Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
DESAFIOS DISCURSIVOS PARA SE VER TELEJORNAIS: uma proposta
metodológica de análise da estrutura, da apresentação e das narrativas
dos programas televisuais de informação
DISCURSIVE CHALLENGES TO SEE TV NEWSCASTS: a methodology of
analysis of the structure, the presentation and the narratives of the
televisual program information
1
2
André Luiz Silva / Rafael Magalhães Angrisano
Resumo: Sabendo que os telejornais são um gênero discursivamente complexo e
que há inúmeras maneiras de analisá-lo, buscamos propor um esquema
metodológico-analítico baseado em conceitos sociais e discursivos, de modo a
contemplar aspectos-chave do heterogêneo conteúdo noticioso da TV. Para isso,
escolhemos a semiótica peirceana representada por Verón (2001) e Jost (1999) em
diálogo com a análise do discurso de Charaudeau (2008), dada a proximidade
entre essas teorias. Dessa relação, pudemos perceber que ambas articulam a
linguística e a sociologia; Verón, de um lado, permite-nos pensar certas categorias
que facilitam a análise de imagens, sobretudo em seu caráter de gestualidade
como forma de enunciação, além dos aspectos icônicos, indiciais e simbólicos, dos
quais nos apropriamos da tipologia de imagens televisuais criada por Jost (1999);
Charaudeau, do outro lado, possui um viés semiolinguístico, mais utilizado para a
análise da dimensão verbal-textual do discurso.
Palavra chave: Acontecimento. Telejornais. Discurso. Imagem. Narrativa.
Abstract: Knowing that the TV newscasts are a discursively complex gender and
that there are numerous ways to analyze it, we seek to propose a methodological
and analytical scheme based on social and discursive concepts, in order to include
key aspects of heterogeneous news content of the TV. For this, we choose the
Peirce’s semiotics represented by Verón (2001) and Jost (1999) in dialogue with
the Charaudeau’s (2008) discourse analysis, given the proximity of these theories.
In this relationship, it was possible to realize that both articulates linguistic and
sociology. Verón, on the one hand, allows us to think certain categories that
facilitate image analysis, especially in his character of gestures as a way of
enunciation, in addition to the iconic, indexical and symbolic aspects of which
appropriate the typology of televisual images created by Jost (1999). Charaudeau
on the other hand, has a ‘semiolinguistic’ bias, used for the analysis of ‘verbaltextual’ dimension of discourse.
Keywords: Event. TV newscasts. Discourse. Image. Narrative.
Introdução
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A televisão firmou-se como a principal mídia consumida no Brasil há algumas décadas.
Apesar do avanço veloz da cultura digital, a pequena tela doméstica, com conteúdos dos mais
variados gêneros, continua sendo a referência de realidade dos brasileiros, como aponta uma
pesquisa realizada pelo governo federal em janeiro (BRASIL, 2015).
Por veicular conteúdos heterogêneos, há várias tradições de pesquisa e análise da TV entre
as comunidades acadêmicas. O conteúdo noticioso é o de maior interesse para este trabalho, pois,
para nós, os media televisivos vêm seguindo a lógica indicial apontada por Verón (2001), a saber:
as narrativas midiáticas de informação a partir de operações discursivas metonímicas tentam
confundir o discurso com o próprio “real”[3]. Optamos por uma metodologia para análise de
telejornais com base em estudos discursivos e de imagem consagrados no Brasil. O intuito foi
propormos algumas chaves de leitura para o conteúdo noticioso da TV. Aqui, tentamos fazer
dialogar alguns conceitos sociais e discursivos de grande sofisticação teórica, ao mesmo tempo em
que apontamos algumas categorias de análise que, a princípio, poderão ser aplicadas aos mais
diversos telejornais.
1 Os acontecimentos a mercê da midiatização
Antes de iniciarmos qualquer teorização, gostaríamos de ressaltar que os telejornais são um
gênero
discursivamente
complexo
(DAVID-SILVA;
COURA-SOBRINHO,
2012),
com
possibilidades de leituras multissemióticas, em razão da presença de textos escrito/falado, imagens
em movimento e estáticas, som etc. Além disso, Charaudeau (2010, p. 227) lembra o sem-número
de formas integradas aos telejornais: “anúncios, reportagens, resultados de pesquisas de
investigações, entrevistas, minidebates, análises de especialistas etc.” Duarte (2004) recorda ainda
o fato de haver uma enorme abrangência temática em relação aos acontecimentos noticiados
(culturais, políticos, econômicos etc.), bem como a dimensão (local, regional, nacional etc.). Tudo
isso, mostra-nos o quão diversa são as partes cuja união (intencional, arbitrária, encenada,
direcionada para um fim) resulta nos telejornais como um produto construído discursivamente.
