Agricultura e Natureza Por uma outra abordagem do desenvolvimento da agricultura Antonio João Castrillon Fernández Resumo A agricultura pode ser analisada a partir das suas especificidades frente outros setores produtivos? Esta é a questão central do artigo. O tema ganhou relevância nos anos 80 e 90 no âmbito dos debates sobre a reprodução das formas familiares de produção em países de economia capitalista e sobre progresso tecnológico na agricultura. O problema que nos leva a organizar os argumentos deste artigo está em compreender a importância da natureza enquanto um fator explicativo do desenvolvimento da agricultura em ambientes abertos, como por exemplo, a expansão das grandes lavouras de grãos nos cerrados brasileiros cuja área cultivada vem ampliando desde os anos 80. As relações sociais de produção, o desenvolvimento tecnológico, as políticas públicas e os impactos ambientais neste modelo agrícola de alguma maneira são influenciados pelo fator Natureza? Em outras palavras, a Natureza, enquanto fator de produção impõe alguma especificidade a este modelo agrícola? O nosso argumento é que sim e procuraremos desenvolvê-lo no corpo deste trabalho. Palavras-chave: sociedade-natureza; meio ambiente; desenvolvimento agrícola Introdução Os impactos da agricultura no ambiente têm sido abordados de uma perspectiva dos efeitos das práticas agrícolas “convencionais” sobre os recursos naturais: vegetação, recursos hídricos, solo etc; bem como sobre a saúde do trabalhador e dos consumidores dos produtos agrícolas. Procuramos recolocar o problema da Natureza, enquanto especificidade, não como efeito destas atividades, mas, como que as análises sociais sobre o desenvolvimento da agricultura - pensando em progresso técnico, relações sociais de produção, políticas públicas – tratam o fator Natureza como elemento do processo de produção. Ou seja, argumentamos, enquanto hipótese, que a Natureza desempenha um papel ativo no processo de produção agrícola e, deste modo, não pode ser desconsiderada ou colocada em segundo plano, tal como se verifica no pensamento das principais correntes que se preocuparam com a análise do progresso técnico da agricultura brasileira. Não se trata de uma defesa da “Natureza contra o capital”, mas essencialmente de recolocar o debate sobre o desenvolvimento da agricultura a partir de uma perspectiva da sua especificidade frente a outros processos sociais e econômicos. Como veremos a seguir, autores marxistas e não-marxistas, influentes no pensamento social brasileiro, ao analisarem o progresso técnico e as relações sociais de produção na agricultura não atribuem um papel chave à Natureza, argumentando que o progresso técnico tende a superar as barreiras impostas pela Natureza ou pelo fato de que no conjunto da economia este é um fator de pequena relevância. Com aporte em autores que enfatizam a importância desta especificidade, procuraremos desenvolver a hipótese a cima citada, não apenas para dizer que a atividade agrícola é diferente da atividade industrial, argumento que é aceito pela maioria dos autores, mas para afirmar que a análise dos processos produtivos na agricultura requer um tratamento diferenciado daquele utilizado para a análise do 1 desenvolvimento industrial. Isto parece uma obviedade, no entanto um olhar mais cuidadoso para a estrutura do pensamento moderno, em particular àqueles com que propomos dialogar, não demora a revelar uma separação central entre “sociedade” e “natureza”, separação que reflete substancialmente nas análises dos processos sociais agrários; processos estes que têm como base constitutiva a própria Natureza. Para discutir o problema da especificidade da Natureza no desenvolvimento da agricultura e conseqüentemente na análise deste desenvolvimento recorremos à contribuição de duas correntes de pensamentos, a primeira tem como referência José Graziano da Silva e a segunda, cujo objetivo é refletir sobre as especificidades da agricultura, recorremos às contribuições de Susan Mann e Dickinson e David Goodman. Seguindo estes autores o texto foi organizado em dois momentos. Em cada momento será apresentado e discutido como cada autor aborda a Natureza enquanto uma especificidade que deve ser considerada ou não na análise. No limite deste trabalho procuraremos realizar um diálogo entre os autores. Não propomos realizar uma genealogia (cartografia) do debate envolvendo a Natureza enquanto especificidade do processo de produção agrícola, mas recolocar este problema, a partir dos autores citados, para suscitar elementos que contribuam com a análise do progresso técnico e do desenvolvimento da agricultura em um momento em que se verifica a sua rápida expansão em novas fronteiras agrícolas. A subordinação da natureza ao capital: o progresso técnico como superação dos obstáculos Os estudos realizados por José Graziano da Silva(1), que têm por objetivo analisar as transformações ocorridas na agricultura brasileira nas últimas décadas, apontam para mudanças na base técnica em direção a uma “industrialização” do processo produtivo. Neste longo processo de mudança, denominado de “modernização da agricultura”, o progresso técnico desempenha um papel central, cujo objetivo último é subordinar a natureza aos interesses de reprodução do capital, eliminando, assim, as possíveis barreiras que as especificidades da agricultura possam impor à lógica de acumulação capitalista. Nas palavras do autor, “o