UNIVERSIDADE DO PORTO Faculdade de Belas Artes Tomar Corpo: para pensar a performance na cena artística contemporânea. O caso português. Rita Xavier Monteiro Dissertação para obtenção do grau de Mestre em Estudos Artísticos Sob a orientação da Professora Doutora Eugénia Vilela Porto 2011 I Para a minha avó II agradecimentos Agradeço a todos que directa ou indirectamente contribuíram para a evolução deste trabalho e que o fizeram crescer; que me fizeram crescer. A todos que fazem parte da minha vida: Preciso que me reconheçam que me digam Olá e Bom dia mais que de espelhos preciso dos outros para saber que eu sou eu. Adília Lopes À minha orientadora, Doutora Eugénia Vilela, pela confiança depositada nesta pesquisa. Por me possibilitar dar continuidade ao trabalho de investigação convidandome a incluir o Aesthetics Politics and Arts Research Group (FCT | IF | UP). Aos meus pais pelo amor, força incondicional e paciência nos momentos mais críticos… passa a tua mão pela minha cabeça. Agradeço à Fátima Lambert pela ajuda imprescindível, pelas conversas nas viagens a Lisboa. Pela amizade desde sempre preciosa. Ao meu avô pelos exigentes e sábios conselhos. A todos os meus amigos e ao Carlos: os que acompanharam o processo de trabalho e com os quais partilhei ansiedades comuns e desabafos de um futuro impreciso. E aos que me ajudaram também a “sair de cena” quando foi preciso. Agradeço às trapezistas: Beatriz Albuquerque, Helena Botto, Tânia Carvalho, por toda a disponibilidade e interesse. A todas as instituições que me acolheram - Materiais Diversos, Teatro Nova Europa, etc. E a todos aqueles com quem pude falar e partilhar este trabalho. Obrigada. III abstract The practice and approach on performance and performative arts are gaining a new dynamic and getting intensified on the current cultural panorama. In the first place, this work looks to find itself with the development of the theory of performance generating an articulation with particular works. The performance is treated as a multidisciplinary modality and mainly, as an action that escapes to the systematizing concepts of the remaining arts, that re-invents a new space and time where the act of creation (poièsis) and artistic object (práxis) are joint in the present body. This way, a secondary moment unsociable to the first one, is developed on the theory over the body as a sign and medium of sense in a performative action. In the end, a case study is unfolded which is circumscribed specifically in the practice of the performance through the feminine universe in Portugal. To illustrate the current artistic phenomena, the work of three creators and practitioners is analysed, on the areas of plastic arts (Beatriz Albuquerque), from theatre (Helena Botto) and from dance (Tânia Carvalho), and respective interviews over the way how they face their work under this reasoning. The objective counts with an approach not only on the reflective level over the hybridism and of performance but also on the consistent portuguese work that has been created on the feminine. That way, take shape is suggested to the performance: expression that shuts the two sides of the same body, the one from its physical materialistic side to the practice and the other of its non physical shape fundamental to the expression of sense. Key-words: performance, performance art, body, body art, feminine performance, performance in Portugal IV resumo A prática e abordagem sobre a performance e as artes performativas têm vindo a ganhar nova dinâmica e a intensificar-se no panorama cultural actual. Este trabalho, em primeiro lugar, procura encontrar-se com o desenvolvimento da teoria da performance gerando uma articulação com os trabalhos concretos. Trata-se a performance enquanto modalidade multidisciplinar e, sobretudo, acção que escapa aos conceitos sistematizadores das restantes artes, que reinventa um novo espaço e tempo onde acto de criação (poièsis) e objecto artístico (práxis) se tocam no corpo presente. Assim, um segundo momento indissociável ao primeiro é desenvolvido na teoria sobre o corpo enquanto signo e veículo de sentido numa acção performativa. Por fim, desdobra-se um estudo de caso que se circunscreve especificamente na prática da performance pelo universo feminino em Portugal. De forma a ilustrar a trama artística actual, foca-se o trabalho de três criadoras praticantes da arte do corpo das áreas das artes plásticas (Beatriz Albuquerque), do teatro (Helena Botto) e da dança (Tânia Carvalho), e respectivas entrevistas sobre o modo como encaram o seu trabalho sob esta trajectória de sentido. O objectivo contará com uma aproximação não só ao nível da reflexão sobre a hibridez e flexibilidade da performance mas também ao trabalho concreto português que se tem vindo a realizar no feminino. Por isso, sugere-se o tomar corpo à performance: expressão que encerra os dois lados do mesmo corpo, o da sua materialidade física essencial à prática e o da sua espessura não física fundamental à expressão de sentido. Palavras-chave: performance, arte da performance, corpo, arte do corpo, performance no feminino, performance em Portugal V sumário agradecimentos........................................................................................................ 3 abstract .................................................................................................................... 4 sumário .................................................................................................................... 6 | introdução ............................................................................................................. 1 0| metodologia ........................................................................................................ 3 0.1 | objecto e questões de investigação .............................................................................. 3 definição e justificação do objecto de pesquisa ...........................................................................................3 questões fundamentais .................................................................................................................................4 objectivos de investigação ............................................................................................................................5 0.2 | considerações metodológicas....................................................................................... 6 a investigação qualitativa e a selecção da pesquisa - estudo de caso ...........................................................6 revisão da literatura ......................................................................................................................................6 as entrevistas ................................................................................................................................................7 1| a performance ..................................................................................................... 8 1.1| o que é performance? polimorfia de um conceito.......................................................... 9 1.2| breve análise do potencial performativo ..................................................................... 19 1.3| ser poièsis e práxis: a efemeridade deste objecto artístico ........................................... 25 1.3.1| a borda uma nova forma de espaço e tempo da acção .............................................. 30 1.3.2 | observadores e participantes ..........................................................................................................37 1.4| a performance em Portugal. a prática no feminino ...................................................... 40 2|........................................................................................................................... 51 o corpo .................................................................................................................. 51 veículo de sentido na arte da performance.............................................................. 51 da noção do senso-comum à necessidade de uma nova concepção ..................................... 52 2.2 | corpo no pensamento filosófico. ............................................................................... 58 corpo / alma, matéria/ espírito: dualismos e reconciliações ................................................ 58 2.3 | sobre o corpo morto: corpo cirúrgico / corpo máquina. .............................................. 71 da manipulação do corpo aos robôs e da ausência de corpo no virtual ................................ 71 2.4 | sobre o corpo vivo: corpus. para uma Soma-Estética................................................... 80 2.5 | o corpo-mulher: corporalidade e nudez. anotações .................................................... 88 2.6 | corpo na arte ou a(s) arte(s) do corpo ........................................................................ 93 3|......................................................................................................................... 110 três trapezistas ..................................................................................................... 110 3.1 | beatriz albuquerque ou o corpo-comunitário ................................................ 111 3.2 | helena botto ou o corpo-livro........................................................................ 115 3.3 | tânia carvalho ou o corpo-expressivo ....................................................................... 118 VI 3.4 | análise das entrevistas ................................................................................. 121 | conclusão........................................................................................................... 125 | .......................................................................................................................... 129 anexos.................................................................................................................. 129 anexo 1 | questões de entrevista........................................................................... 130 anexo 2 | trapezistas: notas biográficas ............................................................... 131 beatriz albuquerque artista plástica/performer ................................................................ 131 anexo 3| resposta à entrevista beatriz albuquerque ......................................................... 134 anexo 4 | resposta à entrevista - helena botto .................................................................. 136 anexo 5 | resposta à entrevista - tânia carvalho ................................................................ 139 bibliografia .......................................................................................................... 141 artigos | publicações | dissertações ................................................................................. 146 bibliografia específica | metodologia ............................................................................... 147 endereços consultados | WorldWideWeb ........................................................................ 148 | introdução Este trabalho procura pensar a pertinência de uma acção performativa enquanto acção praticada por um corpo que se expressa intencionalmente, transportando uma polifonia de sentidos que se desdobram no espaço-tempo do mundo. Se, no capítulo 0. Metodologia, se pretende justificar os objectivos e a metodologia pelos quais se moveu, do início ao final, esta pesquisa. No primeiro capítulo, intitulado 1. a performance, desenvolve-se a ideia de uma acção performativa e do seu significado, desde o seu sentido etimológico, até à perspectivação da performance enquanto modalidade artística, multidisciplinar e flexível (1.1. o que é performance? polimorfia de um conceito). Desdobram-se, igualmente, conexões com as disciplinas das ciências sociais e humanas que se entendem relevantes para a compreensão do conceito (1.2. breve análise do potencial performativo). A explicitação da performance nos aspectos que definem a sua especificidade relativamente às restantes práticas artísticas é elaborada tendo em vista uma reinvenção do espaço e do tempo no instante performativo (1.3. ser poièsis e práxis: a efemeridade deste objecto artístico). O último sub-capítulo desenvolve uma perspectiva da performance em Portugal, desde o seu surgimento tardio até à actualidade, com especial destaque para as figuras femininas (1.4. a performance em portugal. a prática no feminino). Esta última opção - a escolha do universo feminino - prende-se a motivos justificados na metodologia e aplica-se como forma de recortar uma parcela de análise no interior da multiplicidade de acções existentes que podem ser consideradas acções performativas. Assim, o capítulo 1. a performance desenha-se em três movimentos: o do enquadramento do próprio conceito - a performance e a arte da performance -, o da análise da arte da performance e suas características e, por fim, o da performance em Portugal como foco de estudo. Compreende-se a performance como uma acção performativa (tal como designado no título desta dissertação), dado que engloba um universo vasto de acções no panorama artístico actual. O capítulo 2. o corpo veículo de sentido na arte da performance revela uma relação de essencialidade entre a performance e o corpo presente, perspectivado como elemento nuclear deste trabalho.. Há uma inicial explicitação do conceito (2.1. o que é corpo? da 1 noção de senso comum à necessidade de uma nova concepção), seguindo-se um enquadramento teórico de conteúdo filosófico (2.2. dualismos e reconciliações: corpo/alma, matéria/espírito. o corpo no pensamento filosófico). Por outro lado, realiza-se uma análise tecno-científica da noção de corpo (2.3. sobre o corpo morto. corpo cirúrgico/corpo máquina. da manipulação do corpo aos robôs e da ausência de corpo no virtual), em contraste com as perspectivas teóricas que propõem pensar o acto performativo enquanto prática artística que se inscreve num relacionamento activo com o corpo vivo, recorrendo a Richard Shusterman e à noção de Soma-Estética (2.4. sobre o corpo vivo: corpus. para uma Soma-Estética). Remetendo à prática no feminino, realizaram-se algumas anotações no que concerne o corpo feminino (2.5. o corpo-damulher:corporalidade e nudez. anotações). Num último sub-capítulo, pretende-se, sobretudo, destacar o corpo como signo presente ao longo da história da arte e da estética, com retorno às origens da performance e da body art, possibilitando novamente a conexão com o capítulo1 (2.6. o corpo na arte ou a(s) arte(s) do corpo). Por fim, o capítulo 3. três trapezistas apresenta o estudo de caso explícito de três criadoras na cena artística actual: Beatriz Albuquerque (1978), Helena Botto (1978) e Tânia Carvalho (1976). Após uma breve análise em torno do trabalho singular de cada trapezista tendo presente cada um dos trabalhos, enunciamos um desenho de corpo que se envolve nas respectivas criações – 3.1. corpo-comunitário, 3.2. corpo-livro, 3.3. corpo-expressivo. Segue-se a realização e a abordagem das entrevistas (3.4. análise das entrevistas). A pequena entrevista com as criadoras procura uma aproximação desta investigação à actividade performativa contemporânea através do seu signo fundamental - o corpo (tomar corpo). 2 0| metodologia nota introdutória Optou-se por utilizar as citações na língua original, colocando em nota de rodapé as respectivas referências bibliográficas. Em primeiro lugar, a referência completa e, quando repetida, optou-se por referir do seguinte modo: Autor, Data, Página. 0.1 | objecto e questões de investigação definição e justificação do objecto de pesquisa Esta dissertação parte do pressuposto de uma crescente prática da performance como modalidade das artes, desde a sua génese em meados do século XX até à actualidade. Tendo sido escolhido o período actual como foco temporal de análise, o exercício da performance na contemporaneidade revela um processo cumulativo de contínuas nuances a que foi sendo sujeita esta “disciplina” que, na sua própria essência, assume um carácter interdisciplinar. Pretende esta dissertação procurar definir o sentido actual deste estado da arte e de diversos posicionamentos críticos perante a performance. A presente proposta de investigação procura também interceptar a efectividade da performance no nosso país, preenchendo uma imagem global da sua história entre nós e, ao mesmo tempo, buscando a nova geração artística que procura novos propósitos, traça tendências e até futuros possíveis no campo das artes performativas. De entre um leque plural dos artistas/intérpretes portugueses e na especificidade de cada um dos trabalhos desenvolvidos dentro da área da performance, circunscreveu-se a prática do género feminino. Assim, procura-se na actividade desenvolvida por mulheres performers encontrar características particulares vincadas que supõem ou não uma fundamentação dicotómica que opõe o par homem/mulher presente também no pensamento patriarcal. Além disso, o corpo-da-mulher que se expõe no aqui e agora performativo é sempre, de forma velada, com certa intenção ou assumidamente, um corpo desenhado no sexo feminino, com todo o peso simbólico carregado longo dos tempos. Esta delimitação ao universo feminino contribui, então, para uma investigação mais precisa do contexto temporal e espacialmente abrangido. 3 No seguimento da justificação da tese proposta, note-se que, partindo da necessidade em demonstrar esta pluralidade de sentidos dentro do conceito performance, se optou por escolher três mulheres praticantes das artes performativas de origens completamente distintas, mas de idades semelhantes. Ora, o objectivo consistirá na comparação e no esclarecimento dos processos criativos, sendo uma performer ligada directamente às artes plásticas, outra uma actriz e uma intérprete/coreógrafa na área da dança. Consideramos que a análise das acções realizadas por cada performer e, sobretudo, as suas ideias e objectivos acerca desta actividade, permitirá uma abordagem clarificadora do conceito. Importa saber qual a visão dos performers relativamente a essa modalidade que praticam e que escolheram no panorama artístico actual, e de que forma as suas perspectivas se tocam ou se afastam a partir da singularidade criativa de cada uma. Foram escolhidas três jovens mulheres performers trabalhando no nosso tempo: Beatriz Albuquerque, Helena Botto e Tânia Carvalho, respectivamente nos campos das artes plásticas, do teatro e da dança. Esta escolha baseou-se nos princípios anteriormente expostos, em especial os factores etários, as carreiras que se desenvolvem na trama artística actual e o facto de apresentarem formações distintas com trabalhos também muito distintos entre si. No caso de Tânia Carvalho, importa igualmente referir o facto de, para além de coreógrafa/intérprete, explorar também a música de forma independente da dança (mas também em conexão com ela) como incentivo para a criação/improvisação. Deve-se, ainda, reconhecer que esta escolha se configurou também numa inevitável afeição por parte da mestranda relativamente ao trabalho das referidas criadoras. questões fundamentais Na compreensão da performance, de uma forma geral, delineiam-se duas questões fundamentantes, definidoras da própria performance como disciplina, como metodologia criativa e/ou como arte autónoma: Como pensar a performance e o acto performativo hoje? Como compreender o corpo – o corpo performativo, o corpo de sentido – inscrito nessa performance? Tendo em vista a presente investigação, surgem, subjacentes, as seguintes questões específicas: 4 Como se perspectiva o conceito de performance desde a sua formulação até à actualidade? Como se desenvolveu a performance em Portugal, especificamente no que concerne a prática do universo feminino? Qual a ideia de corpo que se afirma no contexto performativo actual? De que forma se desenha a singularidade criativa a partir do trabalho de cada uma das três entrevistadas? Como percepcionam cada uma das três entrevistadas a performance enquanto modalidade e o corpo enquanto veículo de sentido? Qual a relevância da prática no feminino no contexto do seu trabalho? objectivos de investigação Inferir a hibridez e multidisciplinariedade que abrange o conceito de performance Clarificar a importância do corpo enquanto signo fundamental de sentido Examinar a prática performativa em Portugal, bem como os caminhos que estão sendo percorridos Compreender como percepciona e descreve cada uma das três entrevistadas a performance de uma forma geral e o seu trabalho no âmbito da performance em concreto Perceber como percepciona e descreve cada uma das três entrevistadas o corpo enquanto signo fundamental da prática performativa Pensar a relevância do corpo que se desenha no feminino no acto performativo. E perceber qual o seu impacto na singularidade do trabalho específico de cada uma das três entrevistadas. Avaliar o que se distingue na prática da performance das três mulheres de acordo com a sua formação. E avaliar aquilo que se assemelha na prática, ou seja, o que há de comum no trabalho performativo realizado pelas mesmas. Compreender particularmente a prática da performance na singularidade criativa 5 feminina em Portugal. 0.2 | considerações metodológicas a investigação qualitativa e a selecção da pesquisa - estudo de caso Este estudo apresenta uma revisão bibliográfica muito alargada que se ramifica pelos diferentes âmbitos já referidos e de um estudo de caso (as três performers). No segundo momento, o recurso a este tipo de investigação procura uma interpretação e uma reflexão em torno dos dados teóricos levantados no primeiro momento e do modo como as entrevistadas experienciam a prática de uma actividade artística na actualidade, quer no contexto cultural português, quer no desenho de um corpo feminino. A pesquisa exploratória no ponto 1. circunscreve o apuramento das perspectivas teóricas e conceitos inerentes ligados à performance e ao signo primordial - o corpo – realizando uma revisão da literatura relevante. No ponto 2. procurou-se avaliar a perspectiva das três criadoras por meio de entrevistas, compreendendo as diferentes formações e perspectivas com base numa modalidade de trabalho comum e gerando uma tentativa de esclarecimento dessas questões iniciais. Pretende-se, desta forma, o encadeamento de informação no sentido de esclarecer perspectivas e concepções teoricamente formuladas na sua relação com a prática artística concreta. 1º. Momento 2º. Momento Revisão da Literatura Estudo de Caso(s) (Esclarecimento e aprofundamento de Análise de 3 criadoras e seus trabalhos conceitos: performance, corpo) concretos, realização de entrevistas e análise dos resultados obtidos Pesquisa exploratória Pesquisa descritiva revisão da literatura No âmbito da revisão da literatura procura-se, sobretudo, recolher a informação relevante para este tipo de investigação. Esta revisão remete para os dois grandes temas 6 expostos, a performance (a nível teórico, histórico e nacional) e o corpo (no que respeita a questões epistemológicas e performativas). Esta investigação permitirá a definição do pensamento actual no que respeita à performance, bem como a sua explicitação como arte do corpo in loco, mas também um corpo fenomenológico, sentido, simbólico. Neste processo de investigação, destaque-se a participação activa da mestranda em dois tipos de projectos: 1. em espectáculos de teatro em âmbito académico e 2. a envolvência em trabalhos de produção e workshops, dos quais se destaca: Festival Materiais Diversos realizado em Minde, Alcanena e Torres Novas a Novembro de 2009; Alkantara festival em Lisboa a Maio-Junho de 2010; workshop Primeiro encontro sessão de trabalho sobre performance, dramaturgia, dança, escrita e leitura orientado por Loup Abramovici e Teja Reba de 16 a 23 de Janeiro de 2010 no Teatro de Ferro, e a assistência de encenação ao Teatro Nova Europa da peça Iremos curar-te pelo excesso de Mickaël de Oliveira, encenação de Luís Mestre, Porto Março-Maio 2011. Note-se ainda o contributo através da redescoberta de conhecimentos e experiências musicais passadas bem como o contacto com algumas personalidades do panorama artístico português, quer ao nível da prática performativa, quer ao nível teórico. as entrevistas As entrevistas realizaram-se seguindo estas orientações e sendo os objectivos gerais deste estudo: um aprofundamento de dois conceitos fundamentais “performance” e “corpo” em conexão necessária na arte da performance. Perceber, também, de que forma se operacionalizam esses referenciais conceptuais no trabalho de três mulheres performers. Para tal, realizaram-se três entrevistas contendo três questões fulcrais que abordam as palavras-chave desta pesquisa: “performance”, “corpo”, “no feminino”. A estes conceitos-chave seguiram-se outros enquadramentos que dizem respeito aos capítulos estruturadores deste trabalho. A entrevista não-directiva e de extensão totalmente livre foi realizada por escrito dada a intenção de uma resposta ponderada e reflectida por parte das entrevistadas. Segue-se, posteriormente, a análise do conteúdo das entrevistas permitindo tomar algumas conclusões gerais dos objectivos propostos. 7 1| a performance enquadramento e análise performance em Portugal Olhe no espelho Pelo tempo que for necessário Para seu rosto desaparecer Não coma a luz. Com uma faca afiada Corte fundo O dedo médio Da mão esquerda Coma a dor. Marina Abramovic 8 1.1 | o que é performance? polimorfia de um conceito Performance é uma (não-)disciplina que acaba por ser aceite como modo de expressão artística nos anos 70. Todavia, vai, pouco a pouco, marcando o seu espaço desde inícios do século XX. RoseLee Goldberg, que realizou o primeiro estudo dedicado à arte da performance, aponta uma aproximação das artes plásticas ao corpo, que se esboçou nas primeiras apresentações da corrente futurista quando os pintores futuristas se tornaram performers. Essa relação tendeu a expandir-se com o questionamento dos limites da arte por Duchamp e através da arte experimental conceptual. O corpo - na maioria das vezes o corpo do artista - passa a ser instrumento trabalhado, material artístico: “Certain artists like Kaprow in the United States, Gilbert and George in England, and Joseph Beuys in Germany began to follow Duchamp in extending this interest in process, in perception, and in the revelation of already existing material to the activities of the human body as a part of the found or constructed environment.”1 O crescente interesse pelo processo criativo desenvolve o potencial estético dos objectos do mundo, encontrando no corpo a pedra de toque de diálogo com esses objectos e esse mundo. Em meados dos anos 60/70 o enfoque no corpo artístico e o desenvolvimento da body art tomaram dimensões de uma nova modalidade artística - a performance. A experimentação no campo das artes plásticas alargou-se a uma penetração das modalidades híbridas da dança e do teatro que conheceram uma transformação também significativa. Neste capítulo, pretende-se desenvolve-las conjuntamente no sentido de perscrutar o papel da performance enquanto sinal artístico contemporâneo: uma nãodisciplina que se resolve numa categoria ecléctica e que define acontecimentos singulares significativos na cena artística. A arte da performance rompe com as estruturas singularizadas de cada prática artística (pintura, escultura, teatro, dança), gerando uma interpenetração múltipla e sem um interrelacionamento antecipadamente descrito entre elas. Do surgimento deste novo artifício, bem como do aumento crescente da sua execução, irrompe, na base teórica desta prática, uma inquietação estética reflexo de um esgotamento quer ao nível artístico 1 Carlson, Marvin (2006). Performance: a critical introduction, Nova Iorque: Routledge p.111. 9 e cultural quer ao nível paradigmático da lógica racional. Performance é um conceito polimorfo: na sua etimologia, performance conta com significados distintos figurados nos contextos mais diversos em que a palavra pode ser aplicada; performance manifesta corpos plurais. Trata-se de um conceito dinâmico ilimitado, em constante processo de construção e diálogo – em combustão. Algo que se pretende aberto nessa vulnerabilidade positiva pois concerne o território contemporâneo. Na ausência de critérios sistematizados e limitadores, é fragilidade complexa e é nessa complexidade que se mantém viva. Tal como afirma Strine, Long e Hopkins performance é “an essentially contested concept” gerando um “sophisticated disagreement”2, daqueles artistas, intérpretes, críticos, participantes que se dispõem à discussão conceptual no sentido de compreender o papel rico da performance no fluxo artístico e cultural contemporâneo. Procurou-se a definição de performance em dois dicionários, um da língua portuguesa e o outro da língua inglesa: performance3 (palavra inglesa que significa "execução, acabamento") s. f. 1. Resultado obtido em cada uma das exibições em público. = DESEMPENHO 2. Conjunto dos resultados obtidos num teste. 3. Prestação desportiva. 4. Acção de desempenhar um papel. = DESEMPENHO 2 Hopkins, Mary; Long, Beverly e Strine, Mary, Research in Interpretation and Performance Studies: Trends, 3 Issues, Priorities cit. por Carlson, Marvin (2006), p. 1. "performance", in Dicionário Pribam da Língua Portuguesa, 2011 [em linha]. 10 PER·FOR·MANCE 4 –noun 1. a musical, dramatic, or other entertainment presented before an audience 2. the act of performing a ceremony, play, piece of music, etc. 3. the execution or accomplishment of work, acts, feats, etc. 4. a particular action, deed, or proceeding. 5. an action or proceeding of an unusual or spectacular kind: His temper tantrum was quite a performance. 6. the act of performing. 7. the manner in which or the efficiency with which something reacts or fulfills its intended purpose. 8. Linguistics. the actual use of language in real situations, which may or may not fully reflect a speaker's competence, being subject to such nonlinguistic factors as inattention, distraction, memory lapses, fatigue, or emotional state. Origin: 1485–95; perform + -ance performance art5 • noun an art form that combines visual art with dramatic performance Conforme a definição dos dois dicionários verificou-se a relação da palavra “performance” com os termos desempenho, acção e concretização. Estes três aspectos indiscerníveis da palavra são aplicáveis em territórios semânticos distintos, não só a práticas artísticas (musical, teatral) como na prestação desportiva. Outro aspecto é o facto da performance constituir uma acção perante um público, sendo uma exibição. 4 “performance”, in Dictionary.com, 2010 [em linha]. 5 “performance+performance art”, Ask Oxford.com, 2010 [em linha]. 11 Performance é, também, desempenho/acção/concretização de qualquer acto pessoal. Richard Schechner identifica-a com “showing doing” e os estudos sobre performance como “explaining «showing doing»”6. E designa “restored behaviour”7 no sentido de uma re-apropriação consciente de determinado comportamento para ser objecto de exibição e que pode ir desde uma peça de teatro ou outro tipo de espectáculo, a rituais, transes ou xamanismo, passando por qualquer situação cultural ou do próprio dia-a-dia. Assim, temos duas fundamentais designações do conceito: designa capacidades - o desempenho ◦ de uma actividade não-humana (de uma máquina ou aparelho, por exemplo; de animais no circo, etc.) ◦ de uma actividade humana que se realiza a partir de um comportamento “standard of achievement” 8, (desempenho de um aluno na escola, performance sexual, etc.) envolve capacidades e designa a própria apresentação/realização de algo, o acto, o desempenho/comportamento/acção (de um pianista actuando num concerto, por exemplo) A noção de desempenho neste segundo ponto é perspectivada de acordo com a capacidade de realizar algo - a techné - o saber-fazer do intérprete ao nível da acção. Defendemos que há implicação mútua destas duas designações dado que a qualidade de desempenho é já um saber-fazer, e, no caso humano, o próprio pensamento implica já acção. Richard Bauman entende o conceito como algo que é inevitavelmente realizado “para alguém” (“a consciousness of doubleness”), sendo este outro uma audiência ou público ou um observador que pode ser constituído pelo próprio protagonista/performer da acção (“that audience is the self”9). Para Schechner, fundador de uma importante referência actualmente neste campo, o departamento de Performance Studies da Tisch School of Arts, o conceito de performance é mais detalhadamente examinado. Este departamento de Estudos de Performance abrange disciplinas ligadas à teoria do drama, à antropologia da arte, da dança, do folclore, inclui também estudos de filosofia, 6 7 8 9 Schechner, Richard (2002). Performance Studies: an Introduction, Londres e Nova Iorque: Routledge, p. 22. Schechner, Richard (2002), p. 28. Carlson, Marvin (2006), pp.3-4. Bauman cit. por Carlson, Marvin (2006), p.5. 12 literatura, sociologia, estudos comparativos, culturais e cada vez mais estudos ligados à performance musical. Na obra Performance Studies: an Introduction (2002) Schechner identifica oito situações que se podem considerar performativas: na vida diária, cozinhando, socializando-se, apenas vivendo nas artes nos desportos e entretenimentos populares nos negócios na tecnologia no sexo nos rituais – sagrados e seculares no jogo De entre todas estas actividades que servem de ilustração a uma polimorfia conceptual da palavra performance, o autor refere os objectivos relativos a cada uma delas “"Entertain, make something that is beautiful, check or change the identity, or foster a community, heal, teach, persuade or convince, dealing with the sacred and the demonic."”10. David Davies aponta para a origem do próprio verbo – to perform (performar) que se relaciona com um qualquer acto visando chegar a uma qualquer conclusão, fazer algo: “The etymological origin came from the old French – to parfourmir – combining the Latin prefix – per – (indicative of intensity: completely) and – to formir – problably of Germanic origin. It is interesting to keep from this origin the idea of movement, action or process combined with the result.”11 Esta combinação de ideias comprova a nossa tese de unidade de um movimento de sentido que se realiza num só gesto atravessado no corpo. A definição especifica-se quando falamos de arte da performance. Trata-se aqui de uma modalidade nas artes ou uma manifestação artística que exprime uma articulação entre as artes plásticas ou visuais, e as artes dramáticas ou do espectáculo. Uma 10 Schechner, Richard (2002). p.38. 11 Davies, David (2011). Philosophy of the Performing Arts, col. Foundations of the Philosophy of the Arts, UK: Wiley-Blackwell p.208. 13 (trans)disciplina relativamente à qual já é possível fazer uma história teoricamente sustentada. Pode-se mesmo designar teatro performance, mas este termo parece irrelevante dado que, hoje em dia, importam todas as modalidades que se evocam nas, digamos, artes performativas.12 Mas porquê a utilização do termo performance nas artes feitas com o corpo? Fala-se no recente recurso ao termo quer seja no âmbito das artes performativas ligado à dança ou a uma peça de teatro, ou respeitante a um desenvolvimento da body art no que concerne as artes plásticas. É também neste sentido que num terceiro movimento desta pesquisa (capítulo 3) analisamos a singularidade performativa de performance-artes plásticas, performance-teatro e performance-dança. Nos três casos trata-se de uma valorização consciente do corpo enquanto transmissor de sentido para o espectador: If we mentally step back a moment from this common practice to ask what makes performing arts performative, I imagine the answer would somehow suggest that these arts require the physical presence of trained or skilled human beings whose demonstration of their skill is the performance.13 A partir desta afirmação temos o termo performativo ligado, precisamente, às habilidades e capacidades de comunicação/sentido/símbolo que apontam para essa tal performatividade. Potencialidade inscrita num campo de possibilidades que só os limites corpóreos podem fechar. E é exactamente por essa abrangência do círculo de actividades artísticas, que a escrita de uma história da performance se transforma numa tarefa árdua e sempre inacabada: como aponta Goldberg, por ser um meio em aberto, abarcando infindáveis possibilidades de concretização por parte dos artistas que procuram constantemente empurrar barreiras limitadoras das formas de arte estabelecidas. A arte apropria-se dessa capacidade que possuem as coisas e o homem de se exibirem por si, figurando e configurando a possibilidade de uma apreciação estética. Os futuristas exibiram a velocidade da performance das máquinas ao manifestar a maravilha da velocidade como qualidade estética implícita. Noutro sentido, Duchamp exibe-se a si próprio conforme o seu alter-ego, ao encenar as fotos de Man Ray em Rrose Sélavy (1921); tal como iria fazer mais tarde Michel Journiac travestindo-se de pai, mãe ou mulher nos trabalhos Hommage à Freud (1972) e 24 heures de la vie d'une 12 Veja-se no capítulo 1.3 e, particularmente, 1.3.1 de que forma entendemos o uso de diversos termos a acções performativas que assumem contornos distintos. 13 Davies, David (2011), p. 3. 14 femme ordinaire (1974). Ambos produzem uma acção fotográfica - a fotografia é o meio final de apresentação - dado que existe toda uma encenação e execução por detrás, à semelhança de como anteriormente se chamariam os “tableaux vivants”. O artista incarna uma personagem ficcionada e, assegurando implicações estéticas nesse acto, assim se mostra. A exibição do desempenho dos corpos estéticos nas mais variadas situações adequa-se ao corpo humano ancorado numa necessidade de se expor. Neste novo contexto artístico, com as artes corporais identificamos a dança, o teatro mas também a arte do comediante, o canto, ou até outras artes que não são consideradas “belas-artes”, como as artes marciais, a esgrima; uma vez que apresentam também um lado estético.14 Étienne Souriau destaca os dois pontos de vista possíveis na entrada “artes corporais”: o do artista e o do espectador. Dá o exemplo da performance-dança, mas há uma característica que é comum a todas as artes ditas corporais: o corpo do bailarino/intérprete não se observa, obriga-se a ver para o interior manifestando-o exteriormente, tornando o gesto visível ao espectador. Desdobra-se de dentro para fora, e assim partilha. No entanto, existe sempre a possibilidade de se olhar executando: o espelho, o vídeo. Só desta forma o espectador pode ser o observador de si próprio, mas também o (re)criador de si próprio através da auto-observação, da auto-consciência no processo de trabalho. No caso do teatro como arte corporal específica, há algo que nem sempre está presente na performance: a incarnação de um papel, de um personagem. É algo que se faz em dois tempos: um primeiro protagonizado pelo autor que escreve o texto, e um segundo no qual há a apresentação de um actor que empresta o seu corpo a uma personagem - “Le théâtre n'est donc qu'au stade de représentation, acte éphémère et second dans le temps, par rapport à la création de l'auteur qui se perpétue à travers de son texte”15. No caso da performance a divisão autor/intérprete é geralmente abolida ou confundida, sendo que ele pertence ao espectáculo não como actor de uma figura de ficção, de representação, mas como autor de si mesmo. No teatro contemporâneo tendese a abolir a indicação por parte dos dramaturgos de um nome ou até referindo e dando pistas de uma história de personagem. Desta forma, as personagens são tipificações, designando muitas vezes estereótipos ou retratos da sociedade, activando o próprio papel interventivo e crítico do teatro enquanto ferramenta cultural. Esta concepção mais 14 Cf. Souriau, Étienne (1999). Vocabulaire d'Esthétique, Paris: Quadrige / PUF p. 497. 15 Souriau, Étienne (1999), pp.499-500. 15 recente de teatro aproxima-se do que se chamariam as artes performativas, dado a procura desse cariz mais autêntico do que verosímil, mais próximo da realidade do que da novela, ainda que frequentemente realidade caricaturada, como em Beckett ou Ionesco. Ainda na designação “artes corporais”, o caso da body art como forma artística surgida nos anos 60 ligada às artes visuais. As acções cumpridas sobre o corpo como objecto passível de manipulação e significação cumprem propósitos, algumas vezes narcisistas e até masoquistas, dado que vão ao limite do sustentável. Alguns procuram a distorção do rosto entre a exploração da fisicalidade e suas potencialidades identitárias como em Nauman Pinch Neck (1968), Dorota Sadovkská Corporalities (2003), ou Acconci Trade Marks (1970) e Open Book (1974). O corpo desconfortável, doente e até monstruoso é mostrado em trabalhos como Parasite and Host (2005) de Ian Breakwell, Wet Cup (2000) ou Succour (2002) de Kira O'Reilly e I Miss You (2005) de Franko B. Essa contínua exploração toma vários rumos mostrando frequentemente a violência e o perigo no confronto de valores estéticos com os valores éticos e morais: os artistas pretendem comunicar essa raiva de não poder transcender os limites do corpo no sentido antropológico e também artístico, encontrando no corpo o símbolo do “mesmo” em todos os homens16. Por outro lado, pretendem comunicar essas angústias das questões culturais contemporâneas transmitindo uma mensagem de dor e ao mesmo tempo de amor. Veja-se o controverso trabalho Shoot (1971) ou Trans-fixed (1974) de Burden ou a série Rhythm (1973-35) de Abramovic – explorando relações inconstantes entre o risco e o perigo, a resistência e a dor, a vida e a morte. Outra temática recorrente a partir da body art é a afirmação do feminismo nos anos 60 como explorará, também, o capítulo 1.4. e 2.5., e que toma moldes de consolidação do corpo erótico, sensual ou identitário, diferente ou modificado. Destaque-se, por fim, as questões étnicas, culturais que assumem contornos políticos: por exemplo a série Silueta (1973-77) de Ana Mendieta, o trabalho de Coco Fusco e Gómez-Peña ou de Regina José Galindo como em Who Can Erase the Traces? (2003). Goldberg, tal como mencionamos no início do capítulo, escreveu a primeira história da performance: Performance: Live art 1909 to the Present (1979), e em 1988, Performance Art: From Futurism to the Present; considerado primeiro texto-base no que concerne as artes performativas. Na sua concepção, a arte da performance, apesar 16 Cf. Souriau, Étienne (1999), p. 500. 