Dando início à nossa discussão, tencionamos refletir, de modo sucinto, sobre as ideias de
linguagem, acontecimento (o que poderíamos chamar de “matéria bruta” que alimenta os media) e
midiatização.
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A linguagem opera como um fio que conduz o pensamento até o mundo. Como afirma o
fundador do método semiolinguístico, Patrick Charaudeau (2008), “a linguagem é quem permite ao
homem pensar e agir, pois não há ação sem pensamento, nem pensamento sem linguagem.”
O acontecimento, segundo Deleuze (2007), é, em sua essência, algo singular, de caráter
inaugural, impessoal, aconceitual, instantâneo e neutro. O acontecimento marca o início processual,
o fim de uma época e o começo de outra. É preciso realçar a indiferença do acontecimento em
relação ao coletivo e ao individual, suas determinações exteriores e suas relações culturais que
determinam sentidos de possíveis. As pessoas envolvidas em determinado acontecimento o captam
de modos distintos, em níveis de efetuação variáveis. “O acontecimento não é o que acontece
(acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera. Segundo as três
determinações precedentes, ele é o que deve ser compreendido, o que deve ser querido, o que deve
ser representado no que acontece.” (DELEUZE, 2007, p. 152).
Quéré (2005), pesquisador do acontecimento e herdeiro de alguns pontos de vista de
Deleuze, acredita que, descrevendo e narrando os acontecimentos, os indivíduos tentam normalizálos, anulando sua natureza acontecimental (événementiel), de devir, comparando-os e associandoos a outros acontecimentos. Dessa forma, o acontecimento em seu nível ontológico é irrecuperável,
inalcançável, a sua verdade só pode ser construída por meio linguístico. O acontecimento em seu
nível a posteriori é o acontecimento narrado ou construído, dependendo das circunstâncias – este é
o acontecimento midiático.
Para Mouillaud (2002), o acontecimento é uma modalidade transparente da informação;
objeto do signo, mundo do qual se supõe o “real”. “Opomos o acontecimento como algo que
antecede cronologicamente a informação. De um lado o conteúdo material e no oposto o produto
difundido e formatado.” (MOUILLAUD, 2002, p. 53).
O “real” da sociedade, mundo empírico no qual se encontram os fenômenos, a
materialidade em que os acontecimentos se desdobram e reverberam, necessita ser formatado por
operações de nomeação e qualificação, de maneira que se construam universos discursivos em
comum entre os seres humanos, bem como permitindo a comunicação.
Há poucas décadas, as sociedades pós-industriais têm experimentado um fenômeno que
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vem sendo chamado por muitos pesquisadores da Comunicação de “midiatização”. Trata-se de um
processo no qual os media e suas narrativas se tornaram a forma de linguagem e experimentação
dominante do mundo. Nos termos de Braga (2006), a processualidade interacional de referência.
Os acontecimentos do mundo são mediados por aparatos tecnológicos e conglomearados midiáticoeconômicos, de modo a se confundirem com o próprio mundo.
Parece apropriado conceituarmos o que vem sendo chamado de midiatização em oposição
às mediações simbólicas. Sodré (2002) realiza uma rápida distinção entre mediação e midiatização:
É preciso esclarecer o alcance do termo “midiatização”, devido à sua diferença com
“mediação”, que, por sua vez, distingue-se sutilmente de “interação”, um dos níveis
operativos do processo mediador. Com efeito, toda e qualquer cultura implica
mediações simbólicas, que são linguagem, trabalho, leis, artes, etc. Está presente na
palavra mediação o significado da ação de fazer ponte ou fazer comunicarem-se duas
partes [...] já midiatização é uma ordem de mediações socialmente realizadas no
sentido da comunicação entendida como processo informacional, a reboque de
organizações empresariais e com ênfase num tipo particular de interação – a que
poderíamos chamar tecno-interação – caracterizada por uma espécie de prótese
tecnológica e mercadológica da realidade sensível denominada médium. (SODRÉ,
2002, p. 20).