capital tem no progresso técnico, que nada mais é do que uma das facetas do seu próprio desenvolvimento, a chave de subordinação da terra e, por extensão, da própria natureza” (1991: 22). Mais à frente conclui: “o sentido do progresso técnico na agricultura tem sido justamente o de superar as limitações que o capital encontra para o seu desenvolvimento de modo que as únicas barreiras que lhe restem sejam aquelas colocadas pela própria produção capitalista” (1991: 28). A primeira questão relevante do arcabouço teórico adotado por Graziano da Silva para explicar as transformações ocorridas na agricultura brasileira é que, na agricultura, o capital se reproduz seguindo a mesma lógica dos demais setores da economia, ou seja, as leis gerais da economia se aplicam de forma “indistinta” a todos os setores produtivos. Neste sentido, é importante situar, mesmo que brevemente, a lógica de reprodução do capital, com único objetivo de verificar como se manifestam as implicações das especificidades da produção agrícola e como elas são superadas pelo capital. O ponto central que ajuda a ilustrar a formação das relações de produção capitalista pode ser descrito pela passagem inicial da produção artesanal à manufatura e posteriormente à indústria propriamente dita. Desta passagem iremos resgatar alguns elementos considerados essenciais, a partir dos argumentos de Graziano da Silva, que explicam a dinâmica da lógica 1 Do conjunto da obra de José Graziano da Silva selecionamos aquelas em autor trabalha as relações de produção na agricultura e progresso técnico, o que nos permite extrair elementos para a análise que propomos realizar. 2 da reprodução do capital. Assim, teremos elementos para verificar se a dinâmica da agricultura assemelha-se à dinâmica da indústria, justificando, portanto, o emprego dos mesmos conceitos para explicar processos produtivos que, a princípio, apresentam-se de formas distintas. A passagem da produção artesanal à manufatura e posteriormente à industrialização é acompanhada de dois movimentos que ocorrem de forma concomitante: a divisão social do trabalho e a especialização técnica. A síntese destes dois movimentos é o que permite ao capital ampliar a sua capacidade de extração de trabalho excedente, portanto, gerar mais-valia. A especialização técnica decorre da decomposição do processo produtivo em diferentes etapas, que podem ser realizadas paralelamente, permitindo reduzir o tempo de trabalho empregado em uma determinada atividade e aumentar a sua produtividade, em outras palavras, aumentar a geração de trabalho excedente e com isso elevar a rentabilidade do capital. Este movimento da mudança da base técnica é acompanhado por uma nova divisão do trabalho. Ao contrário da produção artesanal em que um trabalhador participava de todo o processo de produção, na manufatura o trabalho é fracionado e o trabalhador realiza apenas uma atividade. A vantagem deste fracionamento, que torna o trabalho mais complexo, segundo Graziano da Silva (1991: 41), “advém não só da possibilidade de tornar cada uma das etapas mais facilmente mecanizáveis, como também reduzir o tempo que separa as diversas fases de produção”. O que permite ao capital “a redução dos poros da jornada, tornando o trabalho mais denso e possibilitando assim uma redução também do período de produção, isto é, o fornecimento de maior quantidade de mercadorias acabadas no mesmo espaço de tempo”. Em síntese, na lógica da reprodução do capital é essencial considerar a combinação do aumento de produtividade do trabalho com a redução de tempo de produção. Este é um elemento chave ao propósito deste artigo. Na produção industrial a redução do tempo de trabalho é acompanhado da redução do tempo de produção, o que leva a uma quase comum coincidência entre tempo de produção e tempo de trabalho. Como veremos mais à frente, na agricultura, devido aos efeitos da natureza sobre o processo produtivo, o tempo de produção tende a ser maior que o tempo de trabalho. O elemento chave para explicar a coincidência entre tempo de trabalho e tempo de produção, na produção industrial, é a ausência dos efeitos da natureza sobre o processo produtivo, rompendo com as determinações naturais que condicionava o processo de trabalho, “esse rompimento tornou possível ao progresso técnico fazer coincidir, na indústria, o tempo de produção com o tempo de trabalho, de modo que ao reduzir um deles, automaticamente se diminui também o outro” (Graziano da Silva, 1991: 49) (grifo acrescido) . A indústria é o não-lugar da Natureza, permitindo ao capital, na forma de trabalho e meios de produção, organizar o processo produtivo de modo a lhe oferecer melhor rentabilidade aos investimentos iniciais; em outras palavras, permite ao capital desenvolver uma melhor capacidade de geração de trabalho excedente, uma vez que o único trabalho produtivo, neste caso, é o trabalho humano. Na lógica da reprodução do capital, o controle da Natureza ou a sua eliminação do processo produtivo é essencial na medida em que criam-se as condições para que o capital alcance maior eficiência na geração da taxa de lucro. Quanto menor o tempo de retorno do dinheiro adiantado para produzir uma mercadoria, maior é o número de vezes que esse mesmo capital será investido na geração de lucro, elevando o seu potencial de rendimento. Por outro lado, quanto maior for este tempo de retorno, seja decorrente de um maior tempo de produção ou