16 de só ser aceite enquanto forma de expressão artística nos anos 70, tem raízes mais antigas. Além disso, esta modalidade de origem concreta no seio artes plásticas inclui uma série de propostas mais experimentais no campo da dança17, e no campo da música18. A flexibilidade e liberdade da performance é descrita por Goldberg na abrangência de acções praticadas, no que respeita o próprio espaço e ao tempo de exibição, bem como com o que pode, surpreendentemente, ser visto e experimentado nestas acções artísticas: The work may be presented solo or with group, with lighting, music or visuals made by the performance artist him or herself, or in collaboration, and performed in places ranging from an art gallery or museum to an “alternative place”, a theatre, café, bar or street corner. (...) The performance might be a series of intimate gestures or large-scale visual theatre, lasting from a few minutes to many hours; it might be performed only once or repeated several times, with or without a prepared script, spontaneously improvised, or rehearsed over many months19 A experimentação e o cruzamento de modalidades originaram encontros felizes de criadores como John Cage (músico/compositor) e Cunningham (bailarino/coreógrafo) e as performances audio-visuais, ou de Cage e Rauschenberg (artista visual); ou Robert Morris e Carolee Schneemann em Site (1965) com a colaboração de Jaspers Johns, os três artistas visuais. Outra característica marcante é o facto de tudo passar pelo artista, pelo criador, mesmo que, para o pôr-em-obra da acção, seja necessário recorrer a colaboradores – técnicos de luz ou som, actores, músicos, bailarinos, outros artistas ou, muito simplesmente, outras pessoas/voluntários/voluntários do público até no próprio decorrer da acção.20 O espaço de apresentação de uma performance engloba um campo de possibilidades que se adivinham consoante a necessidade de um espaço com equipamento técnico como condição para a apresentação do trabalho em galerias, museus ou mesmo palcos e estúdios; ou antes a total espontaneidade de um espaço público de rua ou de café. O tempo supostamente adequado à expectativa de um público e à medida da duração 17 Desde os ballets futuristas, a Foregger Dance Company, os workshops e exercícios bio-mecânicos de Meyerhold, os bailados de Picabia e da Bauhaus, Schlemmer, e, mais tarde, Cunningham e a nova dança com Ann Halprin, o Judson Dance Group, Simone Forti, Yvonne Rainer, Trisha Brown, Jan Fabre, a escola de Butoh japonesa e Pina Bausch e o Tanztheater. 18 Por exemplo, com Cage e o Black Mountain College e Erik Satie. 19 Goldberg, RoseLee (1990). Performance Art - from futurism to the present, Londres: Thames and Hudson, p. 8. 20 Veja-se no capítulo 1.4.2. o papel do público. 17 possível da sua atenção (máximo duas horas de espectáculo), substituí-se pela duração por vezes excessivamente rápida ou desmesuradamente prolongada destes eventos. Muitas vezes é o público que tem a liberdade de permanecer e abandonar o local, conforme o seu prazer. A peça pode nem sequer ser previamente ensaiada, ou antes pode ser substituída por um manual de instruções que outros intérpretes podem seguir, (re)produzindo desta forma a performance. Por exemplo, o caso dos chamados walkabout é curioso dado que designam um tipo de performance em que o artista cria uma personagem ou várias interagindo inesperadamente com o público em acções improvisadas. É o caso de Eleanor Antin que se (re)cria como Eleanora Antinova ou, personagem masculina King of Solona Beach. Neste último Antin aparece como rei, nostálgico e desenquadrado do seu tempo, reconhecendo as pessoas como do seu próprio mundo perdido. Pedaços do seu passado são colocados juntos através da documentação fotográfica e de desenhos e apontamentos como criação de um diário pessoal imaginado que vão acompanhar a performance. Ou, no caso de Paul Best que se desdobra numa personagem feminina Octavia. Ou o projecto de Roberto Cuoghi (1998-2005) que durou sete anos na tentativa de metamorfose do criador na figura de seu pai (física e psicologicamente). Nestes casos, o performer aparece, o espaço e tempo performativo são inesperados e premeditados sem aviso pelo performer, uma vez que o seu trabalho é um projecto in progress. Apontemos apenas a documentação residual como outra questão problemática no que trata esta modalidade: as performances podem ou não ser documentadas, podendo constituir essa documentação uma obra independente por si. Não nos propomos, no entanto, explorar nesta pesquisa esta tão vasta questão museológica. Ao lado de uma definição da performance do ponto de vista positivo, como sendo uma actividade que contém em si características específicas mas extremamente flexíveis na sua prática, poderemos optar por uma definição pela negativa, como o faz Guillermo Gómez-Peña. Na sua actividade performativa Gómez-Peña sustenta que arte da performance se define como aquilo que não é: não é teatro, nem pintura, não é também dança. Esta definição pela rejeição desenha um espaço de acção livre do ser e do seu corpo e portanto é uma rejeição positiva, no sentido em que a experimentação, o paradoxo e a contradição constituem lugares enriquecedores do espaço conceptual performativo. Assim, a partir das palavras do artista “somos o que os outros não são, 18 dizemos o que os outros não dizem e ocupamos os espaços culturais que são, muitas vezes, dispensados e desvalorizados”21. O objectivo que o artista encontra na sua prática está ausente de uma compreensão por parte do público ou do próprio artista. A verdadeira intenção está em “criar um sedimento na psique da audiência” que se manifesta na própria exploração do corpo e na inexistência de respostas concretas, na inquietação de uma limitação corporal e conceptual. Renato Cohen, performer e teórico brasileiro, associa esse “nome mágico” que é performance a um excesso de experimentação dentro da arte de vanguarda que fez com que o artista ou grupo designasse assim o seu trabalho quando lhe pretendia atribuir um cariz menos académico O surgimento desta actividade “de fronteira” dá-se pela necessidade de romper convenções, formas estéticas “num movimento que é ao mesmo tempo de quebra e de aglutinação”22. Pretendemos explorar este movimento da performance que conecta passagens entre a vida real e o jogo, entre o real e o inventado: o estado de coisas e a sua descrição artística com um sentido que não se limita a apresentar o objecto. Antecipando esta breve análise, digamos que a performance é certamente acontecimento: marcado pela presença de multi-linguagens - o teatro, a dança, a música, a música, as artes visuais - numa lógica de sentido produzida na mestiçagem. Porque performance é um conceito polimorfo? Porque é corpo. Entidade fundamental na inscrição da sua singularidade criativa que se manifesta não só em termos de techné mas mais profundamente em termos fenomenológicos de formação de sentidos-outros – a reinvenção / invenção – poièsis. O período é de transformação estética alteradora da concepção do corpo, tal como veremos seguidamente (capítulo 2). Performance é polimorfia de corpo como instrumento de fruição e aprofundamento estético de limites inexplorados. 21 Gómez-Peña, Guillermo (2008). “Em defesa da arte da performance”, trad. Filipa Campos, Margarida Mendes, in Marte n.º3, p.21. 22 Cohen, Renato (2007). Performance como linguagem, col. Debates 219, direcção J. Guinsburg, São Paulo: Perspectiva pp.26-27. 19 1.2 | breve análise do potencial performativo A análise da performance gerou um rico território de discussão no meio científico, de habilitação moderna do termo nos vários campos de análise concretos. Parece-nos importante levantar uma série de abordagens que se cruzaram no pensamento moderno e que tiveram, obviamente, repercussões (de parte a parte) na arte da performance. Na competência linguística, a semiótica da palavra performance põe desde logo uma dificuldade em definir o seu objecto porquanto este se compõe num prolongamento entre sujeito e objecto. Conforme Liliana Coutinho sublinha, John L. Austin refere que a solução desta questão passará por estabelecer uma diferença entre um enunciado do tipo constatativo (onde podemos indicar a verdade ou falsidade da afirmação) e um enunciado performativo. Por exemplo, a alteração da afirmação “Isto é uma obra de arte” para o enunciado performativo requer uma acção exercida no mundo e a hipótese de poder vir a ser “uma obra de arte” ou não (de ser uma afirmação verdadeira ou não). No último caso, a afirmação ocorre em simultâneo no sujeito que enuncia e no objecto que é enunciado dado que eles são um-mesmo. Em Austin, na situação performativa estamos sempre perante o “excesso da enunciação em relação ao enunciado, uma assimetria entre o que se diz e o que isso que se diz faz (que pode ter efeitos desconhecidos e inesperados) ”23. Nestes casos há um lado implícito como na expressão “vai-te embora” que implica uma ordem no sentido de “abandonar o local”, cujo enunciado se envolve com o sucesso ou falhanço da acção em causa designando-os como ilocuções visto que possuem uma força da acção mais do que significado24. Segundo Marvin Carlson (2006), Julia Kristeva critica a análise de Austin ao realizar uma separação entre a linguagem e a acção física, reiterando que o lado performativo está sempre implícito na transmissão e transformação de sentidos e significados da língua. De acordo com a sua visão, a estrutura abstracta da língua, na sua análise semiótica e simbólica, coaduna-se com a realidade da presença física por meio da performance – “Communication is still involved, but the emphasis is not on the traditional communication of an abstract and unitary thought content, but of an original movement, an effect, a force.”25 Neste sentido e na interpretação de Schechner (2002), a performance desenvolve na teoria do discurso, aquilo a que Derrida irá designar no 23 24 25 Coutinho, Liliana, “De que falamos quando falamos em Performance”, in Marte n.º3, Lisboa 2008, p. 11 Cf. Carlson, Marvin (2006), p. 62. Carlson, Marvin (2006), p.64. 20 ensaio Signature Event Context (1977) como citação, isto é, o aspecto de literabilidade. Mas o que Derrida designa por citação, na esteira do que havia já dito Bahktin, envolvese com uma infinidade de contextos e significados – “not only inaugurates a discourse on decentering, but enacts it with plentiful word-play, punning, and double meanings”26. Trata-se de um signo de algo que escapa aos contextos legitimados de referência da linguagem deixando de se poder falar de performance linguística, ou enunciado performativo, para se voltar a uma abordagem radicalmente distinta de actividade contextualizada socio-culturalmente. Além da análise linguística, podemos definir neste vasto território de desenvolvimento do potencial performativo uma aproximação das ciências sociais à ideia de performance enquanto motor de pesquisa da relação do homem com o mundo e com os outros e do homem consigo próprio. A ideia de acção performativa constitui, portanto, um factor relevante considerado quer nas disciplinas de antropologia e sociologia, quer na psicologia. Assim, conforme analisa Carlson, há uma valorização do termo em estudos culturais e antropológicos que estabelecem uma relação entre o teatro ou uma qualquer encenação como representações de pressupostos sociais de determinada cultura - uma aproximação entre as teorias antropológicas e as teatrais num sentido abrangente. Neste âmbito destaque-se Singer e a performance cultural, Victor Turner com a análise do que denominou drama social e, mais recentemente, Schechner explorando a relação entre drama social e drama estético. Apesar de desenvolverem diferentes contribuições e percursos, todos estes autores apontam para um caminho “intermédio” que comporta a performance, dado que ela é uma encenação à parte da vida quotidiana. Portanto, ela ocupa um lugar de fronteira que fornece importantes ferramentas de análise de sentido que não cabem nas restantes disciplinas27. Esta contra-corrente disciplinar assenta na encenação como paideia28, de carácter livre e que influencia a cultura social: J. Huizenga e R. Callois estendem o termo recorrendo à palavra latina ludus - o homem como Homo Ludens - que se refere tanto um jogo como a um espectáculo. Os dois sociólogos analisam categorias estruturantes da prática performativa, sendo que a performance moderna apresenta distinções relativamente à concepção tradicional retida nos conceitos de alea e vertigo. 26 27 28 Schechner, Richard (2002), p.99. Carlson, Marvin (2006), pp.13-16. Paideia, segundo os autores, no sentido em que abarca um conjunto de actividades desde as encenações criativamente contruídas até à espontaneidade natural dos jogos das crianças do seu processo educativo. 21 Esclarecendo: a disputa física e de ideias contidas na designação agon, de origem nos jogos olímpicos e nas tragédias gregas antigas, dá lugar à alea como hipótese ou possibilidade, num sentido mais ingénuo e espontâneo como são vistas as artes do corpo hoje em dia – a acção como prática de possibilidades e alternativas mais do que estruturas e convenções codificadas. Este aspecto leva-nos a uma segunda categoria moderna denominada ilinx ou vertigo, do grego e latim, que significa roda em movimento, “an attempt to destroy momentarily the stability of perception and inflict a kind of voluptuous panic upon a otherwise lucid mind”29; uma alternativa de sentido ou uma sublimação momentânea de ordens e códigos sociais já inconscientemente estabelecidos através do corpo – “vertigo is to the body what chance is to the mind.”30 Desse modo, continuando na análise de Carlson, antropólogo Barba divide essa capacidade performativa do corpo em três tipos: de acordo com as técnicas diárias (as potencialidades que se desenvolvem no dia-a-dia como no sentido da paideia anteriormente apontado), as técnicas virtuosas (a exploração dos seus limites como no caso dos ginastas, por exemplo) e, por fim, as técnicas extra-diárias. Este último ponto considera as artes performativas como algo que “in-forma” o corpo que potencialmente existe no seio de um tempo e lugar determinados31. Outro ponto de interesse de partilha da arte e da antropologia, é a performance cultural que ganhou novo impulso desde os anos 90, como palco de interesse e encontros, síndrome também de esbatimento de culturas no mundo globalizado dado que a performance incorpora essa criação de valores culturais no homem tanto individual como colectivamente. Tradições, etnias, hábitos misturam-se e exibem-se – há um lado positivo que conserva, analisa e renova a força culturalmente inscrita nos vários povos; por outro há, muitas vezes, uma visão crítica prévia, não só no que diz respeito aos povos na condição de “terceiro-mundistas”, como no empobrecimento de valores da civilização ocidental. Exemplos disso são as acções de Peter Brook em África, a peça Two Undiscovered Amerindians (1992) de Coco Fusco e Gómez-Peña, o realismo extremo de Coyote: I like America and America likes me (1974) de Beuys, as acções nas rua de Nova Iorque dos húngaros do grupo Squat Theatre (anos 80), a música-performer Laurie Anderson com United States (1983), e as performances do grupo mexicano / americano La Pocha Nostra. 29 30 31 Callois, Roger cit. por Carlson, Marvin (2006), p.22. Carlson, Marvin (2006), p.22. Cf. Carlson, Marvin (2006), p.23. 22 Mais recentemente, outro interessante exemplo, é o projecto em curso Body pArts da libanesa Lina Saneh que desafia as próprias leis do seu país no que respeita a decisão sobre um corpo já sem vida: a proibição da cremação. Perante uma questão política e ética, ligada à cultura e religião do país, a performer força uma reavaliação. Mais que uma reavaliação na problematização do pensamento, a urgência de uma acção concreta e rápida face a um problema que assume uma dimensão profundamente individual. Em Apêndice (2007) é o marido de Lina que discursa acerca das ansiedades e resoluções de Lina relativamente ao seu próprio corpo: a procura de, a todo o custo, contornar essa lei que impede a cremação dos corpos e que a leva à hipótese de poder vender partes do seu corpo como obras de arte assinadas por conceituados artistas. Ao mesmo tempo que Rabih Mroué desenvolve a sua palestra, Lina, sentada em palco, segue atenta e passiva essa leitura - discurso que é seu discurso, dito numa terceira pessoa. Talvez Lina tenha pretendido evocar, desta forma, certa transmutação de papeis do individual e pessoal para o colectivo e culturalmente aceite – quem decide sobre mim próprio? I’ve always wanted to be cremated after my death. But cremation is forbidden in Lebanon, for religious reasons. (…) The formulation may vary a little from one religion to the other but the idea is the same, the forbidden identical. But I’m absolutely set on being cremated, my mind’s made up, I’m not wavering. As a result, I ended up wasting a lot of time and energy trying to find a solution to my problem.32 E é apercebendo-se destas diferenças que os artistas vão fundando, num mundo globalizado, uma comunidade do espectáculo que avalia essa penetração de raças, identidades, classes, ideologias e mundos desde o interior de múltiplas comunidades do espectáculo33. No caso concreto português, de notar as performances-rituais de Albuquerque Mendes que pontuam a comunicação entre dois planos da realidade: o místico e o artístico, dois discursos em que se apoia, questionando a tradição portuguesa que ainda privilegia as práticas religiosas e cultos populares, fazendo uma reflexão sobre a vida e a obra do próprio artista. Esta aliança entre a performance e a prática ritualística “popular” na tomada de posse do espaço público serve de vínculo à sociedade, à cultura e à tradição, e à mensagem do papel interventivo da arte e do artista no seu tempo. Mais recentemente, a performance do Teatro Cão Solteiro&Vasco Araújo A Portugueza (2009). 32 Saneh, Lina, excerto da performance Appendice in http://www.linasaneh-body-p-arts.com/presention.html [em linha]. 33 Cf. Carlson, Marvin (2006), p.201. 23 Estes são caminhos que encetam na própria formação da identidade cultural consoante a recuperação e rememoração do património imaterial da construção da identidade socio-cultural. Similarmente estamos também constantemente a representar um papel no seio de uma sociedade, como aponta N. Evreinoff34. Existe, muitas vezes, um lado ético por detrás das acções performativas que se prende com o facto destas serem produzidas para uma audiência, e muitas vezes para uma audiência específica como acontece, por exemplo, na performance de Gina Pane Action Sentimentale (1973) cujo público era reservado apenas ao sexo feminino. Segundo Sartre, esse engajamento é também um grande desafio de representação para a psyche humana dado que colocar um observador passivo como participante que representa um papel, implica um desempenhar uma função e tomar consciência dela: “playing at «being» a waiter”35, a designada socio-performance, a natural ou a encenada. O Teatro do Oprimido de Augusto Boal implica necessariamente esse engajamento dado que um indivíduo no interior de um grupo social poderá ampliar as suas capacidades de expressão através de técnicas teatrais. Ao mesmo tempo, toma-se consciência - personagens e espectadores de vícios culturais muito vincados, tendo como importante papel a possibilidade de transformação de uma sociedade através do diálogo desse teatro-fórum. No caso do cinema, o Cinéma-Vérité de Jean-Rouch juntamente com E. Morin cumpre o propósito de documentário sociológico usando recursos técnicos e cinematográficos que originam uma nova poética de linguagem. Consideram-se e subvertem-se os papéis reais em sociedade. A performance Raising the “Titanic” (1983) dos Welfare State International é ainda outro exemplo desse entrelaçar do texto do espectáculo com o contexto social, criando uma espécie de duplo (o “restored behaviour” de que Schechner falava) de denúncia. No caso de Beckett e Ionesco é através da imitação - ao mimar a sociedade até ao extremo do absurdo - que se denunciam relações pessoais e sociais fortemente incrustadas. No caso da psicologia, J.L. Moreno desenvolve o psico-drama recorrendo à performance como método terapêutico. Importa focarmo-nos no seu processo de trabalho enquanto modo de tratamento além de modo de pensamento, ao colocar casos pessoais potencialmente patológicos em diálogo improvisado perante a atenção de uma audiência no sentido em que Schechner também designava a performance como um “restored behaviour”. Tal revisitação de comportamentos passados tem também conexão 34 Cf. Carlson, Marvin (2006), p.33. 35 Sartre cit. por Carlson, Marvin (2006), p.39. 24 com a psicanálise na reapropriação de sentimentos de conflitos recalcados. Assim, Moreno baseia-se na catharsis do teatro antigo jogando com a representação de papeis sociais evocada por Sartre como forma de libertar e ultrapassar constrangimentos psicosociais do paciente a partir de uma orientação em que o terapeuta desempenha a função quase de um director de actores ou encenador. É nesta esteira e por tudo isto, que se avalia a performance como um caminho aberto, que encerra a problemática como um território profícuo de resistência a conclusões doutrinárias, promovendo um diálogo para um progresso concertado das investigações sobre o homem e sobre a vida – a borda. 1.3 | ser poièsis e práxis: a efemeridade deste objecto artístico O objecto performativo instala eminentemente uma nova forma de espaço e de tempo pelo facto de ser, em simultâneo poièsis e práxis, isto é, processo e objecto de criação inscritos no mesmo corpo desse criador – a existência em si de um acontecimento. A nova poética artística funda-se na efemeridade da sua condição enquanto acontecimento único e irrepetível que adquire contornos diferentes das restantes modalidades artísticas. Contemporaneamente, a efemeridade é condição existencial da criação de muitos artistas plásticos no que diz respeito aos materiais escolhidos visando uma apresentação final: tomemos o exemplo do trabalho Gnaw (1992) de Janine Antoni que pela sua contingência objectual – grandes pedaços de chocolate e gordura marcadas com dentadas da artista – constituem desafios a problemas museológicos e de conservação e de legitimação artística. A efemeridade é já condição intrínseca da natureza do teatro e da dança – as artes ditas performativas. Os intérpretes actuam no instante indeciso do tempo, correm o risco de errar, porque existe sempre uma primeira pessoa que é o dramaturgo ou o coreógrafo ao qual se devem remeter – conceder a um texto, conceder a uma ideia de movimento, a existência concreta; a vida. O teatro e a dança, num sentido tradicional que não o do teatro/dança moderno, implicam a vinculação necessária a uma partitura previamente concebida - literária, coreográfica ou musical. Os intérpretes lidam com essa relação ao outro, lidam com uma duplarepresentação que é a do autor e a do personagem incorporados em si em que a 25 possibilidade de frustrar estas relações é a própria adrenalina do palco. A fragilidade da arte ao vivo (live art) manifesta-se de forma diferente na arte da performance, devido à sua essência espontânea, imediata – o imediatismo neste contexto surge como algo que não é pejorativo, pelo contrário, que encontra a sua especificidade nesse instante, no devir. Actualmente, assistimos a uma penetração e interacção das várias modalidades artísticas que simulam interesses múltiplos e múltiplas capacidades criativas dos artistas. Foram-se esbatendo esses limites disciplinares: teatro, dança, música, arte da performance, todos eles constituindo um mundo criativo só, um só corpo de sentido que vai tomando várias formas porque se torna flexível. É esta a ideia que defendemos, colaborando para uma análise abrangente, ao contrário de algumas análises classificativas e denominativas das artes que, de certa forma, bloqueiam a força performativa como prática/conhecimento de borda, em aberto, que prefere a miscigenação à sistematização. Diante da interacção de territórios artísticos partilhamos a ideia de liberdade artística do performer e poeta visual Fernando Aguiar: É comum os artistas plásticos utilizarem nas sua obras e, por vezes, na mesma exposição, várias técnicas artísticas em simultâneo como a pintura, a colagem, a fotografia, o desenho, objectos e em certos casos ainda o video, a escultura e a instalação. Muitas vezes vão buscar inspiração a outros géneros artísticos como a dança, o teatro, a performance-arte, o cinema ou mesmo à literatura, numa atitude interactiva para que, ao relacionarem particularidades de cada uma das artes e das técnicas, produzam uma obra mais criativa e, eventualmente, inovadora. Felizmente a arte tem essa capacidade e essa liberdade, a de interaccionar esteticamente para criar obras que contenham em si algo de novo, destruindo e ultrapassando barreiras estilísticas, géneros e conceitos artísticos.36 Ao falarmos de performance na contemporaneidade referimo-nos à globalidade do contexto dito performativo, que já não se embrenha apenas com as artes plásticas e a body art da sua inicial aproximação, mas estende-se à experimentação das restantes modalidades que se fazem com o corpo – as artes do corpo, as artes performativas. Veremos a questão de denominação, mais pormenorizadamente, quando falarmos de uma nova forma de espaço e tempo da acção no sub-capítulo 1.3.1. Por agora, importa reter essa abrangência que incorpora também o teatro e a dança no sentido moderno, capaz de se vincular ou não a uma partitura prévia de interpretação mas, sobretudo, 36 Aguiar, Fernando (1999) Comunicação apresentada no Simpósio Internacional “Location & Globalization in art” da 4th Sharjah International Arts Biennal, Sharjah, Emiratos Árabes Unidos in http://textoavoltadaperformance.blogspot.com/2010/01/fernando-aguiar-globalizacaointeraccao.html [em linha]. 26 admitindo a acção como forma poética de tornar o humano mais humano; capaz de integrar a indecisão ou repetição do gesto, o esvaziamento ou enriquecimento do discurso, a improvisação, o grotesco, o erro, o imprevisível como forças potencializadoras consoante determinado objectivo. Entendemos que a problemática de denominações para estas acções depende inteiramente da originalidade inventiva dos criadores ou de meras exigências de classificação. Aliás, a força do trabalho de alguns artistas prende-se precisamente com o questionamento dessas convenções institucionais do Teatro e do Museu, como no caso de Notações para a descida de um pano de cena (2011) de Mariana Silva. No recente formado projecto !Calhau! circunda-se um imaginário fantástico e grotesco na exploração de múltiplos recursos da imagem, do som e da música, da literatura e do cinema, uma “queda directa à harmonia posta em fuga”37, como afirmam. Instituições como a companhia do Teatro Plástico do Porto, por exemplo, tal como sugere o nome, promovem uma atenção ao lado plástico no teatro, à cenografia, aos figurinos, à luz, como elementos importantes a par da encenação e interpretação teatral. E tantos festivais de artes performativas como o alkantara festival, o recente Materiais Diversos, o Escrita na Paisagem ou o Temps d' Images para referir alguns portugueses, entre muitos outros que propiciam esse encontro multi-disciplinar artístico. Em torno deste fértil terreno criativo actual, a prática performativa encontra na efemeridade a força dos seus contornos definidores. Buci-Glucksmann (2003) define o efémero entre um paradoxo existente na arte e um novo paradigma do tempo. Como vimos a natureza da arte contemporânea é contingente e isto justifica-se sobretudo pela exaustão das possibilidades de criar algo sempre novo, assim como da necessidade de aproximar a arte intimamente ao homem - seja na arte conceptual como valorização do processo ou na inscrição do corpo-do-artista como potencial objecto artístico. Por um lado, a história, a memória, o museu como força perpetuadora do passado e do artista; por outro, a humanização da arte face à vida (inequivocamente efémera), e o fluxo ultrarápido das imagens no tempo, aceleração globalizada de mundo. Por isso, Lipovetsy relembra no final da obra Império do Efémero (1987), a Moda como elemento problemático entre a primazia da razão (supostamente eterna) e a felicidade individual. As incompatibilidades do presente que se reflectem na criação artística, reflectem também a nossa cultura da moda que “reconduz o indivíduo a si próprio” mas também 37 !Calhau!, in http://www.einsteinvoncalhau.com/Estufides_menu.html [em linha]. 27 “nos torna cada vez mais problemáticos a nós mesmos e aos outros” - a crise do aspecto ou o “trágico da leveza”38. Perenidade vs. Impermanência: a existência da arte apoia-se na fluidez do tempo, “un temps impur, un temps de «remémoration» ou d'anamnèse, où le passé est inachevé et ouvert, sans dépassement possible”39. O paradoxo da arte advém da fixação/conservação do objecto num tempo que atravessa gerações, em contraponto com modelos de beleza e de moda sempre mutáveis “car si madame la mode et madame la mort n'ont cessé de flirter dans les extrêmes du temps – le frivole et le mortel – c'est bien parque la superstition d'un nouveau toujours nouveau dissimule une autre expérience, beaucoup plus douloureuse: la traversée de la mort”40. O paradoxo da arte contemporânea advém desse (des)equilíbrio entre a aura de eternidade da obra artística e o fascínio pelo poder do novo, ligado à moda e ao consumo de imagens que a arte Pop soube comunicar, “o invólucro divertido, titilante, o aperitivo do manjar divino”41. Em alguns casos, o instante efémero tornou-se quase um refúgio para o homem, um tempo de passagem neutro que os esquemas Ocidentais não souberam tão bem assumir como os Orientais: a estética como modo de existência como no filme Dolls (2002) de Kitano42, lembra o renascimento da aisthesis grega e uma “hermenêutica do sujeito” no sentido que Foucault lhe atribuiu43. Resumindo, ideia de contemplação parece-nos um dado já quase inútil no imediatismo da sociedade, todavia, a acção na arte e a sua efemeridade pode ainda ser importante porque é o lado obscuro da imaginação e do sonho, o lado errante que se revela, algo de espontâneo, certo defeito ou falha que existe na natureza humana. Face a isto, surge a segunda questão do efémero como paradigma do tempo, “capte du temps dans les flux imperceptibles et les intervalles des choses, des êtres et de l'existant”44. Assim sendo, a efemeridade contemporânea inscrita na arte, o saber sensível da estética, contempla a impermanência e a transitoriedade como noções positivas do tempo. O fugidio e o frágil passam então a ser forças legitimadoras do subjectivo no contemporâneo através da acção performativa do corpo no instante. Até 38 Lipovetsky, Gilles (1989). O império do efémero - A moda e o seu destino nas sociedades modernas, tradução Regina Louro, Lisboa: Dom Quixote, p.382. Buci- Glucksmann, Christine (2003) ). Esthétique de l'éphémère, Paris: Galilée., p.13. Buci- Glucksmann, Christine (2003), p.19. Baudelaire Charles (2006), p.9. Dolls (2002), DVD. Cf. Buci- Glucksmann, Christine (2003), p. 20: “(...)le Japon me ramena à ce que les Grecs appelaient aisthesis, une théorie de la sensibilité et des sensibles où la beauté est moins un jugement du valeur qu'une faculté de recréer du sens et l'éxistence, de susciter nouvelles formes de «subjectivation» que voulait Foucault, pour construire une «herméneutique du sujet» ouverte au souci de soi et de l'autre”. 44 Buci- Glucksmann, Christine (2003), p. 25. 39 40 41 42 43 28 porque o que mais importa é a viagem estética, a vertigem do abismo e decerto uma partilha de mundo do artista com o outro/o espectador. No fim de contas, caminha-se inexoravelmente para um estado de caos que é tragicidade da vida: significa que tudo fica em aberto, tudo é interrogação e é num interstício de fôlego (acção inefectiva), que a vida é dita. Esboça-se uma estética que se reencontra com o seu estado originário no reconhecimento da sensibilidade como ponto fulcral da experiência humana ultrapassando uma visão dicotómica própria de uma racionalidade puramente técnicocientífica ou especulativa que marca ainda o pensamento ocidental. Este desenho de sentido efémero na performance ancora-se em dois eixos fundamentais: a presença e o corpo. Relativamente ao primeiro, a presença, tal como a introduziu Fried,45significa esse acontecimento que se apercebe num dado local e tempo. Por natureza, a performance é uma acção rápida e implica um impacto imediato: assimilam-se rapidamente produtos desmaterializados numa sociedade de consumo. Então, presença não se identifica necessariamente com a presença de uma personagem a desempenhar um papel, mas sim a de um corpo performativo, humano, dependente das suas capacidades de comunicação e não só das suas qualidades físicas. No caso da dança, é na fluidez do gesto escrito no tempo-devir que se afirma essa efemeridade enquanto estado presença. A dança passa a ser registo dessa mesma efemeridade, o corpo como autor e contador da sua própria história mesmo sendo ele intérprete de uma notação coreográfica, é pensamento de si mesmo -"his body says what words cannot“.46 Como lembra José Gil: Ao mesmo tempo em que apresenta uma sucessão de movimentos visíveis do corpo, toda dança cria um fundo de movimento desaparecente [mouvement disparaissant] que só ele torna possível o surgimento das formas e a sua visão “efémera”. Neste sentido – de uma efemeridade construída, que é própria de toda a dança -, não há forma efémera a não ser sobre um fundo de desaparecimento.47 É também por este motivo que a interrogação sobre o que é um corpo é explorada em pormenor (capítulo 2). A noção que comporta corpo na performance enquanto designação para artes do corpo eleva-se na sua aptidão fenomenológica, que entende essa dimensão maiúsculada da sensibilidade além-física – o Corpus. Assim sendo, o eixo corpo desdobra-se em corpos privados ou cúmplices significantes e geradores de 45 Cf. Fried, Michael (1998), Art and Objecthood. 46 Graham, Martha (1991). Blood Memory: an autobiography, Nova Iorque: Doubleday, p.8. 47 Gil, José (2001). Movimento Total: O corpo e a Dança, tradução de Miguel Serras Pereira, col. Antropos, Lisboa: Relógio d'Água, p. 202. 29 significado e de sentido que, preferencialmente, afectam e envolvem o público observador/participante (1.3.2.). 1.3.1| a borda uma nova forma de espaço e tempo da acção A borda supõe sempre a ideia de equilíbrio/desequilíbrio que, neste caso, se balança numa extremidade que é a do campo legitimador das modalidades artísticas que são feitas com o corpo, com suas especificidades próprias e as competências técnicas que lhes estão adjacentes e, ainda, por dentro do sistema; e uma outra extremidade de fuga, que se liga à interpenetração artística, à crescente valorização de um leque de competências culturais abrangentes que formam um criador contemporâneo quando ultrapassa a sua área limitada de formação. Ao avaliar performance como acção potencializadora de conhecimento de borda, um investigador, um teórico, um curador, um crítico, terão de ter em conta os complexos cruzamentos e influências artísticas e culturais que o engendraram. As variáveis são flexíveis e diversas no que se refere ao contexto específico de cada trabalho, tipologia de trabalho (se é teatro-dança, ou se relaciona com literatura, música ou cinema, etc.), o local de apresentação, a duração, o tipo de público, entre outras variáveis que ainda se podem tornar mais diversas consoante o desejo e a aventura na orla da criação performativa. Advém também daí o facto de ser tão difícil elaborar uma história da performance, podendo ser no entanto possível realizar abordagens distintas focalizando uma linha possível de análise: a performance ritual e cultural, a performance feminista ou as questões de género, por exemplo, são alguns dos temas actualmente recorrentes. Como em todo o pensamento ocidental desde a idade moderna, procurando “arrumar” as matérias sugeridas desde a separação das ciências, a arte da performance é denominada performance abarcando tudo o que se faz com o corpo em estado de exibição e, portanto, em estado de presença. Contudo, a performance distancia-se das restantes modalidades artísticas porque excede as noções de beleza e de arte dado que implica a existência real - a vida. Implica o ser-aí, como diria Heidegger acerca do serno-mundo (Dasein), e não uma total encenação ou interpretação. O performer em vez de ser uma personagem construída, passa a pôr em cena uma habilidade pessoal que pode ser, no limite, o assumir da sua própria fragilidade. Estas habilidades executam-se no 30 sentido de demonstrar capacidades físicas que remontam aos chamados glee-men48 ou aos performers que se equilibravam na corda e animavam a corte no período medieval, com ligação à noção de desempenho - os circos, os ginastas, o ballet clássico, os humoristas, para citar alguns exemplos. Mas estas habilidades mostram-se, também, nas fraquezas humanas, os estados de espírito e tudo aquilo que pode ser susceptível de ser exibido: em Bird (2000), de Khurana, a performer transmite a fragilidade humana e desafia os cânones de beleza dado que expõe o excesso de peso no corpo nu e tenta voar, algo para o qual a nossa estrutura física não está destinada. Exige-se apenas uma habitabilidade (mais do que habilidade) desse lugar e desse tempo presente. Schechner aponta para o facto da arte implicar uma representação enquanto que, diferentemente num acto performativo experienciamos o próprio evento protagonizado pelo intérprete – “performers who «do» the thing itself in front of our eyes. A considerable amount of postmodern art does not offer viewers objects or actions for contemplation.”49 Dita-se a exigência do agora do tempo como condição da acção imediata reflectida na performatividade e a nova forma de conhecimento que rompe com as crenças legitimadas de normas culturais e critérios, os quais Lyotard tomou como metanarrativas totalizantes do pensamento moderno. Deste modo, a performance enquanto instrumento de comunicação/acção vai além das meras palavras ou interpretações para se desenhar em novas formas de conhecimento, tal como o iremos considerar no capítulo 2 - do corpo. Esse potencial reflecte-se na tomada de funções críticas ou politicamente activas, “formam este tecido de dissentimento no qual se recortam as formas de construção de objectos e as possibilidades de enunciação subjectiva próprias da acção dos colectivos políticos”50, aquilo a que Rancière denominou a política da arte e que resulta do “entrelaçamento de três lógicas a das formas da experência estética, a do trabalho ficcional e a das estratégias metapolíticas”51. Desde os anos 80 emergiam vozes que, de uma maneira ou de outra, fixaram o seu manifesto político: o “guerrilla theatre” e as Guerrilla Girls, Reza Adboh, Yvonne Rainer, Mapplethorpe, entre tantos outros. Em Portugal, esta fusão de propósitos estéticos, éticos e políticos manifesta-se em acções de rua bastante recentes como nas intervenções sociais da associação do Porto: Pele - Meto a Colher (2011) 48 Glee-men “a term which included dancers, posturers, jugglers, tumblers, and exhibitors of trained performing monkeys and quadrupeds” cit. por Carlson, Marvin (2006), p.88 49 Schechner, Richard (2002), p.41 50 Rancière, Jacques (2008), p.98 51 Rancière, Jacques (2008), p.99 31 sobre violência doméstica, para dar um exemplo. Ainda no Porto, o projecto ±MAISMENOS± desenvolve uma intervenção nas ruas da cidade, e a performance ± EGO SUM PANIS VIVUS ± (2011) que consiste num indivíduo jogar golf nas escadas do Parlamento em Lisboa numa alusão aos impostos que o governo baixou só a este desporto no período de crise actual. O grupo questiona preceitos políticos e sociais desde a dimensão nacional à globalização capitalista e interroga “Vamo-nos deixar ser comidos por um BigMac?”