«Um dia vamos olhar para trás e esperar que tenha sido tudo um pesadelo. Um dia Vontade de Ter Vontade será uma peça desactualizada. Ainda não chegámos lá. E, entretanto, Cláudia Dias, coreógrafa e performer, à beira de fazer 40 anos, radiografa o estado de espírito de um país encostado à areia e empurrado para a emigração. A peça que marca o seu regresso à coreografia teve estreia no fim do ano passado na Bélgica, mas é agora que “se vai confrontar com aqueles a quem se dirige: nós.” Diz ela, corpo tenso, prestes a entrar em acção: “Se eu ficar aqui, sempre no mesmo sítio, as coisas irão passar por mim em vez de ser eu a passar pelas coisas. O tempo irá passar lento, rotineiro, disciplinado e eu com ele à deriva… Como se não houvesse gravidade que me conectasse a um chão, a um território. Aterritorial e apátrida na minha própria terra. Como se o país fosse um lugar distante, ao qual não pertencesse. Como se não tivesse nada a dizer. Aqui, a dizer nada, a meter tudo no mesmo saco.” Vontade de Ter Vontade é Cláudia Dias a chamar a si a responsabilidade de não desistir, numa peça que prolonga o trabalho sobre a identidade e o território de “One Woman Show (2003), “Visita Guiada (2005) e “Das coisas nascem coisas (2008), espectáculos que a firmaram como uma das mais importantes autoras da dança contemporânea portuguesa da terceira geração de coreógrafos (os que aprenderam com aqueles que fizeram a Nova Dança Portuguesa, no fim dos anos 80, e seguiram caminho por eles aberto). A passadeira que percorre hoje e amanhã na Culturgest está coberta de velcro, uma metáfora que a explica: “Vou fazer 40 anos e nunca perspetivei chegar à situação que estamos a viver. Preocupa-me que o meu discurso seja o que era o do meu pai, e o que é das pessoas mais novas. Quando a maior parte das pessoas tem o mesmo discurso relativamente a um país, é porque alguma coisa não correu bem. É suposto termos perspectivas diferentes.” De uma dança política e de intervenção para uma reflexão à micro-escala do que pode fazer, a peça fala do “estar aqui”. Este “aqui” é Portugal, o canto do canto da Europa do Sul, coagido a reagir sem saber como, em crise, a procurar-se nas suas antigas colónias, a pensar como se reconstrói, a olhar para o que sobre ele dizem, no terror de ser apontado. Diz ela, para nós ouvirmos antes que seja tarde: “Estamos demasiado na merda para assistir passivamente ao desenvolvimento do subdesenvolvimento. Há tanto por fazer e a defender. Mas para agir temos de deslocar os olhos desta paisagem e caminhar no escuro por alguns momentos.” Ela caminha no escuro, placa após placa, como se caminhasse em cima de areia, material duplamente simbólico de um país de praias: de praias como promessa de um outro império e mortalha da queda do império, da areia como metáfora de deserto, de desertificação. E vai deixando atrás de si um lastro: “É para falar de futuro que faço esta peça.”Um futuro que vai construíndo a partir de um corpo que se tenta libertar mas nunca o consegue realmente, porque quer levar consigo o que o forma. “Há uma acção que se reflecte fisicamente”, explica para justificar o método a partir do qual trabalhou, a Composição Em Tempo Real, que aprendeu com João Fiadeiro e a ajuda a libertar-se do que poderia ser uma interpretação emocional. Por isso, observa-se constantemente (e nós a ela) enquanto dança um samba mal dançado, “porque se confundem aqui a história das colónias e a emergência económica”, e “rasga” com um discurso que aponta vários caminhos. Placa a placa, se for para cima, por ali, para a frente, por aqui, para baixo, assim, por além, se seguir em frente, se não ficar parada, se não voltar atrás, “há uma ideia, uma acção e uma coisa que se deixa.” Um dia vai ser assim: “Se eu deixar de estar aqui, continuarei a estar presente. As pessoas sentirão a minha presença por algum tempo ainda. Por algum tempo mais, ouvirão a minha voz. Mas que em breve desaparecerá”. E, por isso, a pergunta:”Há vida antes da morte?”. Um dia vamos olhar para trás e esperar que tenha sido tudo um pesadelo. Um dia Vontade de Ter Vontade será uma peça desactualizada. Ainda não chegámos lá.» Tiago Bartolomeu Costa In Ípsilon, jornal O Público, 20 de Janeiro de 2012