EDUCAÇÃO FÍSICA E SAÚDE:
UMA TRAJETÓRIA METODOLÓGICA ENTRE A
SOLUÇÃO MÉDICA E A PROBLEMATIZAÇÃO PEDAGÓGICA
Antônio Stival Júnior1
RESUMO: A relação da educação física na saúde atravessa, hoje, uma “confusão” em que ora
apresenta-se como cura ora se apresenta sob discurso educacional. Educação Física e saúde:
constitui prática médica ou prática pedagógica? Para responder esse problema, percorri a
trajetória metodológica da educação física na saúde por meio da produção acadêmico-científica e
histórica da área, especificadamente no Brasil. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de revisão
bibliográfica e de caráter dialético a partir de autores considerados contundentes ao tema. Por fim,
conclui-se que escolher um modo de abordagem dessa relação, se é médica ou é pedagógica,
permeia a questão ética da área e exige uma reinvenção metodológica a partir do próprio
conteúdo.
PALAVRAS-CHAVE: prática da educação física, metodologia da educação física, ética.
A Educação Física (EF) estabelece uma relação, hoje, com a saúde ora para remediar os
problemas de doenças ora sob o discurso educativo. Essa ambigüidade permeia o imaginário social
e encontra ressonância em inúmeras produções acadêmico-científicas da área, assim como é
defendida pela própria instituição que se autodefine representativa da área e que mais atua na
publicidade da EF, o CONFEF. A questão é que essa situação acabou por fragilizar e tornar precária
a profissão, levando-a a uma condição dúbia.
Afinal: EF e saúde compõem uma solução médica ou é um tema de aula? Pretendo
demonstrar que a ambigüidade dessa relação encontra-se na raiz mesmo da EF e que a escolha do
método de abordagem dela é atravessada pelo salto produtivo da área, coincidente ao final da
década de 1970 e inicio da década de 1980 e que permanece até os dias que correm. Trata-se de
uma pesquisa qualitativa, de revisão bibliográfica e de caráter dialético por, segundo (Triviños,
2008), não se restringir aos aspectos quantitativos e também por se aportar nas contradições
inerentes ao fenômeno estudado; fundamentado em autores considerados contundentes ao tema.
Assim, percorri a trajetória teórica da EF objetivando a construção de conceitos.
1
Professor de Educação Física, graduado pela UEG/ESEFFEGO. E-mail: [email protected] .
1
A NATUREZA AMBIGUA DA EDUCAÇÃO FÍSICA
A referente contradição da prática da EF em relação a saúde tem como principal porta-voz
e concordância a obra de Steinhilber (1996)2. Segundo o autor, educação física constitui uma
profissão e mais uma disciplina escolar com o objetivo de uma “educação em saúde”. Assim, o
Profissional de educação física, como prefere denominar:
designa os egressos das escolas de formação profissional em Educação Física; escolas essas que
têm em seus currículos disciplinas que transmitem conhecimentos, permitindo aos seus formandos
uma atuação competente em todas as áreas do movimento, da atividade física e/ou desportiva, seja
através da licenciatura ou do bacharelado, respeitando-se e levando-se em consideração,
evidentemente a área de maior concentração de cada escola, dentro da autonomia de cada
universidade. (Steinhilber, 1996:63/64).
Nota-se que a referência pelo professor não é mais fundamental e que o conteúdo
especifico da área são as atividades e exercícios físicos e esportivos. Outro dado importante a ser
colocado é que há inúmeros espaços possíveis de atuação desde clubes e academias de ginásticas a
hospitais e empresas, mostra que não é somente mais a escola o principal local da educação física.
Sobre esse espaço:
EDUCAÇÃO FÍSICA CURRICULAR: designaria a matéria ou disciplina curricular que deve
fazer parte do currículo de todas as escolas públicas e particulares, desde o pré-escolar até o final
dos estudos. Nesta ótica, Educação Física curricular, designa a atuação formal da atividade na
estrutura educacional. (Steinhilber, 1996:64).