Eliseo Verón (2001) com base na escola de Peirce[4], caracteriza o processo de
midiatização das sociedades pós-industriais como uma articulação de índices nas narrativas
midiáticas.
Temos duas ordens: o “real” da sociedade e a representação. O que se vê na televisão é um
espelho mais ou menos deformado no qual a sociedade se reflete e se comunica, um jogo de
retorno e identificação, que não apenas tenta reproduzir o “real”, mas também produzir sentidos. A
TV caracterizou-se historicamente por privilegiar a linguagem direta em sua apropriação do “real”
pelo discurso. A ordem do indicial utiliza de operações metonímicas, no intuito de se confundir
com a realidade social. O objetivo é se expressar na dimensão em nível do contato. Registros
microscópicos do indicial estão presentes na TV atual, até mesmo por meio de gestos e expressões
do rosto de apresentadores. Trata-se de uma migração do simbólico (linguagem) para o indicial
(gesto), na qual ocorre uma valorização crescente da enunciação sobre o enunciado (VERÓN,
2001).
A ordem dos fenômenos do índice é a escritura em voga pela qual os media priorizam suas
representações. O índice implica sempre um vínculo existencial para se expressar; é a ordem dos
fenômenos metonímicos em que predominam as relações. Os efeitos de presença, metonímia e
simbolismo estão em todas as imagens, assim como existem iconicidade e indicialidade na
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linguagem verbal. Assim, os efeitos de dentro-fora, aqui-ali, frente-atrás são indiciais. Corpo,
espaço e objetos funcionam nessa dimensão do contato (VERÓN, 2001).
Mesmo que inconscientemente, os grandes conglomerados midiáticos utilizam da
linguagem direta, indicial e denotativa dos meios televisuais. A imagem técnica televisual blefa por
meio de sua aparência de espelho e assim serve como mecânica de construção dos acontecimentos,
que, apesar de se parecerem muito com o mundo, são narrativas do mundo. O que ocorre é que toda
narrativa é uma operação discursiva que precisa de um narrador, de um ponto de vista, de uma
perspectiva carregada de intencionalidades que, consequentemente, faz sucumbir a ilusão da
realidade especular.
As ideias expostas nos permite justificar a escolha de operadores de análise relacionados à
análise do discurso charaudiana, que pressupõe um cenário de linguagem e um cenário social, ao
discurso, que estrutura sentidos e estabelece contratos, e à semiótica peirceana, representada aqui
por Jost (1999) e Verón (2001).
2 Uma proposta de análise dos telejornais
Na tentativa de expormos algumas operações possíveis da nossa proposta e refletirmos
sobre um modelo específico para analisar telejornais, utilizamos como base conceitualmetodológica operadores de análise calcados em conceitos semióticos e no método
semiolinguístico de Charaudeau (2008), que prevê tanto a análise das estratégias enunciativas (o
espaço interno do discurso), quanto as situações de comunicação da produção (o espaço externo do
discurso).
Nesse sentido, optamos por construir um “design de pesquisa”[5], conforme a proposta
metodológica de Jost (1999), a qual contempla três divisões: (1) apresentação dos telejornais, (2) o
assunto (isto é, a narrativa de um acontecimento) e (3) estruturação dos telejornais. A primeira
aborda abertura, estúdio, manchetes, sumário (ou escalada), e apresentador. A segunda diz respeito
à pluralidade de fontes, à descontextualização do acontecimento, às informações suscitadas pelas
imagens, ao verbal como testemunho e ao modo como se estrutura o assunto. A terceira contempla
hierarquização dos títulos e matérias, aproximação temática das informações, grade de
programação da emissora e posição do noticiário na grade.
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Especificamente para esta proposta, foi necessário realizar adaptações à proposta de Jost
(1999), articulando outros conceitos. Dessa forma, o modelo do semioticista francês ganha novo
contorno, novos operadores analíticos, sem deixar, todavia, perecer sua essência.
Dividimos nosso “design de pesquisa” de maneira a contemplar a estrutura e as estratégias
de construção de sentido da apresentação, estruturação e narrativas dos telejornais. Descrevemos,
pormenorizadamente, a apresentação e o assunto (narrativas). A estrutura diz respeito a aspectos
mais quantitativos, os quais, apesar de igualmente importantes, são autoexplicativos pelo seu
caráter mensurável.