. De referir ainda, a este nível o teórico Randy Martin e, colocando a tónica nas politicas feministas, Peggy Phelan. A intenção destas acções já não está tão virada para o porquê mas para um como realizar estes actos, rompendo-se com o discurso narrativo teatral e intensificando o instante, a live art, engajando as dialécticas do tempo – “stage time x real time e performers x personagem”52 - que proporcionam uma leitura emocional, mais do que racional, dado que muitas vezes o público não entende imediatamente já que a mensagem é cifrada. O comprometimento com a sensibilidade humana qualificado à prática artística proporciona uma abordagem e um engajamento distinto do efeito alienatório dos média – o efeito é precisamente o oposto, um chamar à razão, e uma certa resistência intrínseca à sua própria natureza, mas de uma forma “simbólica” pois tomada no corpo performativo – “its nature involved in resistance (…)to the symbolic, the attempt of authority in art or politics to enforce a unified moving and monolithic structure oppose to the «overflowing» quality of moving, acting, and desiring body”53. E é esta natureza transbordante e livre que caracteriza o conceito de performance como fronteira e a relação que satisfaz com o seu tempo – como discurso radical: O discurso do combate (que não se dá verbalmente, como no teatro engagée, mas visualmente, com as metáforas criadas pelo próprio sistema). A linguagem da performance é uma reversão da mídia. A mídia manipula o real (artificialmente se criam padrões, mitos, imagens, etc. que passam a ser aceitos como verdade). O que se faz na performance é, utilizando-se essas mesmas «armas» (incluindo-se tecnologia e electrónica), manipular também o real para se efectuar uma leitura sob outro ponto de vista (como na metáfora Zelig de Woody Allen onde se cria uma realidade histórica).54 O espaço de apresentação de uma performance pode, assim, ser o mais diverso possível, desde a rua, ao café a um palco com todas as condições de espectacularidade. Isto leva-nos a uma segunda questão que é a justiça de classificação como 52 Cohen, Renato (2007), p. 67 53 Martin, Randy cit. por Carlson, Marvin (2006), p.154. 54 Cohen, Renato (2007). p. 88. 32 “performance” ou como “artes performativas” das modalidades artísticas já historicamente formatadas: o teatro, a dança, as artes visuais. Brentano nota o aparecimento do termo ligado ao aparecimento de processos de trabalho conceptual relacionados com o corpo e com as artistas feministas que surgiram nos anos 60/70. Todavia, o espectro performativo foi aos poucos alargando perspectivas e incluindo inumeráveis investigações sobre as rotinas do dia-a-dia, os rituais catárticos, produções com recurso aos multimedia mais sofisticados, autobiografias performativas, projectos virados para a comunidade e projectos políticos, as transformações de ambientes sitespecific, entre outros55. Relativamente ao site-specific, o espaço criado para a função de uma apresentação, com a sua personalidade própria e as suas memórias inscritas proporcionam uma dupla adaptação da performance a esse espaço e desse espaço ao receber essa performance e, consequentemente, alterando a percepção/acção do público. Subtraem-se, deste modo, convenções formais para se adicionarem novas possibilidades espaciais, a arte entrando para dentro da vida do público como, por vezes, as intervenções de rua, mesmo quando o público não quer ser espectador. Este movimento irá ser produto da fusão do teatro, da dança e das artes visuais e simultaneamente distanciar-se deles gerando uma confusão em torno de designações classificantes de dado acontecimento que os artistas adaptaram consoante a pertinência operante de cada obra. A designação happening, acontecimento ou evento, tornou-se célebre aquando a proposta de Kaprow de 18 Happening in 6 Parts (1959). Para Kaprow, o seu trabalho baseava-se em ideias muito distintas das associadas à “arte” na época (a instituída), elaborando as suas próprias regras de apresentação nesses moldes: o happening deve ser realizado apenas uma vez, recorrendo a temas não relacionados directamente com arte e aceitando a fluidez da linha separatória de arte/vida e da descontinuidade e diversidade do espaço/tempo56. O próprio actor/artista deixa de ser representante de ficção para passar a ser observador de si próprio - “substituição do eixo de sustentação do teatro convencional (narração/personagem) pelo eixo performance (live art/performer)”57 - e além disso, descreve-o Kaprow, como alguém praticante da não-arte, o a-artista (ou aquele que se interessa por tudo aquilo que ainda não seja aceite no conceito “arte” mas que atraia a atenção do artista), que explora a dimensão de verdade e da espontaneidade. O espontâneo performativo é condição para o desafio 55 Cf. Brentano, Robyn cit. por Schechner, Richard (2002), p.137. 56 Cf. Kaprow, Allan cit. por Schechner, Richard (2002), p.140 57 Cohen, Renato (2007), p. 85 33 curioso ao leitor de Performance Studies que Schechner propõe no final de cada capítulo do seu livro: desafios para pensar e para fazer: fazer uma cena de uma peça realista de forma totalmente irrealista alterando o estilo de actuação, perceber como é performance (comportamentos, gestualidade) na nossa vida diária, de que forma a fronteira entre ritual e teatro se dilui, observar o encontro de um grupo de pessoas que não se conhece e intervir com determinado objectivo em mente, reproduzir para um grupo de pessoas algum comportamento que façamos em privado e perceber o que se alterou ao tomar consciência que está a ser apresentado. Por outro lado, Beuys colocou a tónica no acto, a aktion e é Oldenburg que, pela primeira vez, usa o termo performance. Relativamente ao happening, a performance já não se prende tanto com um movimento de uma sociedade alternativa dos anos 60, apesar de ambos constituírem formas de ruptura e contestação, mas antes com uma maior conceptualização (ou estetização) do processo, mais individual e cristalizado. Para maior compreensão vejamos o esquema: Happening Performance Período 1960/1970 1970 em diante Sustentação Ritual Ritual Conceptual Fio Condutor Sketches (algum controlo) Colagem e Sketches (aumento de controlo) Forma de estruturação Grupal Individual (colaborações) Ênfase Social e Integrativa Individual, Utopia Pessoal Objectivo Terapêutico e Anárquico Estético, Conceptual Material Plástico Plástico e Electrónico Tempo de Apresentação Evento sem repetição Evento com alguma repetição Fonte: Renato Cohen (2007), p. 136. O afastamento do teatro relativamente à performance dá-se em dois tempos. O primeiro, de carácter pós-estruturalista, consiste na semiótica da representação que no teatro está ausente de um espaço/terreno real para existir nos moldes e locais definidos formalmente – o palco, a ficção -, ao contrário da performance que desconstrói esses códigos semióticos e considera um espaço/terreno de trabalho livre, “creating a dynamic 34 «flows of desire» operating in a living present”58. Uma segunda quebra dá-se numa atitude, inicialmente anti-teatral, em que as performances se viravam muito mais para o desenvolvimento do potencial do corpo, seus gestos, os movimentos, seus medos e valorização da imagem e não da palavra. Nos anos 80 novas de ideias e artistas voltaram-se para as possibilidades de sofisticação das novas tecnologias - os mix-media - abandonando a ruptura extrema na atitude anti-teatral. O próprio teatro enquanto instituição abandonou os seus axiomas mais tradicionais e, de acordo com a nova arte, passou a valorizar a imagem, a abandonar os temas dramatúrgicos e a palavra imposta. Segundo Cohen a estrutura da performance dá-se numa collage e num discurso de mise en scène: o processo não corre na forma aristotélica com um início/meio/fim, preferindo o aleatório ao linear e apostando em elementos precisos que carregam signos para formar uma linguagem gerativa: “a arte funcionaria, dessa forma, como uma chave para uma «descodificação mágica da realidade», constituindo-se segundo o pensamento esotérico, num dos quatro caminhos para a verdade ao lado da religião, da filosofia e da ciência”59. Engendrou-se, assim, a nova espectacularidade no interior do teatro, desde que este abandona o carácter rigidamente representativo e narrativo para priveligiar a livre associação, o discurso poético e a live art desde Robert Wilson que se estendeu à penetração da dança-teatro, o Tanztheatre, de Pina Bausch - numa osmose onde o que importa é o porquê da gestualidade e não o modo como. Pelo gesto de Pina Bausch, a dança passa a ser força de tensão significante do próprio social e existencial do corpo historicamente treinado e sentido. Questiona-se a docilidade do corpo do bailarino clássico, o corpo mítico, para se expor antes o sofrimento, a melancolia, a violência, a solidão e o êxtase de personagens diárias, onde singularidade de cada corpo biográfico em palco é veículo de conexão e transmissão ao mundo, de mundo. É na narração de múltiplas coreografias biográficas de sentidos próprios de cada corpo específico que se convocam as transparências. A transparência remete para a própria força do efémero, a sensibilidade da corporalidade e do gesto, “métaphysique de la transparence qui piège les êtres et les enferme dans un monde aussi pur que mortifière”60: Os figurinos nas peças de Pina ora nos fatos ocidentais dos homens e das mulheres comuns, ora na roupa interior, íntima, sinalizam esse velar/desvelar das fragilidades e inseguranças naturais de cada indivíduo, “como uma 58 Carlson, Marvin (2006), p.57. 59 Cohen, Renato (2007), p. 63. 60 Buci- Glucksmann, Christine (2003), p.52. 35 transparência desfocada sobre o corpo que vestem, tornando-o mais indefeso”61. Portanto, mais do que técnica passa a importar a intencionalidade do movimento e seu reflexo desde o interior do corpo num processo de virar o natural do avesso para o trazer à tona e para “assim olhar a interioridade daquele corpo que dança como se estivesse coberto com a própria alma”62. A intencionalidade no processo criativo torna-se elemento visual rico na acção de Pollock ao pintar. O caminho das artes cénicas cruza-se com o das plásticas onde o artista utiliza o seu corpo-instrumento, sujeito e objecto da obra, relacionando-se com os elementos espaço-tempo-público. Pollock movimenta-se sobre a tela, dança com ela, atira a tinta e controla-a, às vezes perde a pintura, mas a ideia de acção da pintura conferem à obra final sempre um carácter inacabado e em aberto. Yves Klein, em Antropometria do Período Azul (1960) executa uma celebração da sensualidade da nudez do corpo feminino como pincel, convidando para tal bonitas mulheres. O artista vai pintando ao mesmo tempo que se assiste a um concerto, sinfonia monótona (um som contínuo e ininterrupto que se prolongou por vinte minutos, seguido de um silêncio absoluto). O público assiste a este ritual cuja duração é de cerca de quarenta minutos para posteriormente participar activamente, debatendo acerca da função do mito e do ritual em contexto artístico. Modelos performativos idênticos a este apresentaram-se nos rituais pagãos de Hermann Nitsch que contou com diversos colaboradores, bem como na celebração orgiástica de Schneemann em Meat Joy (1964). Ou, no caso das Sculture Vinventi (1961), a forma como Manzoni passa para o corpo vivo aquilo que aparentemente fazia parte de objectos inanimados e valiosos, adquiridos pelos coleccionadores, num irónico questionamento da legitimação da obra de arte. Mais recentemente, com base na mesma ideia de escultura-viva, as instalações de fotografias onde o público se torna parte da instalação, posicionando o seu corpo e encenando-o de acordo com as instruções dadas, por exemplo Glue your brain to the board (do it for one minute and think about Adorno) (2003), “his directions generate physical possibilities and social improbabilities: a pair of disembodied legs halfway up a wall, or a man with his ar, down a woman's top” 63 . O recurso ao humor é forma de avaliar algumas ideias pré-concebidas no meio artístico e museológico: em Irwin Live (1998) o grupo com o mesmo nome expõe-se juntamente com as obras dependurados no tecto da galeria, 61 62 63 Ribeiro, António Pinto (1994). Dança temporariamente contemporânea, col. Passagens, Lisboa: Vega, p.41. Ribeiro, António Pinto (1994), p.41. O'Reilly, Sally (2009). The body in contemporary art, col. World of art, London: Thames & Hudson, p.53. 36 considerando assim duas linhas de espectadores – eles mesmos, artistas-observadores e objectos dessa mesma instalação, e o público da galeria; e o Perfect Day (1999) de Maurizio Cattelan onde o galerista é literalmente colado à parede com fita-cola desestabilizando lugares de poder. O uso de objectos banais em acções é também uma característica marcante, Marepe retira objectos do seu uso ordinário e exibe-os como em Acoustic Head (1995), onde dois tambores de uma máquina de lavar roupa e um funil encaixam à volta da cabeça por onde sai um som produzido e amplificado. Por fim, citese o trabalho de Gary Hill, ligado à video-arte do século XX e fortemente impulsionado pela ideia de comunicação da imagem, da linguagem e do signo. Em Site and Resite (1989) descobrem-se imagens desfocadas e vocábulos indecifráveis, em Wall Piece (2000) o corpo e a palavra comunicam em simultâneo através de violentas pancadas. Teatro, Dança e Artes Plásticas complementam-se actualmente no sentido comum do enriquecimento e mestiçagem disciplinar, técnica e de intensificação dos elementos de comunicação. Basicamente trata-se da performatividade que têm em comum estas áreas enquanto formas de simulação que ultrapassam o fingimento e a encenação consoante a interpretação de Baudrillard para se substancializarem no simbólico, no hiper-signo - o simulacro: “Thus, feigning or dissimulating leaves the reality principle intact: the difference is clear, it is only masked; whereas simulation threatens the difference between «true» or «false», «real» and «imaginary». Since the simulator produces “true” symptoms, is he ill or not? He cannot be treated objectively either as ill, or as not ill.” 64 A noção de simulacro na arte pode ser vista também como a possibilidade da borda e dos limites inexplorados: a nova forma de espaço e tempo da acção. 1.3.2 | observadores e participantes O público das performances pode assumir dois papéis consoante os objectivos do evento ou o lado imprevisível do correr dos acontecimentos: o espectador como observador, assistente e o espectador como participante em que tende a tornar-se um “espec-actor”, o que acontece sobretudo em performances-rituais. Para Kaprow a audiência simplesmente não existe visto que todos somos participantes do happening. Outro aspecto a acrescentar é a situação do imprevisto em que o espectador muitas vezes não sabe de todo em que vai consistir a acção e nunca sabe o que vai acontecer a seguir no decorrer da mesma. No caso das performances de rua em que o público tem 64 Baudrillard cit. por Schechner, Richard (2002), p.119 37 mesmo de se locomover para acompanhar o performer, podendo também distanciar-se dele se o desejar. Note-se que a reacção do público é, também, um imprevisto para o performer. Muitas vezes os valores estéticos confundem-se com os valores morais: em acções de risco como o caso de peças de Chris Burden (1971) e Abramovic (1974) é testada a passividade do observador quando os performers são propositadamente colocados em situações de perigo extremo, colocando em risco a sua própria vida. No estudo de Kathy O'Dell, este tipo de performances implicaria uma espécie de contrato do performer com o público, em Shoot (1971) “os membros do público escolheram não interromper o disparo, da mesma forma que o próprio atirador escolheu não recusar o pedido de Burden” 65 . Digamos que houve uma supressão momentânea do juízo ético compactuado entre o público e o atirador, o que não aconteceria em situações normais, criando uma “zona cinza numa arena de responsabilidade, de dilema e decisão” 66. Em Rythm 0 (1974), Abramovic convidou o público a usar setenta e dois objectos dispostos numa mesa sobre ela, sendo que o septuagésimo sétimo objecto era a própria artista que estaria totalmente fora do controlo do que poderia acontecer: “enquanto Abramovic permaneceu passiva o público escreveu em todo o seu corpo, despiu-a, coroou-a com espinhos, beijou-a, cortou sua pele com uma gillete, sugou seu sangue (...)”67 Foi ainda mais longe em Untitled (1970) onde pretendia explicitamente evocar a morte através da roleta-russa, além das explorações dos limites físicos e psicológicos do corpo, a probabilidade da morte enquanto elemento trágico-poético, mas nenhuma galeria na Jugoslávia aceitou este trabalho: (...) vestida de forma costumeira e diante do público trocaria de roupa vagarosamente, vestindo roupas do agrado de sua mãe – previamente dispostas numa arara no canto do palco. De um dos bolsos de sua saia ela tiraria uma arma e do outro uma única bala. Abramovic então carregaria a arma, rodaria o cartucho, colocaria a arma na têmpora e puxaria o gatilho. Caso sobrevivesse ela se vestiria novamente com as suas próprias roupas e deixaria a galeria.68 Ainda com Abramovic o público pode ser conduzido implicitamente para a criação, protagonista de uma acção, quando sob determinadas condições uma situação onde nada acontece impõe que o outro-activo actue ou faça algo como em Modus Vivendi (1979) e Communist Body/Fascist Body (1979) ambas com Ulay. 65 O'Dell, Kathy cit. por Bernstein, Ana (2003). “Marina Abramovic: Do corpo do artista ao corpo do público”, in Vozes Femininas, organizado por Flora Süssekind, Tânia Dias e Carlito Azevedo, in http://books.google.com/booksid=QOzcHeENsz8C&pg=PA379&lpg=PA379&dq=roleta+russa+abramovic&so urce=bl&ots=qWm7O_bG, [em linha], p. 381. 66 A expressão é de Franz Warden cit. por Bernstein, Ana (2003), p. 386. 67 Bernstein, Ana (2003), p. 380. 68 Bernstein, Ana (2003), p. 379. 38 Podemos identificar acções ainda mais intimistas, onde o público é limitado e até seleccionado, como no caso de Gina Pane que em Action Sentimentale (1973) reservou a sua criação a um público unicamente feminino. Em obras já designadas anteriormente, as fotografias encenadas de Duchamp e Journiac, implica-se certa performatividade na encenação, mas não existe performance no sentido tradicional dada a ausência de público, um outro observador/público em corpo presente. A série de trabalhos de Michelangelo Pistoletto Trans Border Trans Limit Trans Gression (2008) é uma interessante abordagem ao espectador enquanto objecto artístico nessa trans-parência corpo-da-obra e corpo-do-espectador que se faz por meio do uso do reflexo do espelho como tela. Na 53ª Bienal de Veneza em 2009, Pistoletto coloca vinte e dois espelhos com uma moldura dourada na instalação-performance Twentytwo less two e na inauguração quebra dois deles numa alusão à inscrição humana do presente no interior da universalidade sugerida pelo reflexo do espelho. O trabalho de Judith Barry recentemente exposto no Museu Berardo com o título Body without Limits (2010) é denominado como o teatro do espectador. A formação de Barry é multidisciplinar tendo passado pela arquitectura, arte, literatura, teoria do cinema e a infografia incorpora todas essas vertentes da sua formação, com a característica central da presença no espaço físico do corpo (físico e mental) do espectador. Em Study for Mirror and Garden (2008) à semelhança de Pistoletto o espelho serve de suporte para trazer o observador à instalação, animá-la e torná-la performática, cruzando-a também com os vídeos ao mesmo tempo projectados em telas translúcidas e reflectidos nos espelhos gerando um espaço misterioso para quem lá entra. Barry experimentou a performance em instalações video-arte, mas, nos trabalhos mais recentes, o performer já não é a artista e transforma-se no próprio espectador-participante como em Speedflesh (1998). Um ecrã capta o corpo de uma mulher debaixo de água de uma piscina onde se manipula e sintoniza a voz de cinco histórias de personagens distintas: na complexa instalação multimédia, o espectador é desafiado a interagir com as obras e a entrar e descobrir o seu próprio espaço. Também a água serve de elemento-chave para explorar as tecnologias ligadas à voz e a relação humana com o estado líquido, na operella subaquática de Juliana Snapper - You Who Will Emerge from the Flood (2005), contando com a participação de 60 voluntários que participam numa série de ensaios prévios ao performance-concerto. A performance pode mesmo ser definida como consequência da presença de observadores - “all the activity of an individual which occurs during a period marked by 39 his continuous presence before a particular set of observers and which has some influence on the observers”69 na qualidade fundamental dessa relação na performance a partir de um simulacro que funciona como uma metacomunicação ou uma frame que supõe que, em determinado momento e local, está a acontecer uma performance. Todas estas possibilidades de comunicação e de transposição dessa exterioridade que é o palco fazem do observador um participante, na interpretação do espectador emancipado de Rancière. O espectador emancipado, na sua relação com o criador, gera um terceiro elemento, algo que escapa aos dois porque está entre a ideia do artista e a compreensão do espectador - é a performance em si, o poema, e isso fazemo-lo cada um de nós: A emancipação começa quando se compreende que olhar é também uma acção que confirma ou transforma essa distribuição de posições. O espectador também age, como o aluno ou o cientista. Observa, selecciona, compara, interpreta. Liga o que vê com muitas outras coisas que viu noutros espaços cénicos e noutro género de lugares. Compõe o seu próprio poema com os elementos do poema que tem à sua frente.70 69 Goffman, cit. por Carlson, Marvin (2006), p.35. 70 Rancière, Jacques (2008), p.22. 40 1.4 | a performance em Portugal. a prática no feminino Era uma vez uma ausência que andava em missão de viagem. Quando chegava a uma encruzilhada dava três voltas sobre si própria para perder por completo a noção do caminho por onde viera atingindo assim com regularidade as regiões efémeras do esquecimento. Depois regressava a casa. Ana Hatherly É possível remeter os inícios da prática performativa em Portugal para meados da década de 60, quando alguns poetas experimentais e visuais e músicos tentavam esboçar novos caminhos de interpretação artística, concebendo happenings de carácter mais ou menos improvisado protagonizados por nomes como Ana Hatherly, António Aragão, Melo e Castro e Salette Tavares, os compositores Clotilde Rosa e Jorge Peixinho e, mais tarde, por pintores como João Dixo, João Espiga, Armando Azevedo e, sobretudo, Ernesto de Sousa. A par de uma exposição de poesia concreta Visopoemas realiza-se em 1965, na Galeria Divulgação em Lisboa, as primeiras intervenções: o grupo espanhol Zaj71 organizou um evento multi-disciplinar do género alguns meses depois. Ainda mais tarde, na Conferência-Objecto (1967) na Galeria Quadrante, no evento de lançamento das revistas Operação 1 e Operação 2 realizam-se acções. Contudo, estes foram momentos isolados e semi-clandestinos e muito criticados, que apenas mais tardiamente iriam ser despertados no contexto geral da arte em Portugal, muito pela libertação política e cultural a uma arte censurada, oficializada e francamente em atraso com o que se ia experimentando, de resto, pelo resto da Europa e Américas, (...)privé des échanges d'idées et d' oeuvres qui fertilisent le terrain et dynamise le processus évolutif, manipulé par les émissaires et les larbins et les collaborateurs d'une politique culturelle de soumission aux intérêts de la colonisation intellectuelle et plastique imposée par l'étranger, le Portugal des plasticiens s'est brutalement réveillé, vers la deuxième moitié des années 60 (...) Um public nouveau est alors né, avide 71 Zaj - grupo espanhol neo-dadaista e surrealista relacionado com John Cage e que incluía David Tudor, Walter Marchetti, Ramon Barce, Juan Hidalgo, Tomás Marco, Alejandro Reino, Manolo Millares, José Cortés, Manuel Cortés, Eugénio Vicente, etc. Organizadores de concertos, exposições, recitais, “festas-concerto”, performances. 41 d'images et d'objets, victime presque innocente des vieux marchands de rêves,. Un public à la recherche de son indentité, de ses valeurs, de ses créateurs.72 Apenas na década de 70, e mais precisamente em 1974, com a revolução de 25 de Abril, foi possível reacender essa esperança numa arte feita de verdade firmada na euforia da liberdade de pensamento e expressão - “A designação «performance» e a sua representação como acto mais estruturado e desenvolvido apenas pelo próprio operador estético, começou a partir desta data”73. A performance em Portugal, funciona, portanto, como campo de rompimento de convenções e de declaração de princípios de liberdade ao nível da comunicação, da discussão de ideologias, da afirmação da sexualidade, etc, um “espectáculo total”74 Podemos desde já destacar a figura fundamental do crítico de arte Egídio Álvaro como fomentador da performance em Portugal. Organizador de múltiplos festivais logo depois da revolução de Abril: Perspectiva 74 (1974) e, logo no mesmo ano, os Primeiros Encontros Internacionais de Arte em Portugal fazendo abrir portas para a dedicação desta modalidade artística em período pós-ditatorial, proporcionando o contacto com o que já se realizava no estrangeiro. A execução de performances, quer em espaços públicos como em galerias (a Galeria Dois no Porto foi pioneira) era, então, uma inovação em Portugal. É a partir deste momento que se dá um verdadeiro “boom” no contexto artístico português que, segundo E. Álvaro, traz o questionamento do estatuto e da definição de arte nos moldes passados, “spéculations sur les valeurs artistiques (mais ayant tout sur les valeurs sûres et rassurantes)” 75 em substituição a um tipo de prática artística que se destinava sobretudo ao consumo dos “apetites artísticos” da alta burguesia. Deu-se a ruptura, com principal incidência para a realização de performances, rituais e intervenções que propunham singulares diálogos criativos em confronto directo em presença com o público não especializado, alargando o acesso à cultura como forma de democratização do país. Uma vanguarda, um renascer da arte como coisa viva. 72 Álvaro, Egídio (1979). performances, rituels, interventions en espace urbain, art du comportement au portugal, édité à l'occasion du symposium internacional d'art performance à Lyon, apoio Fundação Gulbenkian, Lyon, s/p. 73 Aguiar, Fernando (1988). Perform'Arte - II Encontro Nacional de Intervenção e Performance, Galeria Municipal Recreios Desportivos Amadora, Lisboa: Associação Poesia Viva, p.6. 74 Barão, Ana Luísa (2009). “Heterodoxias Performativas. Egídio Álvaro e a Performance. Anos ‘70 e ‘80”, comunicação apresentada no âmbito de Performa – Conferência Internacional em Estudos em Performance, Universidade de Aveiro, Maio 2009 in http://performa.web.ua.pt/pdf/actas2009/05_Ana_Luisa_Bar%C3%A3o.pdf, [em linha] s/p. 75 Álvaro, Egídio (1979), s/p. 42 Seguiram-se as performances no I.A.D.E. (1977-1982), a importante e controversa exposição Alternativa#Zero- tendências polémicas da arte contemporânea (1977), organizada por Ernesto Sousa, a I Bienal Internacional de Arte de V. N. Cerveira (1978), por Jaime Isidoro que se mantém até hoje, e o Simposium Projectos e Progestos (1979) bem como as apresentações pontuais do Grupo Puzzle, em espaço público ou galerias. As práticas performativas acompanham o processo criativo dos artistas nas suas formações; e o posterior registo da performance, o residual, serve de suporte expressivo e documental das acções. Entre 1981 e 1985 realiza-se em Almada e Cascais o Alternativa- Festival Internacional de Arte Viva, cujo objectivo seria criar uma plataforma de diálogo entre artistas nacionais e internacionais elevando a multidisciplinariedade e polissemia de linguagens (a música, a dança, a encenação, o plástico) “abertura a curto e médio prazo sobre o futuro”, “laboratório”- “Alternativa é um trunfo decisivo para a nossa presença e independência na batalha da modernidade.”76 A performance portuguesa da época assume-se radicalmente ao passado caduco como arte viva onde “A presença física do operador estético é um dos factores essenciais da “arte viva”. Viva porque contém precisamente a forma viva do seu criador. Viva poque o (pro)pulsar/o movimento/o respirar do corpo faz parte integrante da intervenção artística como instigador do desenvolvimento e da concretização da mesma.”77 E essa animação foi vital também para o cruzamento com o estrangeiro, inicialmente protagonizado com a vinda de Serge Oldenbourg, Orlan, Robert Filliou e Rolland Miller. Segundo Egídio Álvaro, a performance portuguesa tem traços característicos no acento ritualista concatenada com uma procura globalizada na representação da realidade dentro do sistema figurativo. Além disso, pelo menos nos seus inícios, manteve-se este cariz político que fazia de um qualquer observador, verdadeiro interveniente dentro da concepção de uma “arte voltada para as massas” 78 e de um “mito da palavra em liberdade sem censuras” 79 Neste início, os homens aparecem em maior número como praticantes da modalidade artística. Todavia, há algumas mulheres cujo trabalho se revelará marcante na história da arte portuguesa deste período, nomeadamente a poeta visual Ana Hatherly, Clara 76 Álvaro, Egídio (1982) Alternativa – II Festival Internacional de Arte, Almada: C.M. Almada, s/p. 77 Aguiar, Fernando (1985). Perform'Arte - I Encontro Nacional de Performance, Torres Vedras: Cooperativa de Comunicação de Torres Vedras, p.10. 78 Barão, Ana Luísa (2009), s/p 79 Prado Coelho, Eduarto cit. por Barão, Ana Luísa (2009), s/p 43 Menéres pertencente ao Grupo Acre juntamente com Alberto Ribeiro e Lima de Carvalho e Graça Morais do Grupo Puzzle (Armando Azevedo, Gerardo Burmester, Carlos Carneiro, Albuquerque Mendes, João Dixo, Jaime Silva, Pedro Rocha) e Elisabete Mileu. Vejam-se também os trabalhos Ção Pestana Ruído, Tempo, Peso, Limite (1985): “à medida que formalizo o meu acto artístico, a poesia vai-se diluindo... Eu sou a carne visível, eu sou a imagem”80; a intervenção de Isabel Valverde ou Maria Isabel Tristany Encruzilhadas Como Algo de Acabado (1988). Incontornáveis são as obras quase performativas de Helena Almeida que Ernesto Sousa evidenciou pela vanguarda: HELENA ALMEIDA já não é o duro trabalho a pintura do teu rosto nem metáfora espacial a Vanguarda Apenas protagonista ela orienta escolhe ilumina o caminho e os mais finos gestos, ou ideias coisas da penetração para uma VITA NOVA81 Desde Tela rosa para vestir (1969), o corpo é causa crucial da criação. Na série Desenhos e Pintura Habitada (década de 70) e A Casa (década de 80) a artista explora a cor negra que lhe cede a profundidade cromática que necessita para reinventar uma possível fisicalidade na pintura. Transbordante ao tentar abrir um espaço habitável, um espaço de presença íntima: As imagens interiores apareceram-me sempre tão directas e transbordantes que era como se eu estivesse virada do avesso e elas alastrassem como um borrão de tinta na água, rarefazendo-a – sem que eu pudesse evitar que estas imagens fossem o interior destas imagens que estes trabalhos fossem a intimidade destes trabalhos.82 Em Ouve-me, Sente-me e Vê-me (1979), trabalhos vídeo ou fotografia, a performance está igualmente presente: o lado expositivo e simultaneamente recolhido de corpo, esse virado do avesso (o dentro e o fora) que revela-se como sensação não apaziguada do humano - “É uma tentação aí ficar e assistir ao meu próprio processo, vivendo um sonho com duas direcções. Mas isso é intolerável e com urgência, qualquer coisa se 80 Pestana, Ção cit. por Aguiar, Fernando (1985), p.42 81 Sousa, Ernesto cit. por Aguiar, Fernando (1985), p.55 82 Almeida, Helena (1982) As imagens cit. por Aguiar, Fernando (1985), p. 56 44 liberta em mim como se quisesse sair para a frente de mim própria. 83 Assemelha-se ao acto de revolta contra a bidimensionalidade da pintura de Lucio Fontana ao rasgar a tela, mas toma um sentido oposto de habitação dessa mesma bidimensionalidade do desenho, da pintura, da fotografia, vídeo, não se saindo dela, fechando a acção nesse círculo criativo de suportes onde o corpo não é fisicamente presente mas representante. B. Pinto de Almeida supõe o trabalho de Helena Almeida como um precursor da obra de Cindy Sherman sem que se pudessem influenciar uma à outra como “a forma de uma imensa performance secreta, isto é, encenada longe do olhar dos outros, mas depois realizada ou mediada por essa fixação em imagens”84 ou eventualmente a Michelangelo Pistoletto na relação interioridade/exterioridade mediante um observador. Note-se também a narrativa que evoca o universo feminino, por exemplo na série Seduzir (2002). Almeida cria um trabalho irrepreensível e original, mesmo reconhecendo as suas múltiplas influências que convoca estendendo-se também ao cinema, à dança de Pina Bausch, ao percurso de Rebecca Horn, como regista Delfim Sardo “a mesma ideia de extensão corporal que ambas incorporam (como as palavras podem dizer mais do que pensamos)”85 e na descoberta feliz de pensar um dispositivo artístico (tela, foto, video) a partir de um corpo exterior que aí se incrusta. A evocação do feminino está presente também em trabalhos recentes como na “habitação” pela intérprete e coreografa Vera Mantero de uma gigantesca peça do escultor Rui Chafes produzida especificamente para o local de apresentação da 26ª Bienal de São Paulo Comer o coração (2004). O título é uma metáfora para a violência da vontade de arrancar ao desenho das formas ou à presença viva de um corpo a inantingível completude de uma presença plena. A forma escultórica concebida por Rui Chafes desdobra-se, segundo uma obsessão simétrica, como um corpo que gera um duplo para esconjurar o seu desamparo. A pele do corpo de Vera Mantero faz nascer uma nova pele animada por desenhos e movimentos que procuram um destino para o corpo que abraçam.”86. Esta interessante colaboração gera uma conexão de corporalidades entre a obra de arte e a live art da intérprete, ambos corpos artísticos. Chafes e Olga Barry colaboraram na exposição Five Rings (2011) no Museu Berardo, estabelecendo um diálogo intimista 83 Almeida, Helena (1978) Dois Espaços cit. por Aguiar, Fernando (1985), p. 55 84 Almeida, Bernardo Pinto de (2009). Arte Portuguesa: O Modernismo II: o surrealismo e depois, colecção Arte Portuguesa: da pré-história ao século XX, coordenação Dalila Rodrigues, Lisboa: Fubu Editores, p. 63. 85 Sardo, Delfim (2004). Helena Almeida – Pés no chão, cabeça no céu, Lisboa: Bial, p.15. 86 Melo, Alexandre (2004). Comer o coração/ Eating your heart Rui Chafes|Vera Mantero, Representação Portuguesa à XXVI Bienal de São Paulo, organização e produção Instituto das Artes, direcção Paulo Cunha e Silva, Portugal: coordenação editorial Paula Leitão, p. 19. 45 sobre memórias entre a escultura e a instalação sonora, os desenhos e algumas pedras perdidas. A interdisciplinariedade nas artes de hoje, bem como a existência de colaborações entre criadores de várias áreas, manifesta-se também como característica fulcral do panorama contemporâneo que se remete aos diálogos artísticos do movimento Fluxus desde a década de 60 ou em trabalhos conjuntos como o de Cage e Rauschenberg e Cunningham. A penetração da dança com as restantes disciplinas e também um marco histórico para o início da Dança Contemporânea Portuguesa é Zoo&Lógica - uma instalação a habitar por coreografias da coreógrafa Paula Massano de 1994. Apresentada na galeria de arte contemporânea Cómicos, em Lisboa, Zoo&Lógica desdobrava-se em três performances-teatrais, a primeira com base num texto de Clarice Lispector pela própria Massano, a segunda interpretada por Gagik Ismailian e a terceira por Ana Rita Palmeirim, bailarinos da Gulbenkian: todos “a seu modo, ensaiavam um reformismo estético nesta Companhia de Modern dance, na altura hegemónica no gosto e na estética da dança vista pelos portugueses.”87 A. Pinto Ribeiro destaca ainda outro marco da dança portuguesa que, em meados dos anos 80, veio a dar os primeiros passos para o que viria a ser a dança contemporânea nacional: uma coreografia de Elisa Worm e Paula Massano Na Palma da Mão a Lâmpada de Guernica (1981) com música de Constança Capville. Desde os inícios do século XX, a dança moderna ia ganhando terreno pelos Estados Unidos e Europa desde as influências marcantes de Isadora Duncan, Loie Fuller, Ruth St Denis e, mais tarde, Martha Graham, Cunningham, Anna Halprin; no entanto, em Portugal apenas se desenvolveu, muito mais tarde, a partir de recortes no tecido tradicional do bailado e do reportório habitual, numa ruptura que se veio a chamar Nova Dança Portuguesa. Para tal, teve lugar uma decisiva reestruturação da instituição do Ballet Gulbenkian (criado em 1965), tomando os seus contornos desde os princípios definidos por Sparemblek e suas perspectivas inovadoras descritas no que ficou conhecido como Relatório da Jugoslávia (1974): a mudança de paradigma foi definida visando a internacionalização do grupo e um melhor estatuto para os profissionais, a estimulação da coreografia portuguesa, e a aposta na criação mais do que na reposição 87 Ribeiro, António Pinto (2001). “A dança em Portugal. Uma séria de episódios” in Século XX – Panorama da Cultura Portuguesa, coordenação de Fernando Pernes, vol. 2 Artes e Letras, Porto: Afrontamento e Fundação de Serralves, p.169. 46 das obras clássicas. Este percurso após alguns obstáculos veio a ter seguimento com o maître de ballet Jorge Salavisa que entre 1975 e 1996 desenvolveu as pisadas de Sparemblek, investindo na formação dos bailarinos através da técnica clássica e moderna, os Estúdios Coreográficos (1977) que vieram a estimular a criação coreográfica e de onde resultaram grandes nomes no panorama da actual dança portuguesa como Vasco Wellenkamp; Olga Roriz em 1990 coreógrafa principal do Ballet Gulbenkian, criando em 1995 a sua própria companhia; Vera Mantero, Margarida Bettencourt e João Fiadeiro, fundador da actual companhia RE-AL; e aos quais se juntaram também Rui Horta, Clara Andermatt e Paulo Ribeiro, os dois últimos também actualmente com a sua companhia sediada. Nos anos 90, acrescente-se a fotografia encenada de Acácia Thiele, eminentemente política, com vocabulário feminino bastante vincado: Maja yo (1996) e o tríptico Lavando o pipi todas somos marias (o príncipe encantado) (1998), manifestando a ingenuidade da sexualidade feminina e do corpo nu. Outro caso é o de Cristina Mateus cuja condição da mulher é posta em causa “em torno de uma observação do corpo e da sua inscrição no espaço social”88 desde instalações como O teu corpo é o meu corpo (1996) explorando o espaço íntimo da casa de banho cor-de-rosa da Casa de Serralves, a vídeos violentos como Evasão (1997) ou Grito (1997) até trabalhos mais recentes que moldam a feminilidade noutros contextos como o interior de uma máquina de lavar roupa em O meu corpo centrífugo 2 (2003). Mais recentemente, o trabalho de Rute Rosas radica dessa reorganização cinestésica (a sensibilidade de movimentos) e sinestésica (conjugação dos sentidos e experiências sensoriais) no seu corpo sensitivo para passar à partilha dessa fruição com os outros corpos do público. Para isso, as suas esculturas tornam-se antropomórficas e afectuosas, como em se ficares aqui dou-te um abraço (2002), com o objectivo da exposição e concretização da fruição, corporizando o ardor que tinha sido intuição mental numa relação pele a pele. Em dou-te festas porque quero festas (2002), a artista transfigura-se e vela os traços identitários, revelando-os depois numa projecção, “Rute Rosas ritualiza um episódio iniciático de antropofagia, incorporando-se simbolicamente em cada um dos visitantes que participa da cerimónia.”89 O espaço de exposição torna-se, assim, num laboratório dos sentidos e da emotividade, mesmo quando esse espaço é a rua 88 Almeida, Bernardo Pinto de (2009), p. 132. 89 Vaz, Susana (2002). Sem Título in http://www.ruterosas.com/textos/svaz2002_2.htm, [em linha]. 