A formalidade referida indica que existe uma expansão da educação física, isso resultou
numa relativização profunda da área, pois cada espaço passa a exigir um tipo de prática e, isso,
acabou por transformar o trabalho de professor em algo momentâneo, passageiro. É bem verdade
que o autor e seus seguidores concluem que ser professor é algo limitador para a área, que é
possível explorar várias outras formas de atuação. Nesse sentido, educar e ensinar deixa de
estabelecer uma relação de sinônimos e passam a designar processos diferentes; como se comprova
na passagem abaixo:
É importante ressaltar que nem sempre estamos ensinando, porém, entendo que, esteja atuando
onde estiver, o profissional de Educação Física está sempre educando. Deve ser, sempre e
permanentemente, um educador, um formador de indivíduos integrados à sociedade. (Steinhilber,
1996:68).
O Profissional educa, porém não ensina. Os preceitos teóricos da educação física se
desfixaram da escola tornando-a um espaço desapreciado, enquanto professor tornou-se um trabalho
2
Sendo este quem mais atuou na criação da Conselho Federal de Educação Física (CONFEF) órgão regulamentador da
profissão de educação física e suas regionais CREFs.
2
em obsolescência. Esse processo, surpreendentemente, é atravessado, hoje, por uma campanha
lançada pelo CONFEF dedicando a 2009 o ano da educação física escolar. Conforme explicitado
nas diretrizes da campanha3 as finalidades são, entre outras: melhorar indicadores de saúde,
melhorar qualidade de vida das pessoas e instituir estilo de vida ativo na sociedade4. Observa-se que
não ocorre uma preocupação “pedagógica” em relação a escola, mas uma preocupação “médica”;
então, na proposta do CONFEF é possível encontrar equivalência a educação física praticada a mais
de dois séculos atrás, como veremos a seguir.
As primeiras práticas e teorizações em educação física registradas, especialmente no
Brasil, datam do final do século XVIII para o século XIX, coincidentes a passagem para a
Modernidade. Conta-nos Marinho (s/d) que desde 1787 inúmeros tratados de higiene e moral
vinham sendo importados da Europa e efetivados no Brasil, por conta de sua condição colonial de
Portugal, e neles contendo exercícios físicos. Entre traduções e publicações5 desses tratados, no ano
de 1828 o médico brasileiro Joaquim J. Serpa publicou o Tratado de Educação Física – Moral dos
Meninos, obra emblemática que, nos comentários de Marinho (s/d):
O autor compreende por Educação a saúde do corpo e a cultura do espírito, apreciando a Educação
Física conforme a encaramos hoje. (...) Aconselha para as crianças recém-nascidas movimentos de
braços, contando que não sejam fortes, bruscos ou prolongados. Preconiza a ambidextria e divide
os exercícios em duas categorias: 1ª.) – Os que excitam o corpo, como corrida, dança, péla,
volante, balão, nado, luta e saltos (...) 2ª.) exercícios de memória como o xadrez, etc.
Essas primeiras obras de educação física, ainda presas a higiene e moral médica,
representam o momento de embrionária sistematização e socialização dos exercícios físicos; que,
posteriormente, passaram a ser denominados de educação física. Visualizamos, aqui, um momento
da educação física pré-escolar, praticada pelos próprios médicos e funcionando como forma de
remédio, ou seja, como cura e/ou tratamento de doenças.
A segunda metade do século XIX guarda uma reforma na educação física que resultará
numa primeira forma autônoma dessa área, quando ela será desligada; ao menos pela “prática”; da
medicina. Trata-se de sua transferência para as escolas, iniciada oficialmente no ano de 1852 com a
criação de um Regulamento na escola pública primária, nele definia-se que:
Com a instrução primária nas escolas também se dará a educação física e moral, a saber: a) a
educação consistirá em limpeza, exercícios, posições e maneiras de corpo, asseio e decência do
vestuário o mais simples e econômico possível, danças e exercícios ginásticos, a ornicultura,
passeios de instrução e recreação; os alimentos serão moderados para os discípulos internos.
(Moacir apud Marinho, s/d:24).
3
Disponível no site http://www.confef.com.br/arquivos/seminario/diretrizes.pdf .
Revista E.F., n º. 31, março/2009, disponível em http://www.confef.com.br/extra/revistaef/revista.asp?num=31
acessado em 26/08/2009.
5
Dentre brasileiras e portuguesas, outras obras de referência: Tratado de Educação Física e Moral, Luiz Carlos Moniz
Barreto, 1787; Tratado da Educação Física dos Meninos para uso da nação portuguesa, Dr. Francisco de Melo Franco,
1890; Tratado, Francisco José de Almeida, 1891. (Marinho, s/d).