FIGURA 1 – “Design de pesquisa”
Fonte: ELABORADO PELOS AUTORES.
2.1 Apresentação
2.1.1 Vinhetas
As vinhetas serão observadas a partir do sincretismo entre os aspectos visuais, sonoros e
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textuais. Esse recurso semiótico-discursivo está presente na abertura e, não raramente, entre um
bloco e outro dos telejornais, como “iscas” para o telespectador. Sobretudo em sua faceta visual, a
semiótica peirceana será de grande valia como perspectiva metodológica.
Para David-Silva (2005), a vinheta, como elemento visual, sonoro e textual, é uma
importante “estratégia de contato” entre as instâncias de produção e recepção. Sua repetição diária
tende a criar uma identificação com o telespectador. “A vinheta é a marca do telejornal, exercendo
a função fática, chamando o telespectador para assistir ao programa. Normalmente é composta de
imagem trabalhada com efeitos especiais e música característica.” (p. 67).
Segundo Schiavoni (2008), a evolução da vinheta[6] acompanhou a própria evolução da
televisão. Apesar de ser temporalmente efêmera (dura de 5 a 10 segundos), a vinheta tem a função,
diz a autora, “de seduzir e conquistar o consumidor” (p. 19), como as embalagens de produtos,
usando, para isso, de estratégias previamente pensadas. “[...] a vinheta televisiva apresenta a marca
do programa, construída muitas vezes com base nos logotipos ou logomarcas de um determinado
produto (telejornal) ou de uma empresa (emissora)” (p. 19).
Metaforicamente, Porcello (2006) compara a vinheta, sobretudo a de abertura dos
telejornais, à sirene da fábrica convocando os operários ao trabalho, ou, no caso da TV, os
telespectadores a acompanhar “as principais notícias do dia”. Ademais, o autor ressalta o caráter de
identificação suscitado pela vinheta: “[...] o propósito é o de dar uma identidade ao produto [...] Se
a temática for séria, a composição visual será em tons sóbrios e a música mais pesada.”
(PORCELLO, 2006, p. 79-80).
Tomamos como base para a proposta metodológica, a divisão proposta por Schiavoni
(2008) em relação aos tipos de vinhetas presentes em uma emissão televisiva, nos telejornais ou em
outras quaisquer. 1) vinhetas de abertura – utiliza no início do programa para apresentá-lo; 2)
vinhetas de passagens – são aquelas entre um bloco e outro do programa, geralmente, são recortes
da vinheta de abertura; 3) vinhetas de encerramento – marca o fim do programa, mas é pouco
utilizada normalmente; e 4) vinhetas institucionais – desenvolvidas a partir do logotipo das
emissoras.
2.1.2 Escalada
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Juntamente com a vinheta inicial, a escalada compõe a abertura dos telejornais. Semelhante
a um cardápio, em que há descritos os pratos do dia ao cliente, a escalada (ou sumário,
sumarização) apresenta aos telespectadores o que há, em termos de acontecimentos transformados
em notícias, para o dia, conforme metaforiza Charaudeau (2010).
De acordo com David-Silva (2005), a escalada é fruto de uma seleção entre todas as
notícias do dia; “as mais importantes” são realçadas nesse primeiro contato, a fim de convocar e
prender o telespectador até o fim da emissão. Ademais, ela diz ser um pacto, uma promessa entre
instância de produção e instância de recepção a respeito do conteúdo a ser exibido pelo noticiário.
Embora haja certa práxis comum entre os telejornais em relação à escalada, Jost (1999) crê
numa variação “tonal” de noticiário para noticiário e de apresentador para apresentador. Ele ainda
acredita haver uma redundância pedagógica em boa parte das chamadas da escalada, em que a
informação é mediada visual, oral e textualmente para o telespectador.
2.1.3 Dispositivos cênicos
Por dispositivos cênicos, nomeamos os diversos elementos presentes no espaço cênico dos
telejornais, ou aqueles captados por uma máquina de registro (no caso a câmera) – especificamente,
âncora, comentaristas e cenário físico.
