O senhor guarda-chuvas ... Não, não, moça, não faz tanto tempo assim, o rio era bem movimentado, se a moça procurar bem é capaz de encontrar uns pneus (eles rodam muito e acham que sabem tudo!) bem velhos, da idade dos primeiros carros, quando eu cheguei aqui eles nadavam em bandos. Em bandos. Olha, bem mais um pouco pra lá ficava um ônibus, sabe, desses grandes: ouvi dizer que ele caiu cheio de gente ser-humano. Eu nunca cheguei muito perto. O inferno de qualquer guarda-chuvas é um ônibus, não é? Uma perdição. Mas, desse assunto quase não sei, até olhei uns livros por aqui; em uma bíblia aprendi sobre o inferno dos cristãos; no alcorão, dos mulçumanos. E cada um que vai chegando, sempre conta um pouco da sua história e dos seus infernos. ... Aqui nesse rio ou nessa cidade? ... Vivi um tempão no Nordeste. ... É, no Nordeste mesmo. Fui de presente de Natal para uma senhora-mãe; o filho veio tentar a vida nessa cidade grande. Ela não conhecia guarda-chuvas, imagina? Eu era novo, ela me achava bonitão! Morei ao lado de uma televisão, na sala. Ela gostava de assistir à televisão, e virava e mexia ela me olhava com aquele jeito de ponto de interrogação: pra que serve, mesmo? ... Sim. Aqui tem muita televisão, sim. Mas, nenhuma funciona mais. Ah! Tem também uns tais computadores, sabia que se pode assistir à televisão neles? ... Como assim: lixo-sucata. O que é lixo? ... Não, não. Voltei pra cidade pelas mãos da neta. A senhora-mãe virou senhoraavó; a neta também fugiu da seca, e eu, novamente, fui um presente, elas me chamavam de herança. Herança, imagina! ... Especial? Diferente? Acho que sei o que a moça quer saber: Aconteceu em uma tarde, bem, não preciso dizer que chovia, não é? Bem, chovia. Centro da cidade. Encontrei todos os guarda-chuvas do mundo, eu acho, mas não dava tempo pra muita conversa, não. Era só uns “oi” e uns “olá”. Tem guarda-chuva emburrado, isso tem, mas não são todos não. Então: eu tentava segurar uma haste, quase se soltando, e nem percebi direito quando ela se aproximou. No encontro, um encontrão, ela, toda florida, se enroscou na tal da haste solta e suavemente me disse: pardon! ... Não, na hora eu não sabia o que tinha me acontecido. Descobri só aqui: esse rio quase transbordava de tanta lágrima, por causa de um baú cheio de cartas, não sei se enviadas ou não, só sei que eu também fui espiar as palavras, e, assim, retorcido, sentia uns apertos, apertos, descobrindo, enfim, esse tal de amor. Amor! .... Nunca mais, nunca mais mesmo. Um dia, num relance, achei que era ela, toda florida ...mas não, era uma exibida, metidinha mesmo, uma “capa de chuva”. Capa de chuva! ... Eu odeio capas de chuva, odeio mesmo. ... Me dou bem com as botas, as galochas, os sapatos em geral. Eles, quase sempre, vêm sem o par. Sozinhos, perdidos. Garrafas de plásticos faz um tempão que não têm aparecido. Você sabe me dizer pra onde levaram as pobres das garrafas de plásticos? ... Reciclagem? Que maravilha! E os guarda-chuvas vão entrar nessa tal de reciclagem? Porque a gente pode, com certeza, virar outra coisa. ... Hum. Outra coisa, assim, não sei bem, outra coisa, assim... ... Que estranho, sabe, essa reciclagem. Aqui tem de um tudo, até um diploma de faculdade eu já vi. E uma taça, muito, muito grande, quem usaria uma taça daquela, acho que era de um gigante. ... Ouro? Mas tô te contando dos tesouros daqui, não tô? ... O maior deles mesmo é a água, né ...mas, esse rio secando. Só pode ser coisa de homem ser-humano, só pode. Agora, a moça me conte a verdade, por favor, sem mentiras: o mar também tá secando? Porque sem mar, sem chuvas. Aí, sim, é o fim do mundo, de todos os guarda-chuvas, o fim. Ainda usam guarda-chuvas, né?