4
3
Após essa primeira movimentação nas escolas primárias, a educação física foi estendida,
em 1854, para os alunos de 2º. grau e, posteriormente, também nas escolas militares, em 1858
(Marinho, s/d). Observem que a incorporação da educação física na escola é uma transposição das
práticas médicas de forma pedagogizada, assim, ensinava-se a lavar as mãos antes de comer, a
escovar os dentes após as refeições, a tomar banhos diários, a manter escola e casa limpas, não sujar
paredes da escola e de casa, etc., como também a exercitar-se regularmente.
O acontecimento determinante da EF na escola, especificamente no Brasil, foi o
engajamento de Rui Barbosa, em 1882, propondo e defendendo uma reforma educacional global
com certo destaque de uma reforma da EF individualizando-a como aula. Entre outras propostas,
Rui Barbosa defendia a inclusão de exercícios militares na EF dos alunos (sexo masculino), e dizia
mais: a “prática de exercícios físicos pelo menos quatro vezes por semana, durante 30 minutos,
devendo ser professada a ginástica exclusivamente higiênica e pedagógica, sem caráter
acrobático”; e também que a “dispensa dos exercícios físicos somentte para os alunos que, por
inspeção médica, fossem declarados incapazes” (Marinho, s/d:28). Destaquei apenas essas
proposições por considerá-las insígnias de uma EF que se manteve com mesma base medicalizada,
sofrendo, na verdade, uma ampliação de exercícios possíveis de serem realizados.
O pensamento medicalizado da educação física foi consistentemente discutido por diversos
autores da área. Soares (2001), com sua tese de desnaturalizar a relação da educação física com a
saúde, mostrou que essa relação é uma construção histórico-social e heterogênea, permeada por
fatores tanto sociais e/ou culturais quanto político e econômicos. Continua a autora que, à educação
física, guardava-se as finalidades de higiene social, em outras palavras, práticas de aperfeiçoamento
artificial do homem; que condiziam com a concepção moderna de corpo e de homem. Essa linha de
pensamento continuou na escola e equivalia desde o exercitar-se até correções posturais, controle de
instintos, organização e hierarquização na realização das atividades, desenvolvimento muscular,
domesticação dos gestos, adestramento dos sentidos:
A Educação Física no Brasil, em suas primeiras tentativas para compor o universo escolar, surge
como promotora da saúde física, da higiene física e mental, da educação moral e da regeneração
ou reconstituição das raças. Higiene, raça e moral pontuam as propostas pedagógicas e legais que
contemplam a Educação Física, e as funções a serem por ela desempenhadas não poderiam ser
outras senão as higiênicas, eugênicas e morais. (Soares, 2001:91).
Nota-se que não se trata do prazer pela prática das atividades de movimentação criadas
pelo homem, de decisão individual, mas de uma socialização mesmo destas e a ginástica será a
primeira forma a ser levada para as escolas, em meados de 1890 (Soares, 2001), constituindo de
treinamentos em saltar, correr, alongar, marchar, escorregar, equilibrar, etc. na verdade, imputava
modos saudáveis de realizar essas atividades primitivas do homem. A ginástica continuou sendo o
4
conteúdo da educação física escolar por, praticamente, todo o século XX; tendo seu ápice nas
décadas de 1920 e 1930. Numa consecutiva substituição dos métodos ginásticos alemão pelo sueco
e depois pelo francês, na segunda metade do século XX ganhou força o método inglês de ginástica,
popularizado pelo termo esporte; durando esse formato de aula de educação física até o final da
década de 1970 e inicio da década de 1980 quando se dá uma movimentação de transformação da
educação física (Castellani Filho, 1988).
O SALTO PRODUTIVO DA EDUCAÇÃO FÍSICA BRASILEIRA
A produção acadêmico-científica que buscou uma transformação da EF ocorreu sob um
cenário político bastante conturbado: a redemocratização do Brasil. Reivindicando-a uma participação
ativa nesse processo de mudança da nossa política e sociedade, inúmeros professores descontentes
com essa educação física medicalizada e que iniciavam ligações mais consistentes com a teoria crítica
geral, lançaram mão de teorias e debates que colocavam-na em cheque, disputando novos sentidos e
significados; no que convencionou-se chamar de “movimento renovador da educação física” (Bracht,
1999) e/ou “influências e tendências da Educação Física” (Darido, 2001).