de circulação, menor é o número de vezes que o mesmo capital será investido na produção. Seguindo esta lógica, os setores de produção que terão prioridades de investimentos serão aqueles em que o tempo de produção tende a coincidir com o tempo de trabalho, eliminado o seu tempo de “ociosidade”. Sobre os efeitos da natureza na reprodução do capital, Graziano da Silva considera que: 3 “Quando o tempo ou o período de trabalho não é mais determinado em função das condições naturais, como ocorre quase sempre na indústria, a acumulação tem um efeito duplamente benéfico do ponto de vista capitalista. De um lado, ela aumenta a mais-valia produzida na jornada de trabalho; de outro, aumenta a velocidade de rotação do capital. Ambos os efeitos se conjugam no sentido de elevar a taxa de lucro do capital adiantado no processo produtivo, uma vez que toda redução no tempo de trabalho implica também redução no período de produção” (Graziano da Silva, 1991: 30). Em seguida conclui: “Quanto maior o tempo de não-trabalho tanto menor o período em que se está produzindo mais-valia, dado que é apenas o trabalho vivo que acrescenta valor ao capital adiantado. Em outras palavras, quanto maior for a diferença entre o tempo de produção e o tempo de trabalho efetivo, menor será o período de valorização do capital” (Graziano da Silva, 1991:31). Em síntese, a divisão social do trabalho e a especialização do processo produtivo são dois conceitos chaves que explicam o desenvolvimento do capital nos setores de produção em que o tempo de trabalho tende a se aproximar do tempo de produção, interferindo positivamente na circulação do capital, na geração de trabalho excedente, na formação da taxa de lucro e na composição das classes sociais envolvidas nas relações de produção. Ao contrário da indústria, na agricultura o tempo de produção tende a ser maior que o tempo de trabalho, característica marcada pela influência dos efeitos da Natureza no ciclo da produção. Colocamos esta questão como pano de fundo para o diálogo com Graziano da Silva que, como veremos a seguir, ao referir às especificidades da agricultura como um obstáculo ao desenvolvimento do capital considera que, o progresso técnico, cujo objetivo é subordinar a natureza aos interesses do capital, cria as condições favoráveis para a exploração capitalista do setor agropecuário. O autor formula a seguinte questão: “que transformações ocorrem na agricultura no modo de produção capitalista?”. E responde: “o princípio foi o mesmo: um aprofundamento da divisão social do trabalho” (1996: 2). Queremos ilustrar com esta passagem que, para Graziano da Silva, o tratamento conceitual e analítico atribuído à agricultura será o mesmo que o atribuído a todos os processos de produção da economia capitalista, uma vez que se realizam a partir das mesmas relações sociais de produção. No entanto, considerando que: a) a equalização entre tempo de trabalho e tempo de produção é central para circulação do capital e geração da taxa de lucro; b) a formação das classes sociais decorre de um longo processo de transformação da base técnica cujo objetivo é anular os efeitos da natureza sobre o trabalho produtivo, tal como configurado pela passagem da produção artesanal à manufatura; e c) o setor agropecuário, “ainda”, é fortemente influenciado pela Natureza; procuramos problematizar a capacidade explicativa dos conceitos acima mencionados para explicar fenômenos que não apresentam as mesmas características tal como a indústria e a agricultura. O tema da especificidade da agricultura é abordado por Graziano da Silva, justamente para demonstrar como o desenvolvimento tecnológico promoveu a superação dos obstáculos impostos pela Natureza, permitindo uma franca expansão do capital neste setor. Para este autor, a Natureza se manifesta como obstáculo ao desenvolvimento do capital na agricultura devido a continuidade dos processos biológicos, o que impede o fracionamento das atividades, portanto, a realização paralela das várias partes do ciclo produtivo, tal como ocorre na indústria. Assim, dois fatores essenciais para a reprodução do capital são comprometidos, o primeiro refere-se à divisão do trabalho, o que permite a especialização e o aumento da produtividade, o segundo refere-se à redução do tempo de 4 trabalho e do tempo de produção, condição necessária para elevar a rotação do capital e aumentar a taxa de lucro. Considera o autor, “do ponto de vista do capital, os tempos de não-trabalho são períodos em que ele não está sendo valorizado, em que ele está ‘parado’; representando apenas um prolongamento ‘desnecessário’ do período de produção que se traduz numa menor velocidade do capital” (1999: 27). Assim, “esses tempos de não-trabalho, que não podem ser suprimidos, só fazem aumentar o período em que um dado capital precisa ficar imobilizado naquela atividade. E, quanto menor a velocidade de rotação (...), menor a taxa de lucro obtida por esse determinado capital, mantidos os demais parâmetros constantes” (Graziano da Silva (1999: 28). O progresso técnico na agricultura tem por objetivo superar os obstáculos impostos pela natureza à reprodução do capital, trata-se de subordinar o processo de produção à lógica do capital, em outras palavras, subordinar a Natureza ao capital, liberando o processo de produção das condições naturais dadas(2). Coube à inovação tecnológica criar as condições favoráveis ao desenvolvimento do capitalismo