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PEREGRINO
Para poder entrar no Céu pelas piedosas mãos do Buda, Wenceslau de Moraes
despiu-se do seu nome português e recebeu o kaimyo, nome de morto, de Sokoinden
Kyokusho Bunken Daikojii, que magnificamente quer dizer: Peregrino Escritor
habitando um Castelo de Algas como a Luz resplandecente – algas movediças
sugerindo a vida do marujo e aventureiro. Assim o luso Wenceslau renasceu, como
qualquer japonês, para a vida eterna das reencarnações, com um nome rútilo e virgem. É
verdade que a todo o homem ou animal é permitido entrar no Céu budista. Difícil,
impossível até para o estrangeiro, é penetrar no Olimpo xintoísta, guardado pelos génios
terríveis postados à entrada dos templos nipónicos. Hoje porém, cinco lustros após a
morte de Moraes, o Japão, pela sua religião oficial, reconheceu nele um daqueles raros
homens em quem o Espírito se revela com as virtudes que, entre a massa,
individualizam o herói. E assim lhe foi prestado preito e homenagem pela igreja do
Xinto e ascendeu ao Céu dos imortais – onde certamente vive feliz, entre a excelsa
legião dos imperadores, dos guerreiros, dos escritores, dos artistas do Dai-Nippon.
O monumento que a cidade de Tokushima ergueu à memória de Wenceslau de
Moraes fica ao cimo da principal avenida, Shinmachi Bashi, na raiz do monte Bizan.
Foi inaugurado no aniversário da sua morte, em 1 de Julho de 1954.
O sol doirava a manhã gloriosa, a foliar com os pássaros nos cimos das ramagens,
brincando nos tanques de lótus e nos espelhos dos arrozais. O verde luxuriante da terra
como que se dissolve na luz do Sol, que o esparze depois em reflexos vivos, em lufadas,
em matizes infinitos. O verdadeiro encanto do Japão é esta luz divina que parece nascer
das próprias coisas, que tudo alaga e embalsama, qual música inaudível, alegria suave,
perfume que enche o ar, onda de espuma ou de sorriso. É este sorrir da luz brincada que
explica o constante sorriso dos japoneses – a felicidade dos homens nasce da luz do Sol.
A cerimónia começou por um serviço xintoísta em frente ao monumento. Dois
sacerdotes de longas túnicas de seda branca, na cabeça uma espécie de gorro alto de
charão preto brilhante, pés de alvos tabi metidos nos enormes tamancos finos de negra
laca, dobram-se em vénias profundas diante da imagem do primeiro português que a
religião xintoísta venera. Em frente ao monumento há um altar de madeira nova, com as
oferendas tradicionais: ao centro o sakê, o vinho japonês, o arroz cozido, dois peixes
frescos e luzidios e algas – os frutos da Terra e do Mar; depois os cestinhos com sêmea
de mochi cru, bolos, o yokan, doce de feijão de que Wenceslau tanto gostava e que
agora, em Tokushima, se vende em bonitas caixas com o seu retrato, e as frutas da
estação e da terra nipónica – laranjas douradas, pêssegos cor de nácar, maçãs, uma
abóbora, um prato de pepinos. Não há flores – apenas ramos verdes de sakaki, a árvore
sagrada do xintoísmo.
O sacerdote xintoísta inclina-se agora, numa vénia mais pausada, diante do
medalhão com o busto de Moraes em bronze aposto sobre o rectângulo de granito
branco, depois abençoa com o ramo sagrado de sakaki a multidão recolhida sob a tenda
de panos claros listrados de vermelho. A música aguda do gagaku, levada pelo fio ténue
da flauta japonesa, evola-se espiritual e esquisita e vai dissolver-se no Céu lilás, diáfano
e brilhante como a superfície duma pérola. O sacerdote começa por invocar os deuses
do Xinto. A invocação tem a jovial frescura dum hino primitivo ao Sol. Os deuses
xintoístas são alegres e bons, habitam as velhas árvores das florestas, as fontes, os cimos
das montanhas e aceitam gostosamente os votos ofertos de coração simples e puro. O
sacerdote, grave, hierático, fixa demoradamente os olhos de Moraes e bate duas vezes as
palmas, chamando o seu espírito. E começa a entoar em voz profunda. Invoca os
espíritos, os kami da Terra e do Mar nipónicos, e pede-lhes se dignem estender a sua
protecção ao português exilado que veio deixar as suas cinzas a esta abençoada terra de
Amaterasu. A voz do sacerdote é harmoniosa e quente, vibra na manhã de mel e cristal e
perde-se no verde espesso das árvores, além, onde os deuses habitam entre as sombras e
os mistérios dos templos da montanha. Por vezes, uma criança vem brincar entre o
monumento e a assembleia, respingando de mimos e travessura a seriedade da gente
oficial. As caras abrem-se em sorrisos, animadas pela alegria fresca da terra. Nada
sugere evocações de morte; jovialidades pagãs brincam na luz doirada, e os próprios
espíritos e deuses, invisíveis e presentes, dir-se-ia papearem e sorrirem no ar azul. O
momento é de júbilo – glorificamos o homem audaz e vário, ofertando-lhe os frutos
saborosos da Terra e do Mar, sobre o altar no sopé da montanha, erguendo cânticos ao
Sol. Logo nos ocuparemos das negras tribulações que esperam a alma e a
encomendaremos ao Buda, entoando sutras graves e tristes.