Panoramicamente, o inicio desse debate se deu com a exposição feita por Medina de uma
crise da educação física e a necessidade de buscar uma identidade a ela. A primeira saída
apresentada, por Cunha, foi a substituição do nome educação física por ciência da motricidade
humana dando-lhe esse status científico. Outra contribuição importante foi a de Go Tani,
sinalizando pela “pobre” produção acadêmico-científica escolar. Após essas considerações, iniciouse um momento de formulações de propostas pedagógicas em educação física. Daólio e João Batista
Freire, o primeiro baseando-se na antropologia e o segundo as teorias construtivistas, criaram
concepções e finalidades “culturais” de educação física. O Coletivo de Autores foram os primeiros
a formularem uma teoria completa, ou seja, por uma superação da sociedade capitalista criaram
desde um conceito e objetivos para a prática da educação física até formas avaliativas e distribuição
do ensino na escola. Kunz, por outro lado, elaborou uma teoria comunicativa de transformaçãodidática das formas de ensino da educação física na escola por meio do esporte. (Caparroz, 2007;
Bracht, 1999; Darido, 2001; Assis, 2001).
Após a maciça produção intelectual não se vislumbrou uma transformação de fato da
educação física, porém as lições ficaram. O legado desse momento vanguardista foi o de expor o
“estrangeirismo” da educação física no Brasil e na escola, expor a estranheza que essa disciplina
causava em relação as demais num contexto geral escolar; penso que diferente, em certa medida do
momento de denúncia pelo qual Caparroz (2007) se refere. A inversão da educação física de prática
5
médica para uma prática pedagógica, conforme discutiu Castellani Filho (1998), sustentou-se até o
processo que a regulamentou e culminou em toda uma incerteza da área, novamente, como
explicitado no inicio do texto. Desse modo, ser professor ou ser médico passou a constituir uma
individualidade dos profissionais da área e o modo de tratamento de um conteúdo na escola, nesse
caso saúde, passa a ser uma questão ética.
Faz-se necessário o debate ético na medida em que esse é balizador da atuação
profissional, portanto, relaciona-se com o tipo de abordagem na sala de aula. Nosso código de ética,
segundo Drumond (2004), está adaptado do código bioético, mais geral da medicina; assim, fica
claro o entendimento de uma educação física medicalizada guiada pela “responsabilidade” de
vigilância constante ou, como disse Soares (2001), no controle da conduta saudável dos alunos.
Entre a educação física como prática médica transplantada no espaço escolar e a educação
física construída na escola, como rigorosamente diferenciou Caparroz (2007), e seguindo pela ética
o trato com o conteúdo, recorro a proposta de Assis (2001) de reinventar o esporte na escola como
forma de reinventar a própria educação física, porém lançando mão do conteúdo saúde: a idéia é
produzir junto aos alunos novos significados e novos sentidos para a relação educação física-saúde,
substituindo a solução médica pela problematização dessa relação enquanto um tema de aula. Nesse
sentido, assumindo posicionamento de uma ampliação do conceito ético aos professores da
educação física, que conte além das ciências biológicas e médicas a filosofia, o direito, a
antropologia, a ciência política, a teologia, a comunicação, a sociologia, a economia, a história.
Enfim: uma ética multidisciplinar em que a prática do professor de educação física não mais seja a
de remediar, solucionar medicamente; mas uma produção científica conceitual dialética.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos, ao longo do texto, que a relação educação física-saúde é inerente a essa prática e
que os paradoxos dela atravessaram os tempos culminando numa crise de identidade que foi
suprida, teoricamente, por proposições que objetivavam a construção de uma pedagogia crítica da
educação física por meio de métodos didáticos de transformação e/ou reinvenção dos conteúdos, no
espaço escolar.
Diante disso, é necessário repensar essa relação não mais como uma forma medicalizada
das atividades e jogos primitivos, da forma de treinamento de movimentos e gestos, mas,
contrariando, compreendê-la como um problema pedagógico que, na escola, adquiri o formato de
tema de pesquisa e produção científica-escolar; assim, faz-se necessário assumir outro preceito
ético, que não seja médico, mas multidisciplinar.
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