2.1.3.1 Âncora
Se se pesquisar nos dicionários Houaiss (2009) e Aurélio (2009), a palavra “âncora” tem
várias acepções, entre elas: “[...] 4 TV profissional de jornalismo televisivo [...] centraliza a
emissão nos noticiários, cuidando pessoalmente ou participando da elaboração do texto das
informações apresentando-as, freq. com comentários opinativos [...]” (HOUAISS; VILLAR, 2009,
p. 128). Esse sentido, apesar das controvérsias acerca da opinião (se deve haver ou não), é, de certa
forma, ponto pacífico e não apresenta algo novo.
Segundo Ignacio Ramonet (1995)[7], a segunda fase do telejornalismo, iniciada após o
surgimento dos satélites e do videoteipe, tornou os noticiários mais dinâmicos e ágeis. Esse
modelo, para o autor, criou o “âncora-vedete”: “[...] ele [...] confere unidade ao programa, pela sua
presença constante e familiar, e credibiliza a informação, pois parece sentado ao mesmo nível do
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telespectador e olha-o nos olhos” (p. 171). Contudo, segundo Ramonet, a onipresença e
circularidade de informação atualmente fez o “âncora-vedete” perder espaço como figura principal
dos telejornais.
Verón (1983), citado por David-Silva (2005), propõe outra divisão para se pensar o âncora.
Segundo o autor, até a década de 1960, houve o chamado “apresentador-ventríloquo”: “o corpo do
apresentador está lá, mas a dimensão do contato é reduzida ao olhar. A gestualidade é anulada,
postura rígida do corpo, feição em ‘grau zero’” (p. 96). Já o âncora moderno estabelece um elo com
o telespectador; ele se coloca em uma relação de olhos nos olhos, dando credibilidade à notícia.
Para Charaudeau (2010, p. 229), por sua vez, dentro do conjunto de encenação dos
telejornais, o “papel principal é desempenhado pelo âncora, embora com uma importância
variável”. Essa variação se dá em função da própria emissão televisiva e as estratégias utilizadas
por ela para informar/captar seu telespectador. Sobre a função do âncora nos telejornais o autor
ainda destaca a noção de “contato”:
O contato entre o estúdio e o telespectador se estabelece desde a abertura do jornal,
por saudações do apresentador [...] instalado em seu lugar [...] em posição frontal, e
anuncia o sumário. Depois, durante todo o desenrolar do jornal, ele [...] [aparecerá
como] enunciador personalizado (um eu) [...] como se estivesse falando diretamente
a cada indivíduo da coletividade dos telespectadores: ora participando sua própria
emoção com relação aos acontecimentos dramáticos do mundo (enunciação
‘elocutiva’), ora solicitando sua atenção ou seu interesse, e mesmo interpelando-o
(enunciação ‘alocutiva’), tudo isso com auxílio de movimentos do rosto (mesmo os
mais discretos), de certos tons de voz, da escolha de determinadas palavras. [...] o
discurso personalizado é um dos traços desse gênero. (CHARAUDEAU, 2010, p.
229, grifos do autor).
Nossa metodologia propõe trabalhar com três categorias, a fim de tentar perceber a
importância dos apresentadores para seus respectivos: 1) capital visual, isto é, o tempo de
exposição do âncora em relação ao tempo total da emissão; 2) os planos fílmicos utilizados para
expor o âncora; e 3) capital de voz, ou seja, o tempo de audição do âncora durante os telejornais.
2.1.3.2 Comentarista
O capital visual, o capital de voz e os planos fílmicos vão servir, do mesmo modo, para
analisarmos a presença e a participação dos comentaristas nos telejornais. Ademais, o intuito é usar
a tipologia de classificação de gêneros de Charaudeau (2010) para localizar o comentário-análise
de jornalistas especializados (pertencentes à instância interna dos media) e a análise de
especialistas externos. Tal análise será importante ainda, pois, a partir dela, poderemos perceber
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como os telejornais vão “comentar o acontecimento” ou “provocar o acontecimento” durante sua
encenação discursiva.