Chegou a altura de irmos depor no altar os ramos sagrados de sakaki. Cada um
toma a sua vez, faz uma reverência ao sacerdote e recebe das mãos dele o ramo sagrado
que vai oferecer, com uma vénia recolhida, ao espírito de Moraes. Eu deponho antes um
ramo de flores: crisântemos, jasmins e rosas – rosas como as de Portugal – para que não
faltem ao seu gosto luso das flores e possa consolar com elas a memória da sua terra
distante, com o preito do único português que lho veio prestar, de coração cheio de
afecto e de saudade, a esta terra gentil e estrangeira.
Vêm a seguir os discursos oficiais, toando monótonos na aragem de seda. Tenho o
pressentimento de que agora o espírito de Moraes não aprova. Ele, que era simples e
quis viver entre gente simples e pobre, desprezando honras e pompas oficiais, deve estar
a mirar-nos com galhofa, e a considerar ironicamente a sorte dos homens que viveram
para o amor das coisas simples e puras e a cujo génio impomos, depois da morte, as
engomadas formalidades das consagrações oficiais.
Mas se foi isto para ele sacrifício, não foi longo, porque a cerimónia findou, as
duas mil pessoas da assistência foram debandando, e lá ficaram, a brincar irreverentes
sobre o degrau do monumento, as crianças de Tokushima, encantadoras nos seus
quimonos garridos, correndo, tropeçando de pés nus nas geta de madeira pintada, as
mais pequeninas com guizinhos na cabeça, em familiar convívio com Wenceslau, a
quem certamente mais regozijou esta parte imprevista no programa.
Logo, à tarde, vão celebrar-se, pela alma de Wenceslau, preces budistas no
pequeno templo de Anjuji. Então nos recolheremos a meditar sobre o destino deste
português que a um mundo estranho veio pedir satisfação para uma traidora sede de
felicidade: veio perguntar ao silêncio o que é o homem, num desesperado anseio de
conhecer-se e de encontrar à vida as respostas e os sentidos.
Esta madrugada fora eu recolhidamente depor flores no seu túmulo. As suas cinzas
estão reunidas numa caixinha de pedra, ao lado das cinzas da sua amada Ko-Haru,
Pequena Primavera. A lápide vertical, curta e delgada como um tronco de árvore, tem
de um lado inscrito o nome de Moraes, e do outro, o kaimyo – de Ko-Haru – Entaku
Miosho Shinya: piedosa mulher, comparável a um magnífico quadro, traçado por
pincel primoroso e oferecido aos deuses. O cemitério de Chionji é exíguo, como todos
os cemitérios japoneses; as cinzas a que se reduz um homem são mais escassas ainda do
que o breve punhado de terra que lhe cobre o caixão. Não se vê uma flor. Há em quase
todas as campas ramos de sakaki. Moraes e a sua bem-amada O-Yoné, a Nobre Senhora
Bago de Arroz, lá têm os seus, verdes, em frente de cada túmulo, metidos em duas
piazinhas de granito, um ramo de cada lado.