47 como em abraça-me (2005) ou o toque de um sabonete-mão, Lava as tuas mãos na minha mão (2011). Cite-se igualmente Rita Castro Neves e Susana Chiocca, ambas realizando actividade no âmbito curatorial, a primeira curadora do internacional brrr Festival de Live Art e co-produtora do festival Trama em Serralves, a segunda dirigindo e participando activamente num projecto de intervenção performativa multidisciplinar n' a Sala, um apartamento na baixa do Porto. Mas citemos, ainda, jovens criadores da cena artística contemporânea ligados à performance: Carla Filipe explora a linguagem ampla do corpo além da oralidade em Obrigada pela conversa (2006), Rita GT ironiza os rumos da história da arte, do mercado e dos pressupostos museológicos, intervindo no espaço do museu ou em inaugurações de exposições. Amarante Abramovici, realizadora de curtas-metragens, possui também um papel activo na cena performativa juntamente com Ana Deus fazendo concertos-performativos como o Muda (2007) apresentado no festival Trama. Ainda no campo experimental da música e seus meios de potencialização multi-média, Adriana Sá acentua as possibilidades artísticas na aproximação da instrumentação e do som aos ritmos individuais do corpo através de estímulos variados. Na dança, após a extinção repentina, em 2005, do Ballet Gulbenkian distinguem-se companhias que procuram dar uma continuidade de qualidade à dança contemporânea em Portugal. Trabalhos como o de Vera Mantero, ainda herdeira da Gulbenkian, reconduzem a dança ao movimento originário de silêncio do corpo que procura verdadeiramente comunicar e comunicar-se (a si próprio), obtendo retornos de sentido para as suas inquietações - é A dança do existir (1995). O seu trabalho performativo enreda-se em temas-chave que procura resolver, como uma pergunta que tem a sua tentativa de resposta por meio do corpo. Em Perhaps she could dance and think afterwards (1991) incluiu materiais normalmente não utilizados numa tentativa de dizer algo através da dança – o que é que a dança diz? A peça é ensaio sobre a indecisão como modo de existência. A sociedade de consumo cultural artístico é outra das questões da criadora, no caso de Olímpia (1995) a mercantilização da obra de arte e da dança em especial, apropriando-se da figura de Manet. Um caso interessante é o de Como rebolar alegremente num vazio interior (2001) estreado na Gulbenkian, cujo propósito partia do aprofundamento do inexprimível, veiculando uma ideia de liberdade ou libertação a partir do movimento desapegado do pensamento a partir do absurdo das situações 48 desconstruídas. André Guedes (o figurinista e cenógrafo) e Miguel Loureiro irão reviver esses mesmos figurinos, muitos seriam roupas dos funcionarios da instituição, criado Como rebolar alegremente num vazio exterior (2010), uma reactualização do estado da arte e do país, quase 10 anos depois. É desta simbiose com o mundo que trata a dança de Vera Mantero, o gesto dançado como linguagem de liberdade: o seu contributo criativo - se é isso que se espera da coreógrafa – é a arrumação dos dejectos do mundo. Trata-se apenas de devolver o mundo ao mundo; numa crueldade que é a de extremar uma atitude que, desde Olympia é a de não dar tréguas ao consumo da cultura. Nunca a coreógrafa esteve tão próximo da guerrilha cultural.90 Né Barros é outro nome de destaque da cena artística, quer pela criação do balleteatro no Porto, junto de Isabel Barros e Jorge Levi, quer no trabalho de investigação que vai desenvolvendo em complemento com o trabalho coreográfico. As peças Vaga 1 (2003) e Solistas1 (2005) ambas performances em espaço público, recapitulam novas formas do corpo estar num local de passagem, um não-lugar. O seu último trabalho, A Praça (2011) com vídeo de Daniel Blaufuks é o espaço praça confluência de identidades, de histórias, conversas, pensamentos e deambulações que entram para dentro do palco. Filipa Francisco realiza o seu trabalho mais recente em espaço público: Para onde vamos? (2010) constrói-se com base nas palavras de Maria Veleda ao enveredar pela política feminista do que falta fazer à mulher ainda hoje, contagiando o público como participante dessa manifestação colectiva. O corpo enche-se de palavras e torna-se dramatúrgico mais do que coreografado, o corpo transborda acção / reacção. Mas também no trabalho Íman (2008) o desenvolvimento de potencialidades na dança com intérpretes do bairro da Cova da Moura proporciona a conciliação de discursos através da dança do hip-hop e danças africanas à dança vista como algo de erudito no mercado artístico - a Dança gera uma força interventiva porque se dá nesse cruzamento e polissemia. Ainda no sentido de democraticidade da dança, a preocupação de Madalena Victorino em permitir o acesso de todos os corpos ao trabalhar com intérpretes nãoprofissionais, usando também as gestualidades e rotinas domésticas como material coreográfico. Neste sentido, veja-se também a apresentação em espaços não convencionais como uma vivenda abandonada dos anos 50 em O terceiro quarto 90 Ribeiro, António Pinto (2001), p.192 49 (1991). Um último exemplo ainda, a jovem Mariana Tengner Barros que explora os caminhos escondidos do espectáculo, da aparência, da destruíção em And So...the end (2010) e a imagem do corpo desdobrada em múltiplas acepções num movimento curioso de pausa para o interior de si em Aprés le bain (2008). Desde os seus inícios, é possível dizer que a performance em Portugal alargou os campos de possibilidades e os seus protagonistas, intensificando uma saudável actividade cultural que passa não só pela criatividade como pela partilha e reflexão junto dos seus criadores. Hoje em dia, só quem não se permite penetrar no universo criativo português contemporâneo, e particularmente nas artes do corpo e na performance, não tem acesso a ele, dado as inúmeras actividades e seus suportes pedagógicos e educativos que se vão descentralizando e espalhando um pouco por todo o país. em síntese Procurou-se ao longo do capítulo sistematizar a performance focando-nos essencialmente no campo artístico, mas estendendo os seus propósitos para as discussões que vão sendo levantadas em torno do papel da performance nas ciências humanas. No que diz respeito à sua prática, a performance procura desmaterializar o objecto artístico, tornando-o mais efémero e ainda mais próximo da condição humana e dos tempos actuais. No que concerne ao campo teórico, a performance é vista como actividade que permite a veiculação de sentido através do corpo, entidade primordial neste processo. Propõe-se, então, desenvolver a entidade corpo enquanto veículo de sentido na arte da performance. Esta necessária relação prende-se com a integração de uma verdadeira humanidade, abarcando a prática artística e o saber das ciências sociais numa realização educacional na qual o corpo, a mente e a cultura devem estar completamente integrados, na perspectiva de Shusterman da Soma-Estética que partilhamos: “também nós precisamos de um melhor conhecimento somático para melhorar a compreensão e performance nas artes, nas ciências sociais e para o avanço da mestria na mais arte forma de arte - aquela relativa ao aperfeiçoamento da nossa humanidade e ao viver uma vida melhor.”91 91 Shusterman, Richard (2008). “Pensar através do Corpo, educar para as humanidades: Um apelo para a SomaEstética”, trad. Liliana Coutinho in Marte, revista (2008), p.99. 50 Na tradição judaico-cristã da filosofia ocidental apreende-se um corpo impositivo, prisão dele próprio porque exposto aos males terrenos e à eterna culpa e mácula perpetuada desde o pecado original. No entanto, esta concepção dá lugar a uma força criativa e de sentido que reage do interior desse corpo frágil, que o revela e o exibe. O corpo neste trabalho assume-se como algo mais do que suporte artístico, mas razão da hibridez performativa que, em vez de o rejeitar por causa das suas decepções sensoriais e incertezas, se intensifica nessas múltiplas possibilidades de revelação da sensibilidade. 51 2| o corpo veículo de sentido na arte da performance Não há limite que não seja por ele suportado. Suporta todo o cansaço. Traições, fadiga, falhanços. Aconteça o que acontecer tens um corpo que pesa; e um chão, mudo, imóvel, que não desaparece. Gonçalo M. Tavares 52 2.1 | o que é um corpo? da noção do senso-comum à necessidade de uma nova concepção Imaginamos o mundo como estendemos o olhar em pleno mar; dir-se-ia que o nosso olhar vai até ao infinito, mas na realidade, ele limita-se a perder-se, porque há água para além das águas visíveis. Jean-Pierre Cavaillé Ao longo deste capítulo analisaremos a posição ocupada pelo corpo no senso-comum e no percurso do pensamento ocidental, no sentido de atenuar progressivamente o dualismo e quase rivalidade com mente/alma/espírito para, posteriormente, desembocarmos nas questões antropológicas e fenomenológicas, principalmente em Merleau-Ponty, no desenvolver da ideia de corpo-sujeito. O que é corporal e performativo levanta, também, algumas questões que dizem respeito à questão do controlo do corpo - a pele como primeira roupa -, bem como o o ponto de vista da ciência, da tecnologia, o surgimento dos cyborgs e da realidade virtual. Corpo na sociedade e corpo visto ao espelho. Tais fundamentações levar-nos-ão à noção de corpus na perspectiva de Jean-Luc Nancy analisando o lado simbólico e a órbita expressiva mais profunda do corporal como signo performativo. O desejo ligado ao corpo é outra ideia que procuramos esclarecer, especificamente no que se refere à fisicalidade do corpo-mulher. Por fim, levanta-se a questão do corpo na arte e designadamente as arte(s) feitas com corpo de ligação à performance. Pretende-se, sobretudo, realizar o levantamento de questões que concernem o corpo sob várias perspectivas que irão centrar-se no trabalho realizado pelos artistas/intérpretes/actores que recorrem ao corpo como material fundamental em seu processo artístico. Quando surge a palavra corpo, o pensamento ocidental e o próprio senso-comum denunciam a mácula de uma perspectiva dual e cindida da modernidade que teima em permanecer. Um pensamento que surge com Descartes, cujo contributo se estrutura num racionalismo que ainda hoje domina a cultura ocidental. Este dualismo refere-se 53 concretamente a uma estruturação cartesiana que opõe alma a corpo correspondendo a uma res cogitans que é consciência, oposta a uma res extensa que é efectivamente matéria. Através da sua metodologia céptica, “existência” e “saber” afirmam-se simultaneamente a partir do pensamento unitário da razão capaz de criar uma ciência universal. Esta concepção, apropriada de forma distorcida, mantém vestígios na nossa cultura na fenda antropológica e epistemológica que coloca. O discurso moderno confere primazia à razão atribuindo-lhe o papel de sistematização da realidade, e reserva para o corpo um lugar oposto e passivo - o corpo é objecto que se analisa cirurgicamente, como se não fizesse parte do que é feito o ser humano. O corpo na modernidade é vítima de uma cisão que imediatamente o opõe à alma, à mente, que opõe a matéria ao espírito, de um ponto de vista epistemo-antropológico. Ele seria simples matéria algo que estaria na borda do humano. A concepção logocêntrica92 é produto de uma formatação da cultura ocidental dominada por este modo de pensamento castrador, que oferece ao corpo o estatuto de vaso sagrado, ou, noutro sentido, pedaço de carne pecadora nas expressões de Shusterman93. Sempre este estatuto de recipiente preenchido por um conteúdo animado, esse sim, capaz de atingir verdades. Como nota E. Vilela, certa a-temporalidade e acontextualidade que implicariam um justificacionismo epistemológico desmedido de algo captado em toda a sua extensão, reservam ao corpo um lugar de desconfiança antropológica - é, inequivocamente, uma separação da alma. E além deste corte inicial, um segundo corte que separa o homem do seu próprio corpo, no forçar de uma exteriorização do corpo ao próprio “eu-existir”, fruto de uma grande indecisão: o corpo sob esse discurso, é perspectivado não como indiscernível do homem mas como um atributo, um «outro-que-o-homem», cuja natureza se poderia analisar do exterior do homem: o corpo era o «objecto de uma investigação que põe a carne a nu 94 na indiferença do homem Actualmente, a visão de oposições do paradigma da razão e da ciência na sistematização e instrumentalização do real tende, aos poucos, a ser substituída por um paradigma novo que promove uma ideia de maior abertura e de complexidade. Assim, a 92 Logocentrismo - Nos termos de Derrida uma super-valorização do logos, um primado da razão, da palavra sobre qualquer outra estrutura de pensamento fixado no tempo da filosofia ocidental. 93 Shusterman, Richard (2008), p.100 – “Do mesmo modo dá-nos as formas de dieta, exercício e estilo somático que formam não so a nossa aparência corporal e o nosso comportamento mas também o modo como experimentamos o nosso corpo: quer como um vaso sagrado quer como um fardo de carne pecadora, uma mimada possessão pessoal destinada ao prazer privado ou um veículo de trabalho para servir o bem social.” 94 Vilela, Eugénia (1998). Do Corpo Equívoco – reflexões sobre a verdade e a educação nas narrativas epistemológicas da modernidade, col. Mediações – ensaio filosofia, Braga e Coimbra: Angelus Novus, p.102. 54 necessidade de controlo e manipulação do corporal e as próprias questões que o corpo impõe desde sempre, incitam ao exercício de uma reformulação. Assume-se, como condição epistemológica e ética, uma interpretação que orbita numa conjugação do todo, um holismo que há muito se encontra presente em toda a filosofia oriental. Um equilíbrio Yin/Yang fundamental em que o corpo pode ser perspectivado, na contemporaneidade, como figura de destaque no conhecimento, na procura de verdade. Este corpus é orgânico, é estado de presença em constante devir na natureza, constitui ponte única entre um lado espiritual, e um lado físico e material do mundo. A estranheza da razão face à matéria corpo, poderá ser transformada numa harmonia partilhada de reconciliáveis no que concerne o pôr-em-obra a verdade. Ou, então, apenas o colocar em movimento o pensamento em toda a sua plenitude - o irmos-sendo humanos - sem qualquer pretensão racional e universal, criando conceitos ou, no caso à arte, imagens: criando signos - “Il n'y a pas de logos, il n'y a que des hiéroglyphes”95. Trata-se de cuidar esta ferida infinita (expressão de Vilela) e golpeada no corpo cedendo-lhe uma oportunidade de sentido e verdade, humanizando-o e habitando-o. Trata-se, sobretudo, de fazer reaparecer essa espessura (in)visível de que todos nós somos feitos. Num primeiro patamar de análise linguística do termo corpo compreendemos a visão trivial e o uso do senso-comum, que essa mera palavra transmite, independentemente de toda carga significante e simbólica que pode transportar. Em vulgares dicionários de Português, Inglês e Francês temos: CORPO96 (Lat. Corpu), s.m. Qualquer porção limitada de matéria; a parte material de um ser animado; cadáver; busto; parte do organismo humano que compreende o tórax e o abdómen; parte do vestuário feminino que se ajusta ao tronco; conjunto de oficiais e soldados pertencentes a uma arma especial ou destinado a um certo serviço; conjunto; agremiação; grupo; espessura; consistência; colecção; unidade de medida dos caracteres tipográficos; a parte principal de muitas coisas. (...) 95 Deleuze, Gilles (1964). Proust et les signes, Paris: PUF p.124. 96 corpo, in Dicionário Universal da Língua Portuguesa (1995). p.406. 55 BODY97 noun he physical structure and material substance of an animal or plant, living or dead. a corpse; carcass. the trunk or main mass of a thing: the body of a tree. (...) CORPS98 Nom masculin invariant en nombre partie matérielle de l'être humain, par opposition à l'esprit, à l'âme le corps comme objet et sujet de sensualité (physiologie) l'organisme (anatomie) définit le tronc en le distinguant des membres et de la tête personne (comme dans "garde du corps") Nas três definições identificamos que a palavra corpo/body/corps se liga à questão material e física e à palavra cadáver/corpse/carcass/cadavre o que supõe, imediatamente, a exclusão de algo vivo, mas que apesar de tudo pertence ao ser vivo, o organismo, o ser humano. O facto de se ligar corpo a algo que inclui um conjunto de coisas ou de homens, uma corporação, um grupo, ou até uma parte anatómica do seu corpo, o tronco, o busto, não nos interessa para a presente investigação. Compete-nos, sim, analisar o corpo enquanto entidade individual no seu todo, pertencente a cada indivíduo. Veja-se, em primeiro lugar, a versão francesa. Há nesta definição a presença da realidade dual do Homem pela oposição dessa “parte material” ao espírito ou alma. Ainda nesta definição, curiosa será também a ligação existente entre o corpo e a 97 body, in Dictionary.com (2010) [em linha]. 98 corps, in Le dictionaire.com, [em linha]. 56 sensualidade na relação sujeito/objecto, supondo não só o conhecimento das coisas a partir dos cinco sentidos, das sensações, mas também supondo o desejo, o sensual, dando o corpo como coisa existente (Objet et sujet) dotada de um género masculino/feminino. Referência importante, na versão portuguesa, é a visão de corpo como algo com espessura e consistência, o que depende de uma acumulação de matéria: como quando se fala de alguém que é “encorpado” ou que é possuidor de uma grossura de “carne” ou gordo - “com corpo”. Não obstante a definição transfere-se, facilmente, no uso da linguagem, para uma versão que, em vez de depender dessa matéria que é a carne, depende antes do corpo não material, isto é, de um conteúdo que vai fazendo progressivamente sentido quando alguma explicação “toma corpo” conforme a sua fundamentação teórica. Curiosamente, a consistência de um corpo depende da sua espessura material mas também da sua não fisicalidade, apenas do seu sentido, da sua densidade – algo ganha sentido, ganha corpo, incorpora-se no sentido – tal significado parece-nos interessante dado que nos abre portas para essa nova concepção de corpo de um sentido positivo e profícuo, devolvendo-o à sua origem mais profunda: o corpus. Tal significado desvenda-se desde o título desta investigação como mote para o aprofundamento da entidade no âmbito da performance. A entrada do “tomar corpo do incorpóreo” restitui-nos um sentido de corpo que a excisão dualista ocidental nos privou e que a ciência e a biologia não nos devolve como espaço de habitabilidade do eu no meu corpo. Para descrevermos a relevância das ciências humanas teremos de encarar o corpo na actualidade num sentido singular, um sentido em tensão e em aberto. Importa acompanhar esse desenvolvimento de sentido alternativo a todo um positivismo já degradado e relativamente ao qual a disciplina estética assume papel fulcral do processo. Frágil, é certo. A fundamentação deste trabalho ajusta-se nessa problemática a que o nosso próprio corpo e o corpo num sentido mais abrangente nos embrenhou: na nossa efemeridade, no entranhado do íntimo que se pode desvelar nas artes que se fazem com ele99. No complexo mundo que o rodeia, o indivíduo não se apazigua perante toda a diversidade e complexidade de objectos, conhecimentos, opções que dispõe a seu redor. Angustia-se, algo o asfixia na destruição contínua das referências do passado – nunca 99 Ver capítulo 1.3. 57 possuímos totalmente o real. Esta fragilidade antropológica é simultaneamente construção de uma subjectividade, impulso criador de procura de tocar com o corpo essa realidade que constantemente nos escapa por entre as mãos. Este toque do real a partir da criação, que se explora através das artes do corpo, a performance, é fértil pelo atravessamento entre caminhos e movimentos (des)sincronizados. O toque do real que surge na criação é sinónimo de natalidade, nos termos de Arendt - “Se não tivéssemos outras percepções sensoriais além daquelas nas quais o corpo se percebe a si mesmo, a realidade do mundo exterior não ficaria sujeita à dúvida mas não teríamos sequer noção do que viesse a ser um mundo.”100 Neste sentido, importa revelar um novo caminho distinto daquele que é o das definições naturalistas dos dicionários. Importa desvelar a lado imaterial do “tomar corpo” e que, está muitas vezes implícito na nossa linguagem corrente. Esta análise funcionará como esclarecimento do papel do corpo enquanto motivo de criação na arte da performance. No seu princípio etimológico, corpo vem do grego karpos que significa fruto, invólucro; do sânscrito garthas que quer dizer embrião e, finalmente, do latim corpus que significa tecido de membros, invólucro da alma ou recheio do espírito. Tal facto liga-se à sua origem mais essencial: corpo significar útero, ponto de partida, causa de um espírito/alma/mente. Por sua vez, a alma - a psychê na origem do sânscrito e grego, ruhun na origem hebraico-árabe e anima do latim - designa sopro, respiração, odor, vida sentida como um sopro na sua imaterialidade ou incorporeidade. Originariamente, corpo não é só invólucro mas também fruto e recheio do espírito, numa complementaridade que é vida. Consoante esta interpretação, reconhece-se corpo não como mera coisa problemática ou até desprezível, nem como invólucro reduzido a um instrumento sujeito a manipulação, mas antes como um embrião, uma preciosa ferramenta de sentido. As discussões acerca do corpo cruzam a história com a experiência social e individual, e são pontuadas por histórias do real e do imaginário. Artistas, economistas, médicos, educadores, todos possuem um ponto de vista sobre o corpo no seu contexto específico e conforme uma linguagem que lhes é própria. Intuiu-se uma noção velada de corpo, noção que encontra o seu obstáculo no uso da linguagem, dada a apropriação e sua circunscrição específica a um determinado 100 Arendt, Hannah (2003). A condição humana, Rio de Janeiro: Forense Universitária, p.94. 58 domínio cultural ou identitário. Isto, porque, segundo Vilela, mecanismos de disciplina e coacção submetem o individual a uma diluição no corpo social, assim legitimado e normalizado. Com efeito, En el ámbito de cualquier discurso sobre el cuerpo, los vestigios del cuerpo se desvanecen en un conjunto de signos y relaciones lógico-estructurales presentadas bajo la forma específica de su existencia. Hay, entonces, una noción de cuerpo —un cuerpo común— que va construyéndose de acuerdo con los conceptos y las prácticas que definen un espacio cultural y social particular.101 Estes múltiplos discursos dos quais não sobram nem vestígios do seu lugar mais fundamental, constituem pontos de vista sempre parciais, pois são restritos a esse corpo cultural ou epistemologicamente limitativo102. Vilela retoma esta perspectiva para nos falar de um corpo pré-fabricado dado que é delineado por um regime de verdade que lhe pre-existe e o carrega excessivamente de conteúdos simbólicos. E, ao mesmo tempo, esta forma de violência que se exerce no corpo na modernidade desmembra-o (termo de Giddens). O discurso habitual sobre o corpo dilui-se no do corpo comum e que paradoxalmente, é corpo espectral e decomposto desenhado em narrativas do medo que, tal como vimos, manipulam o corpo do sujeito individual: “el cuerpo surge como un territorio identitário - asfixiante y obsesivo - que constituye la frontera del sujeto con el mundo: el propio cuerpo pasa a ser la frontera del miedo.”103 Mas o que é um corpo? Interessa responder à questão aprofundando o lugar do corpo numa área problemática e equívoca que cruza as perspectivas ao nível do pensamento filosófico e estético, anunciando esse terreno que também diz respeito ao corpo em contexto artístico na performance, conforme o que nos temos vindo a propor explorar. Aqui, o terreno é movediço e aponta para uma contra-corrente de análise deste signo como criador de sentido - um corpo-acontecimento (a noção é de Vilela) -, espelhado na liberdade de criação possível na performance, território não (de)limitativo. 101 Vilela, Eugénia (2009). Bajo los vestígios de un cuerpo: cultura, discurso y acontecimiento, in CALLE14 – revista de investigación en el campo del arte, vol.3, nr. 3/Julio-Diciembre 2009, Universidad Distrital Francisco José de Caldas, Colombia: Creative Common in http://gemini.udistrital.edu.co/comunidad/grupos/calle14/Volumen3/Vol3/Articulos/volumen3.pdf [em linha], p.13 102 Cf. Gil, José cit. por Vilela, Eugénia (2009), p. 14. 103 Vilela, Eugénia (2009), p.15. 59 2.2 | corpo no pensamento filosófico. corpo / alma, matéria/ espírito: dualismos e reconciliações Desde a Antiguidade que o corpo era interpretado, em termos filosóficos, como cárcere da alma na concepção platónica, algo temporal e espacialmente limitado, numa alegoria de sombras à qual se sobrepõe um inteligível que une Verdade/Bem/Beleza numa tríade essencial. Dimensão sensitiva e, por isso, aparência de realidade, o corpo é aqui visto como lugar de fechamento, algo que se cerra para não entrar nenhum mal vindo dos prazeres terrestres: (…) não afirmemos jamais que, devido à febre, ou a qualquer outra doença, ou a assassínio, nem que se retalhasse o corpo todo em bocadinhos o mais pequeno possível, por esses motivos, a alma jamais pereça antes de alguém demonstrar que, devido a esses padecimentos do corpo, se torna mais injusta e mais ímpia.104 Note-se a susceptibilidade corpórea, as efemeridades a que está sujeito o corpo face à alma que se lhe sobrepõe, parte afectada nesta união dupla ocorrida no ser humano. Neste excerto, Platão literalmente retalha o corpo em bocadinhos, o corpo é tratado violentamente como coisa, mero objecto em estado de permanência, mas sem qualquer densidade ou significado, motivo das impurezas do Homem. Por outro lado, há uma correspondência disciplinar da epistemologia, ética e estética (Verdade/Bem/Beleza) presente no diálogo Banquete, assente numa educação do olhar que difere o olho fisiológico, sensível e finito do olho interior, o olho da razão, capaz de visualizar as coisas eternas, metaforizado pelo brilho do sol. No entanto, a luz que ilumina as coisas sensíveis é também essa mesma luz do sol (o Bem, a sabedoria universal). Neste sentido, entenda-se que não existe um total desprezo pelas coisas corporais na interpretação platónica: é necessário contemplar as sombras, os simulacros para se realizar essa conversão do processo ascendente, mirar com os olhos da alma o tal mundo das ideias, o real e verdadeiro. Assim, julgamos a existência de uma conversão do desejo em Platão, na medida em que é a partir das coisas palpáveis que se define uma falha só corrigida pela razão, num movimento ascendente. Por esta ordem de ideias, a carne e o corpo formam a concha da ostra ou o sepulcro como o afirma no diálogo Fedro. Neste processo, o sábio mantém-se na sensibilidade mundana sabendo 104 Platão (2001). A República, trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian, p. 477-478. 60 ser essa uma realidade de reflexo, um espelho de um Outro: (...) há duas espécies de loucura: uma nascida das enfermidades humanas e a outra provocada por impulso divino que nos leva a abandonar os costumes habituais. No que respeita à divina, dividimo-la em quatro partes que atribuímos a quatro deuses: a inspiração mântica a Apolo; a mística a Díoniso; a poética, por seu lado, às Musas; e a quarta, o delírio amoroso, que afirmamos ser a mais excelente, atribuímo-la a Afrodite e a Eros. E não sei como ao descrever a paixão amorosa – talvez porque alcançámos alguma verdade, talvez mesmo porque nos desviámos noutro sentido -, com tais ingredientes compusemos um discurso não completamente desprovido de força persuasiva, em que entoámos festivamente, mas de forma reverente e pia, uma espécie de hino mítico em honra do meu e do teu senhor, ó Fedro – do Amor, patrono dos belos jovens.105 Há duas questões curiosas nesta passagem: a questão da loucura na sua dupla associação corpo enfermo/impulso divino e a sua associação com o amor. No primeiro caso, a loucura é por um lado, ligada não só ao corpo mas também aos impulsos mânticos, místicos, poéticos e à própria paixão, sendo que nesta última é estado inicial no processo de busca de verdade à qual corresponderá o Amor maiúsculado. Assim, a paixão e o amor no Homem é da natureza sensível, é corpo, que aqui são encarados como parte do percurso em direcção ao divino - Eros e Afrodite, deuses da beleza e do amor sexual, motivos de uma loucura excelente e divina necessária no sistema platónico. Embora não haja total desprezo pelo corpo, assinala-se em Platão o imprescindível controlo ou suspensão das paixões - como, posteriormente, a ataraxia estoica ou, por exemplo, no neo-platonismo, a importância da progressão filosófica rumo ao divino, ou a própria indivisibilidade do universo no Uno (Plotino). A ideia de conversão na aprendizagem para contemplar o Verdadeiro/Bom/Belo, neste processo pedagógico do ser humano, irá manter-se numa forma que encontrará, mais tarde, a sua justificação na figura de Deus da tradição judaico-cristã do período medieval. Para Agostinho, autor ainda de transição para o período medieval, não há uma total rejeição das marcas de finitude, das marcas do corpo, mas antes, uma fascinação pelas luzes e cores sensíveis que não deixam o corpo libertar-se e a alma seguir Deus, ou a verdadeira luz (a invisível). No autor, que se enreda entre o neo-platonismo e o cristianismo, não há, uma possibilidade de total recusa do mundo, mas antes uma distinção clara entre o homem interior e o homem exterior ao procurar a figura do divino -“o homem interior conheceu esta verdade [que Deus nos criou] pelo ministério 105 Platão (1973). Fedro, in Fedro, o Banquete, Górgias, trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa:Verbo, p. 352. 61 do homem exterior. Ora eu, homem interior – alma -, eu conheci-a também pelos sentidos do corpo. Perguntei pelo meu Deus à massa do Universo e respondeu-me: Não sou eu; mas foi Ele que me criou.” 106 Ora, quando questiona Que amo então quando amo o meu Deus?, Agostinho confirma encontrar Deus no cimo da sua alma desencarnada capaz de perceber a Unidade (o signo, o número) à qual o corpo e a experiência sensível não têm acesso: Ultrapassei a força que me prende ao corpo e que enche de vida o meu organismo, pois não é com essa vida que encontro o meu Deus, porque (nesse caso) também o cavalo e a mula que não têm inteligência O encontrariam, já que possuem essa mesma força que lhes vivifica os corpos. Há, portanto, outra força que não só vivifica, mas também sensibiliza a carne que o Senhor me criou, mandando aos olhos que não oiçam e ao ouvido que não veja, mas aos primeiros que vejam e a este que oiça e a cada um dos restantes sentidos o que é próprio dos seus lugares e orifícios.107 Desta forma, se o corpo cristão é fonte de prazeres supérfluos - é fardo - o corpo na perspectiva de Agostinho possui um papel de uma relevância interessante pela sua própria emancipação de sentido, carregando uma intencionalidade estética, nesta etapa de educação e conversão da alma, onde a própria criação física do Homem serve de homenagem à Criação divina. Todavia, esta percepção da beleza do Homem como “uma lamparina que há-de ser estrela” 108 é, no homem carnal apenas um treino para, depois, o espírito poder contemplar a Beleza de Deus na sua plenitude acabada. No pensamento cartesiano, especificamente nas Meditações Metafísicas (1641), o corpo só existe por recurso a uma divindade que não nos incita ao engano. Não obstante, esse corpo é retirado do seu mundo, privando-se dessa plena existência, tornase resíduo de um ego cogito na expressão de Gallimberti. O penso, logo existo assente nas ideias claras e distintas do espírito, repele toda a vivência do homem no mundo, o seu carácter existencial. E ainda que, talvez (…) eu tenha um corpo a que estou estreitamente ligado, tenho, no entanto, por um lado uma ideia clara e distinta de mim mesmo (na medida de que sou apenas uma coisa que pensa e não extensa), e, por outro, ideia distinta do corpo, enquanto ele é apenas uma coisa extensa e que não pensa. Assim, é certo que este eu, isto é, a minha alma, através da qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e pode existir sem ele.109 106 107 108 109 Agostinho (1999). Confissões, Braga: livraria Apostolado da Imprensa, p. 221. Agostinho (1999), p. 222 Agostinho (1999), p. 341 Descartes, René (2003). Meditações Metafísicas, trad. Regina Pereira, Porto: Rés-Editora, p.104. 62 O espírito exila-se no corpo, não apenas se aloja mas é navio pilotado pelo ser pensante ao dominar a dor, a fome, a sede – corpo é substância extensa criada e dependente de Deus em Descartes, mas não há qualquer necessidade de uma incarnação corporal do espírito – a substância pensante é independente. A interacção recíproca mente /corpo é explicada a partir da glândula pineal, órgão cerebral com funções endócrinas – “située dans le milieu de sa substance [du cerveau], et tellement suspendue au-dessus du conduit par lequel les esprits de ses cavités antérieures ont communication avec ceux de la postérieure”110-, que, supostamente, medeia o físico divisível do mental indivisível. A metafísica cartesiana considera duas realidades distintas sendo a mente, dotada da capacidade de pensar, íntima e privada de outras mentes e do mundo físico, constituindo uma só existência, privilegiada, independente de qualquer outra. A experiência sensorial do corpo deixa de ser necessária, é tida como fruto de uma relação causal. Corpo é conotado como algo de negativo, aquilo que provocaria acção na alma tomava o seu padecimento no corpo. No Tratado das Paixões da Alma (1649), o pensador da filosofia moderna retirou do coração os sentimentos amor/ódio, a alegria/tristeza, a admiração e o desejo para os estruturar no cérebro, fazendo com que o corpo passe a ser estrutura anatómica e não viva “contre l'ambivalence symbolique des corps par leur réduction à l'équivalence générale de l'idée”111, a partir dessa ruptura histórica que é a da redução de partes físicas a um todo geral de corpo privado de interior. Segundo Gallimberti “Descartes prive le corps de son monde et de toutes les formations de sens qui, en se fondant sur l'expérience corporelle, nous donnaient immédiatement accès au monde”112. Centrando-se nas ideias claras e distintas do entendimento humano, a finitude corpórea é condição inalterável e, portanto, já está por si resolvida e esclarecida. O dualismo cartesiano, como sabemos, terá repercussões na divisão moderna homem/corpo. Uma grande ruptura no pensamento relativamente ao que é do domínio do corpo dáse com o monismo metafísico de Espinosa. Em Espinosa a procura de suspensão da oposição binária cartesiana realiza-se na figura de Deus; ora, mente e corpo seriam ambos atributos do divino constituindo um único ser. Algo se modifica relativamente à concepção antiga de valorização dessa dualidade ao mesmo tempo que se encara corpo como fardo da alma e do Homem. Segundo a interpretação deleuziana, a afirmação na 110 Descartes, cit. por Marzano, Michela (2007). La philosophie du corps, col. Que sais-je?, Paris: PUF, p.19. 111 Gallimberti, Umberto (1998). Les raisons du corps. Paris: Grasset-Mollat, p.51. 112 Gallimberti, Umberto (1998), p.48. 63 Ética de Espinosa - Não sabemos o que pode um corpo - acusa uma contínua manipulação e controlo do espírito/alma/consciência sobre o corpo com uma finalidade ética, o corpo que deve obedecer. O facto de se questionar o oposto, os limites do que é corpóreo ou extenso - O que pode um corpo? De que afectos é capaz? - enreda uma “nova concepção de indivíduo corporal, da espécie e do género”113 que trará consequências marcantes. O ser humano é visto como uma união de corpos que estão em relação recíproca de proporção, movimento e repouso na sua extensão como noção de longitude. É dotado de um império dos afectos, pela noção de latitude, que se articula ou desarticula conforme forças anónimas que o afectam e o fazem, então, existir. Por isso, o corpo assume um papel de intrínseca complementaridade e dependência na alma - “o objecto da ideia que constitui a alma humana é o corpo, isto é, um modo determinado da extensão, existente em acto, e não outra coisa" 114. Com efeito, o encontro alma/mente/corpo cumpre-se nesta transitividade de ligação íntima alma pensa corpo, corpo pensa alma simultanea e harmoniosamente como se se tratassem duas visões distintas sobre uma mesma realidade - “Il n'y a pas d'action réciproque âme-corps [como na solução da glândula pineal cartesiana], mais l'action d'un seul être qui est âme et corps”115. Mas é Nietzsche que, em pleno século XIX, vai rejeitar totalmente as teses de abnegação cristã como sentido para a existência individual a que chamava sentimento de rebanho, anteriormente apontados por Kierkegaard. Pelo contrário, o pensador que no final da sua vida enlouqueceu, pretendeu o aperfeiçoamento individual protagonizado na figura do Super-Homem e a expressão e prazer estéticos como objectivos primordiais do Homem. Na convicção de que a própria arte constituía a forma mais elevada da actividade humana, em A origem da tragédia (1871), Nietzsche apropria-se das figuras gregas de Apolo e Dionísio, procurando uma síntese da beleza ordenada na primeira (a que poderíamos associar ao papel da alma na filosofia ocidental) à euforia das paixões irracionais na segunda (afecções do corpo); ambas adoradas na Grécia Antiga e postas de parte desde o racionalismo socrático. A rejeição disciplinar do racionalismo e a exacerbação da vontade, e nomeadamente da vontade de poder, no sentido do progresso da própria espécie (pondo aqui de parte os aproveitamentos políticos e consequências perigosas que degeneraram desta tese), 113 Deleuze, Gilles (1968), Spinoza et le problème de l'expression, Paris: Minuit, in http://www.scribd.com/doc/6570565/116-Deleuze-Espinosa-Visao-Etica-Do-Mundo (em linha), p.1. 114 Espinosa, B. (2007). Ética, trad. Tomaz Tadeu, Belo Horizonte: Autêntica, p.112. 115 Jacquet, Chantal cit. por Marzanno, Michela (2007), p.37. 64 proporcionam, finalmente, à figura problemática do corpo um estatuto particularmente distinto do que era dado anteriormente. No desenho de uma perspectiva alternativa ao totalitarismo racional vigente que valorizara o projecto racional, surge Zaratrustra. Figura trágico-cómica e isenta de moralidade, Zaratrustra manifesta, sobre todas as coisas, a vontade de viver. É, fundamentalmente, a vontade que se exacerba, o desejo e o subjectivo como parábola do comportamento, de celebração do corpo. Nietzsche afirmara que o instinto de vida teria sido reprimido pelo instinto de morte nas sociedades modernas e pela própria instituição divina; quer isto dizer que a morte não significa a cura para doença do corpo. O desprezo pelo corpo advém dessa anulação do desejo, da liberdade humana, através das quais, se recorrermos à interpretação posterior de Freud, emergem pressões eróticas recalcadas pela civilização - “Tenho uma palavra a dizer aos que desprezam o corpo. Não lhes peço para mudar de opinião nem de doutrina, mas para se desfazerem do seu próprio corpo – o que os tornará mudos.”116 O sarcasmo de Nietzsche leva a fazer da razão quase escrava do corpo, numa total inversão da perspectiva cartesiana – bem pequeno instrumento, um brinquedo – razão, inteligência, espírito, pensamento são módulos do em si que “habita no teu corpo, é o teu corpo”117. Corpo é lugar celebrado. Presume-se deste lugar celebrado um lugar vivo, do qual se observam fenómenos mais claros e ricos do que no espírito, um corpo que, segundo Marzanno, é celebrado no movimento, é “corpo em marcha”118, na dança, na música, no dionisíaco - essa euforia que pensa e trespassa um corpo libertado de um espírito castrador, de Deus e de tudo, e que frui: “Eu só poderia acreditar num Deus que soubesse dançar. (...) Vede como me sinto leve; vede, estou a voar, vede, agora vejo-me do alto, como um pássaro; vede, um Deus dança em mim.”119 Nesta concepção, corpo é “objecto do seu desejo supremo, de todo o seu fervor”120 e, porém, também objecto de frustração, na morte vulnerabilidade antropológica, síndrome de uma modernidade que ao mesmo tempo desconfia do corpo: O corpo é grande razão, uma multiplicidade unânime, um estado de guerra e paz, um rebanho e seu pastor. (…) Tu dizes “eu” e orgulhas-te desta palavra. Mas há qualquer coisa de maior, em que te recusas a acreditar, é o teu corpo e a sua grande razão; ele 116 Nietzsche, F. (2008). Assim falava Zaratrustra, O crepúsculo dos ídolos, Ecce Homo, col. Grandes Filósofos, 117 118 119 120 Madrid: Prisa Innova S.L., p.43. Nietzsche, F. (2008). p.44. Marzanno, Michela (2007). p.44. Nietzsche, F. (2008). p.54. Nietzsche, F. (2008). p.45. 65 não diz Eu, mas procede como Eu. Aquilo que a inteligência pressente, aquilo que o espírito reconhece nunca em si tem o seu fim. Mas a inteligência e o espírito quereriam convencer-te que são o fim de todas as coisas, tal é a sua soberba.121 No final do século XIX surge, na história do pensamento ocidental, uma importante corrente filosófica - a fenomenologia - que se propõe a encarar a questão do corpo de um ponto de vista originário, daquele que no seu sentido etimológico seria o embrião e o fruto, isto é, princípio e resolução. Se tomarmos as palavras de Gallimberti, a fenomenologia pretende recuperar o ponto de vista ingénuo no que concerne o estado originário do corpo - “l'ingénuité du corps signifie vouloir le rencontrer dans as condition originaire, affranchi de l'équivalence dans laquelle s'exprime tout code et l'ordre de ses inscriptions, afin de restituer au corps as forme «native» ou ces traits «naturelles»122. Isto significa que se dá uma profunda viragem relativamente a esta questão, a importância do corpo germina na própria relação do ser humano com o mundo, o seu mundo individual. Tal facto, opõe-se, como assinala Marzanno, ao materialismo histórico marxista em que ele é visto como mero instrumento dos homens para os homens. Pelo contrário, a concepção fenomenológica dota o corpo de uma intencionalidade que o transforma no corpo-sujeito (Sartre), algo físico mas próprio de cada indivíduo, distintamente do corpo-objecto marxista. O corpo adquire uma identidade, os estados do corpo prendem inalienavelmente o corpo ao indivíduo/pessoa – à sua alma, mente, espírito - dotada de sentimentos, afecções, sofrimentos e dor. Por isso Husserl irá distinguir corpo de carne. Enquanto a carne é privada de ser, mera matéria ou coisa material à maneira cartesiana, o corpo intencional expõe-se: é-nomundo, o ser é, sempre, ser-incarnado. Há uma exposição na relação corpo-mundooutros, que é analisada em Husserl nos problemas do tempo, do espaço e da percepção, que se manifesta no eu ser-no-mundo e, por isso mesmo, o corpo propõe-se como algo de intencional - “l'intentionnalité du corps est dans son être destinée à un monde qu'elle n'embrasse ni ne possède mais vers lequel elle ne cesse de se diriger et de se projeter.”123 O mundo é algo que está dado à partida ao nosso corpo, a partir das experiências e sensações que podemos ter na interacção com o que está ao redor. Porém, não abraçamos esse mundo no sentido em que não lhe captamos totalmente o 121 Nietzsche, F. (2008). pp. 43-44. 122 Gallimberti, Umberto (1998). p.79. 123 Gallimberti, Umberto (1998). p.81. 