2.1.3.3 Cenário
Soulages (1999) conceitua o cenário dos telejornais um “espaço nodal”, ao alternar
imagens externas (do mundo “real”) e internas (do estúdio). Segundo o autor, dessa forma,
podemos conceber três tipos de espaços cênicos para os telejornais, os quais consideramos em
nossa metodologia:
a) autorreferencial: diz respeito à cenografia do próprio estúdio, o apresentador em
primeiro plano, a redação em segundo plano, com seus profissionais em ritmo de trabalho e
computadores ligados (semelhante, metaforicamente, à cozinha de um restaurante) etc., mostrando
o quão “a edição de um jornal é complexa, ativa e tecnologicamente avançada, dando maior
credibilidade e autenticidade para a função” (p. 45);
b) decorativo: aqui não há a relação entre primeiro e segundo planos, pois o segundo plano
é meramente figurativo; a atenção deve estar no âncora e na informação lida/dita por ele, não
permitindo a distração do público.
c) modular: nesse espaço, dá-se ênfase ao espaço do estúdio por meio de tomadas em
planos abertos, emoldurando cenário e apresentador no mesmo quadro fílmico.
Ademais, a ideia é lançar mão de tais ideias sobre a análise do cenário à luz da semiótica
peirceana
(especialmente
os
pontos
de
vista
qualitativo-icônico,
singular-indicativo
e
convencionado-simbólico desses dispositivos). Para ele, a função do cenário é, entre outras coisas,
“[...] funcionar como elemento de significação [...] na articulação sincrética com os outros
elementos da cena (figurino, música, texto etc.) [...]” (p. 14).
2.2 Assunto (narrativas)
O perfil desta metodologia analítica de narrativas televisuais se resume a três dimensões
(visual, verbal e a relação entre as duas), pensando no contrato de comunicação, nas formas de
descrição e narração verbal e visual, a partir dos métodos semiolinguístico e semiótico.
Os operadores que analisam a dimensão verbal do discurso tiveram por base a análise do
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discurso, com destaque para as abordagens de Charaudeau e Maingueneau: os discursos relatados e
os modos de organização do discurso (narrativo e descritivo) que serão explicitados a seguir. Os
operadores que analisam a dimensão visual foram pensados a partir da semiótica peirceana, mais
especificamente, pelos conceitos de Verón (2001) e Jost (1999): gestualidade e narrativa visual.
Por fim, a relação entre as duas dimensões se baseia nos possíveis efeitos de discurso preconizados
por Charaudeau (2008).
2.2.1 Descrição dos operadores verbais
2.2.1.1 Narrativa verbal – narrativo
O modo de organização narrativo pode ser considerado o alicerce das reportagens
telejornalísticas. Ele se apoia no descritivo, mas não se trata apenas de uma mostração. É preciso
que exista um sujeito que narre o acontecimento, um sujeito construtor, dotado de intenções
comunicativas. Esse será o nosso principal operador de análise, que dialogará com os demais.
Charaudeau (2008) se baseou em noções de base do fenômeno da narratividade, desde a semiótica
narrativa, chamada também de poética, narratologia, discurso da narrativa, de acordo com as
diferentes vertentes, para elaborar os conceitos desse modo de organização.
Contar, segundo Charaudeau (2008), não é somente descrever, contar visa a responder a
questão básica da humanidade: a verdade de seu ser, a reivindicação do verdadeiro. É uma ação
que se estabelece depois de uma realidade que já passou.
Contar, nesse caso, tem a ver com uma caminhada pela captura inexorável de uma
unicidade. “Busca que se realiza em meio a uma tensão entre o imaginário de uma realidade
fragmentada e particular e o de uma idealização homogênea e universal.” (CHARAUDEAU, 2008,
p. 156).
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O modo de organização narrativo se divide entre a lógica narrativa e a encenação narrativa.
A lógica narrativa é aquela que se liga ao mundo referencial, uma análise da “história” que é
narrada e do modo em que ela é representada, enquanto a encenação narrativa constrói o universo
relatado sob a centralidade de um sujeito comunicante dentro de um contrato situacional. “[...] a
construção lógico-narrativa só se constrói hipoteticamente, a partir do processo de narração”.
(CHARAUDEAU, 2008, p. 158).
Interessa-nos permitir ao analista observar em reportagens televisuais alguns aspectos da
lógica e cena narrativa descrita abaixo, atentando-nos principalmente para o papel das identidades
social e discursiva.