Paira um silêncio manso, uma serenidade alegre e pagã na luz do sol que
passarinha entre os túmulos singelos. Mal dobro o pequeno carreiro do jardim, vejo,
sobre a sepultura de Moraes, um gatinho mais branco do que a neve, voluptuoso,
tomando o sol. Fico a olhá-lo, com o pensamento cheio do espírito de Wenceslau e
daquela névoa de poesia e de profundo amor dos animais e das coisas que se desprende
dos seus livros. Mal me salta à ideia que o gatinho, imaculado e esfíngico, poderia
muito bem ser a encarnação da sua alma, eis que uma borboleta surge, voluteando em
roda da lápide. Já não posso duvidar agora – são os espíritos de Wenceslau e Ko-Haru
que vieram, neste dia a eles consagrado, gozar a alegria deste sol criador, os verdes
suaves do monte Bizan. Pois não disse ele: «pode bem acontecer que o espírito não
suba, antes paire sobre a terra e desça a vir poisar, como um pequenino insecto guloso,
(...) sobre as coisas que amou»?
Ao fitar longo tempo a pedra exótica, gravada de sibilinos caracteres, abala-me um
sentimento de profunda estranheza. Interno-me numa floresta de símbolos indecifráveis,
de cintilações que cegam para talvez abrir os olhos a outra luz; pressinto que este
deslumbramento cabe noutras palavras, que não são nossas. Compreendi então
claramente que Wenceslau não morreu inutilmente aqui entre estrangeiros. O seu
espírito inspira a bondade e a compreensão humana com que os japoneses me
agasalharam e recebem quem vem de Portugal. Pela primeira vez se rompeu o muro que
ódios de religião e de raça e a incompreensão levantavam. O anátema de Kipling, East
is East and West is West – nunca o Oriente e o Ocidente se encontrarão – foi Wenceslau
de Moraes, que mais sofreu com ele, o primeiro a derrubá-lo. Semearam amor os seus
livros, todos cheios de amor por esta terra gentil e formosa, onde alegremente se canta
aos mortos e as virgens, em longas túnicas brancas e vermelhas, dançam em louvor aos
deuses.
A cerimónia budista vai começar. Dirijo-me ao templo, acolho-me às suas sombras
calmas, perfumadas de incenso.
O bonzo, de joelhos, velho, calvo, de rosto lavrado pela meditação e pelo desgosto
de contemplar os erros dos homens, veste um rico manto de seda cor de violeta e, sobre
este, uma túnica fina de seda amarela. A gente recolhe-se ajoelhada, à volta dele. Muitas
das pessoas da solenidade da manhã – autoridades, intelectuais de Tokushima, alguns
que conheceram Moraes. Além, atrasado, a correr no átrio do templo, vem um japonês
alto, de fino quimono de rica seda escura, os pés nus nas geta de madeira nova; é um
poeta de Tokushima conhecido em todo o Japão.
Os fumos do incenso enchem o ar quente dum perfume baço de misticismo
oriental. O bonzo recita a meia voz, numa plangência monótona e pastosa, os sagrados
sutras – namyo horen gekyo, namyo horen gekyo, namyo horen gekyo, namyo... que
repetido mil vezes tem o condão de trazer até nós a presença do espírito invocado. A
entoação é cada vez mais profunda e sibilina; tem nas modulações lentas e grossas o
poder de invocação do mundo terrível dos espíritos, que pressentimos ao lado do nosso
mundo, infundindo-nos o terror dos seus mistérios, e no qual os combates do bem e do
mal tomam sentidos temerosos e obscuros. Por isso estas duas religiões, xintoísmo e
budismo, – uma das apoteoses pagãs das alvoradas e outra dos mistérios da noite da
alma – se completam e são observadas simultaneamente por cada japonês. O bonzo e o
acólito vão entoando, sem parar, a lengalenga, fazendo uma suspensão brusca, quando
se lhes acaba o fôlego, para inspirar ruidosamente. É agora o momento de cada um dos
circunstantes se levantar e ir queimar incenso, três vezes, em frente do altar do Buda.
Ao lado da grande imagem doirada do Buda, há frutos, flores de papel, pingentes,
escritos, e uma confusa e rica exibição de símbolos, caixinhas, papéis, tabuinhas com
inscrições, objectos indescritíveis de cobre doirado velho. Chegou a minha vez. Ajoelho
em frente do altar, faço a minha vénia e queimo três vezes incenso. Quando levanto os
olhos para o altar, vejo, pela primeira vez, o retrato de Wenceslau, velho, vestido de
quimono e haori escuros que lhe chegam aos pés, longas barbas alvas, os lábios
entreabertos num impenetrável sorriso japonês. Apossa-se de mim uma emoção
extraordinária e funda, sinto-me transportado a um mundo ignoto em que o meu espírito
comunga, em admiração e afecto a Wenceslau, confiando-me a ele, à sua sabedoria, à
sua protecção, nesta contra-corrente de sentimentos os mais estranhos, em que me
confundo e extravio; ora o sinto meu, português, do meu sangue e da minha língua, ora
o sinto estrangeiro e me perco, desatinado, na espessura de ritos e secretos símbolos, no
canto litúrgico cujos sentidos não penetro, numa atmosfera densa de mistério que me
fascina e me transporta.