66 sentido (a reflexão – o eu penso - é algo que vem ulteriormente), nem possuímos as coisas de forma objectiva, se isto acontecesse teríamos uma visão e compreensão universal das coisas e do mundo. Mantendo-nos na interpretação de Gallimberti, o corpo não conhece o mundo mas habita nele – “c'est se sentir chez soi “124 - que, fora desse mundo, não passaria de uma máquina manipulável. É no habitar que o ser revela a sua ipseidade, ou seja, de acordo com o termo heideggeriano, a característica única e individual, de um ente, de determinado ser-no-mundo. Neste rasto fenomenológico é importante referir o pensamento de Merleau-Ponty no que concerne a percepção. Na sua reflexão sobre a percepção há uma importante distinção realizada entre o “eu-penso” como cogito e o “eu-no-mundo” como condição em que eu me encontro neste corpo. Se o “eu-penso” pode aspirar à universalidade, a condição inalienável eu-no-mundo, enquanto ser que percepciona e é percepcionado pelo outro, faz do corpo um sinónimo do que é a sua interioridade. Neste sentido, Merleau-Ponty diz que a alma existe por intermediário do corpo já que nós não estamos perante um corpo, uma matéria, mas sim por dentro dele - o meu - e, logo, eu sou o meu corpo125. O corpo carrega em si algo de expressivo que se articula a um Logos mais profundo (Gallimberti). Trata-se de uma transcendência que compreende mais do que a verdade imediata do eu-penso, um je suis à moi, tal como vai afirmar na Fenomenologia da Percepção (1945), isto é, o pertencer-me neste corpo, o eu sentir-se comigo. Em o Olho e o Espírito (1961), o corpo é várias vezes referido no exercício desse acto de olhar, o olho como espelho da alma, numa consciência da qual quando nos desligamos resta o cárcere, o aí corpo-objecto. O corpo-vivo está no mundo, e ele próprio tem um mundo, a sua verdade existencial - o olhar. Merleau-Ponty explica: Digo de uma coisa que ela é movida, mas o meu corpo, ele move-se, o meu movimento desdobra-se. Ele não está na ignorância de si, não é cego para sim, resplandece de um si. O enigma consiste em que o meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que mira todas as coisas, pode também olhar-se, e reconhecer então naquilo que vê o “outro lado” do seu poder vidente. Ele vê-se vendo, toca-se tocando, é visível e sensível para si mesmo. É um si, não por transparência, como o pensamento (…) mas um si por confusão, narcisismo (…) que tem um verso e um reverso, um passado e um futuro.126 124 Gallimberti, Umberto (1998). p.85. 125 Cf. Marzanno, Michela (2007). p.46. 126 Merleau-Ponty, Maurice cit, por Glusberg (2003). A Arte da Performance, São Paulo: Perspectiva, p.19. 67 A partir da experiência da visão, o pensador desenvolve o peso expressivo do corpo numa ambivalência que concentra em si os duplos “tocar-tocado”, “ver-visto” entendida como inquietação positiva e rica, ao invés de causar embaraço por ausência de uma explicação imediata. O espírito é aqui encarado como algo incrustado no corpo, sendo que este carrega muito mais do que um suporte de revestimento ou mera roupagem que nos envolve. Como se se tratasse de uma dupla existência, em que por um lado há uma coisa entre as coisas materiais e por outro algo que vê e que toca - a lógica do “sujeitoobjecto”. O exercício da vista, do olho, faz lembrar o documentário brasileiro Janela da Alma (2001)127. Este trabalho parte da ideia de Da Vinci de que o olho é a janela da alma para sugerir ao espectador um exercício em torno do olhar para o qual colaboram os dezanove convidados, desde poetas a realizadores de cinema até pessoas com determinado problema na aquiscência visual ou cegueira total. Sem pretendermos desenvolver os conteúdos do filme, destacamos dois exemplos ilustrativos do próprio pensamento de Merleau-Ponty. O primeiro, José Saramago, convidado a propósito do livro Ensaio sobre a cegueira, refere que é a visão limitada do homem que faz com que ele seja tal como é de facto. Exemplifica dizendo que se Romeu tivesse os olhos de um falcão, poderia não se apaixonar por Julieta dado que enxergaria, nesse caso, muitos mais defeitos do que os que o olho humano permite. Em segundo lugar, a imagem de um plano muitíssimo detalhado do corpo de uma mulher, da sua pele e que, por essa total proximidade torna-se quase algo de abstracto, sendo seguidamente reconhecido à medida que o plano é afastado. Este plano pode ser captado na suposição de duas faces do universo por entre as quais devem existir uma espécie de demiurgos ou anjos que medeiam um mundo real e um espiritual – tal como se afirma no depoimento que acompanha o plano – algo que permite não perceber imediatamente com os meus olhos que aquela imagem, quase abstracta, é um corpo, algo de tão familiar. Além disso, demonstra uma sensualidade que se dá a partir do íntimo da focagem e da nudez que depois é revelada. Assim, a visão nestes dois exemplos é-nos dada em relação com um sentimento de amor e de percepção sensual mas também espiritual, o que significa que, fundamentalmente, o fenómeno da visão é algo que supõe uma interacção interior/exterior ao nível do corpo como um visível que é também vidente: 127 Janela da Alma (2001). DVD, João Jardim e Walter Carvalho, Brasil: Europa filmes 68 O corpo é para a alma o seu espaço natal e a matriz de todo o outro espaço existente. Assim a visão desdobra-se: há uma visão sobre a qual eu reflicto, não posso pensar senão como pensamento, inspecção do Espírito, juízo, leitura de signos. E há a visão que tem lugar, pensamento honorário ou instituído, dominada por um corpo seu, da qual só podemos ter ideia exercendo-a, e que introduz, entre o espaço e pensamento, a ordem autónoma do composto de alma e corpo.128 O acto de ver supõe que habitemos intimamente o ser-corpo, o qual produz imagens de olhos fechados, e vê com a imaginação, que sonha e que é vê o futuro – é vidente. O olho vê também para dentro, e quando vê para fora nem sempre reconhece nessa intencionalidade consciente, como quando Saramago diz logo no início da obra Ensaio sobre a cegueira, Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. E é por isso que MerleauPonty diz que alma é no corpo e corpo é na alma, não como duas fases da mesma moeda mas numa ambivalência ontológica profunda que faz com que “à primeira vista” Romeu se apaixone por Julieta. Citando Merleau-Ponty: Não basta que dois sujeitos conscientes tenham os mesmos órgãos e o mesmo sistema nervoso para que em ambos as mesmas emoções se representem pelos mesmos signos. O que importa é a maneira pela qual eles fazem uso de seu corpo (...). O uso que um homem fará de seu corpo é transcendente em relação a esse corpo enquanto ser simplesmente biológico. Gritar na cólera ou abraçar no amor não é mais natural ou menos convencional do que chamar uma mesa mesa.129 Com efeito, em Merleau-Ponty constitui-se uma imagem internalizada de corpo próprio que se dá nessa defesa de consciência corporal e permite a representação que um sujeito faz de si próprio o possuindo diferentes acepções. A notar: o corpo real, o corpo imaginário, o corpo idealizado e o corpo simbólico. Ora, o primeiro, o real, manifesta um dinamismo e uma constante mutação a que o corpo está sujeito ao longo dos tempos, mas que mantém sempre a sua identidade e que permite o seu reconhecimento. Já o corpo imaginário se dá por essa percepção do corpo próprio e que se envolve com a metáfora da imagem de nós mesmos cuja totalidade é impossível. A imagem em frente ao espelho é sempre imagem distorcida do eu - o meu corpo é para mim corpo desarticulado (José Gil) na apreensão como todo, do seu contorno preciso no espaço, ao mesmo tempo que é seu refúgio de sensações previsíveis e reconhecíveis. O reconhecimento e admissão do corpo existente dá-se sempre no jogo entre 128 Merleau-Ponty, M. (2006). O olho e o espírito, trad. Luís Manuel Bernardo, col. Passagens, Lisboa: Vega p.45 129 Merleau-Ponty, M. (1994). Fenomenologia da percepção, trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura, São Paulo: Martins Fontes, pp. 256-257 69 paradoxos de traços ou rascunhos de rostos indecifráveis e velados. A percepção da nossa imagem é sempre limitada por condições físicas e nunca é portanto fiel, nas palavras de Gallimberti, partilhadas também por Shusterman: Ninguém pode aceder à imagem fiel do seu próprio corpo. O meu olhar não pode explorar o que se esconde atrás das minhas costas, mas sobretudo não pode ver esse rosto que eu sou e que me exprime. Mesmo a imagem ao espelho não me socorre, pois a imagem reflectida não é sobreponível mas simétrica, a direita torna-se a esquerda (…) a expressão que eu vejo reflectida não é a minha «expressão».130 A imagem reflectida de um corpo no espelho é sempre fragmentária, a exigência de completude é a priori fracassada, o olhar sobre mim é um olhar do eu-imagem e não do eu-todo. A imagem ao espelho distorce o contorno real, congela uma forma que não é expressividade espontânea, “em oposição à turbulência dos movimentos que se sabe animá-la”131 Trata-se, portanto, de uma ficção do estado do espelho (Lacan) mas que não deixa de ser a imagem possível de um corpo-próprio, imagem necessária na construção do sujeito que não se conclui apenas no acto de pura apercepção.132 Já em Deleuze há um aprofundamento das relações entre corpo e linguagem. No desígnio do acontecimento surgem no corpo duas acções fundamentais: aquelas que o levam à dor, uma somatologia, e as transformações incorporais que se dão no que é expresso no corpo - os atributos não-corporais do corpo. Por exemplo, o enunciado “adoro-te” expressa um atributo não-corporal do corpo, mas que se relaciona com ele através do desejo e da paixão133. Estes atributos são corpo-conteúdo e corpo-vida, na esteira desse corpo vivo nietzschiano. É aquilo que não pertence ao pensamento apesar de ser pensável, aquilo que pertence à expressividade do corpo, ou que podemos designar também por atitude - “O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que (o pensamento) tem que superar para alcançar o pensar. É, ao contrário, aquilo em que mergulha, ou em que deve mergulhar para alcançar o não-pensamento, ou seja, a vida”.134 Na história do corpo, ao longo dos tempos, vem sendo delineada uma guerra entre o humano e o sagrado, o corpo e espírito, a matéria e a alma, muitas vezes invertendo a configuração epistémica de corpo na égide de uma razão inumana. Trata-se de uma 130 Gallimberti, Umberto (1998), p.208. 131 Cf. Lacan, J. cit. por Pita, António Pedro (1998), p. 282. 132 Cf. Pita, António Pedro (1998), p. 282. 133 Cf. Silva, Fernando (2007) [em linha]. 134 Deleuze, Gilles (1989), p.21. 70 reafirmação dessa dicotomia marcada e signo da própria dupla natureza do homem: movimentações irredutíveis que precisamente o tempo lhes quis inflingir. Assim, no sentido de uma emancipação significante, a inquietação do que não se explica cede, aos poucos, lugar à creditação desta verdadeira metáfora viva que explora os interstícios antropológicos a partir do corpo como figura limite na modernidade. Antes de esboçarmos os contornos dessa nova fundamentação que se dá nesta abertura de sentido, analisaremos o corpo fechado e inequívoco da medicina, o corpo com orgãos, os riscos éticos e sociais do controlo ao corpo através da ciência e, no extremo, o corpo ausente e virtual. 71 2.3 | sobre o corpo morto: corpo cirúrgico / corpo máquina. da manipulação do corpo aos robôs e da ausência de corpo no virtual My body is a cage That keeps me from dancing with the one I love But my mind holds the key You're standing next to me My mind holds the key Arcade Fire. My body is a cage, álbum Neon Bible, faixa 11 Nos últimos cinquenta anos o interesse pelo corpo tem vindo a intensificar-se, quer no exercício do pensamento sobre o corpo, quer na tentativa da sua manipulação, adoptando-o como instrumento-alvo, que pode ser modificado e mesmo transformado. Alie-se a este crescente interesse, a valorização da identidade pessoal, uma autoidentidade reconhecida que é concatenada com o binómio homem/máquina pelas possíveis questões científicos e éticas adjacentes. E, num outro contexto, o desenvolvimento das teorias feministas nos anos 60 contribuíram, e muito, para esta maior preocupação com a corporeidade tendo as evidentes repercussões na performance.135 Passando do campo filosófico para o campo das ciências naturais, numa perspectiva anátomo-fisiológica, da biologia e da psicologia, a concepção ocidental moderna não é muito diferente. O corpo configurado na cientificidade clássica é corpo morto – cadáver, coisa, com seu ser aniquilado, esvaziado, dissecado, decomposto, desfeito – um partesextra-partes. Se invertermos o sentido de Nancy, o corpo científico é “com pés e cabeça” sem lhe ser concedido um lugar para o acontecimento. Esta visão reducionista mantém ligações com a própria explicação do corpo no divino: na interpretação de Gallimberti existe uma transferência de justificação do corpo do processo ascendente de conversão para o divino, ou em Deus para uma espécie de transcendência molecular. Vejamos: a transcendência do corpo em Deus, a sua catarse como finalidade, dá lugar a um modelo de corpo que deixa de ter como fim determinado projecto, “s'inscrit dans un 135 Relativamente a esta questão ocupar-nos-emos no capítulo 2.5. 72 processus finalisé par un modèle, déterminé par une inscription et non plus par un but”136, processo esse que se baseia exclusivamente nas relações psico-químicas de cada animal. Continuando na perspectiva de Gallimberti, os avanços ao nível da biologia e, mais precisamente, no que concerne o código do ADN e os genes humanos, formulam aquilo que denomina uma nova metafísica, que faz do corpo um objecto animado e desligado de sentido e significações, mas na re-produção do código, algo que justifica todo o edifício científico como simulacro, pois fruto de um alfabeto que não se une ao mundo e à natureza humana senão por simples nostalgia do real. Os estudos respeitantes à robótica e à inteligência artificial trazem-nos a esperança da substituição positiva de algum “trabalho forçado”, aliás na própria origem da palavra robô, por autómatos electronicamente programados. Por outro lado, a proposta da “Inteligência Artificial forte” como corrente que defende a auto-consciência de uma máquina, com capacidades cognitivas manipuladas por regras lógicas, constitui desafio para a epistemologia, discutidas na modernidade por autores como Searle, Turing ou Blackburn. Nesta construção ou desconstrução do homem importa referir a reflexão científica e ética que existe em torno da possibilidade de criar andróides, figuras com forma humana, mas com um dispositivo duro e um dispositivo mole controlado pelo homem. Note-se que é uma porta de utilidade indubitável embora envolva o risco de supressão de qualquer inteligência emocional do corpo. Trata-se aqui de se transportar a oposição binária naturalmente definida - mente/corpo - para uma forçada captação dessa mente inteligente (o intelecto), inserindo-a num corpo construído. Neste sentido, é a noção de corpo que fica comprometida, há um fenómeno de mudança do corpo Homem para o corpo Máquina e, mais do que isso, a noção partes-extra-partes levada ao seu extremo pelo corpo científico que é a da inserção, nua e crua, de um software que substitui o mental num suporte corpóreo, para o destituir de qualquer significação per si. O corpo deixa, por esta ordem de ideias, de ser corpo vivo para ser corpo animado, a soma deixa de ser carne para ser aparelho ou ferramenta, abre-se o fosso mente/corpo. Não obstante, a exigência de um corpo, seja ele de que natureza for, está sempre presente, é-nos invariavelmente imposta. Numa questão limite não sabemos da existência de um mental/espiritual sem um corpo que sente. Ele inflige-nos a esta fatalidade que retoma a grande questão do Homem e que é legado da sua inevitabilidade: a morte ou o sermos 136 Gallimberti,Umberto (1998). p. 62. 73 para a morte. Então, surge a questão da consciência que se dá como experiência subjectiva do real no homem encarnado - experiência que envolve a sensibilidade. Em Searle137, nas investigações da filosofia da mente, a consciência só existe no corpo: uma indivisibilidade consciência-corpo-mundo, que envolve os sentimentos. Porquê a necessidade da divisão em duas partes? Qual é o mistério do homem e do seu mundo, nesta situação-mundo que impõe uma barreira a que se dá o nome de corpo? Os sentimentos e a intuição, enquanto modo possível de conhecer, ocuparam e ocupam conhecimento de índole inferior relativamente à razão. Em Baumgarten, o plano secundário do conhecimento estético liga-se ao facto de este não estar ligado à razão, mas sim aos sentimentos e sentidos e, portanto, não obter o mesmo estatuto. E é do corpo que vêm as sensações. Mas será um sentimento algo palpável? Em Erro de Descartes (1995) do neurologista/neurocientista António Damásio, analisa emoções complexas que revelam que a alma e o sentido espiritual se situam, também, em complexas situações orgânicas, cerebrais ou corporais. O “aperto da garganta” de descontrole racional, ou as “borboletas no estômago” do que é estar apaixonado são reais e presentes de forma física nessa materialidade a que chamamos corpo. Os sentimentos situam-se nesse estado enigmático do que é um corpo vivido que ao mesmo tempo pode ser estranho, estrangeiro – “Je est un autre”138, como afirmara Rimbaud. São as convulsões de um corpo sentido, que se afirma e se nega ao mesmo tempo, que encontramos presentes, por exemplo, em Fernando Pessoa e seus heterónimos na literatura. Ou até em Mário de SáCarneiro cuja estranheza do seu próprio corpo, num extremo, o levam a por fim à sua vida. Se por agora, julgamos que o robô não poderá nunca ser capaz de experimentar intensamente esta complexidade sensível, por vezes dolorosa, da natureza do corpo humanizado, são incontestáveis os avanços tecnológicos a este respeito. Nesta área científica citemos o importante exemplo do teórico Pfeifer tratando da questão da “incorporação” em contexto teórico da robótica: “First, embodiment is an enabler for cognition or thinking: in other words, it is a prerequisite for any kind of intelligence. So, the body is not something troublesome that is simply there to carry the brain around, but 137 Sobretudo na obra Intencionalidade: Um Ensaio de Filosofia da Mente (1983). 138 Rimbaud (1998). Les lettres du voyant, col. Textes fondateurs, Paris: Ellipses, p.47. 74 it is necessary for cognition.”139 Mesmo na investigação científica da Inteligência Artificial essa existência é imprescindível e fundamental. Trata-se de uma condição perturbadora, mas sem a qual o próprio avanço tecnológico, independentemente de se falar de um corpo humano ou de um corpo “artefacto”, não faz sequer sentido. E isto leva-nos a uma outra questão - além da questão do homem-máquina, o robô - a (não) presença do corpo na realidade virtual. Que espaço ou lugar ocupa um corpo numa relação não palpável? O virtual não é o oposto do real pois carrega a hipótese de ser, de vir a ser, apenas não está concretizado, segundo Lévy, não é actual mas está em actualização, é potência. A realidade virtual, por se diferenciar da matéria traduz, o sonho dessa libertação do fardo do corpo - “cela explique le succès considérable du monde virtuel et de la cyberculture, le cybercorps étant, dans l'imaginaire collectif, un corps libéré de toute sorte de limite matérielle”140. E, portanto, o corpo nesta situação, irá reduzir-se a uma imagem ficcionada que se faz do próprio corpo, e do corpo do outro cuja imagem real é protegida a partir do ecrã. Essa protecção e possibilidade de (re)criar um corpo de ficção, realizando a sua cartografia a partir de algo previamente planeado, fazem o sucesso dos chats ou dos espaços cyber. Espaços virtuais privados de quaisquer contactos físicos, não cedendo um lugar para o verdadeiro encontro: deixa de existir lugar para a presença, para a troca de expressões, o toque, o odor, os sorrisos. A linguagem do corpo - o corpo fala. Essa necessidade de (re)criar um corpo ficcionado pela sua não presença efectiva traduz-se também, em sociedade, na insatisfação com o corpo físico e nas consequentes modificações do corpo. Essas modificações podem resultar na inserção de corpos estranhos ao próprio corpo, como sendo os piercings, ou através de tatuagens marcando a pele, a pele pintada -“a marca corporal traduz a necessidade de completar, por iniciativa pessoal, um corpo que não chega a incorporar/encarnar a identidade pessoal” 141. Não há signo, mas simples desejo de beleza; “forma específica da generalidade do desejo humano de transformação de si próprio” 142 , que nunca se considerará suficientemente belo. O contemporâneo é sintoma dessa esquizofrenia do indivíduo no mundo globalizado que se manifesta na modificação do corpo individual 139 Pfeifer, Rolf, Bongar, Josh (2007). How the body shapes the way we think – a new view of intelligence, Massachuttes: MIT Press Books, p.41. 140 Marzano, Michela (2007). p.23. 141 Le Breton, David (1999). L'adieu au corps, Paris: Editions Métailié, p. 98. 142 Sieber, Tobin (2000). The Body Aesthetic - from fine art to body modification, Michigan: University of Michigan, p. 11. 75 correspondendo a padrões e estilos de beleza também variados e que vão do ideal do equilíbrio ou do saudável ao belo bizarro. Na multiplicidade de ideais de beleza física converge-se num ponto: a busca desenfreada e nunca terminada dessa perfeição ajustada. Justificam-se, assim, as dietas, os distúrbios alimentares e as cirurgias plásticas - pretende-se hoje, celebrar o corpo como obra sempre inacabada. É inevitável lembrar a artista Orlan e a sua arte carnal bem como Stelarc, ambos produzindo bioestéticas, a modificação do corpo, sondando a própria carne em nome da criação, para a arte. No caso do artista e performer australiano Stelarc, o ritual de suspender a sua própria pele por ganchos (mais de vinte e cinco performances entre 1976-88) desafia a gravidade e expõe em simultâneo dispositivos tecnológicos que se relacionavam com o seu corpo biológico alterando-o e ajustando-o - como a “terceira mão robótica” ou estimulando músculos previamente conectados à internet. Ou, então, a partir do célebre implante que realizou de uma orelha cultivada através de células artificialmente condicionadas. O objectivo principal será sempre o de questionar um aumento de reforço e resistência do corpo natural que se produz através do corpo tecnologicamente modulado, ao mesmo tempo que se reconhecem, assim, as limitações de um corpo natural que considera estar biologicamente inadequado e obsoleto. Com efeito, a perspectiva do corporal como puro objecto evolutivo do ser humano é completada por uma manipulação estrutural e tecnológica em que, o que de facto interessa, é um aumento das capacidades do corpo, a sua performance no sentido de desempenho. Stelarc importa-se, sobretudo, com a endurance física, com o por fora e também por dentro da carne – como refere, nós podemos, por exemplo, através de micro-robôs desenvolver a capacidade imunológica, trabalhando de modo a que se “estenda o corpo por dentro” (“to extend the body from within”)143. As inquietantes ideias de Stelarc no que respeita às ciber-estratégias transpõem-nos imediatamente para a discussão filosófica. A noção de corpo morto dissolve imprecisões pois não é marcada pelas mutações estéticas, mas pelas biológicas. A pele como barreira física e metafórica entre um dentro e um fora desfaz-se: é essa metáfora que é condenada, perspectiva demasiadamente teórica e pouco prática - “II think metaphysically, in the past, we've considered the skin as surface, as interface. The skin has been a boundary for the soul, for the self, and simultaneously, a beginning to the 143 Atzori, Paolo and Woolford, Kirk (1995). Extended-Body: Interview with Stelarc, Academy of Media Arts, Cologne, Germany, in http://www.ctheory.net/articles.aspx?id=71 [em linha]. 76 world. Once technology stretches and pierces the skin, the skin as a barrier is erased.”144 O que está fora é o mesmo que está dentro, tensão entre consciência e fisicalidade nos limites, que constantemente põe à prova nas suas performances num meta-corpo redesenhado e revelado pela tecnologia: "The realization of the body's obsolescence is not necessarily affirming a Cartesian duality. This body in 'being the world,' (Heidegger's term) in functioning and performing in the world experiences certain interactions that expose its limitations that expose its biological parameters and interfaces." 145 O tecno-corpo é também explorado no seu erotismo electrónico146 pela coreógrafa Isabelle Choinière a partir de uma investigação que alia trabalhos performativos com o desenvolvimento das novas tecnologias. No âmbito da companhia Le Corps Indice que funda em 1994, Choinière produz Le Partage des Peaux (1994) e Le Partage des Peaux II (Communion) (1995-1996) onde recupera ritmos de movimento do corpo para transmutá-los gerando imagens de vídeo e som. Em La Meu de L'Ange (1999) a figura celestial do anjo, mediador entre o terreno e o divino é assemelhada à figura virtual que está e não está, mas que comunica através do corpo real/virtual presente nesse espaço e nesse tempo. Dois intérpretes são tecnologicamente manipulados ao mesmo tempo que interagem com mensagens recebidas por um corpo virtual, em tempo real, surge uma dança etérea em que o corpo virtual flui como um corpo celeste ou quase sobrenatural – a conjugação da dança híbrida com a manipulada através de softwares. Aceita-se a condição de virtualidade como algo de enraizado na cultura contemporânea, de um ponto de vista positivo: o corpo sensível mistura-se com o corpo técnico, superexcitado. Na actualidade, as tecnologias da comunicação e informação estão, vinculadas a um desenvolvimento da reflexão sobre o bio, sendo essa reflexão profundamente afectada pelas fronteiras cada vez mais diluídas entre o homem e a máquina. Como explica Lundin, "Although it's definitely a stunning visual spectacle, this is not just tecno art where the artists are playing with new technological tools to create fun effects. The concept at the centre of the performance is what these technologies do to our sense of our bodies. In an abstract sense, the dancer shares her skin with her virtual sister and her reproduction on the wall. The screen, the major focal point of contemporary culture, 144 Paolo Atzori and Kirk Woolford (1995), [em linha]. 145 Fernandes, Marc (2002). The body without memory, an interview with Stelarc in http://www.ctheory.net/articles.aspx?id=354 [em linha]. 146 Choinière, Isabelle (1997). Communion, project proposal, [em linha]. 77 represents these 'artificial skins' that the dancer shares." 147 Já no contexto português, refira-se o trabalho do artista Leonel Moura, nomeado em 2009 Embaixador Europeu da Criatividade e Inovação. Explorando as possibilidades da robótica e da inteligência artificial, produz uma arte “não-humana”, tal como a designa. O artista constrói, por exemplo, o RAP (Robot Action Painter) que, pela primeira vez, produz autónoma e automaticamente os seus próprios desenhos ou pinturas. O ISU é um robô poeta que realiza composições pictóricas a partir de letras, palavras e manchas de cor, e que relembra a poesia concreta. Terá sido precisamente esse o motivo pelo qual atribuiu ao robô o nome ISU, como homenagem a Isidore Isou, percursor do movimento letrista. O trabalho Robotarium, em 2007, representa uma novidade no panorama artístico e tecnológico português e internacional: um pequeno jardim zoológico onde vivem criaturas artificiais. Leonel Moura acredita que a inteligência artificial pode gerar uma criatividade artificial. Com base nesta tese, o artista tem igualmente um vasto trabalho enquanto escritor, destaque-se o mais recente Livro do Desassossego Tecnológico (2010). Num artigo do Jornal das Letras cujo título apropria-se da obra de W. Benjamin - A arte na era da sua reprodutibilidade digital, afirma: Para a arte estas ideias são igualmente revolucionárias. Elas abrem uma perspectiva totalmente nova da obra de arte e do papel do artista (humano) num contexto agora bastante mais amplo, diversificado e evolutivo. Não só porque pela primeira vez os artistas se dedicam directamente à geração de formas de vida autónomas e criativas. Mas porque se altera radicalmente o próprio objecto da actividade a que se convencionou chamar arte. Da interpretação do mundo passou-se finalmente para a construção de mundos. E esse é, julgo, o destino do homem e daquilo a que chamamos cultura. 148 Muitos outros artistas se juntam a esta concepção e trabalham sobre esta base conceptual. Veja-se os cyborgues de Lee Bull ou, em 1997 a peça Good and Evil in a long voyage de Paul Perry que funde a sua própria célula com uma célula cancerígena de um rato. Exemplos mais recentes: GenTerra (2001) dos Critical Art Emsemble que produzem igualmente organismos transgénicos como forma de arte, ou a minúcia da instalação de Wim Delvoye (2000) em Cloaca Original, reinventando através de máquinas o processo de digestão humana. A entidade corpo pode ser transformada pela 147 Lundin, Maria (1994). Dancing with your virtual siste, McGill Daily vol. 84, no 7, p. 5, 9, in 148 http://www.fondation-langlois.org/html/e/page.php?NumPage=116 (em linha). Moura, Leonel (2006). “A arte na era da sua reprodutibilidade digital”, in Jornal de Letras (4 de Julho de 2006). 78 tecnologia ou pretensamente substituída. Mas como poderá ocorrer esta passagem do material para o virtual? Apesar de tudo, a própria palavra corpo remete já a uma semântica de materialidade e, paradoxalmente, algo que se apresente como algo intangível pode ganhar a forma de um corpo. Mas e o contrário? Será possível que algo de material, perca essa fisicalidade e sensibilidade e simplesmente se desfaça, se torne intangível, virtual? Poderemos, então, pensar com Lévy e dar então o salto para uma revolução noolítica149 em que a pedra do paleolítico é substituída pelos microprocessadores e as fibras ópticas. Há uma interrogação ao nível do humano permanente na contemporaneidade e que pode atingir, no limite, o estado do pós-humano na expressão de Santaella caracterizando as alterações ao nível humano provocadas por essa reconfiguração do corpo humano por meio da tecnologia. Noutro plano, o interior dessa cultura de manipulação do corpo é síndrome de uma crise do sujeito e da subjectividade que põe em causa, antes de qualquer outra coisa, a corporalidade do indivíduo numa realidade quase dissimulada. Trata-se sobretudo do domínio do corpo que se concentra, na perspectiva de Le Breton, no auto-controlo de si. Empresta-se ao corpo o estatuto de coisa inacabada na sua aparência visível, algo a ser preenchido com vista à completude através de uma estética corporal que procura o corpo ideal. Aqui, o corpo torna-se uma parte extensível do ego como se eu e o meu corpo fôssemos companheiros inseparáveis e não uma só realidade antropológica - E o que me conta de novo sobre o seu corpo? O corpo aberto cirurgicamente é um corpo simulado, no sentido em que Baudrillard explica simulacro como uma manipulação de signos, infinitamente, até se perder o signo do original. O conceito de simulacro está ligado ao século XX pela “realidade” veiculado por dispositivos como a televisão e a internet ou através da arte da performance -“it is a replication of...itself as another. That makes simulations perfect performatives” 150. Até que ponto se pode transpor os limites da própria pele? A visão predominante é a de um corpo como ponto central, onde convergem e se direccionam estímulos e consequentes reacções, mas também, no que diz respeito às singularidades físicas humanas, lugar de criação que demanda cuidados estéticos. Ele é instrumento com uma dupla função: instrumento de conhecimento/experimentação e instrumento de beleza (uma quase obra de arte em progressivo aperfeiçoamento). O sujeito forma reportórios de experiências e forma imagens dos outros e de si. Porém, é ainda mais estranhamente 149 Lévy, Paul (2003). A inteligência coletiva. São Paulo: Edições Loyola, p.29. 150 Schechner, Richard (2002), p.117. 79 que se parece manter a afirmação de Benjamin de que o mais esquecido de todos os estranhos é o nosso corpo. O corpo é physis e psiquê, é osmose mútua - na sociedade, na cultura, para si - com toda a afectividade e emotividade que lhe estão inerentes. É este facto que, apesar de aparentemente ser claro, é esquecido na prática social, tal como relembra Perniola na obra Do sentir (1991). O ser humano parece caminhar na direcção oposta da subjectividade pela substituição tecnológica que cada vez mais se faz notar no dia-a-dia social e, no entanto, recorre ao termo sensologia para designar uma forma de sentir colectiva que se parece intensificar desde inícios dos anos 60: Parece que é justamente no plano do sentir que a nossa época exerceu o seu poder. Talvez por isso ela possa ser definida como uma época estética: não por ter uma relação privilegiada e directa com as artes, mas mais essencialmente porque o seu campo estratégico não é o cognitivo, nem o prático, mas o do sentir, o da aisthesis.151 Este sentir colectivo é sentido no limite, e ao mesmo tempo é de quem já sentiu tudo, é um sentir esvaziado de emotividade, digamos assim, anónimo, em que tudo são todos; essa crise de subjectividade resvala na ausência do sentir individual mais profundo. Porque, tal como afirma Nancy, em última instância o corpo não se abre senão cirurgicamente, dobra-se no sobejo desse sentir vazio e, portanto não se dá senão enquanto corpo-morto: Os corpos são absolutamente invioláveis. Cada corpo é uma virgem, uma vestal sobre o seu leito: e é virgem não porque esteja fechada, mas pelo facto de estar sempre aberta. É «o aberto» que é virgem, e que o será para sempre. É o abandono que continuará sem acesso, e a extensão sem entrada. E é um duplo falhanço que se dá: falhanço em falar do corpo, falhanço em calá-lo. «Double blind», psicose. A única entrada do corpo, o único acesso que se retoma em cada uma das suas entradas é um acesso de loucura.152 Do sentir de Perniola, nas mais variadas acepções que procura desenvolver, retornaremos para o sentir originário do corpo, aquele que nesta pesquisa pretendemos fazer emergir como aisthesis, um sentir que reúne todas as suas faculdades - racional, espiritual e física - numa só realidade existencial. 151 Perniola, Mário (1992). Do sentir, trad. António Guerreiro, Lisboa: Ed. Presença, p. 11. 152 Nancy, Jean-Luc (2000). Corpus, trad. Tomás Maia, col. Passagens, Lisboa: Veja, p.57. 80 2.4 | sobre o corpo vivo: corpus. para uma Soma-Estética …há uma cidade por baixo da pele e uma casa de sangue coagulado na memória atravessada por canos rotos e um corpo pingando mágoas… Al Berto Analisámos o corpo procurando perspectivar a sua emancipação do ponto de vista do pensamento, encontrando na teorização proposta pela fenomenologia, condições de habitabilidade do ser humano no seu corpo íntimo. Concomitantemente, percebemos o futuro tecnologicamente promissor e os riscos éticos envolvidos ao encarar o corpo como receptáculo morto, virtual ou robotizado, e mais do que apenas estrangeiro, alienado da própria realidade humana. E, no entanto, a definição de corpo permanece imprecisa. Cabe agora delinear esta entidade de acordo com a sua energia configurada e pulsional. Cabe admitir a sua natureza plural e equívoca na teia aberta e complexa do conhecimento e da experiência estética humanos. Sobretudo, importa pensar a sua dinâmica essencial no indivíduo, num sentido mais amplo, e na especificidade criativa de quem pratica artes performativas e tudo o que isso envolve, como objectivo mais concreto. O corpo, neste capítulo, formula-se enquanto corpo vivo, que sente e age, que ao mesmo tempo é objecto de consciência e fonte transparente de percepção ou acção153. Signo de ambivalência e humanidade ele é mais do que natureza animal para passar a ser “símbolo de dignidade humana, expressa no desejo irreprimível de representar o corpo nas formas belas da arte”154. É neste sentido que Shusterman se apoia em Wittgenstein quando questiona quanto de humanidade restaria se desmembrássemos e mutilássemos um homem. O corpo organismo ou instrumento desilude-nos, isto é, apresenta-nos as fragilidades dessa humanidade; ao longo dos tempos o indivíduo foi-se apoiando na mente, numa tentativa sempre frustrada de transcender o erro e a mortalidade e de viver como os deuses. O composto homem/mundo tem conexão na capacidade racional de nós conhecermos e reconhecermos o que está à nossa volta, salvo algumas limitações epistemológicas 153 Cf. Shusterman, Richard (2008),p.101. 154 Shusterman, Richard (2008). p.102. 81 que, em última instância, se prendem com a impossibilidade de conhecer tudo, ou então memorizar tudo o que se conhece. Mas é a presença do corpo que medeia esse composto, quer como condição fundamental, já que conhecemos a partir dos sentidos; quer como condição limite dado que a doença e as deficiências do corpo são imediatos constrangimentos à desejável presença plena e saudável de um homem no seu mundo. O subjectivo corporalizado faz-se de ritmos, impulsos, estímulos, “sucessivas cicatrizes de pancadas. Os nossos sentimentos”, nas palavras de Hatherly155, imprescindíveis e irrecusáveis mesmo quando a memória cinestésica está ausente – o corpo é prioritário na unidade do humano. A vontade e a memória são conceitos que se insurgem: a inclinação do espírito a uma acção ou uma intenção, e a fixação dessa intenção-acção, a sua conservação e lembrança passível de uma recuperação. O corpo manifesta-se individualmente nessa orla entre a vontade e o querer do espírito e a capacidade de resposta que o corporal dá a esses impulsos, capacidade essa que, muitas vezes, é até involuntária e escapa ao próprio controlo de um reconhecimento racional: (…) tal como a crise do saber rompe a imediata harmonia com o mundo, a crise do querer rompe o entendimento com o corpo, e o devir corporal torna-se obstáculo contra o qual a vontade se insurge (…) Mas este sentimento de impotência é significativo. Adverte-nos que a vontade não tem só agravos relativamente ao corpo mas também obrigações a seu respeito. Sem o concurso do corpo, ela fica paralisada e todo o imenso edifício das técnicas pelas quais o homem governa o mundo se esboroa. É dos poderes do corpo que a vontade tira os seus próprios poderes; se o infinito do corpo tende a pulverizar os mecanismos do corpo, é do infinito do corpo que o querer retira a sua eficácia. A vontade está portanto ligada ao involuntário por um laço que não é somente de hostilidade mas também de solidariedade. E há um ponto onde esta solidariedade se desenha com perfeita clareza: é na conversão do pensamento em movimento.156 A “crise do querer” designa essa manifestação ôntica adjacente ao devir do corpo, ao seu poder, é precisamente no interior dessa crise, que a vontade se limita na pretensão de tudo querer no mundo e deixa o indivíduo significar nessa contingência que o constituí. Parece-nos paradoxal que o corpo exposto na experiência artística se exprima também naquilo que escapa ao próprio corpo, ou seja, aquilo que ele não sabe que está a fazer. Uma espécie de autenticidade e verdade vinda do movimento e do gesto na pura presença da expressão de um corpo. A operação preciosa dessa subjectividade, e que manifesta o seu involuntário nas artes, convoca o pensamento acerca do corpo e sua 155 Hatherly, Ana (1997). 463 tisanas, Lisboa: Quimera, p.62. 156 Dufrenne, Michel, Ricoeur, Paul, Karl Jaspers et la philosophie de l'existence, cit. por Pitta, António Pedro (1998), p.283. 82 significação. Esta é a tese defendida na estética de Dufrenne, corpo é Natureza, ou antes, é através da arte que ele se faz Natureza fundada na expressão de outras possibilidades de si, em vez da pura compreensão de si e do mundo dentro da consciencialização cultural – “o corpo traz um mundo em si tal como o mundo o traz, conhece o mundo no acto pelo qual é corpo e o mundo se conhece nele” 157 . Para a compreensão da noção de corpo associado à Natureza e a um Mundo assinale-se a anterioridade do existir no corpo que torna possíveis outras existências. Como um a priori que é autognose inequívoca do eu no seu corpo – irremediavelmente não nos (re)conhecemos sem ele, nem somos sem ele. Nesta abertura incluem-se, também, corpos-outros habitantes do corpo próprio, do fundamental - “el inconsciente genealógico abriga fantasmas (figuras de antepasados que regresan de un tiempo arcaico).”158 Podemos também falar de uma borderline159 no sentido de uma sensação de pertença de mim ao meu próprio corpo como algo dúbio: “A imagem difusa do meu corpo, a instabilidade constante do que sou...uma fronteira indefinida entre o eu e o outro, uma névoa ao espelho de uma imagem desconhecida a cada dia...(…) rasgar a carne para aliviar a dor...para confirmar a existência em sangue desta dor invisível...”160A relação difícil quando sentimos o meu invisível no seu lugar físico, onde a dor pode confirmar a residência desse lugar, na borda, no limite do tangível/intangível. A borda torna-se indício da constatação de que a experiência corpórea não tem limites, dado que o orgânico alastra constantemente para o real, incontrolada e inexplicavelmente: El cuerpo no termina en sus límites, como experiencia de una frontera orgánica que nos limita: ese sería un cuerpo psicótico (las nociones de cuerpo propio y de cuerpo vivido dejan de explicar lo que sucede en la transferencia psicótica o cuando un esquizofrénico deja de vivir una parte de su cuerpo). Hay un inconsciente del cuerpo que trabaja en la propia conciencia, y no en una tópica, distanciada del consciente. En este sentido, un cuerpo es una multiplicidad de cuerpos: estando en devenir permanente, se prolonga en un tiempo común, que él mismo segrega.161 Apenas o corpo humano pode fazer ressoar o eco do sentido do mundo, incluindo todas essas dimensões de corpo: orgânico, próprio ou reconhecido, psicótico - mundo. 157 Dufrenne, Michel, Intentionalité et esthétique, cit. por Pitta, António Pedro (1998), pp. 281-29. 158 Vilela, Eugénia (2009), p.22. 