na agricultura e a eliminação dos fatores naturais foi a chave deste processo. A mudança da base técnica, também denominada de modernização da agricultura(3), seguiu quatro caminhos distintos que se complementam: o da indústria química (agrotóxicos e adubos), da mecânica (máquinas e implementos), da genética (melhoramento de plantas) e da tecnologia agronômica. As inovações químicas, mecânicas e inovações agronômicas em muito pouco contribuem para reduzir o tempo de produção. A mecanização do solo e o controle de doenças e plantas invasoras através do uso de insumos químicos ajudam a aumentar a produtividade e reduzir o tempo de trabalho, mas em conseqüência amplia o tempo de não-trabalho, uma vez que estas atividades não reduzem o tempo de produção como um todo, o que irá ocorrer apenas com as inovações biológicas. A manipulação genética permite ao capital produzir variedades mais precoces, reduzindo o ciclo de reprodução das plantas e animais. As inovações biológicas, segundo Graziano da Silva (1999:45), permite ao homem interferir sobre as determinações das forças da natureza, adequando-a sempre que “necessário” aos interesses do capital. Nas palavras do autor: “Uma variedade melhorada não é apenas uma planta ou um animal capaz de gerar um maior volume de produção num menor espaço de tempo ou numa época distinta daquela outra encontrada na natureza. É muito mais do que isso: trata-se de seres ‘fabricados’ pelo capital, que reproduz artificialmente a própria natureza, à sua imagem e semelhança e de acordo com seus interesses” (1999: 45). Seguindo esta lógica, as inovações tecnológicas imprimem um conjunto de mudanças no processo produtivo agrícola de modo a criar as condições mais favoráveis à reprodução do capital. O que permite traçar um paralelo com as mudanças ocorridas na passagem da produção artesanal para a manufatura. O papel das novas tecnologias consiste substituir fatores naturais por fatores criados artificialmente, eliminando, sempre que possível a sua 2 Soto (2002: 209) ao analisar este na obra de Graziano da Silva, considera que, “o progresso técnico é a melhor forma de representar o avanço do capitalismo no campo porque, por um lado, permite a superação da barreira que significa a renda da terra e, por outro, possibilita minimizar os efeitos da natureza sobre as atividades agrícolas. Através do progresso técnico, o comando da produção agrícola passa às mãos do capital”. 3 “A modernização da agricultura consiste em um processo genérico de crescente integração da agricultura no sistema capitalista industrial, especialmente por mudanças tecnológicas e de ruptura das relações de produção arcaicas e do domínio do capital comercial, processo que perpassa várias décadas e se acentua após a década de 60” (Graziano da Silva, 1996: 30) 5 dependência dos condicionantes ambientais. Se a dinâmica da produção industrial expressa as condições mais favoráveis à reprodução do capital, estas mesmas condições deverão ser criadas para a agricultura, o que conduz à idéia de “industrialização da agricultura”. A viabilidade deste processo se dá pelo fato da inovação tecnológica substituir os elementos naturais por elementos criados artificialmente ou, pelo menos, controlados pelo homem. Ocorrem, portanto, dois processos, assim descritos por Graziano da Silva (1996: 3): “um da destruição da economia natural, pela retirada progressiva dos vários componentes que asseguravam a “harmonia” da produção assentada na relação Homem-Natureza (e suas contradições); e o outro, de uma nova síntese, de recomposição de uma outra ‘harmonia’ – também permeada por novas contradições – baseada no conhecimento e controle cada vez maior da Natureza e na possibilidade da reprodução artificial das condições naturais da produção agrícola”. Além dos efeitos de controle sobre a influência da Natureza no processo de produção, e deles decorrentes, as inovações tecnológicas proporcionam uma nova divisão do trabalho na agricultura, promovendo um fracionamento e especialização do trabalho. Como demonstramos anteriormente, estas mudanças são básicas na lógica da reprodução do capital, permitindo um aumento de produtividade associado com redução do tempo de trabalho e produção, elevando, assim, a capacidade de geração de trabalho excedente. A industrialização da agricultura implica, portanto, a “passagem de um sistema de produção artesanal a um sistema em base manufatureira (...). Essa passagem é caracterizada essencialmente pela inversão desempenhada pelo trabalhador que passa do papel ativo e integral do artesão para o de um trabalhador parcial (...) na manufatura, até atingir a passividade do operário industrial que apenas vigia sua máquina” (Graziano da Silva, 1996: 4). As relações sociais acompanham as mudanças provocadas pelas inovações tecnológicas4 na base técnica de produção. Assim como na indústria, tende a predominar na agricultura duas categorias sociais própria das relações capitalista de produção: o “capitalista”, detentor dos meios de produção e o assalariado, a quem lhe vende a força de trabalho. Na perspectiva da análise marxista sobre o desenvolvimento da agricultura todas as relações de produção não propriamente capitalista devem substituídas por relações mediada pelo capital e trabalho, o que levaria a uma substituição do “camponês” pelo “assalariado”, mantendo as formas patronais de produção. Deste modo, não existe obstáculo para a expansão do