, assumindo como sendo punitiva.
Mas, na seqüência dos outros tiros, percebe-se a passagem de uma justiça aceita para uma
temida. Ocorre um desmascaramento, fazendo com que se torne explícito o ser violento de quem
constrói e executa a justiça. O último tiro simbolicamente recai sobre o individuo porque consolida
o massacre, ressaltando a crueldade do homem sobre o outro.
A justiça que se faz necessária para consolidação das relações civilizadas é a mesma que é
capaz de matar como assassinos, produzindo essa sensação descrita na crônica: “Essa justiça que
vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela” (p.124).
Nessa inversão de valores, isto é, de justiça para punição e de punição para violência, é que
os cidadãos de classe média se tornam “os sonsos essenciais” (p.124). Vejamos:
Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja
sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for
sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o
terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e
falsamente nos salvamos (p.124)
A imagem do sofrimento de Mineirinho recai sobre a imagem do homem assassino: “que ao
homem acuado, que a esse não nos matem” (p.124), e mais adiante, “Como não amá-lo, se ele viveu
até o décimo terceiro tiro o que eu dormia?” (p.124). Nesse momento, a violência do assassino é
apresentada como uma suposta redenção.
Com o massacre de Mineirinho, surge a interrogação na classe média sobre os problemas
sociais associados na lógica capitalista, como podemos ver: “Sua assustada violência. Sua violência
inocente – não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou
conta” (p.124).
A compaixão é empregada apenas depois que a opinião pública se encontra no labirinto de
sensações devido ao assassino de Mineirinho. Isto porque é muito comum a valorização do martírio.
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Subjetivamente foi construído, desde os tempos bíblicos, que a redenção é marcada por extremo
sofrimento humano. O exemplo mais óbvio: a via crucis de Cristo. Apenas com a morte de
Mineirinho, com treze tiros de um policial, é que a classe média se interroga e associa ao fato à
trajetória miserável de vida de uma vítima da má distribuição de renda – o assassino é um cidadão,
um ser humano – na crônica: “Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e
sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu” (p.124).
O reconhecimento do caos social se dá a partir da compreensão de que as ações criminosas
de Mineirinho são, na verdade, coragem. Isso é demonstrado com comparações: “[...] em amor
pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê
água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e
também eu, não me perdi, experimentei a perdição” (p.125), e ainda, “Mineirinho viveu por mim a
raiva, enquanto eu tive calma” (p.125).
Vejamos, agora, como se dá a reconstrução dos discursos, impulsionada pelo choque social:
“A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais
divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade,
aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime” (p.125). Pode-se perceber que nesse
momento homens são conclamados a se aproximar de suas definições discursivas, a deixar de ser
apenas palavras egocêntricas e começarem a agir como homens.
Mas há um elemento extremamente comum nas narrativas claricenas que se repete aqui: a
derrota. Nos seus romances e contos, Clarice Lispector faz com que seus protagonistas
experimentem a mudança, a revolução, para depois retornarem ao estado inicial. Neste caso, na
crônica, fica configurado assim:
[...] o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me
justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus
cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre
fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila, e que
outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo
isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo
procurar não entender (p.125)
A derrota se dá na conformidade – sublimação do caos interior a partir da religiosidade – e
na inalterabilidade – compreensão de que não se pode mudar. E, somado a tudo isso, a escolha pela
ignorância para se compreender que tudo é natural.
Devemos ressaltar que a ignorância escolhida se faz necessária, nesse sentido, pois ao
contrário, provocaria questionamentos que abalariam os pilares que sustentam toda a sociedade e
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até mesmo a unidade referencial das classes sociais; “Porque quem entende desorganiza” (p.125).
Contudo, a escolha cria-se a margem do ato de sentir, do ato de conhecer, de entender, então a
ignorância não é alcançada em plenitude, deixando assim uma ferida social – no conto se afirma
que “Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo – uma coisa que entende” (p.125). Essa coisa
que entende é desespero em nós só pode ser aceita com a loucura – “Mas só feito doidos, e não
como sonsos, o conhecemos” (p.126) e, mais adiante, “e como doido compreendo o que é perigoso
compreender” (p.126).
Para encerrar a crônica a escritora tentar traçar um caminho para justiça pelo qual não se
transforme em violência:
“[...] Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na
hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo
eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente
guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um
inocente.” (p.126)
Parece-nos, no primeiro instante, que essa justiça se constrói nas bases dos valores humanos.
Mas isso não é verdade, pois o que está destacado nos valores da classe média não é a relação com
o outro, mas, esse tipo de discurso se constrói em uma base mais firme, própria do capitalismo, a
individualidade associado com os bens de consumo – a propriedade. Isso fica comprovado quando
ela afirma nas suas últimas palavras que não quer o abstrato ou o sublime, e sim: “O que eu quero é
muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno” (p.126).
Ocorre que ela invoca um discurso humanitário para defender o “eu-pessoal”. Ou seja,
depois de toda essa reflexão, desse desmembramento dos discursos e da introspectividade humana,
a derrota aparece na reafirmação inicial da propriedade, e, não essencialmente, pela defesa do outro.
E assim, na ironia profunda e perfurante de Lispector a justiça deve defender construir uma paz, não
porque ela seria necessária, mas para que os bens estejam protegidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CURI, Simone. A escritura nômade em Clarice Lispector. Chapecó: Argos, 2001.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. 7. ed. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1984.
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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: O cuidado de si. 5. ed. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1985.
LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector: Panorama Especial [fev. 1977]. Entrevistador: J. Lerner.
São Paulo: TV Cultura, 2002. Videocassete, VHS, Entrevista concedida ao programa Panorama
Especial e reapresentado no programa 30 Anos Incríveis da emissora TV cultura.
LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LUCAS, Fábio. Guimarães Rosa e Clarice Lispector: Mito e Ideologia. In:_____.Razão e emoção
literária. São Paulo : Duas Cidades, 1982. p. 118.
REGUERA, Nilza Maria de A. Clarice Lispector e a encenação da escritura em A via crucis do
corpo. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
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uma bala bastava! – violência, justiça, literatura e sociedade