2.2.1.2 Narrativa verbal – descritivo
O modo descritivo é utilizado para mostrar o mundo. Identificar, localizar-situar e
qualificar os seres do mundo de maneiras objetivas ou subjetivas, de forma a nos passar uma
impressão desses seres como se vislumbrássemos o mundo com um olhar parado. “Do ponto de
vista do sujeito falante, Descrever corresponde a uma atividade de linguagem que, embora se
oponha às duas outras atividades – Contar e Argumentar – combina-se com elas”
(CHARAUDEAU, 2008, p. 111). Dessa forma, o descritivo dá sentido ao narrativo. Charaudeau
(2008) divide o modo de organização descritivo em construção e encenação descritiva. Iremos nos
ater nesse espaço para a observação de reportagens telejornalísticas à construção descritiva, que
possui três componentes, inseparáveis e ao mesmo tempo autônomos: nomear, localizar-situar e
qualificar.
Fornecer existência a um ser é a função da nomeação. “Nomear não corresponde a um
simples processo de etiquetagem de uma referência pré-existente. É o resultado de uma operação
que consiste em fazer existir seres significantes no mundo ao classificá-los.” (CHARAUDEAU,
2008, p. 112). Determinar a posição espaço-temporal que é ocupada é o que corresponde a
localizar-situar. E, por fim, qualificar se constitui na construção de classes e subclasses de seres.
Essa atividade completa a função da nomeação, conferindo um sentido particular a esses seres.
2.2.1.3 Uso estratégico da heterogeneidade discursiva
Para a compreensão dos telejornais e suas identidades, consideramos relevante observar as
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formas como a heterogeneidade é marcada no discurso das narrativas. Os discursos sendo unidades
linguísticas dialógicas nos faz tomar todos os atos de linguagem como heterogêneos (todo discurso
é atravessado pelo outro). Essa heterogeneidade, por vezes, é mostrada, como no caso do discurso
direto, discurso indireto, do uso de alusões, imitações e do discurso indireto livre. Mas, antes de
tudo, essa heterogeneidade é constitutiva, ou seja, o outro é onipresente no discurso de alguém. A
utilização de marcas do discurso de outro é uma tentativa de se negar a heterogeneidade
constitutiva dos discursos (MAINGUENEAU, 1997).
Aqui, aplicaremos de um modo mais sintético, os estudos de heterogeneidade para
explicitar nas reportagens essas marcas de outras vozes, atentando-nos apenas aos discursos diretos
e indiretos, na tentativa de responder a questão: as escolhas das vozes e a forma como são inseridas
(de modo direto ou indireto) nas narrativas possuem quais intencionalidades? Como os discursos
relatados e dispostos de formas pensadas constroem um tipo de identidade das reportagens?
2.2.2 Descrição dos operadores imagéticos
2.2.2.1 Indicialidade
Parece-nos interessante tentar perceber como ocorre essa construção do lugar do contato no
espaço do telejornal. Como se dá a construção do corpo do repórter na tela? E a construção do
corpo dos atores sociais? Eles explicam a si mesmos por meio de gestos e expressões? Os efeitos
de distância e proximidade influenciam em que medida na enunciação e na construção do
enunciado? As fachadas escolhidas, as imagens selecionadas para a narrativa possuem efeitos
metonímicos? A fabricação desses espaços imaginários é indicial? Explicam a si mesmos e
redundam com o discurso verbal?
São essas as características de indicialidade que devem ser detectadas na construção das
narrativas dos programas por meio da observação os planos fílmicos utilizados nele e nos atores
sociais que tiveram papéis enunciativos, além do caráter subjetivo das expressões de cada um deles.
2.2.2.2 Narrativa visual – descritivo
O modo de organização descritivo, já exposto anteriormente, costuma se combinar com os
procedimentos de narrar e argumentar, “identificando” e “qualificando” ações e seres. A ideia é
pensar a descrição por intermédio de imagens. No caso dos telejornais, identificamos algo
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visualmente pela sua apresentação. Já a qualificação por meio da imagem pode ser uma focalização
temática ou a escolha de um ponto de vista, por exemplo.
2.2.2.3 Narrativa visual – narrativo
Estendemos em nossa metodologia um olhar para as formas de narrativa imagética,
buscando valores icônicos, indiciais ou simbólicos nas imagens das sequências, pensando seu
encaixe na lógica narrativa, no sentido da semiótica peirceana. Jost (1999) aponta três tipos de
imagens televisuais, baseado nas noções peirceanas: a imagem testemunho, que possui traços com
o fato (indicial); a imagem arquivo (icônico), que representa o fato a partir de esquemas abstratos e
funções analógicas; e a imagem símbolo, que tem valor metafórico e de comentário (símbolo).