159 Borderline – termo usado na Psicologia, patologia limite ou fronteiriça, transtorno de personalidade caracterizado por uma afectação ao nível emocional, problemas de identidade, relações caóticas e de irrealidade, etc. 160 Ferreira, Ricardo (2010). Borderline, fronteira, limite... in Revista “Migalhas”, revista, n.º10, in http://www.migalhas.org/edicoes_pdfs/migalhas_edicao10.pdf [em linha]. 161 Vilela, Eugénia (2009). p.22. 83 Todas estas dimensões se cruzam naquilo a que Shusterman irá explorar enquanto Soma-Estética, disciplina que encontra na valorização do sentir (aisthesis) e da autoformação criativa a sua função para uma educação para as humanidades profundamente firmada na ligação corpo-mente-cultura como realidades co-dependentes. A Somaestética, procura enriquecer não só o nosso conhecimento abstracto e discursivo do corpo, mas também a nossa performance e experiência somática; procura realçar o significado, o entendimento, a eficácia e a beleza dos nossos movimentos e dos ambientes para os quais aqueles contribuem e dos quais também eles extraem as suas energias e sentidos.162 Na educação para as humanidades, “a corporeidade transporta um significante mais velho do que ela porque procede da conjugação do corpo e do mundo”163, tal como aponta António Pita, conquanto esta relação eu/outros/mundo é mediada nas proporções do corpo e resignada a um universo demasiado humano. Por isso, o corpo transporta a ambiguidade de sermos puramente sensíveis e afectuosos num sentido mais primitivo; uma estética que se compromete intensamente com o acto de presença desse Corpo maiúsculado que é Corpo-Sensibilidade. Trata-se do corpo próprio, sensível que é preenchido pelo corpo do mundo; marca que excede o individual para o expor ao existencial: Se estão investidos de mundo por todos os poros, significa que a substância (a natureza, a noite) definitivamente tatuou o seu corpo próprio. No indivíduo cada homem é, vai a marca que o excede, e excede-o na exacta proporção em que o religa a uma totalidade que o faz existir sob a forma da separação. Existimos sob o modo desta «ambiguidade»: seres que pertencem à Natureza e que a Natureza quer separados.(...) De certo o corpo é a noite à procura da sua própria manhã, quero dizer, em processo de aclaramento pelo movimento dos afectos.164 Cada corpo subjectivo procura a sua aurora pessoal nas concretizações e projectos de suas vidas que, todavia, estão resignadas a terrenos íngremes desse dispositivo físico e existencial que carregam como a pedra de Sísifo às costas para a eternidade da sua existência. Por outro lado, parece-nos curiosa a afirmação que na altura quase passa despercebida, feita por um actor em conversa no final de um espectáculo. Na peça 162 Shusterman, Richard (2008). p.99. 163 Dufrenne, Michel, Itentionalité et esthétique, cit. por Pita, António Pedro (1998).Modos de inscrição do corpo na filosofia e na experiência estética, in Revista Filosófica de Coimbra n.º 14 pp. 281-294, http://saavedrafajardo.um.es/WEB/archivos/Coimbra/14/Coimbra14-02.pdf [em linha], pp. 281-29. 164 Pita, António Pedro (1998), pp. 292-293 84 Beckett: O quê – Onde165, levada à cena pelo Teatro Plástico, um actor mantém-se numa posição de imobilidade constante durante grande parte da peça, correspondendo a mais de uma hora. Perante o corpo que se conserva em pé, curvado, congelado, a reacção despertada pelo público é a de uma violência física e psicológica da cena que se desenrola ao longo do mesmo tempo em que os outros dois actores tecem diversas considerações acerca do possível suicídio desse homem, que permanece expectante. Quando se pensa em imobilidade, imediatamente o corpo se move, porque o pensamento é acção - na informalidade das palavras do actor. Ora, esta afirmação assume contornos múltiplos: retoma a ideia de conversão do pensamento em movimento, a convivência de mim com o meu corpo e a acção involuntária do corpo que também referimos anteriormente. Na unidade do humano, a razão actuando sobre o corpo com determinada intencionalidade (a de permanecer quieto) serve de distracção à sua própria permanência porque há uma consciencialização instrumental que se põe em marcha e, por isso, o nosso diapositivo vivo reage – move-se. Quando essa imobilidade deixa de ser racionalizada, e o actor afirma entrar preferencialmente num estado meditativo, ela acontece. A melhor forma de congelar o corpo naquela posição incómoda é, nas mesmas palavras do actor não pensar em absolutamente nada, deixar simplesmente essa entidade existir numa quietude que deixa de ser dolorosa para ser plena. Segundo as técnicas de meditação na filosofia oriental o processo consiste num virar-se para dentro abstraindo-se do exterior a partir de uma concentração (dhyana) no silêncio mental, na respiração, sendo possível uma libertação das memórias e expectativas causadas pelo tempo e filtrando apenas o momento presente consciente e vivido. Desta forma o corpo imobilizado é, acima de tudo, estado de presença no presente – aparição. Ninguém pode pagar, nada pode pagar a gratuitidade deste milagre de sermos. Que ao menos nós lhe demos, a isso que somos, a oportunidade de o sermos até ao fim. Gritar aos astros até enrouquecermos. Iluminarmos a brasa que vive em nós até nos consumirmos. Respondermos com a absoluta liberdade do desafio do fantástico que nos habita. Somos cães, ratos, escaravelhos com consciência? Que essa consciência esgota até às fezes a nossa condição de escaravelhos.166 O corpo exposto na prática performativa assume-se como inscrição simbólica no espaço e no tempo, forma de tomar consciência de uma corporalidade que se move, que 165 Beckett: O quê-Onde (2011). de Samuel Beckett, direcção Francisco Alves, interpretação Mário Santos, André Amálio, Viriato Morais e Eurico Santos, voz off António Durães, produção Teatro Plástico, 5-13 Fevereiro de 2011, Porto: Teatro Helena Sá e Costa 166 Ferreira, Vergílio (2003). Aparição, Lisboa: Bertrand, p.85. 85 é plástica e que é também dramática e dramatúrgica. Há uma autenticidade muitas vezes na acção, que parece escapar à própria racionalidade, sublimando-se dela, que se enraíza na performance. Shusterman desdobra a Soma-Estética em três sub-campos disciplinares. O primeiro - soma-estética analítica - trata sobretudo de questões de conhecimento e acção ao nível mais teórico. No segundo, mais pragmático mas com ligação ao primeiro, são métodos que se realizam com vista a melhorar a experiência e uso dos corpos, que podem passar por inúmeras actividades desde as mais holísticas como as artes meditativas, o yoga, etc. as dietas, a dança, o body building, e que portanto relacionam-se com a performance enquanto desempenho. Por último, numa soma-estética prática que se envolve com programas de envolvimento efectivo com as práticas reflexivas ou corporais da soma ao nível representativo, experiencial e performativo. Estas três áreas confluem-se em Shusterman numa educação que usa o corpo enquanto instrumento de aperfeiçoamento do humano. No caso das artes performativas, veja-se que esse recurso ao corpo enquanto veículo de sentido acompanha esta perspectiva e é fruto, consciente ou não, dela. A valorização desta entidade é produção de um conhecimento alternativo embora marginal e de dura legibilidade. A dureza em percorrer este novo caminho na sua marginalidade decorre de uma alienação, a leitura que não tem só a ver com o concreto e quotidiano, com a sua mundialidade, mas também com o incorpóreo do sentido do corpo, o espaçamento entre os corpos, a sua arealidade, o buraco negro da ausência de matéria, nas imagens de Nancy. A proposta de Nancy inscreve-se profundamente nessa ideia em que o corpo sangra para uma noção de corpus: “hipersignificante corpo no sentido do sentido do corpo. Toda a função simbólica se cumpre aqui: reunião sensível das partes do inteligível, reunião inteligível das partes do sensível”167. Convoca-se uma reunião de todos os corpos a tomarem corpo no incorpóreo do sentido, isto é, a obrigarem-se a significar nesses espaços vazios e ausentes que se interligam com o corpo de Deus, com o corpo Morto e com a Carne. Numa espécie de júbilo ensaia-se evidenciar essa ambígua grafia do corpo ao invés de o clarificar distintamente numa ideia estrangeira e estranha que se tornou corpo. Pretende-se escrever o corpo e escrever ao corpo a partir duma poîesis que o capta como vivo na sua intensidade mais profunda: uma metafísica dos corpos, o corpo na sua nudez inaugural e existencial e a sua 167 Nancy, Jean-Luc (2000), p.72. 86 consequente queda mundana e civilizacional: “Será que inventamos o céu com o único fim de fazer cair os corpos?”168. É o oposto da queda de Damiel no filme de Wenders Asas do Desejo169, os corpos sós que se arrastam vertiginosamente e sem rosto, as multidões, o ódio, os andróides pairando na realidade – “os corpos devem por os pés no chão”170. Pelo contrário, o querer que o corpo exista plenamente vivo nessa realidade finita é regozijo de Damiel, anjo caído para sentir intensamente aquilo que a humanidade se esqueceu ou se habituou, a maravilha do efémero. Esse gesto sobre si mesmo que se transforma numa dança peculiar no interior da sua própria existência, afirma-se o humano, a Pessoa em toda a sua fragilidade – que em Damiel é sinónimo de Amor. E esse Amor é sinónimo de ter frio, de sentir o calor do café, o sabor do cigarro e a cor do sangue, a paixão por uma mulher – a contingência e ingenuidade de tocar a realidade como quando a criança era uma criança, no poema de Handke que acompanha o filme. Liga-se, como tão bem explica Merleau-Ponty, a renúncia em habitar as coisas pela ciência e sua impossibilidade na eternidade, restando-nos convivermos com o nosso corpo, vivendo-o, assumir total responsabilidade do drama que flui através de mim, e fundir-me com ele. O corpo reduzido, sem alma aparece desde o corpo abjecto, proposto por Marzano como rejeitado por tudo aquilo que não queremos ser - matéria produtora de substâncias como o suor, as excreções, os excrementos, a nossa condição no mundo que é feita de instinto e medo171. É aquele que é martirizado nos campos de concentração, coisa despersonalizada e ausente que, no limite, é um estômago com fome...“Como se o estômago fosse, naquele momento, ainda em plena noite, a evidente manifestação da humanidade e das suas relações ambíguas com os mistérios de que nada se sabe.”172 Está cortado em pedaços e é indício da dor de existir: ser desapossado de si próprio, identidade consumida e desfeita. Nos homens devastados pelo medo e o terror o corpo é sem-lugar. Como afirma E. Vilela a propósito dos corpos errantes dos refugiados: “Como permanecer fiel a um espaço interior que marcou que marcou a deslocação do corpo, quando o refúgio é apenas mais uma ferida. Perdidos, agora, no corpo do 168 169 170 171 172 Nancy, Jean-Luc (2000), p.8. Asas do Desejo (1987). DVD, Wim Wenders, Peter Handke, Berlim (128min) Nancy, Jean-Luc (2000), p.10. Cf. Marzano, Michela (2007), p.89. Tavares, Gonçalo M. (2008). Jerusalém, Livros Pretos, Lisboa: Caminho, p.234. 87 mundo.”173 Face a uma razão, sem choro ou riso174, cabe perscrutar novas vias de conhecimento do humano e do mundo. Este sentido deseja tornar visível a complexidade do ser corpo-no-mundo (Merleau-Ponty). Se entendermos o lugar de um corpo como algo que se eleve desde essa teia complexa e espectral de multi-significações e narrativas de sentido, associadas a discursos disciplinares específicos, então teremos o corpo como textura do mundo, um significante que flutua. Nesse movimento de definir, de dizer um corpo, o signo da linguagem é sempre um corpo-outro, isto é, “hablamos de una subjetividad en la que lo exterior es semiotizado, y lo interior significado”175, no sentido em que se realiza um duplo movimento desde o corpo adquirir um signo para si e transmiti-lo: produz-se um conhecimento com fissuras, humanizado. Descrever este corpo é, na perspectiva de Barthes, contradizer o mito bíblico - no princípio era o logos -“la confusión de lenguas deja de ser un castigo, el sujeto accede al goce por la cohabitación de los lenguajes que trabajan conjuntamente el texto de placer en una Babel feliz”176. Na escrita de um texto de prazer, verdadeiramente universal, de um texto que exibe num instante a paixão de viver de um corpo - “El placer del texto es ese momento en que mi cuerpo comienza a seguir sus propias ideas - pues mi cuerpo no tiene las mismas ideas que yo.” 177 É na arte que ele se entrega originariamente e faz ressoar o mundo. Do sentido pairam sentidos outros que se cruzam e entrecruzam, num movimento incessante. Em caleidoscópio: O corpus seria o registo desta longa descontinuidade das entradas (ou saídas: portas sempre batentes). Sismógrafo de estiletes impalpavelmente precisos, literatura pura dos corpos em efracção, acessos, excessos, orifícios, poros e portas de todas as peles, cicatrizes, umbigos, descrição detalhada, peças e campos, corpo por corpo, lugar por lugar, entrada por entrada por saída. O corpo é a tópica de todos os seus acessos, do seu aqui/aí, vaivém, engole-e-cospe, inspira/expira, abre e fecha”178. 173 Vilela, Eugénia (2000). Corpos inabitáveis. Errância, Filosofia e Memória, in 174 175 176 177 178 http://reviravoltadesign.com/080929_raiaviva/info/wp-pt/wp-content/uploads/2006/12/corpos_inabitaveis.pdf (em linha), p.41. Vilela, Eugénia (1998). Do Corpo Equívoco – reflexões sobre a verdade e a educação nas narrativas epistemológicas da modernidade, col. Mediações – ensaio filosofia, Braga e Coimbra: Angelus Novus, p.130. Vilela, Eugénia (2009). p.21 Barthes cit. por Vilela, E. (2009), p.17. Barthes cit. por Vilela, E. (2009), p.18. Nancy, Jean-Luc (2000), p.55. 88 2.5 | o corpo-mulher: corporalidade e nudez. anotações Não há diferença a borboleta nocturna que se veio queimar, e aqui este meu corpo que o amor veio transformar. Isumi Shikibu Circunscrevendo metodologicamente um domínio, de entre um leque plural de artistas/performers/intérpretes, definiu-se a prática do género feminino. Assim, a actividade desenvolvida por mulheres performers encontra características particulares que se evidenciam, no que concerne a corporalidade no sentido do seu corpo físico, e a uma corpografia e poética do género que remete também aos inícios da prática performativa. No século XX, conforme as transformações histórico-culturais motivadas pela época, a condição da mulher, nomeadamente a diferença do seu corpo relativamente ao masculino é pensada, numa conquista pela emancipação e iguais direitos. No campo da psicanálise, o monismo fálico que Freud sistematizou ao não reconhecer a diferença de sexos mas a de fálico/castrado e a controversa afirmação a mulher não existe de Lacan, referindo-se ao significante e não à sua materialidade anatómica (a necessidade de construir uma identidade feminina ligada à imagem e ao desejo), são perspectivas que irão ser retomadas e problematizadas noutros campos científicos no que respeita à construção de uma feminilidade. No que respeita a arte, a mudança de mentalidade e as políticas feministas levaram a uma proliferação de práticas e poéticas de artistas mulheres, “o corpo passou a ser edificado, na sua absolvição transcendida em carne num devir exploratório de si mesmo, esgotando-se em êxtases, numa autognose extrema.”179 Tal como acontece com questões raciais, há características físicas que servem os 179 Lambert, Fátima (2000), Filosofia e Estética do corpo – iconografia da figura, lição proferida no âmbito da prova de agregação para Professor Coordenador, ESE IPP, Junho 200, documento cedido pela autora, s/p. 89 propósitos opressores. Estes aspectos opressivos da incarnação corporal do género, que nas mulheres ditam o modo de sentar, a elegância, o fechamento perante os homens, constituem formas dissimuladas e assimiladas nas culturas consoante propósitos de dominação. São hábitos somáticos de tal forma enraizados na sociedade ainda hoje, que se ausentam muitas vezes de uma consciência crítica. A mulher, na tradição judaicocristã, possui estatuto inferior ao homem e portanto é submissa a ele. No talmud afirmase o seguinte “A mulher é um vaso cheio de imundíces com sua boca cheia de sangue e entretanto todos a desejam” (Shabbath 152), atribuindo à mulher a condição de simples corpo de desejo sexual. Quando Freud afirma que o ego é um ego corporal, valorizando a experiência do ser como experiência do corpo, a materialidade do corpo é foco de experiência de um ego com os outros. Por isso, a acção performativa torna-se relevante, além da acção do discurso quando as artistas feministas realizaram as primeiras performances nos finais dos anos 60. Através da performance elas experimentam o seu corpo, transmitem a sua mensagem. Incontornável é o nome de Simone De Beauvoir, sobretudo em O Segundo Sexo (1949) o feminismo e a questão da corporalidade feminina são colocados em causa relativamente a factores sociais que possuem uma visão dessa mesma corporalidade. Em Irigaray as características do corpo masculino e feminino são representadas e imaginadas no domínio pessoal e social simbólico: o corpo-do-homem protagoniza o poder e a autoridade e o da mulher a fragilidade e isto está ligado à própria sexualidade e ao falocentrismo. Já Butler, pensadora relevante a partir dos anos 90 nesta temática, compara as perspectivas de Beauvoir e Merleau-Ponty em que corpo é entendido como um “processo activo de incorporação de possibilidades históricas e culturais, um complicado processo de apropriação”180. Para Butler, a apropriação do género é mais do que designada por atributos naturais e sociais, e encontra similitudes com os actos performativos em contextos teatrais dada a sua constituição no desenrolar de atitudes/actos corporais específicos – o género performativo. É nesse desenrolar que se poderá originar uma transformação da cultura de género. Não se entende aqui, o corpoda-mulher como um mero receptáculo passivo de códigos culturais nem como um ente pré-existente dessas convenções. Entende-se antes o corpo nos trâmites que são verdadeiramente os comparados com a performance no sentido em que o corpo com 180 Butler, Judith. (1988), s/p. 90 género descreve a sua acção no interior de um mundo cultural limitado – na vida real “Os actores são sempre já no palco, nos termos do desempenho / da performance.”181 Contrariamente a Kristeva, para Butler a separação e, por vezes exclusão, não é uma resposta relacionada com a formação da psyche mas uma categoria de normas discursivas. Por exemplo, quando nasce uma criança e se verifica que é “uma menina” não significa que com isso ela se reporte a um estado de coisas ligadas ao feminino, mas está a ter um papel nessa prática/performance de estado de coisas que, ao ser constantemente repetida, irá ter repercussões na distinção da natureza feminino/masculino. Forma-se assim um panorama social de base que reforça o poder de certos grupos, nomeadamente os homens e os heterossexuais, relativamente aos restantes - mulheres, homossexuais, transsexuais que possuem capacidades ou contornos do corpo físico e psíquico distintos do ideal dominante. A idade, a raça, a classe social constituem características relevantes neste tipo de discursos e quando se desenvolvem em determinado ambiente cultural: uma mulher ocupa uma posição diferente em distintas sociedades, consoante a combinação desses factores mencionados. O transgénero é outra questão levantada por Buttler no desafio à distinção biológica e social do género, dado que promove novas morfologias anatómicas e acções performativas numa sociedade - o queering - que vai, aos poucos, desconstruindo a oposição binária e normativa. Outro aspecto relevante e presente em muitas destas performances é o da nudez. Sobre o corpo nu destaque-se as ideias de Agamben que o relaciona com marca do corpo teológico, a nudez como traje glorioso, veste de graça de luz de Adão e Eva até se dar o pecado original da carne. Assim, na perspectiva teológica do cristianismo não existe “uma teologia da nudez, mas tão-só uma teologia da veste” 182 , dado que separam a carne como “devir visível da nudez do homem, a sua corrupção e putrefacção”, ligado à natureza, e veste que é “dotação de graça que o homem recebe do paraíso”183. Esta concepção manifesta-se na ideia de nudez como acontecimento visto que não se liga à forma ou ao um estado mas mais profundamente à história e ao tempo: é desnudamento enquanto pôr-a-nu algo que nunca se põe completamente e nunca acaba de acontecer porque “a sua natureza é essencialmente defectiva, na medida em que não mais do que o 181 Butler, Judith (1988). Performative Acts and Gender Constitution: An Essay in Phenomenology and Feminist Theory, trad. autora, in http://www.mariabuszek.com/kcai/PoMoSeminar/Readings/BtlrPerfActs.pdf, [em linha]. 182 Agamben. Giorgio (2009). Nudez, traduzido do italiano por Miguel Serras Pereira, col. Filosofia, Lisboa: Relógio d'Água, p.74. 183 Agamben. Giorgio (2009), p.79. 91 facto do faltar da graça, não pode nunca saciar o olhar ao qual se oferece”184. O corpo, no significado consignado dos dicionários consultados, associa-se indiscutivelmente ao desejo e à sensualidade – ele é primordial sujeito e objecto de tensão e apetite físico. Em Sartre “o desejo é a tentativa de despojar o corpo dos seus movimentos como das suas vestes para o fazer existir como pura carne” 185 , e, portanto, é sempre uma situação no corpo do outro mas em estado de graça, enquanto que a obscenidade se relaciona com a corporeidade nua do libertação brusca das vestes da graça. Agamben irá levantar os vários tipos desta nudez: o striptease, o nudismo, a ausência da vergonha da nudez na infância, o obsceno como corpo desgracioso e a aparência e a moda. As conclusões proporcionam-se curiosamente no desencantamento da beleza da nudez que se liberta da ordem teológica e faz aparecer o sublime de uma natureza corrompida mas humana, “a nudez, que, como uma voz branca, nada significa e, precisamente por isso, nos trespassa.”186 Nesta perspectiva parece-nos óbvio que o corpo posto a nu na acção performativa, e portanto diante de um público, assumiu propósitos e contornos diferentes em relação às estratégias feministas de desmaterialização da obra de arte e presença do corpo, que remetem para os inícios dos anos 70. Em trabalhos eminentemente feministas como o de VALIE EXPORT e o paradigmático Action Pants: Genital Panic (1968) e a performance e registo fotogrático de Hannah Wilke, por exemplo, Hannah Wilke Super-t-Art (1974), My coun-try tits of thee (1976) e Intra-Venus (1994) e The Intra-Venus Tapes (19992003), estes últimos sobre a degradação do seu corpo doente até à morte.187 Resta lembrar que a nudez na actualidade é, de acordo com contextos culturais e sociais diferentes, uma nudez aparentemente cómoda como no exemplo citado por Agamben nas performances de Vanessa Beecroft onde 100 mulheres nuas (apenas com collants transparentes) cuja anatomia corresponde ao padrão de beleza actual permanecem inertes em VB.55 (2005), ou em VB.45 (2001) usando apenas umas botas em couro. Em trabalhos como este a nudez revela o lado capitalista e industrial da beleza mas ao fim de algumas horas de permanência na posição essa beleza ideal quebra-se e torna visível antes o seu lado mais frágil e humano. O corpo-mulher e a sua nudez avaliam-se, nesta pesquisa, de acordo com as 184 185 186 187 Agamben. Giorgio (2009), p.82. Satre cit. por Agamben. Giorgio (2009), p.90. Agamben. Giorgio (2009), p.105. Mais exemplo sobre feminismo ou feminilidade na arte exploraremos no próximo capítulo 2.6. 92 conotações artísticas que depois se irão evidenciar na arte da performance. De uma forma geral, a performance realizada por mulheres que aqui mais profundamente abordaremos. Mais especificamente, o trabalho das três trapezistas que se desenha, invariavelmente, num gesto feminino. 93 2.6 | corpo na arte ou a(s) arte(s) do corpo Define my body in space, find a ground for myself, an alternate ground for the page ground I had as a poet. Vito Acconci Não é difícil fazermos uma História da Arte, desde os seus primórdios, a partir da relação ao corpo, dado que esse encontro se manifesta quer nas artes plásticas, quer nas artes expressivas. Ou, como veremos, as artes corporais. Difícil será avaliar todas as conexões existentes no interior dessa presença. Seremos breves ao colocarmos algumas (poucas) entradas possíveis e ilustrativas que confluam nessa relação e análise arte/corpo/vida na imensidão conceptual e disciplinar onde nos movemos. Comecemos já desde a triúnica choreia na antiguidade arcaica unindo música/poesia/dança com o objectivo de produzir uma transcendência do corpo a partir de rituais órficos e dionisíacos, no acesso a estádios de consciência paranormais. A libertação do corpo pelo corpo através do movimento está directamente ligada ao culto. Por oposição, há na encenação das tragédias e comédias gregas a preocupação com a representação através da imitação (no sentido aristotélico de mimésis) que não serve tanto para exprimir algo mas antes para dar o exemplo como função didáctica, pela narrativa de determinado feito ou história e com recurso à música. Portanto, a moral está evidentemente presente, sobretudo porque o espectáculo de teatro servia para educar os atenienses para a cidadania. Os actores usavam a máscara (persona188) para esconder a expressão dos seus rostos e fazer soar a poesia numa “linguagem agradável” (a expressão é de Aristóteles na Poética). Embora associado à imitação mais do que à expressividade, e transferindo os traços humanos e identitários do rosto para dentro de 188 Persona - nome da máscara usada pelos actores do teatro grego. A sua função era dar ao actor a aparência que o papel exigia mas também servia para amplificar sua voz, permitindo que fosse bem ouvida pelos espectadores. A palavra é derivada do verbo personare, ou "soar através de". Mais tarde irá designar um papel social, ou um papel interpretado por um actor. Sobre isto Cf. o ensaio de Agamben, Giorgio (2009). Identidade sem Pessoa in Nudez, pp. 60-70. 94 moldes estáticos, disfarces – as máscaras - o teatro grego é marco do aparecimento do corpo na manifestação artística. Já nas artes plásticas, o contacto não é directo dado que o corpo do artista é intermédio que manipula materialmente um objecto de modo a produzir um outro objecto final - que é corpo por si - independente do artista, seu produtor. Não obstante, na representação imagética, tanto claramente definida como apenas sinalizada, ou até mesmo apercebida como pequenos indícios velados, o corpo, na sua maior envolvência, está presente de forma quase inabalável. Longe de pretendermos aqui levantar uma lógica de presença do corpo na vastidão secular da história de arte, sinalizaremos alguns exemplos no desenrolar da acção estética. Refira-se os admiráveis corpos das esculturas antigas reproduzindo figuras olímpicas, políticas, ou heróis dos Jogos. Então, veja-se os remanescentes “pé” e “mão” da totalidade estátua do Imperador Constantino189 nos Museus Capitolinos Romanos antevêem a imponência do todo da obra. São fragmentos de uma estrutura grandiosa, é um “corpo-em-pedaços” quase metáfora do corpo que resplandece na modernidade, como aponta Linda Nochlin (2001) - corpo manipulado, transformado, usado, invadido, violado. A autora reflecte acerca dessa relação íntima do fragmento do corpo presente na história de arte: o contacto do todo com esse corpo separado em fracções, em partes - “I propose is that in examining, in a roughly historical order, a series of separate, though sometimes related, cases of the body in pieces, a paradigm is constructed of the subject under consideration. I firmly believe that the fragment in visual representation must be treated as a series of discrete, ungenerizable situations.” 190 São pedaços de corpos que encontramos nas maravilhosas ruínas greco-romanas cuja condição, precisamente despedaçada, acrescenta interesse na percepção de dado elemento, ou conjunto de elementos corpóreos, analisados isoladamente. Uma parcela pode adquirir a dimensão de uma totalidade quando analisada na completude do seu isolamento. Uma interpretação diferente é feita da representação de corpo na estética do cristianismo e medieval. Na passagem do idade antiga para a medieval, veja-se a arte produzida durante o Império romano-bizantino, cuja extensão temporal nos permite captar a passagem da arte antiga para a arte produzida nos primórdios do cristianismo. Porém, não esqueçamos o célebre movimento iconoclasta deste período (século VIII até 189 Remanescentes da estátua colossal de Constantino, Museus do Capitólio, Roma. 190 Nochlin, Linda (2001). The body in pieces – the fragment as a metaphor of modernity, London: Thames & Hudson, p.56. 95 ao século IX) reiterado pelo imperador Leão III a propósito de querelas políticas com o clero e que levou à destruição de muitos ícones, mosaicos, estátuas de figuras sacras, ornamentos e tudo aquilo que pudesse suscitar a veneração a figuras sagradas representadas. Na arte bizantina, quer na pintura, quer no mosaico, percebe-se claramente os propósitos da representação do corpo no preâmbulo da arte do homem medievo. Todavia, assegurava-se da intangibilidade na presença da figura humana que o corpo revelara. Ao contrário do que se teria valorizado na antiguidade, e retomado depois na estética renascentista, os ideais bizantinos velam a beleza física do corpo para avultar a mensagem espiritual posta na beleza interior. Com o objectivo de evangelização dos homens, distorce-se o realismo pictórico para valorizar o ícone: a face posiciona-se frontalmente em contacto directo com o observador, os rostos são semelhantes (já que aos olhos do Deus cristão não existe diferença entre os filhos), a cabeça representada muitas vezes numa dimensão desajustada relativamente ao resto do corpo é sinónimo de sabedoria e de recepção da sabedoria divina, realçam a simbologia da cor e a luz como alegoria da inteligência metafísica da Divindade. Jogos de luz e sombra procuram uma aparência tridimensional. Mantém-se, efectivamente, a arte como cópia da realidade que toma sobre si novos contornos teológicos que patenteiam a beleza incorpórea do Espírito. Para alguns autores, o belo é uma questão puramente imaterial, em analogia com os efeitos da luz: ...E nós não duvidamos de que esta beleza é incorporal: porque no Anjo e no Espírito, é manifesto que ela não é corpo: e nos corpos é ainda claro que ela é um incorporal: e a partir daqui podemos compreender porque é que os olhos não vêem senão a luz do Sol: porque as formas, e as cores dos corpos nunca se vêem, senão como luzes ilustradas: e elas não surgem à vista com a sua matéria: e por isso é necessário que elas estejam nos olhos, para que sejam vistas por eles. (...) O porquê de toda esta ordem do Mundo que se vê é apreendido pelos olhos: não da forma como ela existe na matéria dos corpos: mas da forma como ela é na luz, já separada da matéria, necessariamente sem corpo. E assim se vê manifestamente porque é que essa luz não pode ser corpo: e porque é que num momento, de Leste a Oeste, quase todo o mundo se preenche: e penetra de todas as partes o corpo do Ar e da Água sem causar estragos.191 Em oposição, em S. Tomás de Aquino existe uma revalorização do corporal, ao afirmar que a essência de determinada coisa, a quidditas, não se pode separar dessa mesma coisa. Isto é, a existência real é delimitada por uma forma mas efectivamente 191 Ficino, Sobre o amor. cit. por Eco, Umberto (2000). Arte e Beleza na Estética Medieval, trad. António Guerreiro, col. Universidade Hoje, Lisboa: Presença, p. 171. 96 substancializada, incorporada. Outro aspecto interessante na estética medieval, é pois a explicação das características da sua fisicalidade, o homem enquanto ser orgânico distinto dos outros animais e, então, “desprovido de penas, cornos e garras porque estes atributos são devidos ao elemento terrestre, preponderante nos animais, enquanto no homem os vários elementos existem em equilíbrio. Em compensação o homem é dotado de mãos, organum organorum, que cobrem qualquer outra deficiência. E por fim, o homem é belo pela sua estatura erecta”192. Tal como nota Umberto Eco, é curiosa esta conexão entre as funcionalidades vitais e a beleza no sentido estético, como valores indiscerníveis na descrição do corpo humano pelos teóricos medievais. A prática artística deste período assenta numa exclusividade da Igreja Católica que apoia e financia o trabalho dos artistas filtrando as temáticas religiosas, conforme seu interesse. * Noutro patamar, parece-nos irresistível falar, do teatro japonês surgido em meados do século XIV – o Noh. Tradição milenar que persiste ainda hoje na prática teatral japonesa, o Noh funde poesia, dança, pantonimia e música (canto), tal como vai acontecer com o Kabuki no século XVII. São géneros que irão influenciar importantes autores do teatro moderno - Stanislavski, Meyerhold e até B. Brecht. Note-se a ousadia das representações e certo exagero dos gestos, expressões e os figurinos do Kabuki. Um certo gosto pelo bizarro, encenações em que rapazes se travestiam de mulheres usando maquilhagem muito marcada, vestindo roupas coloridas, figurando quase bonecos: expressões vincadas e paralisadas do além-humano. Em contraponto, o Noh combina os vários elementos de uma forma refinada e normativamente precisa, obedecendo a uma codificação dos movimentos e da linguagem musical muito própria. É ainda nos primórdios do Noh que alguns princípios estéticos vinculados no budismo zen nos importam, aqueles que vão além das meras instruções dadas aos actores e que reflectem mais profundamente o fenómeno teatral. Zeami define a teoria dos sete décimos na obra O Espelho da Flor tecendo considerações relevantes para o presente trabalho. Para entender o teatro japonês, Zeami percebe a efemeridade de um espectáculo, o tempo de actuação é sempre mais que 192 Eco, Umberto (2000), p.114. 97 presente e implica certa consciência do acontecimento no momento de representação: “O encanto do Nô, a sua flor, encontra-se na virtude da mudança. O Nô nunca é estático, transforma-se sem cessar, como a flor, e é esta mudança que o torna tão raro.”193 No que concerne o corpo, são as considerações acerca do encadeamento entre sentimento e espírito e o movimento corporal que interessa: Quando movemos o nosso espírito até aos dez décimos, é preciso movermos o nosso corpo aos sete décimos. Há, portanto, mais sentimento interior que movimento corporal. (…) é preciso ter um pouco de contensão nos gestos, por exemplo, no modo de estender as mãos, ou de movimentar os pés; o jogo exterior não deve ultrapassar o jogo interior. (…) Se o actor controla os seus movimentos corporais mais do que os seus sentimentos, a sua interpretação será interessante, porque a sua emoção dará 194 encanto à expressão, fundada numa base sólida de movimentos corporais contidos. Na prática do Noh deve-se captar a intencionalidade da personagem física antes de praticar o gesto. Há uma certa contensão propositada no movimento da actuação que se coaduna com o movimento do pensamento. Trata-se duma poética da duração extremamente característica. Neste teatro oriental a ideia de lentidão é solidária com a consciencialização do acordo entre o pensamento/sentimento/espírito e o acompanhamento preciso do movimento físico. Passemos, fugazmente, ao período do Renascimento. Neste período é levado ao extremo o génio do artista na representação de corpo a partir de uma imitação científica da natureza. Sem dúvida que a verosimilhança foi exacerbada na medida em que nos parecem quase humanamente reais as esculturas do renascimento, e as pinturas e os frescos ganham forma, volume e vida. É indubitável que se trata do período da história cuja perfeição da técnica artística não teve precedentes. No entanto, e apesar da valorização do homem e da natureza, em contraponto com o divino e o sobrenatural da idade média, a arte renascentista é vista como coisa mental, correspondendo a um rigor científico que não se aceita como subjectivo, servindo para exprimir a harmonia das leis da natureza na execução hábil das dotadas mãos do artista. Aliás não deixa de ser curioso percebermos como terá Miguel Ângelo se posicionado para elaborar a Capela Sistina em Roma: em pé, ou deitado para melhor alcançar o tecto, ou nas mais inimagináveis posições, preenchendo cada recanto da grandiosa 193 Zeami, O Espelho da Flor, in Borie, Monique, Rougemont, Martine, Scherer, Jacques (organização) (1996). Estética teatral: textos de Platão a Brecht, trad. Helena Barbas, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p.48. 194 Zeami, O Espelho da Flor, in Borie, Monique, Rougemont, Martine, Scherer, Jacques (organização) (1996), p.48. 98 capela. Tudo isto implica em si demasiada fisicalidade na relação com o objecto artístico em processo, para ser ignorado: seja na posição do corpo, seja na influência dessa posição com a própria percepção do que está a ser executado. Veja-se, também, a figura arquétipo de Da Vinci, humanista por excelência, reúne em si os mais diversos talentos, da ciência à arte. O homem vitruviano renasce da antiguidade pela sua interpretação, e serve de molde ao estabelecimento do cânone das medidas perfeitas do corpo humano: a escala humana inserida num círculo e num quadrado definindo quantitativamente as belas proporções. O corpo é geometrica e matematicamente entendido a partir de uma representação objectiva na arte - cópia de uma realidade que buscava a perfeição pela mão do génio. A beleza está na natureza e na arte, nos corpos físicos: no renascimento essa perfeição ressurge do ideal greco-romano que elegeu o equilíbrio das formas nos corpos orgânicos e na perfeição dos corpos artísticos como um objectivo a ser alcançado. Já no século XVII a conhecida querela do teatro divide e condena as representações teatrais - apesar de práticas profissionais - sendo actividades comparadas à prostituição. O feito de recorrer ao corpo humano como material ou instrumento foi reprovado, de um ponto de vista religioso, ou em nome da dignidade humana. Tal como refere Souriau, Bossuet condena o teatro como imoral por essência, pelo facto de ser corporal, recorrendo a esta dimensão para uma exposição como objecto. Quase como uma coisificação da pessoa humana. Já os autores modernos atribuíram ao corpo um efeito de transmutação na prática estética. O recurso às artes do corpo em Alain possibilitam a expressão de algo que de outra forma não poderia ser manifestado - “délient de la timidité, de la peur, du vertige et de la honte parce qu'ils disposent le corps humain selon l'aisance et la puissance”195. O teatro é arte corporal por excelência, obviamente porque a representação se funda na incarnação196. Neste sentido, “L'acteur prête son corps au personnage créé par l'auteur. Le théatre n'est donc art corporel q'au stade de la représentation, acte éphémère et second dans le temps, par rapport à création de l'auteur qui se perpétue à travers son texte.”197 Na sua essência a actividade teatral comporta quatro elementos fundamentais: o 195 Alain cit. por Souriau, Étienne (1999), p.497. 196 Souriau, Étienne (1999), p.498. 197 Souriau, Étienne (1999), p.498. 99 autor/ dramaturgo/ criador do texto da peça; o(s) actor(es) ou aqueles que emprestam o seu corpo a uma personagem ficcionada; a cena ou o palco onde se submetem condições de luz e som criando um espaço real de representação e, por fim, o espectador. E são estes elementos que se irão subverter, mais tardiamente, na prática da performance, tomando novos contornos. E Souriau assinala um dado curioso relativamente ao corpo no teatro: corps n'y est ni signifiant ni signifier. Ele não é meio de expressão específico a ser posto em análise no teatro, tampouco se assume como sendo centro de experiências corporais das personagens envolvidas198. Esta passagem para segundo plano deve-se a um modelo de teatro que vigorou até ao século XX, o modelo clássico que privilegiou a narrativa e a intriga veiculada pelo texto dramatúrgico mais do que o desenho de sentido realizado pelos corpos dos actores/personagens.199 Também a experimentação própria do modernismo ao nível das artes plásticas com as vanguardas no início do século XX, influenciaram decididamente as artes do corpo. A ruptura plástica das vanguardas prosseguiu até à exploração de novas formas de fazer arte, o progresso modernista que se exprimiu nas várias modalidades. Desde os -ismos e seus manifestos das artes plásticas, Le Corbusier e W. Gropius e a Bauhaus na arquitectura e no design, Appolinaire e Virginia Woolf na literatura, e Schönberg e Stravinsky na música, para nomear apenas alguns exemplos. Tal como vimos no capítulo dedicado à performance, é possível estabelecer um processo de ruptura ao nível das artes do corpo: do teatro e da dança na viragem do século. De qualquer forma, foi no seio das artes plásticas, aquelas que necessitam de um suporte para se expressar, que se operou a maior ruptura. A body art, aquela em que o material deixa de ser algo exterior ao criador, mas ele próprio criador e criação. Sobre isto cite-se Goldberg falando sobre a primeira história da performance: (…) a record of those artist who use performance in trying to live, and who create work which takes life as its subject. It is also a record of the effort to assimilate more and more the realm of play and pleasure in an art which observes less and less the tradicional limitations of making art objects, so that in the end the artist can take the delight in almost any activity. It is, finally, about the desire of many artists to make art that functions outside the confines of museums and galleries.200 A transformação dá-se pela vontade dos artistas experimentarem novos meios de 198 Souriau, Étienne (1999), p.498. 