capital na agricultura, pois o processo produtivo em si, através da reprodução artificial das condições naturais, é capaz de eliminar as adversidades criadas pela natureza. A dependência da chuva é controlada pela irrigação, a fertilidade natural pela adubação química, as “pragas” e doenças pelo uso de insumos. Assim, quanto mais os fatores naturais são controlados pelo processo produtivo, mais a agricultura se transforma em um ramo da indústria, abrindo as possibilidades materiais da intensificação das relações de produção capitalista na agricultura. O que proporciona o predomínio da agricultura patronal na base da produção agropecuária. Neste sentido, o foco da análise é orientado aos resultados do processo de produção e não, necessariamente, ao próprio processo de produção em si. A não valorização das características típicas da 4 Graziano da Silva define a tecnologia como “uma relação social e não um conjunto de ‘coisas’, como poderíamos pensar ao olhar as máquinas, os adubos químicos, as sementes etc. A tecnologia é o conjunto dos conhecimentos aplicados a um determinado processo produtivo. Ora sabemos que, no sistema capitalista, o objetivo da produção é o lucro: portanto, a tecnologia que lhe adequada é aquela que permite gerar mais lucro” (1999: 16). 6 agricultura, como um processo de produção natural, transfere para a análise da questão agrária as relações sociais de produção típicas da produção fabril. Os setores utilizados para exemplificar esta “tendência” de industrialização da agricultura são aqueles que associados aos Complexos Agroindustriais imprimiram uma redução expressiva no tempo de produção, cujo exemplo emblemático é a criação integrada de frangos, mas também outros exemplos poderiam ser citados. Não há dúvida de que as tecnologias empregadas nestes setores tenham tanto elevado a produtividade do trabalho como também reduzido o tempo de produção, no entanto, apesar destas mudanças, a produção de frangos é uma atividade essencialmente dependente de fatores biológicos, seja para reprodução e/ou crescimento das aves. Mas é importante salientar que a agricultura brasileira como um todo, especialmente aquela praticada em áreas abertas (por exemplo, cultivo de grãos), ainda está condicionada aos fatores naturais. O processo produtivo, enquanto seqüência das atividades, muito pouco foi alterado pelas inovações tecnológicas, de modo que, o tempo de produção ainda é largamente superior ao tempo de trabalho. A modernização da agricultura promoveu elevados ganhos de produtividade, através da substituição dos fatores naturais por fatores produzidos industrialmente, no entanto, e isto gostaríamos de frisar, mantem-se ainda como uma atividade dependente de fatores naturais, que determina o seu ritmo e a sua dinâmica. Na medida em que o “sucesso” da eliminação da influência da Natureza sobre o processo de produção agrícola tenha sido, apenas, parcialmente conquistado, e com ela a divisão do trabalho e o ritmo da produção, apenas, parcialmente alterados, diferentemente do que o correu na manufatura, argumenta-se, se é adequado ou produtivo fazer uso das mesmas categorias analíticas para explicar fenômenos que se manifestam de forma distinta. Em outras palavras, qual é eficiência explicativa de conceitos tais como “divisão social do trabalho” e “especialização do processo produtivo”, que, como vimos, foram elaborados a partir das relações de produção propriamente fabris, para explicar o desenvolvimento das relações de produção na agricultura onde estes fenômenos foram parcialmente conquistados? Argumentamos que a Natureza não é um fator ausente do processo de produção agrícola, mesmo se considerarmos todos os avanços tecnológicos no sentido de controlar as influências dos fatores ambientais, Ela cumpre um papel ativo neste processo. Ao contrário da indústria em que todos os fatores de produção são controlados pelo homem, na agricultura este controle não é completo, o que impõe obstáculos à otimização dos recursos empregados dentro da lógica da reprodução do capital. Trata-se de um setor mais complexo, onde a sua especificidade ganha relevância como elemento explicativo. Na análise que Graziano da Silva realiza do progresso técnico na agricultura fica evidente que, seguindo o mesmo caminho da indústria, a Natureza perde o seu poder de explicação. Com o desenvolvimento das forças produtivas, a Natureza vai sendo eliminada até chegar ao ponto ótimo, quando todos os fatores passam ao controle do capital. Deste modo, não tem mais sentido falar de especificidades, pois o progresso técnico tratou de eliminá-las. A agricultura, neste momento, passa a seguir os mesmos “caminhos” e “ritmos” da indústria. O seu condicionamento não está na especificidade que pode ser atribuída ao papel desempenhado pela Natureza, mas nas particularidades das relações sociais de produção. As especificidades como foco de análise O debate sobre a “especificidade da agricultura”, que surgiu no final dos anos 70, com o artigo de Mann e Dickinson “Obstáculos ao desenvolvimento da agricultura capitalista” e foi consolidado no Brasil com as contribuições de Goodman e outros (Das lavouras às biotecnologias) não problematiza a dicotomia sociedade natureza, não é este o seu problema, 7 mas ao colocar em destaque os obstáculos que o capital encontra para se reproduzir na agricultura, devido aos fatores ambientais, ou melhor, ao caráter natural da agricultura, desvela