2.2.3 Descrição dos operadores – relação imagem-texto
2.2.3.1 Efeitos
Para transformar o “mundo a significar” em “mundo significado”, a televisão, mídia do
visível por excelência, utiliza de estratégias para alcançar alguns efeitos, que devem ser observados
no diálogo entre o imagético e o verbal, principalmente (CHARAUDEAU, 2010):
a) o de “realidade”, que se realiza por meio do recurso da imagem, quando se presume que
o que está sendo transmitido é uma cópia fiel do mundo. Nesse caso, o intuito é transmitir uma
visão objetiva e tangível do mundo, de natureza indicial (CHARAUDEAU, 2010);
b) o de “ficção”, que ocorre quando o produtor usa da reconstituição de acontecimentos
(narrativas dos fatos);
c) o “patêmico”, que tem por intuito causar catarse no receptor por meio do discurso.
Comentários conclusivos
Escolhemos trabalhar com a semiótica representada por Verón (2001) e Jost (1999) em
diálogo com a análise do discurso de Charaudeau (2008) por percebermos uma razoável
proximidade entre as teorias.
Ambas articulam a linguística e a sociologia. Verón, de um lado, mais semioticistapeirceano, permite-nos pensar certas categorias que facilitam a análise de imagens, sobretudo em
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seu caráter de gestualidade como forma de enunciação, além dos aspectos icônicos, indiciais e
simbólicos, dos quais nos apropriamos da tipologia de imagens televisuais criada por Jost (1999);
Charaudeau, do outro lado, possui um viés semiolinguístico, tradicionalmente mais utilizado para a
análise da dimensão verbal-textual do discurso.
Por isso, acreditamos que a articulação entre a análise do discurso de vertente
semiolinguística e a semiótica peirceana, nas perspectivas de autores como Verón (1980) e Jost
(1999), pode se transformar em uma possibilidade metodológica interessante para os estudos de
narrativas midiáticas. Partindo destes conceitos, a noção de discurso de Charaudeau (2008) e de
signo como matéria significante engendrada de sentidos estratégicos (icônicos, indiciais e
simbólicos) de Verón (1980), montamos o esquema analítico descrito.
Acreditamos ainda que as reflexões sobre as questões macroestruturais, como a
apresentação dos telejornais, aliadas a procedimentos de análise dos produtos comunicacionais e
suas narrativas, que envolvem estudos de semioticistas e analistas do discurso, podem ser um bom
caminho para pensarmos as construções televisuais dos programas de informação, suas identidades
discursivo-midiáticas e sua lógica no processo de midiatização da sociedade.
1
Doutorando em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas
Gerais (CEFET-MG)., Discente, [email protected]
2
Doutorando em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas
Gerais (CEFET-MG)., Discente, [email protected]
3 O termo “real” é bastante polêmico, possui significados distintos em estudos literários, filosóficos e linguísticos. Por
esse motivo, utilizamos aspas toda vez que mencionamos essa palavra. A noção de “real” adotada por nós neste trabalho é
a mesma que Verón (2001) utiliza. Tratamos como “real”, a realidade social construída, as práticas coletivas, algo que não
pode ser totalizado por uma narrativa, apesar de as narrativas dos meios tentarem de todas as formas se confundirem com
esse “real”.
4 Por falta de espaço, não entraremos em detalhes a respeito da teoria de Peirce, amplamente conhecida e divulgada pelos
estudiosos da linguagem.
5 “O ‘design’ corresponde ao plano e às estratégias utilizadas pelo pesquisador para responder às questões propostas pelo
estudo, incluindo os procedimentos e instrumentos de coleta, análise e interpretação dos dados, bem como a lógica [...]
[entre os diversos] aspectos da pesquisa” (ALVES-MAZZOTTI, 1999, p. 147).
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6 Para um estudo histórico da vinheta, desde a sua concepção de ornamento das escrituras sagradas até seu uso no
audiovisual, ver: AZNAR, Sidney Carlos. Vinheta: do pergaminho ao vídeo. São Paulo: Arete & Ciência/ UNIMAR, 1997.
7 Seminário lecionado em 1995, em Santiago de Compostela, Espanha, aos alunos de doutorado em Ciências da
Informação e relatado por Sousa (2006).
ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. O planejamento de pesquisas qualitativas. In: ALVESMAZZOTTI, Alda Judith; GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método nas ciências naturais e
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