Foi este o 26º serviço budista em sufrágio da alma de Wenceslau de Moraes, que
no seu testamento dispôs que queria ser cremado e enterrado segundo os ritos budistas,
e que desejava que as suas cinzas fossem juntas às da sua amada Ko-Haru.
À noite, o Prefeito de Tokushima ofereceu um jantar numa casa de gueixas. Foram
servidos os pratos tradicionais: o nobre peixe cru, ó-sashimi, fritos de tempura e outras
infinitas variedades, em deliciosos pratos minúsculos de porcelana, arranjados
artisticamente na bandeja de charão. Comemos de joelhos, sobre tatami, o chão macio
de palha de arroz.
Lindas moças de Tokushima, esbeltas e ondulosas, vieram servir, sentando-se ao
lado de cada conviva, pródigas em gentilezas e sorrisos, abanando leques de papel.
Depois, as gueixas dançaram, ao som do shamisen, as danças tradicionais de
Tokushima, o bon-odori querido de Wenceslau, entre cujos cantos a pobre Ko-Haru
passou numa maca, tísica, para ir morrer ao hospital Kokawa.
O bon-odori de Tokushima é um bailado elegante e gracioso, os braços movem-se
em ritmos ora espertos, ora demorados, tirando efeito das longas mangas do quimono, e
a música, embora com aquela nostalgia alegre de toda a música japonesa, é mais rápida
e viva. Aqui senti eu o espírito de Wenceslau bem presente, sorrindo à animada e grácil
beleza destas mulheres envoltas em sedas floridas, animadas na coreia, os pezinhos de
tabi alvos de neve e as mãos pequenas, mimosas como pétalas, escandindo os ritmos do
bon-odori. O espírito de Wenceslau está decerto aqui bem presente e divertido, entre a
graça e o encanto destas mulheres suaves que o prenderam a este país de maravilhas.
Não vale a pena ver mais de Tokushima. Percorri as suas ruas tranquilas e verdes,
andei os caminhos profundos da montanha, descansei na fresca soledade dos seus
templos, fui passear os campos esmaltados de folhas de lótus na linda estrada de Naruto,
e vi, tomando chá num velho hotel onde Moraes também se hospedava, a passagem
estreita para o Mar Interior e os pequenos barcos a resfolegar contra a corrente
impetuosa e os perigos dos rochedos submersos.
Tomo o comboio de Tokushima para Takamatsu, o maior porto da ilha de Shikoku.
Na estação, os amigos que fiz vêm despedir-se. Não faltam lá mesmo todas as
criadinhas do Hotel Awa, garridas nos seus novos quimonos de Verão, para me
honrarem, de acordo com a velha cortesia japonesa, com uma vénia profunda, que
retribuo. E veio também aquela rapariga formosa e muito doce, da casa de gueixas,
trazer-me, para que a não esqueça, uma caixinha com dois minúsculos kokeshi,
tradicionais bonecos de madeira, representando um engraçado par de namorados de
Tokushima. Ao receber esta lembrança, adivinho que um sorriso de Wenceslau,
travesso e aprovador, me espreita. Assim se encerra bem a minha visita à terra eleita
onde Moraes viveu e morreu, com o sentimento de que até ao fim lhe fui fiel e me teve
sob a protecção do seu espírito. Assim digo adeus a Tokushima, entre acenos de
sorrisos, a cortesia da gente deste País, a gentileza e a graça infinita da mulher japonesa
– que foi, apenas ela, que enfeitiçou Moraes e aqui lhe guarda o coração, para sempre.
Esta foi a Consagração.
Não a consagração do Escritor, mas a do homem que, ao fim da expurgação
dolorosa, foi capaz de entranhar-se na vida japonesa, cantar os seus mitos, venerar os
seus símbolos e ritos sagrados, amar o seu Povo e os seus deuses. Pelas virtudes da alma
japonesa procurou modelar a sua. Iniciação árdua, peregrinação incerta e longa – ao fim,
aberta, a grande Porta de Diamante.
