IV Reunião Equatorial de Antropologia XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste 04 a 07 de agosto de 2013 Fortaleza-CE Grupo de Trabalho: Antropologia, Etnografias e Educação. Educação Superior Indígena e Novas Relações Sociais Dayane Renata Silva Pereira [email protected] Universidade Federal de Goiás O movimento indígena iniciado nos anos 70 foi marcado por lideranças e representantes de sociedades indígenas de todo o Brasil que passaram a se articular em busca do respeito pela diferença cultural, pelo território e por uma educação diferenciada (FERREIRA, p.95). Esse processo culminou com as conquistas nas conjunturas legais do estado e desde então, vem proporcionando uma realidade diferente para os povos indígenas. Segundo Araújo (2006, p.24), “os direitos dos povos indígenas, hoje fundamentados na Constituição brasileira, foram sendo conquistados e amadurecidos no curso de uma história nem sempre justa ou generosa que, por muito tempo, sequer permitiu aos índios se fazerem ouvir”. O acesso à educação escolar tem sido uma das bandeiras de luta prioritária dos povos indígenas do Brasil nas últimas décadas. A conquista pelo direito a educação diferenciada e intercultural tem instaurado um novo sistema de relações interétnicas entre povos indígenas e a sociedade nacional. Isto pode ser visto em especial na educação superior, onde a relação intercultural vem transformando os professores índios em canais de comunicação entre a escola, à comunidade e os “brancos”. Isto é, a formação de indígenas no ensino superior contribui na autonomia e liderança desses grupos, que pode ser vista na própria condução dos processos de ensino-aprendizagem, como por exemplo a liberdade para a reformulação dos currículos escolares e a construção de uma escola que atenda as especificidades de cada povo. Estamos diante do surgimento de um novo paradigma com base no pluralismo cultural (PIMENTEL, 2009). Tal mudança do paradigma na educação escolar acabou abrindo novas possibilidades de se pensar a escola indígena diferenciada, considerando as especificidades e as diversidades de cada grupo indígena. “Uma educação na qual se aprende “o saber do branco” sem esquecer ou desmerecer “o saber do índio” ( JANUÁRIO, 2002, p. 18). Segundo Souza Lima e Hoffmann (2006), na virada do milênio surge a proposta de formação universitária de indígenas, principalmente em cursos de licenciatura específicos, em decorrência de normas jurídicas relativas à obrigatoriedade da formação superior de professores indígenas, garantido a eles pela Constituição de 1988. A Lei de Diretrizes e Bases (2001) estabelece o apoio técnico e financeiro aos sistemas de ensino para o provimento da educação intercultural às comunidades. Outro marco no estabelecimento legal da educação indígena no país foi a resolução n.º 3 do Conselho Nacional de Educação (CNE) de 1999, que estabeleceu como dever dos estados promover a formação continuada do professorado indígena, bem como instituir e regulamentar a profissionalização e o reconhecimento próprio do magistério indígena. Pelo Plano Nacional de Educação (Lei n.º 10.172 de 09 de Janeiro de 2001), por sua vez, estabeleceu em sua meta n.º 17 a formação de professores indígenas em nível superior, através da colaboração entre universidades e instituições de nível equivalente. Nesse novo cenário legal, os projetos educacionais de ensino superior para povos indígenas estão se desenvolvendo de forma mais significativa no país e traz em si uma nova relação com suas línguas, suas práticas culturais e seus lugares de pertencimento étnico. Para os índios, a educação colonialista deve ser desconstruída e assim, consolidada uma educação escolar indígena diferenciada, específica, intercultural e bilíngue com formação de professores indígenas ativos e qualificados. Como afirma o estudante indígena Fabinho Tapirapé (Licenciatura Intercultural – UFG) “Estamos sempre em busca de informações, para ter domínio do que aprendemos, fortalecendo o conhecimento para defender nossa cultura” (2012). Surgem nesse movimento, novas iniciativas das universidades estaduais e federais do país possibilitam um diálogo com os conhecimentos tradicionais das realidades socioculturais, políticas e regionais