199 No que respeita esta importante viragem que irá deslocar o foco de atenção do texto e da linguagem para a fisicalidade e orgânica de sentido, desenvolvemos as suas nuances no anterior capítulo 1.3 e 1.3.1. 200 Goldberg, RoseLee (1990), p.13. 100 chegar ao espectador, e fundamentalmente a vontade de se desligarem, por momentos, do trabalho no objecto para se voltarem para si próprios como um desafio profissional e pessoal e, inicialmente, por pura diversão. É o caso do primeiro exemplo performativo citado por Goldberg: a corrente futurista. Artistas tornam-se performers. A introdução insubordinada da anti-arte. A necessidade de mostrarem e experimentarem a maravilha da velocidade e a máquina na própria pele. A história da arte conheceu profundas mudanças ancoradas em abandonos de paradigmas e experimentação sem restrições que resultaram do reflexo do próprio curso e acontecimentos da história e alterações socio-culturais consequentes. Contribuem o avanço das novas tecnologias da informação e comunicação de uma sociedade capitalista da era pós-industrial, e um novo espaço urbano de convívio social que desliza do não-lugar de Augé201 para a heterotopia de Foucault202. É uma verdadeira mudança ao nível da sensibilidade que se gera. Sobre a passagem para a era pósmoderna, note-se Huyssens: O que aparece num nível como o último modismo, promoção publicitária e espectáculo vazio é parte de uma lenta transformação cultural emergente nas sociedades ocidentais, uma mudança de sensibilidade para a qual o termo "pós-moderno" é na verdade, ao menos por agora, totalmente adequado. A natureza e a profundidade dessa transformação são discutíveis, mas transformação ela é. Não quero ser entendido erroneamente como se afirmasse haver uma mudança global de paradigma nas ordens cultural, social e económica; qualquer alegação dessa natureza seria um exagero. Mas, num importante sector da nossa cultura, há uma notável mutação na sensibilidade, nas práticas e nas formações discursivas que distingue um conjunto pós-moderno de pressupostos, experiências e proposições do de um período precedente.203 201 Noção introduzida por Marc Augé em Não-lugares, introdução a uma antropologia da supermodernidade (1992). 202 Noção introduzida por Michel Foucault na conferência no Cercle d'Études Architecturales De Outros Espaços (1967). 203 Huyssens cit. por Harvey, David (2005). Condição Pós-Moderna, in http://www.angelfire.com/sk/holgonsi/harvey1.html [em linha]. 101 Veja-se a seguinte tabela que, de forma simplificada, ilustra diferenças estruturais da era moderna e pós-moderna. Assinalamos as que convergem mais particularmente para o nosso trabalho: MODERNISMO PÓS-MODERNISMO Romantismo / simbolismo Parafísica / dadaísmo Forma (conjuntiva,fechada) Antiforma (disjuntiva,aberta) Projecto Acaso Domínio / logos Exaustão / silêncio Objeto de arte/obra acabada Processo / performance / happening Distância Participação Criação / totalização / síntese Descriação / desconstrução / antítese Centração Dispersão Paradigma Sintagma Significado Significante Lisible (legível) Scriptible (escrevível) Indivíduo Mutante Genital / fálico Polimorfo / andrógino Paranóia Esquizofrenia Origem / causa Diferença-diferença / vestígio Fonte: adaptado de Hassan cit. por David Harvey, Condição Pós-moderna, sublinhado nosso Na pós-modernidade entra-se num novo ciclo do panorama artístico que mais não é que uma espiral de quase impossível retorno: esgotaram-se as possibilidades legitimadoras da arte. Desde a beleza imutável dos antigos ao transitório, fugitivo, contingente baudelairiano passando pela exaustão dos -ismos modernos - que segundo 102 Greenberg encontrariam a sua narrativa na arte per si, seus instrumentos e limites, bidimensional, abstracta - culminando com a tese de Danto de suspeita do fim da arte, compreendida num sentido histórico, tal como a havia já reiterado Hegel. Enceta-se numa nova problemática: o que é a arte? Onde há arte? O ser humano encontra, através da expressão artística, forma da utilidade se emancipar da essência do artificial, apontando para algo ilimitado e para uma forma de liberdade que não deixa de se tornar uma necessidade da sua existência. Na arte, há significado simbólico que não é transmissível pelo signo da escrita, mas que encerra um sentido próprio, quiçá pré-linguístico, que se poderá manifestar no mais profundo reduto de vida – podemos dizer que talvez seja o que Agamben associa à nudez: A nudez do corpo humano é a sua imagem , isto é o tremor que o torna cognoscível, mas que se mantém, em si, inapreensível. Daqui o fascínio muito especial que as imagens exercem sobre a mente humana. E precisamente porque a imagem não é a coisa, mas a sua cognoscibilidade (a sua nudez), não exprime nem significa a coisa; e, todavia, na medida em que não é mais que o doar-se da coisa ao conhecimento, o seu despojar-se das vestes que a cobrem, a nudez não é diferente da coisa: é a coisa mesma.204 Materialmente ajustado pela sua modificação física, cirúrgica e evasiva, o corpo é essa busca realizada já não na arte (a cópia perfeita renascentista deixa de importar); mas na materialidade em si, na procura de um ideal que é múltiplo. Como se um indivíduo fosse um work in progress à semelhança dos trabalhos muitas vezes não terminados de Da Vinci: “Quero fazer milagres”, como afirmara. Para podermos sustentar este paradoxo, importa referir Tobin Sieber para quem o estético é acima de tudo o corpo estético, estando esta entidade presente desde sempre na nossa cultura, actualmente mais do que nunca: More time is devoted to aesthetic practices today than any other time in human history. This is due to the advancement of technology, education, and global capitalism, but it does not represent a significant change in the nature of aesthetics, which remains as focused as ever on self-creation and self-transformation. (...) My point, then, is that aesthetics has always concerned the desire of the body to perceive the body differently, although I do not want to deny that the kinds of activities acceptable as aesthetic have changed in the course of the twentieth century. Nevertheless, these changes have not carried art away from the body but to it. The most noticeable change of recent decades is the powerfull insistence that any activities or veils that conceal the body in aesthetic practices be eliminated, that the body be exposed as the true and only subject matter of art. It is as if artists and the public alike have determined to do away with decoration, substitution, and concealment to cut to the body at the heart of aesthetic experience. In the most avant-garde circles, artists have affirmed this trend by making art out of their own bodies, but the trend is not confined to the artworld, since people on the street are 204 Agamben. Giorgio (2009). pp.98-99. 103 more concerned with the appearence of their bodies than ever before. 205 Ao falarmos das questões que respeitam a teoria da arte e a estética na contemporaneidade, lançamo-nos necessariamente nas questões do corpo na sociedade e na sua representação artística. Esta prerrogativa não tem apenas ligação com um desvelamento do corpo no puro sentido físico - o desnudamento -, mas também com a sua celebração enquanto realidade matérica e sensível. A essência da arte está bem na sua fisicalidade significante. É principal meio de comunicação com o outro numa partilha de existência – o exhibit himself to be: The individual is obsessed by the obligation to act as a function of “the other”, obsessed by the obligation to exhibit himself in order to be able “to be”. The overriding desire is to live collective ethos and pathos, to grasp the existent in all of its brutal physicality, to communicate something that has been previously felt but that is lived in the very moment of communication, to return to the origins without leaving the present, to lead the individual to relationship with both himself and others, to lead the individual, in short, back to his specific mode of existence (Beuys, Tom Marioni, Chiari, Zaza).206 Esta partilha dada na realidade quotidiana e na arte manifesta-se numa relação de amor-ódio207 quer consigo próprio quer nessa relação com os outros. Uma relação psicoafectiva que precisa de expressar-se. É seguramente por estes motivos que a arte contemporânea se centra de modo profundo e carregado de toda a história da arte e da civilização no corpo: But why the body as a delineating theme? The topic has been somewhat reappraised over the last two decades or so, re-emerging as a credible subject and medium after a period of association with earnest ideologies or a didactic methods. (…) After time, however, it seems that the readmittance of humanism into art has validated the body's appearance once more: after the cool detachment that persisted throughout the Modernist period and even beyond, the visceral and vulnerable body is now a potente signifier of lived experience as well as a medium of formal and aesthetic inquiry. In popular culture, too, the body has become more visible as a challenge to constricting social codes, through the adoption of piercings, tattos, and other modifications. The body, then, has become recognized as the principal arena for the politics of identity, as well as facilitator and marker of belonging.208 O corpo na arte, inseparável da reflexão estética a respeito, ganhou avanço com os 205 Sieber, Tobin (2000). The Body Aesthetic - from fine art to body modification, Michigan: University of Michigan, pp.4-5. 206 Vergine, Lea (2000). Body Art and Performance – the body as language, Milão: Skira, p.8. 207 O corpo é tratado como um “objecto de amor” - “Love object” segundo Vergine, Lea (2000). p.19. 208 O'Reilly, Sally (2009), p.7. 104 movimentos ascendentes dos anos 60, 70, 80 e 90 que se propuseram. Exemplo paradigmático é o de Louise Bourgeoise, a qual estabelece uma relação quase obsessiva com o seu corpo. Tornam-se visceralmente e ao mesmo tempo humanamente implícitos nos seus trabalhos de instalação e escultura sentimentos como o amor, o ódio, a culpa, a protecção. Peças como Spiral Woman (1952), Fragile Goddess (1970) ou In and Out (1995) exploram o tema da sexualidade feminina, evocando a força vinda da fragilidade humana, particularmente da feminina. De referir a obra de Lygia Clark: o mundo simbólico que vai da influência construtivista inicialmente marcada em peças da série Bichos (1960-1964) do neoconcretismo brasileiro até aos seus objectos relacionais. A obra deixa de servir para a mera contemplação do espectador mas antes para ser experimentada verdadeiramente. Clark cria artefactos com uma forte componente psicanalítica em Máscaras Sensoriais – Abismo (1968), Eu e tu (1967) e Baba Antropofágica (1973), convocando o engajamento corporal do observador ao experimentá-los. Nancy Spero e Kiki Smith, juntam-se na exposição Otherworlds209 realizada em 2003/2004 na BALTIC comissariada por Jon Bird. Duas artistas de gerações completamente distintas, contextos plásticos também diferentes visto que Spero trabalha o desenho e a imagem e a escrita e Smith parte para a terceira dimensão dada na escultura e na instalação – outros mundos. No entanto têm em comum a representação do corpo feminino numa atitude politicamente engajada. Na mesma linha do feminismo na arte, Marlene Dumas pratica a que vai ser apelidada por “wild painting” nos anos 80 produzindo um trabalho fortemente inclinado para as questões do nascimento e morte centrados numa poética da sexualidade, erotismo e género do corpo, e da cultura da sua origem sul-africana. Em pinturas de sexualidade mais explícita o corpo é entendido como ferramenta para expressar e experienciar o prazer, a dor e o desejo - “in contrast to the objectifying images of pornography, Duma's subjects seem to be in control of their own representation, inviting us into their own private world on their own terms”210, sobre Fingers (1999). Destaquese os trabalhos Black Drawings (1991-92), Blues / Porno as Collage (1993), e mais recentemente Man Kind (2001). Dentro da mesma temática mas com um objectivo de denúncia mais violenta Elke Krystufek centra-se na mulher esteriotipada representada 209 OtherWorlds – the art of Nancy Spero & Kiki Smith (2004). DVD, Andrey Hodson, Gary Malkin e Helen Baker, Education and Public Programme Team, Reino Unido: BALTIC (27 min) 210 O'Reilly, Sally (2009). p.18. 105 através da sua própria imagem e identidade. A dupla Jake e Dinos Chapman optam por expor o corpo alterado, deformado e grotesco de forma assumidamente controversa. São esculturas iconoclastas que desafiam com um toque de ironia e humor questões políticas e morais. Em Hell (19992000) e, mais tarde Fucking Hell (2008), uma mesa com milhares de figuras em actos violentos, retratando soldados nazis - um intenso exercício de antropofagia. Irremediavelmente marcantes são também os corpos despedaçados e dispostos Great Deeds! Against the Death (1994) que ironiza os Los desastres de la guerra de Goya (1810-20). Em Zygotic acceleration, biogenetic, de-sublimated, libidinal model (1995), sentido de humor no título contrastam com a violação da corporalidade humana na representação de uma massa de crianças nuas feitas em resina e fibra de vidro e usando ténis Nike. Podemos estabelecer uma ligação entre estas figuras e os manequins de Charles Ray: os bonecos feitos à dimensão humana permitem visões não-simbólicas, quase literais. É o caso de Family Romance (1993), crianças e adultos (pais e filhos uma família) são apresentados nus exactamente à mesma dimensão e altura mas conforme os seus corpos biológicas naturais (crianças com corpos de criança, adultos com corpos de adulto estão igualmente dimensionados), gerando um efeito perceptivo perturbador. Mas são os bonecos de Cindy Sherman que celebram verdadeiramente esse efeito de choque. A despersonalização da imagem dos bonecos pela ausência de título nas fotos Untitled #250, #255, #260, etc. (1992), série agora denominada “Sex Pictures” celebram o corpo protético em poses de carácter altamente sexual em close-up que celebram o choque a corporalidade plastificada do contemporâneo, “breaking the spell of male Surrealist fantasy by revealing the doll's plasticity and dissembling the nightmarerishly misogynistic object of desire into a work of pure artifice”211. No seu trabalho de auto-representação, quer pela fotografia quer pelo filme, recria o kitsch, referências da moda e da história da arte. A artista auto-recria-se, deixa de ser si própria, encarna personagens que separa levemente a ficção da realidade, o arquétipo do íntimo – o estranhamento. A dona de casa, a actriz, a menina, a prostituta. Mais recentemente, Sherman combinou fotografias de moda com modelos estranhos de forma verdadeiramente grotesca. O resultado transforma a ideia da fotografia de moda que apresenta as roupas de forma atractiva e com mulheres estereotipadas. A questão 211 O’Reilly, Sally (2009), p.157 106 fundamental é o papel da mulher nesse mundo mediatizado. Robert Mapplethorpe expõe através da intensidade conflituosa das suas fotografias a questão da homossexualidade e do sadomasoquismo, ou encenando a nudez de homens apropriando-se das imponentes posições de esculturas da Grécia antiga. Note-se, continuando no tema da sexualidade e da configuração estereotipada, os trabalhos de Sarah Lucas da geração da década de 90 dos Young British Artists. A par dos seus autoretratos (1990-1999), Lucas alicerça-se na arte conceptual que está em voga para realizar trabalhos desafiadores de preconceitos que substituem o corpo por mobiliário e objectos quotidianos gerando esculturas antropomórficas grotescas. São inúmeras as alusões a provocadoras aos órgãos genitais femininos e masculinos explicitando temas como a autodestruição, depressão e morte - “parodying the pornographic reduction of the female body to mere form for the purposes of consumption”212. Expôs no Museu Freud em Londres, cenário particularmente adequado para a sua exposição The Pleasure Principle (2000). Nessa exposição poderíamos encontrar objectos como cadeiras, sutiãs, meias e cuecas, esticados sobre o mobiliário, enquanto saiam das costas das cadeiras pernas femininas finas e inertes. Estas peças foram integradas em salas de Freud, o epicentro da psicanálise, onde ele descreveu os problemas da histeria das mulheres. Pertencente ao mesmo colectivo de artistas, Tracey Emin, apropriando-se de materiais associados à mulher o seu trabalho explora temas feministas - a violência, a gravidez, o aborto, a sexualidade - em obras como a célebre My Bed (1998) mas também em performances como Exorcism of the Last Painting I Ever Made (1996) tendo, à semelhança do que fizera Beuys com o coyote como reconciliação com a natureza, vivido durante quatorze dias na galeria juntamente com instrumentos artísticos, numa reconciliação com a arte e seus demónios. Num outro meio expressivo tipicamente contemporâneo, a video-arte, surge como exemplo a palestiniana Mona Hatoum. Hatoum consegue efeitos pictóricos com uma focagem monstruosamente aproximada da matéria corporal. Quase à lupa. Uma instalação de uma tela circular por onde se entra e se acompanha a viagem bizarra da câmara a um corpo como num laboratório: Corps étranger (1994). As membranas mucosas, o cabelo, os dentes, o som da respiração, do coração – as pulsões interiores e exteriores do corpo. Forma-se um efeito repulsivo, dado que se inspecciona cirurgicamente a carne de um qualquer corpo anónimo, uma massa estranha, 212 O'Reilly, Sally (2009), p.21 107 estrangeira. A pouco e pouco, o efeito de estranhamento acaba por tornar-se semelhante ao mundo fantástico. Outro curioso trabalho é Pull (1995), uma instalação de video com a imagem da cabeça da artista virada “pernas para o ar” numa TV de cuja estrutura sai dessa cabeça “virtual” uma trança de cabelo preso e real, sensitivo. Convida-se o observador a puxar essa trança, e a imagem imediatamente “reage”. Portanto, essa instalação está viva, é um objecto efectivamente vivo porque impõe a presença do corpo da artista. O cabelo evoca, mais uma vez, reacções contraditórias de fascínio e repulsa, especialmente quando separado do corpo. Tais reacções podem ser extrapoladas para múltiplas conexões desde o íntimo e pessoal ao colectivo e político. O video-artista Bill Viola, joga com as várias dimensões do tempo: o tempo real, o psicológico, o artístico, desacelerando muitíssimo os acontecimentos dos seus vídeos em contra-corrente com o disparar incessante de imagens pelos média. Em The Greeting (1995) faz reconstituição com autores ao vivo (“Tableaux vivants”) de uma pintura de Pontormo em slow-motion: um tiro de quarenta e cinco segundos foi estendido para uma duração de dez minutos. De Viola retenhamos a paixão pelo detalhe do movimento e do gesto que em câmara lenta assumem um carácter quase cerimonial e sagrado. A ténue linha que separa o corpo como instrumento da vida real e o corpo como acontecimento-milagre. No caso específico Português optamos por analisar uma grande exposição decorrida como súmula da arte portuguesa dos anos 90 relacionada com o tema a abordar. Anatomias Contemporâneas: a presença do corpo na arte portuguesa dos anos 90213, comissariada por Paulo Cunha e Silva e Paulo Mendes, teve lugar em 1997/98. O eixo curatorial desta exposição dividiu-se em pequenos grupos temáticos que se ligavam aos respectivos trabalhos. Importa aqui citar alguns dos milhares artistas relevantes no panorama cultural e actual português com ligação a este tema. Por exemplo, o corpo sem órgãos do qual surgem as palavras-chave de condução simbólica da exposição corpo fractal, acção/dominação, superação, disciplina, desejo, encontro,e a ausência. O corpo como ausente no seu total reconhecimento como nos transmitem as fotografias de Helena Almeida - A onda (1997), um jogo de sombras em que o meio corpo se revolve e mergulha, a onda será a modificação dessa ausência que se move e flui sem se especificar ou identificar. Outro exemplo é a escultura de Manuel Rosa, feita de areia de fundição Sem Título (1996): os corpos voltados emergem sobre uma montanha negra, os 213 Anatomias Contemporâneas, comissariada por Paulo Cunha e Silva e Paulo Mentes,, 1997/98, Fundição de Oeiras Oeiras 108 corpos são sem nome, vemos-lhe as costas e não o seu rosto. Entendiam-se, noutro módulo conceptual desta exposição, conceitos ligados ao corpo com órgãos: exibição, força/poder, excreção/secreção/expressão, prazer, contaminação/doença, e a presença. Há um “estar ali”, um ir sendo que se manifesta fisicamente ou a partir de uma autópsia de presença. O coração bate, é o órgão associado à vida, a uma fisicalidade. As personagens de Paula Rego são aqui enquadradas como personagens-tipo, grotescas na sua animalidade, exibindo toda a vida na presença do olhar e da postura. Os desenhos de João Salema no seu conjunto fazemnos penetrar num mundo visceral do corpo humano, tão orgânico quanto imaginado. Em Pedro Cabrita Reis, o trabalho Gémeos (1991) testemunha o encontro de duas estruturas. São estruturas gémeas unidas por um tubo de borracha que simboliza simultaneamente a união pelo corpo e um encontro necessariamente produzido por um cordão umbilical. De notar ainda a presença inevitável da contaminação e doença presente nas fotografias de Luis Campos e Luis Palma, ou até na instalação de Carlos Roque, e em Pedro Tudela: as fotografias testemunham a SIDA como doença e a velhice como ansiedade do século XX. Em Carlos Roque, a dimensão macro-cósmica do corpo humano e das células como vistas ao microscópio mostram a doença e a cura nomeadas no objecto da seringa, mais relacionado como objecto-portador de um corpo infectado e a contaminação Pensemos em paralelo com o corpo doente, a dor da acção e dominação do corpo pelo corpo, predadores, armas, máquinas de desumanização do corpo. Neste sentido o corpo orgânico dá lugar na contemporaneidade ao corpo pós-orgânico, pós-biológico, o ciborgue, a cresceste tecnologia e a reprodutibilidade caminhando para uma era menos humana cuja identidade é encontrada no horror do rosto da multidão. A massificação e repetição que são também a força e poder do eixo conceptual das obras de João Paulo Feliciano, José Maçãs de Carvalho e Sparring Partners que se transforma em corpo exibido, como objecto, da ciência, da sociedade. Neste caso, objecto da arte. em síntese Podemos dizer que na contemporaneidade convivemos com o excesso. Há excesso de imagens, de reproduções, de corpos em que se perde a noção de escala, de leitura que 109 contaminam a arte como uma epidemia de corpos onde tudo parece legitimo. Os artistas de hoje podem ser verdadeiros heróis de um “anti-destino” trágico das civilizações e da cultura, os grandes artistas não são copistas do mundo, são seus rivais, como dizia Malraux. Temos o Corpo entre a morte e a vida, o presente e o ausente, a enfermidade ou dor, a pujança e perfeição, entre o espiritual e o físico: uma natureza misteriosa que poderá ser captada mais facilmente pela prática artística do que pela interpretação e rigidez das palavras. Confluem várias expressões culturais, estéticas e ideológicas e a vontade inexorável de querer comunicar e de querer ser: surge a criação artística da performance. Toda a linguagem artística nascida nesse movimento foi empregada com uma riqueza de elementos muito variados, colidindo e alterando as artes plásticas com as artes cénicas na body art. Talvez seja por tudo isto, este excesso, que é impossível falar de corpo como signo de performance na actualidade sem compreender este conjunto de visões acerca do corpo que, directa ou indirectamente, se reflectem numa acção performativa. 110 3| três trapezistas 111 três trapezistas Tal como explicitado na metodologia, optou-se por destacar o trabalho de três personalidades da cena artística actual em Portugal. Chamaram-se a estas três criadoras de trapezistas porque hábil e singularmente se movem no meio, projectando o trabalho do seu país além-fronteiras. Com carreiras distintas, e especificidades de processos de criação, apresentação e até perspectivas distintas, o que une as entrevistadas é o facto de todas terem escolhido o corpo como veículo de significação. Digamos que o corpo é o ponto de equilíbrio no trapézio que balança nesta multiplicidade artística, nos modos de transmitir sentido, sensações; do mundo da arte. Relativamente às entrevistas, a sua interpretação procura uma análise ampla do que se pode entender por artes do corpo/artes performativas/performance. Há uma consonância de conceitos de investigação necessariamente ligados a esta prática artística que se pretende ilustrar através destas entrevistas: relevando por um lado, os conteúdos explorados e, por outro, a singularidade criativa de cada trabalho enquanto corpos artísticos em actividade. 3.1 | beatriz albuquerque ou o corpo-comunitário Quando nos debruçamos sobre o trabalho de Beatriz Albuquerque os impulsos criadores prendem-se com as suas ansiedades relativamente a uma sociedade globalizada, forçando-nos constantemente a um comprometimento, ainda que poético, com a vida e com a sociedade política e culturalmente construída. A performance desta artista ganha sentido no corpo comunitário, o corpo social ou comum a todos os individuos como possibilidade de igualdade e justiça. Cor (2004-2009) Este trabalho foi inicialmente esboçado durante o workshop de performance com Marina Abramovic na Fundacion Montenmedio Arte Contemporânea, Cadiz. Cor é a evocação cromática dessa linguagem universal que todos compreendem. Beatriz pinta lentamente os seus lábios com baton vermelho numa exaltação da fantasia, sensualidade e também do poder no feminino. Mas a sua boca abre-se e o baton desliza aos poucos sobre o resto do rosto, ocultando a face da artista: o seu rosto deixa de ser traçado para ser diluído numa máscara vermelha. Rostos de mulher e rostos do mundo. 112 Neste momento inicial da performance, momento de evocação através da pintura, vários pontos se conectam na acção da artista: a subjectividade e a colectividade, identidade e anonimato, o reconhecimento e o disfarce. Confundem-se, fundem-se na imprevisibilidade temporal performativa e no espaço evocativo do corpo, realidades aparentemente duais e tantas vezes contraditórias. O rosto vai-se cobrindo através do gesto circular sobre si: decisões sobre si própria. Pintar todo o rosto é simultaneamente habitá-lo e velá-lo, uma vez que a criadora oferece a sua individualidade à natureza comum, colectiva – uma cara indecifrável, uma nova cor de pele. Por isso, este trabalho balança entre o subjectivo e o plural, evocando heranças, tradições, etnias e raças. Em 2007, a variação da performance acrescenta a cor do baton negro depois do vermelho. Faz lembrar o trabalho de Zhang Huan, Family Tree (2001) onde se escrevem milhões ou muitos milhares de palavras por muitos outros, num mesmo rosto do artista, até não se poder mais... O processo de Cor dá-se também numa alteração de identidades, todavia haverá sempre algo de íntimo e seu nessa nebulosa. Após este primeiro momento, passase para um momento de inscrição das marcas do rosto deixadas em pedaços de tecido branco. Uma vez mais, o simbolismo cromático do vermelho de sangue do baton sobre a pureza dessa não-cor, o branco. A mácula sagrada: o sangue-Mulher do seu corpo e o sangue rejeitado por ele, vida e morte. Desejo, paixão ou violência, o vermelho está sempre ligado ao lado emocional, pacto entre o indivíduo e os poderes sagrados ou demoníacos e, portanto, tormento ou salvação. A artista pretende assinalar intencionalmente aquele momento deixando elementos, objectos residuais. Esses objectos são “como o tecido que envolveu Cristo na sua morte” 214, tal como afirma, numa reinterpretação da narrativa judaico-cristã e da crença do Sudário de Turim. Em última análise, Beatriz evoca o (re)encontro dessa natureza dupla, reunindo o humano ao divino, do visível ao invisível, do terrestre ao celeste através de um incessante gesto circular reminiscente do tempo eterno, eterno retorno que se fixa, posteriormente, no objecto artístico para a posteridade. Assim, no seu trabalho, a criadora enreda-se não só na efemeridade do instante, dada pela performance, como também na sua fixação no tempo através de documentações de vários tipos. Esses objectos de registo funcionam, muitas vezes, independentes, emancipados do acontecimento performativo, como, por exemplo, a projecção video em 2010 com o mesmo título. 214 Albuquerque, Beatriz in http://www.beatrizalbuquerque.web.pt/2007Musicircus.html [em linha]. 113 $, $$ e $$$ (2004, 2005, 2009) É uma série de trabalhos que, mais uma vez, a par da performance, desenvolve o potencial artístico da documentação residual, tem como tema o valor do dinheiro. A partir dessa premissa irá desenvolver variações em torno do tema que vão desde a criação do seu próprio dinheiro até ao engajamento estético e político do público interveniente. “O dinheiro é como a prostituição”215, afirma. Na prostituição há a anulação de qualquer sentimento em troca de um favor sexual, a busca do prazer. Na troca de dinheiro há antes uma anulação de um valor de uma coisa / serviço ao ser substituído pelo dinheiro. Um símbolo, cifrões que se somam. Assim, existe uma transferência estranha e progressiva de valor no sentido pessoal e qualitativo do termo, para o valor do dinheiro enquanto acumulação quantitativa que está no cerne do funcionamento do mundo, desde a criação da moeda ao sistema económico-político do capitalismo ocidental. E não deixa de ser irónica nesta transferência, apesar de extremamente útil, a reconversão que exerce em sociedade: quer na realização pessoal e estatuto profissional, quer na ordem social e cultural imposta. Talvez seja por isso que Beatriz Albuquerque crie o seu “dinheiro pessoal” num local menos nobre da cidade de Chicago, onde os sem-abrigo geralmente mendigam, questionando convenções e invertendo papéis. A arte de trocar voltas aos hábitos e pactos sociais já inconscientemente assimilados em sociedade faz trazê-los à tona. Numa segunda versão da performance, a artista faz um jogo de partilha com o público. A performer oferece dinheiro em troca de um desafio não negociável ao participante - é como no jogo do monopólio, apenas em vez de alegoricamente adquirirmos ruas e empreendimentos, realizamos experiências sensoriais concretas como objectivos - ver azul, andar 5 passos e sentir o cheiro da rua. Questiona-se em 1x$ (2005) a própria estabilidade/instabilidade fornecida pela posse de dinheiro – Beatriz coloca uma quantidade de “dinheiro criado” sobre uma perna de uma mesa de forma a fazer parar o seu balanço e para poder continuar a tarefa d e dar valor a esse papel carimbado. Mostra-nos o gesto repetitivo produzido pela acção constante de “fazer dinheiro”: o corpo-máquina que veio substituir o corpo dos homens, a produtividade e a função da mesa como suporte para esse trabalho. A mesa, neste caso, adquire outras funções para além daquelas a que está está simbolicamente associada: o convívio entre amigos, familiares. Carimbar folhas que se transformam em dinheiro criado são “alegorias encarnadas da desigualdade”216 porque o dinheiro tem uma história própria, é protagonista na história dos nobres e dos pobres. O 215 Albuquerque, Beatriz in http://www.beatrizalbuquerque.web.pt/2004$$.html [em linha]. 216 Rancière, Jacques (2008), p.21. 114 dinheiro pode ser essa catástrofe única que acumula incansavelmente ruína sobre ruína até um suposto progresso que Benjamin, através do anjo da história 217, identifica com a derradeira tempestade. Através da performance é possível essa acção real da artista cujo objectivo (ou sonho) é o de procurar gerar mudanças culturais, que Beatriz define como uma “escultura social, que se realiza num espaço, numa espécie de laboratório.”218 É esta também a sua ambição em Trabalho de graça, projecto em curso desde 2005, onde todo corpo cúmplice do espectador que é desafiado. A acção estética envolve um processo de engajamento que vai além da mera contemplação: desde a experiência sensorial da realidade em volta à experiência política, simulam-se situações ideais - “uma dura teoria posta na prática”219. Beatriz oferece-se para produzir trabalho novo em suporte à escolha (pintura, fotografia, instalação, video-art, animação) conforme o desejo do espectador/público/cliente. Firma-se um contrato que assegure a sua própria integridade física e moral; sinónimo também de comprometimento. Para a artista a arte deve estar ao alcance de todos. Esta é a forma que encontra de transmitir as debilidades inerentes ao mundo da arte que não beneficiam a pura fruição da arte e a educação pela arte e pela estética. É através de uma ironia construída que condena essas práticas localizadas de repressão do homem, da sociedade, do mundo; desafiando as práticas consumistas e apelando a uma comunidade social que encontre em novas formas de discurso pontos de diálogo e entre-ajuda. Beatriz intensifica situações reais a partir da encenação dessa realidade nas suas acções performativas - portanto, é ao expor-se que encontrou essa forma de chegar ao outro, formando um corpo comunitário que evoca um compromisso com o espectador, “como se no mundo houvesse toda a gente que existe e mais uma pessoa: esta pessoa seria exactamente todos num só.(...) A colectividade é o indivíduo imortal. Feito da mesma massa humana que qualquer de nós, os indivíduos mortais.”220 O mundo globalizado e mediatizado reformula-se numa linguagem alternativa onde a utopia é legítima e toma corpo nas criações de Beatriz Albuquerque. 217 218 219 220 Ideia do anjo da história de Benjamin na obra Teses sobre o conceito de História (1940). Entrevista [em anexo]. Albuquerque, Beatriz in http://www.beatrizalbuquerque.web.pt/home.html + projects on going [em linha]. Negreiros, José de Almada (2006). Manifestos e Conferências, Lisboa: Assírio e Alvim, p.177. 115 3.2 | helena botto ou o corpo-livro Helena Botto incorpora uma babel de memórias passadas, futuras - incorpora o devir em movimentos que se dobram/desdobram a partir gestos singulares sobre o interior de si própria, gestos entranhados de verdade. O seu trabalho poderia caracterizar-se como a escrita de um corpo-livro que impõe a si mesmo a exibição de signos prontos a serem decifrados, lidos. Talvez seja por isso que as referências literárias e filosóficas nas suas peças sejam uma constante, uma forma de restituir através do livro, da fotografia, da música e do vídeo as potencialidades necessárias para o corpo se expressar. A performance para a intérprete ganha sentido num processo dialéctico por vezes violento: inicia-se nas mãos de um corpo que experimenta desmultiplicar o gesto em acções diversificadas e ritmadas, recorrendo a extensões multi-média para, finalmente, regressar a si próprio, nessa acalmia do que é justo, indivisível e pleno; o culminar de um complexo processo criativo. Helena começou por estudar filosofia e fazer teatro (interpretar papéis), para depois encontrar na expressão corporal e seus propósitos o motivo da sua pesquisa e trabalho. O Projecto Transparências que funda em Aveiro (2006) tem como objectivo a criação de objectos performativos, forma de subtitular certa intencionalidade do pôr a nu o corpo, veículo de sentido transparente porque filtrado da obstrução racional - “enquanto ferramenta do processo criativo, torna-se um veículo orgânico, um canal transparente capaz de transmitir estímulos e motivações diversas e comportamentos psico-físicos de teor extra-quotidiano”221. A fluidez transparente das peças de Botto identificam-se com uma fisicalidade que é compatível com a sensibilidade da alma, na medida em que a alma só pode sentir enquanto corpo através dos sentidos que produzem sensações e da memória que os restitui momentaneamente. Por isso, a própria pele da performer dilatase para dar origem a um corpo virtual nas imagens em movimento do vídeo, o corpo registado na fotografia, transpondo-se também em antropomorfias plásticas e até sonoras que reinventam “os comportamentos, as reflexões, as angústias (e que são sempre pessoais e únicas mas ao mesmo tempo universais).”222 Em O Álbum (2008) a reflexão dá-se em torno da possibilidade de uma vida ficcionada através da fotografia como forma de registo da memória e que transforma o 221 Projecto Transparências in http://projectotransparencias.blogspot.com/ [em linha]. 222 Entrevista [em anexo 3]. 116 palco numa espécie de gabinete de curiosidades feito de 2000 imagens pessoais e apropriadas de outras vidas cruzadas. A peça inspira-se como ponto de partida dramatúrgico na Câmara Clara de Barthes e em Crave de Sarah Kane. Há dois movimentos de sentido nesta peça, apontados pela criadora, a questão da imobilidade e do devir. Num primeiro, a revivescência do passado exposta em forma de museu imaginário é permanência imóvel da imagem, possibilidade de conservação, reprodução e repetição, mas nunca penetração do tempo em devir, como na performance - é o álbum da memória. Por isso, gera-se frustração quando se põe o dedo na ferida e se percebe (se sente) que a memória é recordação infantil, engolida pelo tempo, ingenuamente reconfigurada ou eternamente escondida. Em termos performativos, essa frustração mostra-se na tentativa de revivescência das imagens postas de parte, escolhidas, recortadas, sublinhadas para depois serem coladas ao corpo nu, como extensões passadas adaptadas ao presente. A memória do álbum interior é a consciência de que o registo não acompanha o devir, esse segundo momento que revela que a memória é um (re)lembrar, e que recordar não é viver - “Artifício da linguagem: diz-se “revelar uma foto”, mas aquilo que a acção química revela é o “irrevelável”, uma essência (da ferida), aquilo que não pode transformar-se mas apenas repetir-se sob a forma de insistência (do olhar insistente).”223 A dor do corpo embrenhado pela virtualidade da imagem ausente, contrapõe-se com a dor da fugacidade do corpo presente no instante efémero performativo, que não se consegue agarrar porque a captação falha sempre. De parte a parte (do corpo-memória ao corpo-presente), existe um combate angustiado ao longo da peça, num ser que é esse duplo irreconciliável - “a cruel fatalidade à qual não podemos escapar”224, que é o de tudo destruir-se constantemente atrás de nós no decorrer da vertigem da vida, nada permanecer efectivamente a não ser um álbum interior que, em última instância, também se apaga com a morte. Face a esta tomada de consciência não há apaziguamento, mas antes uma aceitação profunda da emoção da perda que, ao invés de fazer o luto que elimina lentamente a dor do que já foi – “dar tempo ao tempo” – passa a ser acontecimento225 celebrado, o de sermos feitos dessas memórias reconfiguradas que possuímos no álbum da carne – o álbum interior. O livro do corpo é sempre livro em aberto, é “ser tempo”: “Vivo sempre no presente. O futuro, não o 223 Barthes, Roland (1989). A Câmara Clara, tradução Manuela Torres, col. Arte e comunicação, Lisboa: Edições 70, p.75. 224 Botto, Helena (2008). O Álbum, catálogo da performance O Álbum, produção Projecto Transparências e PerFormas, projecto financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, tradução textos de Teresa Gomes de Albuquerque, Aveiro, p.6. 225 Cf. Correia, André Brito, “Expressão a fixar, um rosto em passagem”, in Botto, Helena (2008), p.2. 117 conheço. O passado, já o não tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada.”226 Curiosa é a relação entre Botto e o seu álbum e o cineasta Greenaway e o seu livrode-cabeceira, em The Pillow Book (1996)227, ambos simbolizando o corpo como papelpele que escreve a memória, o amor e a desilusão, aceitando a passagem do tempo corpórea ou o desgaste, como, ao mesmo tempo, encontrando aí a força criadora dessa contingência, o seu lirismo - poièsis. Em Decomposição (2009) e Decomposição#2 (2011), com inspiração em Genet e nas análises de Sartre, trata-se, uma vez mais, de dualismos irreconciliáveis. O título sugere a desconstrução até ao limite da fragmentação – de-composição – que se faz através das formas mais primitivas do movimento e de uma procura de esvaziamento do performer a si próprio (do corpo-memória também) que procura, finalmente, auto-compreender-se e afirmar-se. No entanto, nessa tensão do finito/infinito, material/espiritual, corpo/alma, escuro/claro, vazio/pleno não há senão afirmação da indecisão do humano que é feito desses dois - “no meio dos estilhaços um pairar constante na linha média com ligeiras oscilações acima e a baixo…e esta medianidade atormenta…mói…decompõe…”228. Apetece dizer, com Saramago, que o caos é uma ordem por decifrar e que é nesse estado caótico interno que o espectáculo se desenvolve num manifesto sobre a solidão, ou cerimonial do vazio ou um cerimonial de alguém que talvez tente atrozmente fugir do vazio. O espaço está circunscrito com fita no chão, um pouco à semelhança do filme de von Trier Dogville229 (2003) com a diferença de que este espaço está circunscrito pela performer, sendo ela que o abre e fecha conforme pretender. Dois outros performers acompanham o processo numa tríade essencial apontada por Helena Botto, com todo o simbolismo subjacente que pode significar um mesmo corpo inteiro, o equilíbrio e a união – feminino e masculino –, ímpar como forma de fugir à duplicidade e apenas ser tremendamente, ascender aos céus ou enterrar-me fundo. Note-se o extremo cuidado com toda a plasticidade cenográfica em palco, bem como o trabalho em vídeo e a paisagem sonora em articulação com uma prática que supõe 226 Pessoa, Fernando (2006). Livro do Desassossego, heterónimo Bernardo Soares, Lisboa: Assírio e Alvim, p.118. 227 O livro de cabeceira (1996). DVD, Peter Greenaway, França, Reino Unido, Holanda, Luxemburgo: CinePix (126min). 