Esta é a Iluminação, ou satori.
A seita mais intelectual do budismo, zen, ensina assim o caminho para a
Iluminação – primeiro, o corpo em imobilidade absoluta, a mente esvaziada de todo o
pensamento, o lago do coração tornado puro e calmo, atinge-se a serenidade; acima da
serenidade está o nada: o nada onde a renúncia de todas as coisas leva ao conhecimento
da última realidade, o nada que é a virgindade que se oferece à fecundação, a treva que
se abre à luz absoluta, à Verdade.
O vazio é forma, ensina o budismo; a forma de todas as coisas é o nada; e o nada é
a base da Iluminação. Na renúncia a tudo, Wenceslau descobre o Universo – a emoção
virgem de olhar as Árvores, as Flores, as Pedras, os Animais e os Homens, sobretudo os
Pobres, que são aqueles que, vivendo na dor e na precisão de tudo, aprendem o
significado e o valor das Coisas, mesmo as mais desprezadas – um vaso de água, uma
folha seca, uma brasa, um sopro. As coisas falam uma linguagem sua, que só pode ouvir
aquele que sente o amor do Universo, aquele que não lhes tolhe a liberdade, porque as
não deseja possuir, aquele a quem a tristeza das coisas enternece. Poder encontrar
beleza fascinante e rica nas pequenas coisas vulgares é uma fonte inesgotável de prazer.
Se a renúncia à posse das coisas é a chave do verdadeiro contentamento e conduz à
sabedoria, ao contrário, a renúncia aos puros prazeres da alma leva à morte. Viver
assim, liberto, é bom; juntar o seu canto aos hinos do Universo, caminhar entre alegrias
puras. Wenceslau descobriu as relações naturais com as coisas, aprendeu a conviver
com elas. A alma das coisas roça-o, entra na sua alma. Acender o lume para cozinhar o
seu jantar eleva-o quase a um êxtase: é o enlevo de admirar as belas veias do carvão, o
assombro de fazer o fogo, esse acto primitivo e sagrado. Uma flor que se quebra lança-o
em profunda melancolia: é a perda irreparável da beleza. Nos reflexos do incidental e do
pequeno declinava os signos do eterno.
Quando alguém atinge um tal amor da Natureza, qual não será o seu sentimento
pelos Homens, que são dela a parte mais bela e mais nobre?
Todo ele se penetra de «emanações de amor por toda a humanidade, melhor ainda,
por toda a criação».
É o pensamento japonês e a formosura da terra nipónica que abrem o espírito de
Moraes a esta comunhão. Lá, estava o seu caminho para a Beleza. Os grandes espíritos
têm uma intuição profunda para descobrir o lugar e o ambiente propícios ao
florescimento do seu génio. Não há «Oriente» nem «Ocidente», há um homem e um
mundo. Raul Brandão pôde enlevar-se no mesmo milagre diante do bucolismo verde do
seu Minho: «Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram mistério que valesse
o dos quatro palmos do meu quintal.»
Todo o vero Amor, sem deixar de ser ardente, é perspicaz. Por isso, a dor é dele
inseparável. Torna mais urgente o problema da consciência. – Para quê? Vale a pena
viver? Esse prazer pleno de gozar a natureza, e o privilégio de pertencer-lhe, é pago em
sofrimento. Mas o sofrimento natural aperfeiçoa e purifica – é o sofrimento infligido ao
homem pelo homem que é monstruoso e avilta. Se sofrem os animais, se as árvores
secam e caem, é também justo que o homem sofra dessa dor natural que amadurece e
depois destrói. Assim é justa a Morte. O mesmo círculo compreende a Dor e a Alegria;
os dois contrários são o suporte da Vida – da Vida onde compreendida está também a
Morte. Este pensamento de que a Dor não transcende o Homem, não é imposta nem
suportada em nome de Deus, mas é uma provação natural e inevitável no progresso do
Homem, levou Wenceslau a abraçar o Budismo.