dos povos indígenas com as diversas interfaces culturais por meio da interação dos conhecimentos indígenas e acadêmicos. O novo cenário indigenista no Brasil estabelece novas formas de relação interétnica como pode ser observado dentro da universidade. Tais relações não devem ser entendidas como perda da identidade indígena, pois como afirma Carneiro da Cunha (1986), “querer a integração não é, pois, querer assimilar-se: é querer ser ouvido, ter canais reconhecidos de participação no processo político do país, fazendo valer seus direitos específicos”. As iniciativas e ações dos grupos étnicos, por uma integração participativa, são evidencias de que não desejam viver isolados e, por mais que a noção de Reserva Indígena possa nos levar a uma leitura de Confinamento Indígena, as fronteiras são constantemente apagadas nas relações estabelecidas. Para os próprios índios a noção de isolados vem sendo desconstruída, como na fala de Fabinho Tapirapé estudante indígena do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal de Goiás (2012). “Apesar dos problemas que o contato traz como a mudança no costume e do perfil indígena, criou-se um caminho de interação, que retira os índios do contexto de isolados e a partir do contato a cultura fica mais forte, o povo indígena aparece e socializa ativamente sua cultura e sua arte.” Nesses processos de relações de indígenas e “brancos”, surgem demandas das comunidades indígenas tanto por bens de consumo como por novos conhecimentos que se tornam elementos ativos, mesmo que utilizados de maneira particular e específica, no processo histórico dos índios. Continua Fabinho Tapirapé: “Se a era digital chegou pra todo mundo, porque os indígenas também não podem possuir celular ou computador? O acesso é dado a todos, disponível para qualquer um que queira”. (Entrevista, Goiânia, 2012) Os povos indígenas são como qualquer outra sociedade humana, estão sempre em busca de auto superação para melhores condições de vida. O relato de uma professora indígena Krahô, me fez perceber que o trajeto escolar está pautado em vários momentos de superação. Este caso vivenciei em minha primeira pesquisa de campo e também como monitora para o Curso de Licenciatura Indígena/UFG na Aldeia Nova, no estado do Tocantins, em junho de 2013. Ela relatou brevemente sua inserção na educação, “Tudo que aprendi como ler, escrever, dar aulas, aprendi com meu marido que também era professor, resolvi seguir seus passos por ver a necessidade de professores indígenas na minha comunidade”. A trajetória da professora Creuza Prumkwy Krahô, que está formando no curso de Licenciatura Indígena da Universidade Federal de Goiás, representa a trajetória de muitos estudantes indígenas que enfrentam diversas dificuldades para a conclusão de seus estudos. Por exemplo, a falta de auxílio e a distância entre as aldeias e a universidade impossibilita em muitos momentos a permanência desses indígenas nos cursos de formação. Para Creuza Krahô, quando se adquire maior escolaridade, recaí sobre esses indivíduos as responsabilidades de administrar e organizar os projetos políticos de auxilio pois acabam se tornando um representante da comunidade. “Como estou me formando, a SEDUC me repassou o cargo de diretora, agora além das aulas, tomo conta das papeladas da escola, dos outros professores e dos alunos”. Estes professores indígenas acabam tomando para si as mudanças e as realizações de uma escola diferenciada como seu papel de sujeito que age como mediador das relações entre suas comunidades e o estado nas questões educacionais. A professora Creuza Krahô faz uma observação sobre a escola diferenciada: “As escolas dos Kupê fez um arrastão na cultura dos índios, não se via nada de índio nas escolas, agora com a escola diferenciada resgatamos nossa cultura. Acho que isso é muito importante para nós, mas ainda não vi essa escola sendo realizada, para mim ainda falta muito, ainda vejo a escola dos índios cheia de palavras em português, com muita presença dos brancos. Para mim, a escola deveria ser ornamentada de artesanatos indígenas, com o uso dos textos na nossa língua, queria que a minha escola tivesse a cara dos Krahô” A partir dessa experiência, penso que a formação universitária revestese