228 Botto, Helena (2009), Projecto Transparências in http://projectotransparencias.blogspot.com/ [em linha]. 229 Dogville (2003). DVD, Lars Von Trier, Dinamarca, Suécia, Reino Unido, França, Alemanha, Holanda, Finlândia (178min). 118 mais do que preparação toda uma investigação multifacetada por detrás da exibição final. Helena plasma os desassossegos íntimos do ser humano num corpo-livro sempre em aberto, por concluir, porque impermanente e, por isso mesmo, o alfabeto que o compõe é universal. 3.3 | tânia carvalho ou o corpo-expressivo O trabalho de Tânia Carvalho compõe-se na fórmula dos sobejos: o que se adiciona e excede no gesto, transforma-se no esplendor da expressão do (im)possível, do transgressor. Quer dizer, aquilo que ultrapassa o valor do dizível (das palavras), é aquilo que resta e que supera no valor do gesto, até ao limite das possibilidades. Portanto, existe o desenho de um corpo-expressivo por detrás das peças da coreógrafa que sabe sempre o que quer que seja feito230 e que necessariamente força intenções de movimento e de sentido no diálogo juntamente com os intérpretes que materializam esse desenho. Acontece, no entanto, no interior dessa expressividade, o seu próprio avesso, que nasce da experimentação através da repetição, do limite, do excesso, isto é, acontece o sobejo dessa expressividade que escapa a quaisquer explicações, como se cada movimento esgotasse a sua razão231. Essa é a natureza da dança, a saturação de sentido do corpo do bailarino que se desenvolve na coordenação motora, no treino e no ensaio rígido que o faz o ir buscar a imagem pretendida e ajustada para fazer surgir as emoções. É difícil aliás para a própria criadora, fugir a explicações prévias ou póstumas, tendo em conta o modo como actualmente se encara a arte contemporânea numa perspectiva didáctica. Em vez disso, saliente-se a universalidade da partilha através da dança, poética encarnada – todos somos sensíveis -, reveladora das debilidades do humano, a eterna derrota da imperfeição: a presença do monstro como figuras-eco e sintomas das fragilidades com que os corpos se debatem na cultura contemporânea. Sobra, assim, uma coreografia expressiva do tempo em que o pensamento não acompanha a velocidade efémera do movimento: 230 Costa, Tiago Bartolomeu, artigo-Entrevista, 27 Maio 2011,[em linha]. 231 Costa, Tiago Bartolomeu, artigo-Entrevista, 27 Maio 2011, [em linha]. 119 Quanto mais penso mais paro, para me voltar a mexer, para voltar a pensar. Tudo o que pensei fica lá para trás, mas faz falta para chegar onde cheguei. Digo (fica lá para trás) porque depois quando vejo, outra e outra vez aquilo que fiz, já penso outra coisa.232 Nas suas peças, surgem personagens onde o corpo é lugar de criação de ficções e fantasias, lugar de movimentos íntimos intensificados, distorcidos, dolorosos, caras grotescas: o corpo transparente da bailarina, quase deusa, ganha o peso das entranhas do corpo primitivo, negro, quase animal. Orquéstica (2006) é tentar a saída do abismo, uma espécie de catarse do mal: nesse processo “a luz está a ficar um pouco mais clara mas o céu continua carregado de nuvens...” 233 Barulhada, Danza Ricercata (2008) ou De mim não posso fugir, paciência! (2008) são criações que exploram de forma distinta uma profunda relação do corpo com a música. O movimento feito barulho, um pianista intérprete coreografado, ou antes um pianista intérprete coreógrafo, manipulador de outros corpos: o corpo que reconhece e é o ruído/a música/o silêncio produzidos pelo instrumento. Reúnem-se numa só partitura coreográfica a música produzida pelos instrumentos (corpos inorgânicos, manipulados) e o ritmo do corpo dos músicos e dos intérpretes: o som e o movimento, como gesto que se contagia por um ruído, e vice-versa. Porque nesta reflexão tocar um instrumento implica ser um bailarino234. Uma afectação inevitável do ponto de vista da dança, desenvolvida a partir de um expressionismo que ao invés de permitir a improvisação, interroga-a produzindo sentidos particulares mais emocionais ou, no extremo, quase hiper-reais. O interesse da coreógrafa pela música, levou-a ao desenvolvimento de projectos musicais independentes da dança, mas com pontos de contacto na experimentação das possibilidades de expressão, neste caso, do instrumento e da voz. Icosahedron (2011), o mais recente e ambicioso trabalho de Tânia Carvalho compõese numa massa de vinte bailarinos que ora parecem ser cinco, ora um só, como se os medos se alinhassem ou desfragmentasses e a solidão fosse uma composição esquizofrénica de estilhaçar o próprio eu, sucessivamente. Espelha-se a vontade de perfeição do universo balético, sempre inalcançável, a forma ideal. A energia em delírio e a própria exaustão da tentativa em conjunto, dá lugar a uma procura individual de cada intérprete que, a seu modo (e claramente transparece a diferença de formações dos intérpretes) se metamorfoseiam desde o interior de um paradoxo inarticulável que é o de 232 Carvalho, Tânia(2006). Folha de sala: Orquéstica in http://www.culturgest.pt/docs/orquestica.pdf [em linha]. 233 Carvalho, Tânia(2006). Folha de sala: Orquéstica in http://www.culturgest.pt/docs/orquestica.pdf [em linha] 234 Carvalho, Tânia (2009) De mim não posso fugir, paciência! in catálogo, Festival Materiais Diversos 19-29 nov 2009 Alcanena Minde Torres Novas. 120 se querer ser tudo, e ao mesmo tempo esvaziar-se de tudo: “Porque é que não somos mais limpos por dentro? Porque é que temos de ser o que alguém quer? Por que não somos só o que queremos? Por que não somos livres?”235 As peças de Tânia Carvalho falam dessa sujidade e obstrução e da necessidade de uma reconversão ao in-fans, uma valiosa ingenuidade infantil, de receber pura e simplesmente o que vier. No final de Icosahedron resta uma única figura grandiosa na sua solidão, pernas para o ar, o desejo de se sublimar, para depois cair - a catástrofe ou a catarse? Para terminar, podemos justificadamente, podemos suprimir tudo isto, e apenas dizer como Cunningham: Se um bailarino dança - o que não é a mesma coisa que ter teorias sobre a dança ou sobre o desejo de dançar ou sobre os ensaios que se fazem para dançar ou sobre as recordações deixadas no corpo pela dança de algum modo -, mas se um bailarino dança, já está lá tudo. (...) Quando danço, significa: isto é o que eu estou a fazer. Uma coisa que é justamente a coisa que aqui está.236 235 Entrevista a Portugal Ilustrado (2011) in http://portugalilustrado.com/?p=1497 [em linha]. 236 Cunningham cit. por Gil, José (2001), pp.81-82. 121 3.4 | análise das entrevistas Por meio das entrevistas chega-se a conclusões reveladoras da diversidade de trabalhos que estão a ser realizados em Portugal. Regendo-se por palavras-chave tal como explicitado na metodologia, a entrevista ilustra pontos de vista acerca do que foi sendo desenvolvido nesta tese. No caso do modo como encaram a performance enquanto prática artística, Beatriz Albuquerque237 relaciona-a com um mecanismo de comunicação, uma linguagem, uma técnica. Por outro lado, o recurso à live art dá-se pela necessidade de interacção directa com o público, na qual o público também possa interagir (veja-se relativamente à importância do público participante a alínea 1.3.2), aliada a uma preocupação social não só de acesso da arte a todos os tipos de público como à necessidade de gerar mudanças sociais através da arte – acessível a todos, aberta e pela qual, neste processo é possível que através da “acção”, se vá criando mudanças sociais. O lado social está eminentemente presente na perspectiva de B.A., comparativamente às outras entrevistadas que têm uma ligação mais íntima com este trabalho. A partilha comunitária da entrevistada é leit motif para o recurso à performance, identificando a performance verdadeiramente como um laboratório capaz de criar em conjuntou uma escultura social. A ideia de laboratório parece extremamente interessante no que concerne a conjugação de “ingredientes” ou múltiplas possibilidades numa só actividade que se reflecte no recurso a vários média (pintura, fotografia, instalação, video-arte, animação, etc.) e que, mais uma vez, se relaciona com a liberdade como conceito adjacente à sua prática através da escolha do média pelo público no caso de Trabalho de Graça. Já na visão de Helena Botto, há uma suposição complexa dessa prática que radica em quatro elementos que se tornam indissociáveis: 1. a relação/fusão entre o corpo, 2. as suas acções e comportamentos desenvolvidos (ponto de partida dramatúrgico), 3. interacção com o espaço envolvente, 4. a música e as sonoridades construídas. A conjugação destes quatro factores dá-se no processo criativo e experimental, revelando uma mais íntima e individual relação com o corpo num sentido abrangente de possibilidades entre os intervenientes de um espectáculo. Comum entre estas duas performers está a ideia de experimentalidade proporcionada pela performance (laboratório / processo experimental) que se baseia na diversidade dos média, e no 237 Utilizaremos B.A., H.B. e T.C. daqui para a frente para facilitar a nomeação das três personalidades. 122 diálogo diverso com os factores indissociáveis no segundo caso. Destaque-se a relevância plástica do espaço criado em conjunto com o gesto corpóreo do processo criativo. Note-se, ainda, a especificidade no caso de H. B., invariavelmente ligada à sua formação de actriz, do lado dramatúrgico com que define essa exploração do corpo e que, provavelmente, a leva a encontrar pontos de partida de trabalho a partir de textos soltos e alguns autores, sem se vincular rigidamente a uma interpretação do texto dramatúrgio e tendo também em conta outros factores que referiu - em trabalhos anteriores este processo [de criação] era feito com o objectivo de construir uma personagem que se inseria numa dramaturgia de âmbito, creio, mais teatral. Dá-se assim a viragem dependente da formação teatral da criadora mas alargando preocupações (o gesto, o abstracto, o plástico, o espaço), gerando uma acção mais depurada, ou de teor menos realista no que se distancia do trabalho do actor caber no papel de uma personagem.238 Tânia Carvalho distancia-se claramente destas duas perspectivas dado que não se identifica completamente do conceito – está lá porque trabalho com corpos, e expressão cultural mas eu faço peças de dança, coreografias. Assim, complementa-se a tese defendida no capítulo 1.4, a “performance” definir-se como uma não-disciplina dado o seu carácter fronteiriço que abarca possibilidades múltiplas do panorama criativo, independentemente de conceitos legitimadores e sistematizadores – performance, artes performativas, artes do corpo – e, “promovendo uma análise para todos”. Todavia, a intérprete/coreógrafa salienta o trabalho com os corpos e a expressão destes, incluindoas na ideia de peças de dança e coreografias. Esta ideia identifica-se com uma perspectiva mais tradicional da dança que passa também por um trabalho de palco que, apesar de hoje em dia alargar seu universo a outros espaços de exibição, ou à hipótese de improvisação e maior liberdade (como acontece no processo de trabalho de T. C. que se vai criando em conjunto com os seus intérpretes), mantém sempre uma vinculação a uma partitura coreográfica da qual se origina essa peça de dança. Podemos dizer que Tânia Carvalho trabalha na área da dança como arte performativa se, contra sua vontade, quisermos “rotular” o seu trabalho. Em relação ao modo como entendem o corpo em actividade no seu trabalho performativo, tanto para B.A. como para T.C. o corpo é distintamente um suporte mediador para colocar ideias em acção – o corpo da artista é uma ferramenta. O pincel 238 Sobre esta questão veja-se o capítulo 1.1 e 1.3.1. 123 está para o pintor como o corpo para o performer. [B.A.], nós somos o nosso corpo e por isso sem ele não fazemos nada, nem pensamos. [T.C.]. Há uma referência por parte de T.C. ao corpo cuidado, trabalhado, treinado, que não é a do corpo espontâneo como no caso de B.A., mas antes como ficção e não algo de real ou natural – tudo o que tem a ver com o lado motor associado a um lado emocional, o qual também se aprende pois é preciso saber usar o corpo para saber “fingir” emoções e trazê-las quando são precisas. O corpo em T.C. é em si palco da representação daquilo que ela pretende previamente, serve de suporte de ideias em expressão: algo pensado, ensaiado e feito por outra pessoa relaciona-se com a concepção de arte da performance no sentido tradicional do teatro e da dança. Em B.A. o corpo escapa às incertezas e à fragmentação do pósmodernismo, à linguagem falada.239 Distante das duas entrevistadas, na perspectiva de H.B., o corpo é em si sentido, memória, veracidade; a criadora entende esta entidade como algo mais do que suporte de ideias, ele é fonte de ideias por si - funcionava para mim e me ajudava a encontrar uma veracidade nas acções físicas, uma veracidade comportamental, ou aquilo que no teatro se poderia relacionar com o naturalismo puro. Por outro lado, encara o corpo como um reflexo de um estado de coisas em situação de presença - o meu corpo nesse momento, o peso, o ritmo, a voz de um corpo que era diferente - e a ideia de transformação a partir da percepção, da tomada de consciência dessa pressença. Por outro lado, o corpo é também memória, e este ponto relaciona-se com a sua pesquisa de trabalho específica, palco de todo um processo associativo de memórias físicas (ou psico-físicas). Por fim, acrescente-se, implícita em toda a entrevista, a necessidade de fixação desse trabalho no futuro, marcando-o e gerando uma necessidade posterior de reflexão/intervenção – uma memória de futuro. Na questão final, relativa ao desenho de um corpo-de-mulher que teve importância numa perspectiva feminista do surgimento inicial da performance, as entrevistadas parecem acordar nas suas respostas. Encaram o corpo feminino como algo de perfeitamente natural e que, também de forma natural, gera um trabalho distinto daquele que fosse realizado por um homem – tenho em conta o facto dessa mensagem ser transmitida por um corpo feminino, intencional no caso de B.A., é evidente que se tivesse nascido com um corpo masculino, o meu trabalho teria certamente contornos distintos (...) mas prefiro pensar-me em termos performáticos (H.B.), Sou mulher e 239 O que vai de encontro do que temos vindo a considerar importante ao longo de todo o capítulo 2. 124 pronto. Nunca fui homem por isso não sei como é (T.C.). A questão do género como algo de natural para cada criadora, prende-se à decisão singular de suas criações, que não correspondem a preocupações intencionais de afirmação no feminino. Todavia, numa conclusão mais arriscada podemos visionar a vanguarda da performance encarada quase como futuro ficcionado mais evoluído: o feminismo e a igualdade de género teriam sido há muito dimensionados e adoptados (como objectivo dessas performances desde os anos 70 em Portugal), comparativamente a uma sociedade actual relativamente à qual, na realidade, isso ainda não existe de facto. Nesta linha de pensamento, a performance como pensamento de futuro encara-se precisamente como a pós-vanguarda, a antecipação de uma realidade efectivada ou ideal. 125 | conclusão Ao longo desta investigação é possível compreender e justificar a diversidade disciplinar inerente à prática da performance que se manifesta na inscrição do signo do corpo presente. Por isso mesmo, o título do trabalho realiza essa relacionalidade íntima – corpo/performance, que assenta em pressupostos teóricos, formando uma ligação entre o acto performativo em si, um entendimento de corporalidade precisa e as bases teórico-culturais do artista que o propõe, da sua condição, história e do seu tempo. Preferiu-se designar acto performativo considerando, assim, o alcance do próprio termo performance. Analisou-se, aqui, o acto performativo no que concerne a arte da performance, mas entendendo-o como uma acção artística que não se limita disciplinarmente. Explicitando, o alcance do conceito envolve-se com as práticas actuais no teatro, na dança e na designação original de arte da performance, mais ligada às artes plásticas e à body art, como um todo de interesse. No decorrer deste trabalho, a preocupação é a de compreender a presença do corpo na análise desse todo, contrariando uma restrição sistemática da disciplina, em relação à qual o próprio conceito performance parece escapar. Existe algo que escapa ao domínio racional, sistematizante, e que se prende não só com o lado artístico da poièsis, mas também com a inscrição de um conhecimento que vem da consciência de corpo na durabilidade do acto performativo. A performance é provocadora de uma transformação estética e modificadora do próprio juízo estético sobre o corpo e sua significação social, ela é sintoma do contemporâneo. A performance é, seguidamente, forma de arte que força novas possibilidades de sentido no instante do momento de exibição - o inesperado tanto aos criadores que a praticam enquanto auto-consciência; como aos espectadores que tantas vezes são co-autores desse espaço de sentido - o comunicar o corpo ao corpo. Na actualidade, a proliferação de novos artistas que recorrem a novos media, explorando a experiência artística do ponto de vista perceptivo ou sensitivo (e não só visual), e o alargamento das fronteiras da legitimidade artística surgem, simultaneamente, na emergência de uma análise do estado da arte e de uma crítica de si mesmo. A pesquisa, a análise que o próprio artista faz do seu trabalho constituem ferramentas segundas de um primeiro momento que se prende com a fruição artística. O momento actual é de total assimilação da flexibilidade inerente às modalidades artísticas. Entendeu-se, portanto, que a performance não se quer como disciplina: se por 126 um lado há já uma institucionalização recente da performance com uma história realizada e propósitos construídos, por outro procura-se um contínuo alargamento de possibilidades que a mantém viva e fluída na sua hibridez. Flexibilizar o acto performativo como acção artística significa abarcar constantemente a novidade, lembrando que a nova arte é sempre já antiga. O esgotamento dos estilos artísticos pode vir a dar-se na performance: mas a performance não morre se se continuar a entender como performance essa recuperação da força do instante que caracteriza uma relação do humano com a vida - um corpo em mutação. Ou seja, distintamente das outras artes, a arte do corpo reinventa-se no momento, ressoa o que foi planeado previamente (pensado), mas ecoa o sentido, nada se pode esperar concretamente – na acção performativa dizer é fazer, no limite, ela não exprime nada, ela é sentido, expressividade pura. E é esta capacidade de constante reinvenção vinda do corpo que faz com que a performance não se esgote nunca, se ela for entendida como um lugar de borda “the most intense and productive life of culture takes place on the boundaries”240, tal como foi tornado explícito. Empurrar constantemente o instituído e permitir este espaço de abertura e miscigenação não é tarefa fácil, quer para os criadores quer para as organizações que os apoiam, tal como aponta Melo e Castro: entre marginalismo e instituição estabelecem-se então relações de contradição e de concordância, pois se os limites ou as insuficiências ou os erros de «instituição» delimitam a geografia das margens, o próprio marginalismo tende a instituir as suas razões em para-instituição. Situação que um dinamismo interno e constante pode evitar. Porque no momento em que o marginalismo tentar ser ele a definir o seu âmbito de acção e a sua própria geografia e temática, perde poder de crítica.241 Por outro lado, conta-se na pós-modernidade com uma aproximação do corpo a si próprio e, no campo artístico, a vontade de mergulhar no seu interior. Acrescenta-se a imprecisão, o excesso e a desordem humanos como forças que potenciam o estabelecimento de outras vias de encarar o destino do homem, de um ponto de vista estético. Esta necessidade por vezes delirante e esquizofrénica, de querer sentir tudo de todas as maneiras, reflecte-se na ideia que Merleau-Ponty desenvolve do corpo-sujeito, corpo como sítio de conhecimento real, que resiste a uma visão dicotómica de corpos abstractos: Em se tratando do meu corpo ou de algum outro, não tenho nenhum outro modo de conhecer o corpo humano senão vivendo-o. Isso significa assumir total 240 Bakhtin cit. por Carlson, Marvin (2006), p. 208. 241 Castro, Ernesto de Melo (1977), In-Novar, Lisboa: Plátano Editora, pp.263-264. 127 responsabilidade do drama que flui através de mim, e fundir-me com ele.242 A partir dos objectivos inicialmente traçados, este trabalho tomou a forma de um estudo de caso. Além disso, procurou-se dar uma perspectiva da performance no feminino em Portugal. Julga-se estar a contribuir para uma breve análise do que é realizado no campo performativo em Portugal na actualidade, quais os caminhos que estão sendo percorridos, quais as suas referências artísticas e objectivos, no que respeita concretamente o universo feminino. Assim, procurou-se compreender a visão da condição feminina das entrevistadas e, concretamente, do corpo performativo, o corpode-mulher na sua fisicalidade. No entanto, este factor, apesar de fundamental componente de sentido até histórico da performance, ligada nos seus inícios ao feminismo, parece já não ter tanta relevância. A temática do corpo colectivo que se quer emancipar tem vindo a substituir-se por uma intensificação, por vezes até algo narcísica, do sujeito íntimo e pessoal. A análise das entrevistas veio a corroborar e ilustrar a perspectiva realizada ao longo dos capítulos de revisão da literatura. Encontrou-se, junto dos trabalhos específicos no capítulo trapezistas, o movimento capaz de captar o que se inscreve a partir do corpo-do-artista: por um lado, caixa de ressonância de mundo, reflexão sobre o existente; por outro, transformação material de sentidos dissonantes e reinventados. Conclui-se, assim, a singularidade de cada trabalho que encontra na performance a alternativa de expressão que foge a determinações doutrinárias que justifiquem a origem de cada trabalho243. Como futuros possíveis, os artistas podem ensaiar um sentido para a paisagem paradoxal e angustiada que sustenta os tempos actuais - a vontade de quem procura, no meio de tudo aquilo que tem, aquilo que é. Até porque o que mais importa é a viagem estética, a vertigem do abismo e uma partilha de mundo. Caminha-se inexoravelmente para um estado de caos que é tragicidade e ausência: significa que tudo é interrogação e 242 Merleau-Ponty, M. cit. por Glusberg, Jorge (2003), p. 39. 243 Ao longo deste trabalho, a questão da acção performativa enquanto acção praticada por um corpo que se expressa no mundo, conduz-nos a um movimento de pensamento através do qual sentimos a necessidade de reiniciar essa questão, considerando a abertura a futuras linhas de investigação que possam dar continuidade à pesquisa realizada. Afigura-se importante o aprofundamento, a análise e a crítica à arte performativa/artes do corpo em Portugal na actualidade: quer através da investigação desenvolvida no trabalho das novas instituições, dos seus propósitos e rumos, problematizando o funcionamento do mercado da arte da performance na sua efemeridade; quer através do estudo dos seus criadores, na análise singular de cada trabalho, ou na articulação de eixos temáticos comuns; quer através do pensamento sobre as possibilidades de registo e as questões museológicas inerentes a esta modalidade. 128 é num interstício de fôlego que a vida é dita. E mais uma vez, as palavras de Melo e Castro não podiam estar mais adequadas e actualizadas ao nosso tempo: Para quem estiver atento ao que se passa à sua volta e, também, dentro de si, uma coisa ressalta à evidência: vivemos rodeados de coisas que não nos pertencem que nada nos dizem - que não nos são indispensáveis - que são, até, nocivos empecilhos, restos de um tempo que já não é o nosso - resquícios de uma vida que, embora morta, se infiltra na nossa energia e nos limita e embaraça e frustra.244 Para terminar, resta o sentimento positivo do que se avizinha, múltiplo, aberto e criativo: Esta paisagem é dinâmica. Preocupa-me a natureza do solo, por isso me imponho certa unidade de flora e fauna, uma ligação mineral, as articulações meteorológicas. Mas a paisagem move-se por dentro e por fora, encaminha-se do dia para a noite, vai de estação para estação, respira e é vulnerável. Ameaça-a o próprio fim de paisagem. Pela ameaça e vulnerabilidade é que ela é viva. E é também uma coisa do imaginário, porque uma paisagem brota do seu mesmo mito de paisagem. Aquilo que lhe firma a existência situa-se nas condições do desejo: o movimento entre nascença e morte. A tensão criada pela ameaça destruidora afiança-lhe a vitalidade. A árvore da Carne. Herberto Helder 244 Castro, Ernesto de Melo (1977), p.143. 129 | anexos 130 anexo 1 | questões de entrevista Pequena entrevista estruturada Pretendem-se respostas de extensão e grau de profundidade livre (não directiva). Questões: 1. Como entende a modalidade performance na prática do seu trabalho? 2. Assume-se que performance é, acima de tudo, expressão de um corpo. De que forma considera essa entidade - corpo - enquanto signo fundamental na sua prática artística? 3. Enquanto mulher (e como intérprete) como vê a sua acção performativa nos trâmites de um gesto que se desenha por um corpo no feminino? Muito obrigada, Rita Xavier Monteiro Mestranda Faculdade Belas Artes Universidade do Porto Aesthetics Politics and Arts Research Group (IF | UP) 131 anexo 2 | trapezistas: notas biográficas beatriz albuquerque artista plástica/performer Beatriz Albuquerque nasceu no Porto em 1978. Vive e trabalha em Nova Iorque e no Porto. Em 2003 termina o bacharelato na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e em 2006 acaba o mestrado na “School of the Art Institute of Chicago”. Em 2004 integra o IPG - “Independent Performance Group”, fundado por Marina Abramovic. Encontra-se de momento a realizar doutoramento em “Education in Art and Art Education”, no Teachers College, Columbia University, em Nova Iorque. Performances realizadas: 2003 Design, MausHábitos, Oporto - Portugal. Anti - consumismo, Street, Oporto - Portugal. Desdobramento - Caos, XII Bienal Internacional de Arte, Museu de Vila Nova de Cerveira, Vila Nova de Cerveira - Portugal. Caos - Desdobramento, XII Bienal Internacional de Arte, Museu de Vila Nova de Cerveira, Vila Nova de Cerveira – Portugal. 2004 Rua, Casa Municipal da Cultura, Seia - Portugal. Colour, Speaker Corner in conjunction with the Pilot Conference, Chicago - USA. $$, Street, Chicago - USA. $$$, Street, Chicago – USA. 2005 1x$, Vivisection III, Chicago - USA. DIY?, PAC/edge Performance Festival, Athenaeum Theatre, Chicago USA. Space, Musicircus, Museum of Contemporary Art of Chicago, Chicago - USA. Livre, Links Hall, Chicago - USA. Collaboration I, Spareroom, Chicago - USA. 2006 Performance/ Web project, Score, [FRAY]PerformanceInsideOut, Chicago Art Department Gallery, Chicago – USA; Web Performance / Web video art, No Man's Land project, Womanifesto 2006, Thailand: http://www.womanifesto.com 2007 Collaboration I, Links Hall, Chicago - USA. Color, Musicircus, Chicago Cultural Center, Chicago – USA. 2008 Performance / Web Performance / Video Installation, Color, PerforArtNet 2008, Galeria Santa Fe, Casa tres Patios, Museo de Arte Contemporanea de Bogota / Museo de Arte Contemporanea de Caracas, Fundacion Nelson Garrido, Bogota – Columbia / Caracas – Venezuela. Color, Galery 2, Chicago – USA. 2009 Os cavalos também se abatem, A Sala, Porto - Portugal. Collaboration I, Espazo de Intervencion Santa Isabel, Santiago de Compostela - Spain. Colour, Emily Harvey Foundation, New York - USA. $$$, Conflux Festival, New York - USA. 132 Sobre Beatriz Albuquerque, visitar: http://www.beatrizalbuquerque.web.pt helena botto actriz/intérprete/performer Nasceu em Aveiro (Portugal) em 1978. Aos quinze anos estabelece um primeiro contacto com as artes performativas, através do Acto. Instituto de Arte Dramática, organização dirigida por José Filipe Pereira, um ex-aluno do Worcenter of Jerzy Grotowski em Pontedera. É no seio desta estrutura que adquire as suas competências desenvolvendo um trabalho de laboratório, diário e rigoroso, centrado na metodologia das acções físicas, no training físico, no canto e na acção vocal Aí permanecerá até ao final (2006) desempenhando um papel activo enquanto performer, investigadora, monitora e co-criadora. Entre 2002 e 2005, o trabalho de clown merece-lhe especial atenção, sob a orientação de André RiotSarcey entre os anos de 2002 e 2003 (Portugal) e Montéllimar (2005, Institut des Arts du Clown), voz com Meredith Monk e Fátima Miranda. No final de 2006 funda a sua própria estrutura de criação, o PROJECTO TRANSPARÊNCIAS – criação de objectos performativos, cuja primeiro trabalho é Hamartia, uma performance site-specific; ainda no mesmo ano concebe, dirige e é performer em A Espera, livremente inspirada em À Espera de Godot. Em 20008, concebe dirige e é performer em O Álbum, uma criação interdisciplinar com apoiada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Em 2008 e 2009 dirige o workshop Body, Voice and Memory (space appropriation) no Teatro Laboratory Alma Alter em Sófia (Bulgária) e no Centar za Kulturu Stari Grad, em Belgrado (Sérvia) com o apoio do Instituto Camões. Em Novembro de 2009 estreia Decomposição no Teatro Aveirense. Desde 1997 actuou e/ou dirigiu workshops em Portugal, Cabo Verde, Áustria, Holanda, Noruega, Tunísia, São Tomé e Princípe, Itália, Sérvia e Bulgária. Em Abril de 2010 procurando novos espaços, pessoas e colaborações vem para Berlim para frequentar um curso de dança e teatro físico no KIM – Berlin Post School, onde estuda com Elias Cohen, Minako Seki, Se-rok Park, Shannon Cooney, Max Schumacher, Lisa Densem, Nayoung Kim, e.o. Em Julho apresenta SMS, um trabalho em work in progress na TanzFabrik. É após esta curta estadia que decide mudar-se para Berlim. Sobre Helena Botto, visitar: http://projectotransparencias.blogspot.com/ 133 tânia carvalho coreógrafa/intérprete Nasceu em 1976 (Portugal). Vive em Viana do Castelo. Começou a ter aulas de dança clássica aos cinco anos de idade. Fez o primeiro ano de artes plásticas da ESTGAD, Caldas da Rainha, 1995 fez o primeiro ano da Escola Superior de Dança, Lisboa (PT). Em 1997 ingressou no Curso de Intérpretes de Dança Contemporânea Fórum Dança, Lisboa. Em 2005 realizou o Curso de Coreografia da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa (PT). Trabalhou como intérprete com Francisco Camacho, Carlota Lagido, Clara Andermatt, David Miguel, projecto Teatral, Filipe Viegas, Vera Mantero, Elisabete Magalhães, Patrícia Portela, João Garcia Miguel, Luís Guerra de Laocoi, entre outros. Como coreógrafa e intérprete criou, entre outras, as seguintes peças: Mulher à beira de um contrabaixo (1997), A corte (2000), Inicialmente Previsto (2000), New Tan (2001), Um privilégio característico (2002), Direcção Oposta (2003), O melhor delas todas (2003), Os segredos do meu dormir em Nottingham (2004), Como se pudesse ficar ali para sempre (2005), Explodir em Silêncio Nunca Chega a ser Perturbador (2005), I walk you sing (2006), Orquéstica (2006), Uma lentidão que parece uma velocidade (2007), #1 Ricardo – Movimentos diferentes (2007), Barulhada (2007), #2Ramiro, #3Bruna – Movimentos diferentes (2008), De mim não posso fugir, paciência! (2008), Danza Ricercata (2008), #4 Hugo, #5Nini, #Gonçalo – Movimentos diferentes (2009), Der Mann ist verrückt (2009), “Ariops” – coreografia para os alunos 2º ano Escola Superior de Dança de Lisboa, Olhos Caídos/Falling Eyes e Fábulas (2010). Em 2004 foi a bailarina/coreógrafa portuguesa, convidada a participar no encontro “Pointe to Point”, inserido no Third Asia- Europe Dance Fórum, Tóquio (JP). Com os seus projectos tem feito residências de criação artística nas seguintes estruturas: Arnolfini Art Center, colaboração do Live Art Forum South West, Bristol (UK); Festival NOW, Nottingham (UK); Company of Elders, The Place, Londres (UK); La Chartreuse – Centre national des écritures du spectacle, invited by Festival Uzès Danse, Uzés (FR); O Espaço do Tempo, Montemor-o-Novo (PT); Trillke-Gut (GER); PACT Zolverein, Essen (GR); Tanzwerksstat Berlim (GR); Escola Superior de Educação de Viana do Castelo (PT); WP Zimmer, Antuérpia (BE). As suas peças foram apresentadas em Portugal, França, Espanha, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Canadá, Brasil, Bósnia, Chipre e Áustria. Tânia Carvalho desenvolve paralelamente os projectos musicais Madmud, Trash Nymph e Moliquentos. É co-fundadora do colectivo de artistas Bomba Suicida – Associação de Promoção Cultural. Sobre Tânia Carvalho, visitar: http://bsculturaltaniacarvalho.blogspot.com http://bscultural.org/wordpress/?page_id=5 134 anexo 3| resposta à entrevista beatriz albuquerque 1 | A performance é um mecanismo de comunicação, uma linguagem (ou uma série de métodos) particularmente adaptados para um pressuposto, uma técnica, uma prática que transmite um fim. Cria uma participação passiva ou não, por parte do(s) espectador(es)/ receptores da mensagem, ou seja, a performance permite a interacção directa, acessível a todos, aberta e pelo qual, neste processo é possível que através da "acção", se vá criando mudanças sociais. A performance faculta muito bem o fluxo, o movimento, a interacção, nas "acções" que demonstram uma ideia. É como uma "escultura social" que se realiza num espaço, numa espécie de laboratório. Um dos Projectos que me remete para isso, desde 2005 em Chicago e que tenho vindo a desenvolver intitula-se "Trabalho de graça", no qual em datas e locais diferentes (Portugal, Grecia, UK USA) ofereço-me para trabalhar de graça na criação de obras de arte, as que o público deseja. Ou seja o público activo que escolher interagir com o performer na rua, ou dentro do escritório/instalação, tem um conjunto de opções para o performer criar para eles o trabalho artístico que o cliente quer e da forma que ele deseja; o público pode e deve participar no processo de criação e manufactura do seu trabalho artístico de graça (pintura, fotografia, instalação, video-art, animação, etc, são exemplos de opções oferecidas ao público). Em Março realizei este Projecto nas ruas e na Macy Gallery em Nova York. Beatriz Albuquerque, Project: Work For Free: galeria 3+1, Lisboa, 2008; Chicago, 2005; 2nd Thessaloniki Biennale of Contemporary Art, Thessaloniki, 2009 2 | O corpo do artista é uma ferramenta. O pincel está para o pintor como o corpo para o performer. O corpo tem um papel fundamental na performance, é o seu suporte de comunicação primordial. Como tal, é um elemento construtivo de identidade, que escapa às incertezas e à fragmentação do pos-modernismo. Através do corpo a performance existe. 3 | Toda a arte e consequentemente a performance é uma linguagem. Como artista quero transmitir uma mensagem e escolho o medium mais propício para isso. Como tal, na performance, tenho em conta o facto de essa mensagem ser transmitida por um corpo feminino. 135 A performance tem por intenção fixar e comunicar uma dada expressão vital e comunicá-la a todos. Ela pode ser compreendida como uma linguagem ampliada e generalizada. A forma exterior da performance é mais rica que a forma exterior da linguagem e simultaneamente a forma interior da performance é mais ampla do que a forma interior da linguagem. Por isso nas minhas performances ao vivo tenho sempre em conta se a mensagem que pretendo é a transmitida por uma mulher (eu). Mas no caso de certas videoperformances, o performer é um homem, por que a mensagem que quero transmitir enquadra-se mais com o corpo masculino. Um exemplo disso e o video-performance V, 2007, cujo objectivo é um tributo a John Cage com reminiscência aos "prepared piano". Beatriz Albuquerque, V, Primo Piano Livin Gallery, Lecce - Italy, 2007 136 anexo 4 | resposta à entrevista - helena botto 1 | Talvez seja sobretudo na relação/fusão entre o corpo, as suas acções e comportamentos desenvolvidos, com um ponto de partida dramaturgico inicial que depois é desenvolvido e ou modificado, na interacção com o espaço envolvente (que normalmente se tem vindo a manifestar numa instalação plástica ou videográfica) e a música ou as sonoridades construídas. São quatro elementos que vão sendo construídos em conjunto num processo de procura experimental e que a partir de determinada altura se tornam indissociáveis e creio constituirão aquilo que poderei definir por performance. 2 | O corpo é o fulcro essencial de toda a minha prática artística é o eixo motriz de todo processo criativo. Desde há alguns anos que tenho vindo a trabalhar a questão da memória, do corpo-memória. Inicialmente creio, porque era um caminho que funcionava para mim e que me ajudava a encontrar uma veracidade nas acções físicas, uma veracidade comportamental. O meu comportamento perante num determinado momento, o meu corpo nesse momento, o peso, o ritmo, a voz de um corpo que era diferente, bem como o trabalho de memória sobre outros corpos, ou memórias suscitadas por percepções de vários teores perceptivos, um som, um gesto, uma textura, um cheiro que despoleta todo um processo associativo de memórias físicas (ou psico-físicas). E depois a memória ficcionada, ou a memória do futuro, perante uma dada situação ficcionada, que comportamento reacção, ritmo desenha o meu corpo. Em trabalhos 137 anteriores Helena Botto (2008). O Álbum @ Susana Neves este processo era feito com o objectivo de construir uma personagem que se inseria numa dramaturgia de âmbito, creio, mais teatral. N'O Álbum, por exemplo, este trabalho sobre o corpo memória, ou sobre a memória, será talvez o culminar desse trabalho desenvolvido ao longo de anos, mas aí transposto de uma forma mais “abstracta” talvez, ou mais depurada… algumas memórias que se traduzem em comportamentos e acções de teor menos realista (enquanto forma). Por outro lado e cada vez mais, em termos performativos, o espaço plástico criado para cada performance tem vindo a ocupar também um papel relevante não só em termos do processo como da proposta final. Um espaço que é construído em profunda relação com as manifestações do corpo. 3 | A questão do género não me é um elemento de inquietação ou reflexão, acaba por ser uma coisa que existe, com a qual vivo perfomaticamente sem pensar muito nela. É “apenas” uma circunstância, que evidentemente condiciona aquilo que sou e por consequência aquilo que faço em termos performativos. È evidente que o facto de ser mulher me condicionou e me condiciona determinado tipo de vivenciações e experiências e formas de percepcionar o mundo e as coisas que me rodeiam e condiciona também a forma como o mundo me percepciona a mim. Mas é, “apenas” um elemento, como o é, o facto de ter nascido numa cultura ocidental, de ter a cor de pele que tenho, de ter o peso que tenho, a altura que tenho, etc... é simplesmente algo que lá está, que me intrínseco, que condiciona aquilo que sou, que fui e que virei a ser, mas não é por si só força motriz no meu processo criativo. É simplesmente algo que lá está que não abordo de forma directa, ou pelo menos, creio, não o farei de uma forma consciente e intencional. É Helena Botto (2009). Decomposição, @ Susana Neves 138 evidente que se tivesse nascido com um corpo masculino, o meu trabalho teria certamente contornos distintos... mas prefiro pensar-me, em termos performáticos, como um ser humano, que percepciona, que sente, que pensa, que reage, que age e que desenvolve comportamentos e acções que lhe são essenciais ou urgentes de exprimir naquele determinado momento. N' O álbum por exemplo acho que até existe uma certa androgenia no desenho do corpo e nos seus comportamentos, na Decomposição o leit motiv inicial foi a obra de Genet, por exemplo... Em termos de processo criativo e quando parto de um estímulo inicial, que poderá ou não ser modificado no decorrer do processo criativo, aquilo que me despoleta uma reacção, uma aproximação ou um afinco é sentir uma identificação (consciente ou inconsciente) com aquilo que lá está expresso, por exemplo identifico-me bastante com Sarah Kane, mas também me identifico imenso com Bukowski... são mais os comportamentos, as reflexões, as angústias (e que são sempre pessoais e únicas mas ao mesmo tempo universais) que despoletam em mim uma identificação e não necessariamente um pressuposto que parte de uma questão de género. 139 anexo 5 | resposta à entrevista - tânia carvalho 1| Para ser sincera, não gosto de dizer que faço performance. Está lá porque trabalho com corpos e expressão corporal mas eu faço peças de dança, coreografias. Tânia Carvalho, Icosahedron, desenho do programa @ Tânia Carvalho 2 | O corpo é um instrumento fundamental para o meu trabalho, mas acho que é para todos, tudo o que fazemos é com o corpo, nós somos o nosso corpo e por isso sem ele não fazemos nada, nem sequer pensamos. Mas claro, fazendo um trabalho de palco ele vai estar exposto e é dessa forma que tem de ser cuidado, trabalhado, manipulado, treinado. Sendo bailarina e coreógrafa trabalho a imagem que o corpo cria, as formas, os percursos, as velocidades, tudo o que tem a ver com o lado motor associado a um lado emocional, o qual também se aprende, pois é preciso saber usar o corpo para saber "fingir" emoções e trazê-las quando são precisas. 3 | Não penso muito nisso. Em ser mulher. Sou mulher e pronto. Nunca fui homem e por isso não sei como é. Tânia Carvalho, De mim não posso fugir paciência, @Bruno JDMiguel 140 141 bibliografia ABRAMOVIC, Marina (1996). 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