a importância da natureza como componente de análise, o que pode ser compreendido como uma crítica ao modelo acima apresentado. No artigo de Mann e Dickinson (1987), os obstáculos impostos pela Natureza ao desenvolvimento da agricultura capitalista desvelam a existência de uma problemática maior na relação entre o desenvolvimento tecnológico e a prática da agricultura que não pode ser simplificada pela idéia de “subordinação da natureza ao capital”, referindo-se a capacidade do capital (sociedade) em controlar e manipular os efeitos da natureza. Mann e Dickinson (1987) ao tratarem os problemas da diferença entre “tempo de produção e tempo de trabalho” e seus efeitos sobre a geração da taxa de lucro revelam que, “a natureza peculiar do processo produtivo em certas esferas da agricultura é incompatível com as exigências da produção capitalista” (1987: 2). O elemento chave para compreender a intratabilidade da agricultura pelo capital é representado pela incapacidade deste último em eliminar os efeitos das atividades biológicas sobre certas esferas da produção agrícola, obstruindo a redução do tempo de produção. Referindo-se a Marx, os autores explicam que o “tempo de produção consiste em duas partes: um período em que o trabalho é realmente aplicado na produção e um segundo, durante o qual a mercadoria ‘inacabada’ é ‘abandonada à influências de processo naturais’, sem se submeter simultaneamente ao processo de trabalho” (1987: 15). Se considerarmos, a partir da teoria de valor de Marx, que somente o trabalho vivo cria valor, as mercadorias inacabadas sujeitas a estes intervalos não estão gerando valor e nem mais-valia. Para o capital este é tempo improdutivo, que mobiliza capital, mas não gera trabalho excedente. Assim, “quanto mais coincidirem o tempo de produção e o tempo de trabalho, maiores serão a produtividade e auto-expansão do capital num dado espaço de tempo. Em conseqüência a produção capitalista esforça-se para reduzir não somente o tempo necessário para a produção de uma mercadoria, mas também o ‘excesso’ de tempo de produção sobre o tempo de trabalho” (Mann e Dickinson, 1987: 16). O excesso de tempo de produção em relação ao tempo de trabalho reflete no uso ineficiente do capital constante, o que tem implicação negativa sobre a geração da taxa de lucro. O processo de trabalho na agricultura ao envolver fatores biológicos não controlados pelos meios de produção, tal como ocorre a produção manufatureira, impõe obstáculo à lógica de reprodução do capital. Em que pesem as especificidades da produção agrícola, as mesmas não podem ser analisadas fora do contexto da reprodução do capital, especialmente quando se trata das inovações tecnológicas; em outras palavras, como se estabelece a relação entre agricultura e capital, uma vez que a lógica de reprodução da primeira não se enquadra na lógica da reprodução do segundo, em razão das especificidades impostas pela natureza. O artigo de Mann e Dickinson (1987), acima analisado, não entra nesta problemática, apenas situa nas fases do ciclo produtivo como que os fatores biológicos criam obstáculos para o capital se apropriar da agricultura como um modo de produção semelhante aos demais. Este é o objetivo do trabalho de Goodman et alli (1990), apresentar um modelo teórico para analisar a relação agricultura indústria a partir das especificidades criadas pelos fatores biológicos. O fator que motiva a proposição de um novo modelo teórico para a análise de agricultura é a “incapacidade histórica do capital industrial em transformar o sistema agroalimentício, da produção agrícola até o consumo final de alimento, como um todo unificado” (GOODMAN et alli, 1990). A inovação tecnológica na agricultura é limitada pela presença de fatores biológicos que atuam no sistema de produção, ao contrário da indústria 8 onde estes fatores não apresentam relevância na determinação da dinâmica produtiva. O sistema industrial exerce controle sobre todas as etapas do processo produtivo: a natureza na forma de matéria-prima pode ser adaptada a velocidade das máquinas, que define o ritmo da produção; não existem fatores externos que, a princípio, não possam ser controlados pelos meios de produção; as atividades são divididas com o objetivo de reduzir o tempo de produção e elevar a produtividade do trabalho; enfim, os efeitos da natureza não se aplicam ao sistema industrial. Neste sentido, pode-se falar de uma transformação completa do sistema produtivo. Em contraste a este processo, na agricultura, a natureza não pode ser transformada em insumo controlado pelo capital. Não existem condições materiais para transformar insumos em alimentos sem a mediação dos processos biológicos. Ao contrário da indústria onde a natureza está subordinada ao capital, na agricultura é o capital que fica subordinado à natureza. Sendo assim, o processo de “industrialização da agricultura”, segundo Goodman et all (1990: 1), “foi determinado pelas limitações estruturais do processo de produção agrícola, representadas pela natureza enquanto conversão biológica de energia, enquanto tempo biológico no crescimento das plantas e na gestação animal, e enquanto espaço nas atividades rurais baseadas na terra. Incapazes de remover estas limitações diretamente através da criação de um processo de produção unificado, os capitalistas industriais reagiram adaptando-se às especificidades da natureza na produção agrícola”. O que está em