Contígua à Vida, ou antes dela sendo parte, a Morte faz-nos esperar a sequência de
outras coisas, desconhecidas e, por isso, fascinantes – é um novo País a descobrir, a
última, a maior Aventura. A aventura do regresso ao seio dos elementos; ao imo da
origem de onde viemos. Wenceslau, que correu mundo só pelo prazer de errar em terras
novas e em novos oceanos, declara-se fascinado por ela. Como Rilke, sorri de
curiosidade ao que vai descobrir na Última Viagem: «como quem, ao fim da festa da
Vida, parte para uma casa estranha e sedutora, escondida entre ramos, ao fundo da
alameda». Não é bem a ideia central rilkiana de que a «grande Morte que cada um traz
em si é o fruto em volta do qual tudo gravita»; mas é a mesma ideia de que a Morte é
uma experiência viva, de que nela se atinge o cimo de todo o conhecimento, a alegria
pura inerente a todas as coisas frementes e virgens.
Wenceslau foi para longe do seu país, deixou os seus familiares, o seu ambiente e
todas aquelas coisas em que se enraíza, com o nosso afecto, o sentimento de
pertencermos a um mundo, a um género de felicidade. Nem sequer uma lareira onde o
velho, ao crepitar das brasas, empresta vida aos vultos do passado. Nada que o distraia
da grande preocupação: descobrir o que é o homem e o que a vida significa. De
propósito, procurou o mais estranho dos ambientes e, aí, as situações mais estranhas;
serve-se de si próprio como de um instrumento para, na conjuntura com o mundo,
conhecer-se. Ir à descoberta de homens, de costumes, de nações é afinal aprofundar o
conhecimento do homem.
Como, hoje, Saint-Exupéry, Wenceslau foi à procura do «mais belo deserto do
mundo». A Europa, cada vez mais absorvida em resolver os problemas do indivíduo,
abandonava o homem. O Ocidente, todo ele respirava ferro e carvão industrial,
entusiasmado com as suas máquinas e as maravilhas da sua ciência que ia
cuidadosamente elaborando os cálculos para a bomba atómica. Desgosto igual ao de
Moraes, veio exprimi-lo mais tarde aquele aviador-aventureiro francês, frustrado por
esta vida seca de autómatos que cada dia mais se irracionaliza entre o metro e o futebol:
«Sinto-me triste pela minha geração que é vazia de toda a substância humana.» «Odeio
a minha época com todas as minhas forças. O homem aqui morre de sede.» «Há um
único problema: restituir aos homens a significação espiritual», grita Saint-Exupéry.
Eram irmãos; a ânsia de amar os homens levava-os ao abandono de tudo.
Wenceslau elegeu Tokushima para ir morrer.
Estranha e perturbante, essa preocupação de alguém escolher o lugar onde vai
morrer. Já não é fácil eleger o espaço de terra em que hão-de decorrer os nossos dias –
acasos do nascimento, da profissão, da família fazem geralmente por nós essa eleição.
Mas a preferência pelo bocado de terra onde para sempre cairemos um dia, a atracção
por certa aldeia, certa rua, por um canto de verdura com árvores e pedras, dir-se-ia
revelar ocultos laços, iluminar, completar o sentido da vida de alguns homens que pelo
mundo passaram envoltos em enigmas, suscitando em cada passo motivos de meditação
e de espanto. Há vidas claras, directas, sem hesitações nem tumultos, exactas e largas
como a planície à luz meridiana; e há vidas perturbadas e sinuosas, ora escuras e
descendo a abismos, perdendo-se entre sombras, ora plenas, radiosas, abertas como um
grande rio que, depois de atravessar sinistras cavernas, surge largo e deslumbrante ao
Sol. Se aquelas podem oferecer um exemplo de felicidade sem sombras, são estas, que
se mancharam na maldição e se purificaram na graça, que alargaram os limites do
Homem e do seu conhecimento de si mesmo.
Está explicado porque Wenceslau foi seduzido pelo Japão: como a vida, a alma
japonesa deliciou o seu espírito, foi a terra da sua Obra e inspirou-lhe um humanismo
novo, frequentemente asiático nas maneiras, mas profundo e universal na essência. O
que é mais difícil de atingir nele, porque vem de mais fundo, é essa torturante atracção
do Longe. Gauguin morre na Polinésia, mas com o pensamento cheio de Paris, ávido da
glória e da consagração dos bulevares. T. E. Lawrence, identificado aos seus beduínos,
ao fim de uma longa adaptação, penetra-se da grande serenidade do deserto, mas nunca
deixa de ser um agente da administração britânica. Lafcadio Hearn tem filhos japoneses,
mas nunca se desliga do seu jornal na América. Wenceslau, esse, quebra todos os laços,
larga a profissão e o escritório consular e, liberto de todas as servidões, entrega-se
inteiro à nova experiência de, numa pequena cidade da Província japonesa, viver e
sentir como um habitante do Universo.