jogo não é apenas uma readequação do uso dos conceitos para a análise das inovações tecnológicas na agricultura, mas a recolocação do debate sobre as condições de possibilidades de inovações em um setor em que a natureza desempenha um “papel ativo”, um papel de “mediação” entre capital industrial e agricultura, cuja força o capital não conseguiu eliminar. As mudanças tecnológicas na agricultura são parciais e descontínuas, porém, como afirmam os autores, permanentes. Na impossibilidade de uma transformação da totalidade do sistema agrícola de produção, historicamente o capital industrial vem apropriando partes da atividade agrícola para transformá-la em fatores de produção industrial e posteriormente reincorporá-los à agricultura na forma de insumos ou meios de produção. A questão chave em torno deste debate é a presença dos fatores naturais como parte constitutiva do sistema de produção; assim, ao contrário do que se esperava, não foi a agricultura que se adaptou à indústria, mas, a indústria que se adaptou à agricultura, tendo a natureza como mediador desta relação. Nas palavras de Goodman et all (1990: 162) “os limites impostos pela natureza ainda impedem efetivamente a organização industrial direta e unificada do processo de produção rural. Os equipamentos extremamente complexos necessário para substituir até o mais simples trabalho, a descontinuidade do seu uso devido ao caráter sazonal da produção e os riscos de condições climáticas adversas são, todos, testemunhas sobre o modo pelo qual a indústria está se adaptando à natureza, ao invés de subordiná-la”. Os autores que abordam o tema da “especificidade” da agricultura, recolocam a relação tecnologia-natureza na análise do progresso tecnológico sem superar a relação assimétrica, apenas inverte o sentido da dominação, agora é a natureza que anula a força do capital, mas mantém natureza e capital em pólos opostos e separados por um processo de purificação, em que, natureza é o local dos não-humanos enquanto que capital, tecnologia, conhecimento é o local dos humanos. Mesmo sem superar a relação assimétrica entre sociedade-natureza, esta abordagem coloca em relevo a importância da natureza como elemento de análise de processo sociais, ao mesmo tempo que disponibiliza os elementos necessários para refletir sobre a relação simétrica. A reprodução do capital não anula a força da natureza, pelo contrário, cria arranjos que melhor disponibilize o seu uso, por outro lado, a natureza reflete a ação do capital, através 9 do desmatamento, melhoramento de plantas, uso de insumo etc. A natureza também é uma construção social. Em continuidade às contribuições da “especificidade da agricultura” propõe-se, no item seguinte, problematizar a idéia da mudança da base técnica da agricultura procurando explorar a relação simétrica entre sociedade – natureza. Tecnologia e natureza: possibilidades de uma outra abordagem Como foi demonstrado anteriormente, os estudos sobre o desenvolvimento da agricultura tendem a afirmar que o progresso técnico é o mecanismo utilizado pelo capital para eliminar os efeitos da natureza no processo produtivo, eliminando assim as possíveis barreiras que estes possam impor à lógica do capital. Quanto mais avançam as forças produtivas mais se ausentam as forças da natureza. A fertilização química do solo substitui a fertilidade natural; o melhoramento genético substitui a seleção natural; a irrigação é a substituição das chuvas; o uso de agrotóxico é a substituição do controle natural; a mecanização é a substituição da força de trabalho manual. A “substituição” pressupõe a troca de um pelo outro e não a “produção” de um intermediário. Apesar das inovações tecnológicas, a agricultura ainda é uma atividade que se realiza por intermédio de fatores biológicos. Em todas as etapas do processo produtivo, observa-se, assim, uma recombinação entre os fatores biológicos e tecnológicos, algo novo que não é nem natureza no seu estado puro, nem sociedade, também no seu estado puro. O que é importante identificar não são os estados puros de sociedade – natureza, o nem o resultado final da sua composição, mas a combinação de sociedade-natureza que dá origem ao seu “híbrido”. A tradução dos híbridos é outra dimensão do princípio de simetria generalizada. Latour (2001) emprega o conceito de “referência circulante” para desvelar a “transformação sofrida pelo solo e vertida em palavras”, em um estudo sobre pedologia na Amazônia. Diz o autor: “o conhecimento, é de crer, não reside no confronto direto da mente com o objeto, assim como a referência não designa uma coisa por meio de uma sentença verificada por meio dessa coisa. Ao contrário, a cada etapa reconhecemos um operador comum, que pertence à matéria em um dos extremos e à forma no outro; entre uma etapa e a seguinte, há um hiato que nenhuma semelhança pode preencher (...). Cada etapa é matéria para aquilo que a sucede e forma para aquilo que a precede – cada qual separada da outra por um hiato correspondente à distância entre o que conta como palavras e o que conta como coisas” (Ibidem, 91). O conceito de referência circulante oferece dois elementos chave para problematizar as análises da inovação tecnológica na agricultura que apontam para uma tendência de superação ou eliminação dos processos biológicos dos sistemas de produção, tal como proposto por Graziano da Silva. O primeiro refere-se ao questionamento da separação entre matéria e forma ou conhecimento e objeto, ao contrário, o que se verifica é um movimento em que matéria e forma estão em permanente recombinação gerando uma nova matéria, que serve de forma para o deslocamento seguinte; daqui deriva o segundo elemento, a zona intermediária que liga os dois pólos – matéria e forma ou tecnologia e conhecimento – é densamente povoada por novos híbridos resultantes dos deslocamentos que os operadores do conhecimento induzem tanto nos instrumentos quanto nos objetos. O que antes era um lugar vazio, pois predominavam dois pólos purificados agora temos uma zona intermediária carregada de elementos híbridos, derivados da permanente recombinação de sociedadenatureza. 