Nenhum país como Portugal e a Inglaterra produziu desses espíritos que, amando o
seu País, sofrem nele insatisfeitos, torturados pela sede do Desconhecido e do estranho,
onde se sentem renascidos e maiores.
No fundo, o mal destes homens é a sua sede de Universo; o seu drama, a ânsia de
Soledade. É a atracção da inteligência pelo Deserto. A Europa é uma leira de terra,
vezes sem conta arada e revolvida, onde o lavrador levanta em cada sulco truncadas
estátuas e mitos. O mundo do Ocidente conhece-se de mais, exprimiu-se de mais,
esgotou a mensagem que trazia e ainda não gestou uma nova. Aqui o Deserto é
impossível. Os montes, as pedras, os troncos velhos, as nuvens, as próprias tonalidades
da luz, falam história, evocam as grandezas e as misérias da herança do espírito, as
ambições e os erros das guerras, o rumor das multidões enganadas, as ficções, os ideais,
os sonhos de arte que se prolongam em nós e nos agitam. Por isso, o homem torturado
pelo anseio de encontrar-se a sós com a sua alma, procura o Longe. O apelo do estranho
e do exótico é uma outra tentação da Soledade: o encontrar-se diante do que é
totalmente diferente de si unifica o homem que, assim íntegro e desnudo, pode sentir-se,
analisar-se, interrogar-se livremente e descobrir os mistérios da sua alma. Além disso,
há um delicioso, secreto prazer no Abandono.
A Soledade é um caminho para a Iluminação, em que o destino de todas as coisas
aparece translúcido. A Iluminação é a comunhão perfeita com a obra da Criação e,
dentro desta, atingir o mais alto grau de amor aos homens. E a prova deste amor é viver
como homem, com ou longe dos outros, banhado no grande destino colectivo como
quem mergulha no largo mar, seguindo à frente dos outros, desbravando caminhos.
Quanto mais à frente, maior a Soledade. «O que o progresso pede inexoravelmente aos
homens e aos continentes é renunciar à sua estranheza, é romper com o mistério.»
«Haverá cada vez menos lugar para os esplendores da natureza», diz hoje o romancista
francês Raymond Gary. Wenceslau, precursor dum novo humanismo, do novo
sentimento do mundo que hoje surge, não se contentou senão com a natureza mais pura,
isto é, mais estranha, mais longe, de esplendores mais vivos, de mais guardados
mistérios. Aí se deu à contemplação interessada do mundo da Criação. A Vida é
sobretudo uma questão de densidade. A contemplação, a meditação de longos anos, no
seu belo deserto, tornaram a sua visão mais aguda, o pensamento mais universal, o seu
coração mais rico do amor-dos-homens. A sua obra é a sua voz – nela condensou a sua
vida, depositou os frutos da sua sabedoria.
Na milenária arte nipónica de atirar ao arco, kyu-jutsu, ensinam os livros, o
archeiro não deve preocupar-se em mirar o alvo, mas apenas em identificar-se de tal
modo com o arco que archeiro e arco se tornem num só; então a flecha desferida irá
cravar-se inevitavelmente no alvo. Wenceslau nunca se preocupou com o êxito dos seus
escritos (a bem dizer ele nunca publicou livros), escrevia o que estava dentro de si tão
natural e sincero como se a sua alma se diluísse na tinta. Como o canteiro que no
granito corta o sonho das suas horas, ele esculpia em palavras que ao futuro entregava
indiferente. Os seus primeiros livros têm por certo esse tom pretensioso e incómodo de
divulgador de exotismos. É a fase de iniciação do homem; o escritor está a exercitar o
seu arco. Até que por fim o homem ascende à Iluminação – e surge o escritor
verdadeiro. Um no outro – tão unificados que os temas, antes de tomarem forma, lhe
circulam no sangue e na alma. – Como o operário que entrega a obra saída do carinho
das suas mãos, sem lhe passar pela mente que é melhor que a dum outro, mas satisfeito
porque ela é o seu trabalho e nasceu do nobre espírito de servir os homens.
(Peregrino, texto integral)
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