10 Como foi demonstrado anteriormente, na a abordagem da especificidade da agricultura, a inovação tecnológica não produz o efeito de eliminação dos fatores naturais na sua totalidade, uma vez que apenas uma parte do processo produtivo é substituída por máquinas e insumos modernos. Apesar da ênfase dada à especificidade dos fatores biológicos, a materialidade da natureza se manifesta nos processos de produção onde a materialidade das tecnologias não se impôs. É como se a natureza se intercalasse com a tecnologia, materialidades distintas que se manifestam em momentos e espaços também distintos. Com um olhar cuidadoso para as inovações técnicas na agricultura pode-se observar que a forma da tecnologia não anula a materialidade da natureza. Um exemplo bastante elucidador é o emprego de adubos químicos para a correção dos solos. A disponibilização dos elementos minerais às plantas depende da ação biológica de microorganismos presentes no solo. Neste caso, a tecnologia perde a sua capacidade de resposta quando a natureza deixa de exercer a atividade que transforma minerais em solúveis, que é a forma de nutrientes disponíveis para as plantas. Ao contrário do que designa a ciência agronômica convencional, o solo desempenha um papel ativo no processo produtivo. Quando os minerais químicos entram em contato com o solo, ou seja, quando o conhecimento se aproxima da natureza, ocorre uma mudança tanto da natureza do solo quando da natureza da técnica, ambos perdem a sua pureza original para dar forma a uma nova materialidade, é um processo que se desencadeia até alcançar a outra fase do ciclo produtivo. A densidade do processo não se encontra nos seus extremos, mas na sua zona intermediária, quando a materialidade da natureza se confronta com a forma do conhecimento, gerando híbridos que não é nem natureza na sua materialidade original, nem conhecimento na forma inicial. Este mesmo princípio se desencadeia nas demais linhas de inovações tecnológicas na agricultura. Talvez o exemplo mais emblemático encontre-se no melhoramento genético de plantas e animais. A produção de material híbrido e transgênicos é a pura síntese de um “híbrido” entre conhecimento e natureza. Ao contrário da promessa da modernidade, muito bem expressada na análise de Graziano da Silva, a natureza tende a se reafirmar na sua hibridação com a tecnologia, não estamos falando tal como os “ecologistas” de uma natureza “pura” tal como foi criada pela modernidade, mas uma natureza híbrida, que resulta dos deslocamentos criados na sua relação com a sociedade, ou com o conhecimento. Latour (1994: 99) ao referir-se à divisão entre sociedade e natureza diz que, “apenas nós diferenciamos de forma absoluta entre a natureza e a cultura, entre a ciência e sociedade, enquanto que todos os outros sejam eles chineses ou ameríndios, zandés ou barouyas, não podem separar de fato aquilo que é conhecimento daquilo que é sociedade, o que é signo do que é coisa, o que vem da natureza como realmente ela é daquilo que suas culturas requerem”. A análise do desenvolvimento da agricultura desvela que as inovações tecnológicas em vez de promover uma separação entre o que é conhecimento e o que é natureza, tem como produto algo que não é nem natureza na sua forma pura nem sociedade, mas um híbrido que torna insustentável a idéia de modernidade. Neste sentido o que distingue uma agricultura “tradicional” ou “natural” de uma agricultura “moderna” ou “convencional” não é a substituição de fatores naturais por fatores modernos ou por insumos, anulando os efeitos da natureza sobre o processo de produção. Mas a capacidade de cada tipo de agricultura multiplicar os seus híbridos. 11 Bibliografia GOODMAN, David et al. Da lavoura às biotecnologias: agricultura e indústria no sistema internacional. Rio de Janeiro: Campus, 1990. GOODMAN, David. Agro-food studies in the ‘Age of Ecology’: nature, corporeality, biopolitcs. Sociologia Ruralis. v. 39, n.1, p.17-38, 1999. GRAZIANO DA SILVA, José. Complexos agroindustriais e outros complexos rurais. Reforma Agrária. v.21, n.3, p. 5-34, 1991. GRAZIANO DA SILVA, José. A nova dinâmica da agricultura brasileira. Campinas: UNICAMP.IE, 1996. GRAZIANO DA SILVA, José. Tecnologia e agricultura familiar. Porto Alegre, Ed. Universidade/UFRGS, 1999. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora. Bauru, SP: EDUSC, 2001. MANN, Susan A., DICKINSON, James M. Obstáculos ao desenvolvimento da agricultura capitalista. Literatura Econômica. Rio de Janeiro: IPEA, v. 9, n. 1, p. 7-26, fev. 1987. SOTO, W.H.G. A produção do conhecimento sobre o “mundo rural” no Brasil: as contribuições de José de Souza Martins e José Graziano da Silva. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2002.