de importância estratégica para a construção de espaços e experiências de convivência intercultural no estabelecimento de novas posições e relações no mundo contemporâneo. Tais relações contribuem para a afirmação das singularidades da identidade indígena, levando a valorização e reprodução coletiva consciente dos valores e conhecimentos tradicionais. Desta forma no livro Cultura com aspas (2009), Carneiro da Cunha explica: “As situações interétnicas não são desprovidas de estrutura. Ao contrário elas se auto-organizam cognitiva e funcionalmente. (...) Numa situação interétnica são as próprias sociedades como um todo que constituem as unidades da estrutura interétnica, constituindo-se assim em grupos étnicos. Estes são elementos constitutivos daquela e dela derivam seu sentido. Segue-se que traços que derivava de sua posição num esquema cultural interno passam a ganhar novo significado como elementos de contraste interétnico.” Sahlins (1997) evidencia que essa autoconsciência cultural é característica do fim do séc. XX, conjugado a exigências políticas de um espaço indígena dentro das sociedades. Trata-se da desconstrução do antigo panorama histórico que dá lugar a um protagonismo exercido hoje amplamente pelos povos indígenas. (ARAÚJO, 2006). O protagonismo indígena revela uma sociedade que participa e articula ações em prol de sua tradição e da efetivação de projetos futuros, bem como utiliza as relações para fins de mudança política, cultural e social. Portanto as mudanças nas relações com a sociedade nacional é, principalmente, produto de suas agências. “Os povos indígenas apesar de estarem vestidos, usando computador, celular e morar na cidade, não transforma o índio em branco. Apesar de falar português tenho minha língua própria e minha cultura.” Fala de Fabinho Tapirapé (2012). Tal afirmação do estudante indígena não deve ser confundida em dissolver-se no todo, o que se pretende, e que se constitui em questão essencial, é ser reconhecido e aceito em suas diferenças. Portanto, apesar de populações indígenas participarem do “sistema mundial”, conferem a essa participação significados e valores muito diferentes do que aqueles da lógica de mercado e muito mais condizente com suas tradições. (TASSINARI, 2001,p.53) A esse respeito à presença de povos indígenas no ensino superior, ajuda a pensar a elaboração dos projetos de educação específico e intercultural no Brasil, que buscam desenvolver um modelo de formação de professores indígenas que valorizem e reafirmem o saber da tradição. Desta forma prioriza o conhecimento de que são portadores, de maneira que estabeleça a relação entre saber tradicional e saber científico. O governo desenvolveu a partir de 2005 a abertura de editais para a promoção da educação superior indígena específica. As primeiras universidades a criar de forma autônoma a licenciatura Intercultural Indígena, foram a Universidade Estadual do Mato Grosso – UNEMAT e o núcleo Insikiran na Universidade Federal de Roraima –UFRR. A criação desses cursos se deram, sobretudo, pelo auxílio da FUNAI, por meio de um dos seus núcleos implementadores de ações, voltados exatamente para a educação escolar indígena. Segundo pesquisa realizada por Paladino e Almeida (2012, p. 116) no final do ano de 2010, estavam em andamento no país 24 licenciaturas interculturais para indígenas, coordenadas por 23 Instituições de Ensino Superior localizadas em 17 estados, sendo 17 das licenciaturas coordenadas por universidades federais e sete por universidades estaduais, ofertando um total de 2.781 vagas. Essas instituições são: Universidade Federal de Roraima; Universidade Federal de Minas Gerais; Universidade Federal de Grande Dourados; Universidade Federal do Mato Grosso do Sul; Universidade Federal de Goiás e Universidade Federal de Tocantins; Universidade Federal de Pernambuco; Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia; Universidade Federal do Amapá; Universidade Federal do Ceará; Universidade Federal do Amazonas; Instituto Federal do Amazonas; Universidade Federal do Acre; Universidade Federal de Rondônia; Universidade Federal de Campina Grande; Universidade Federal de Santa Catarina; Universidade Federal do Espírito Santo; Universidade Estadual do Mato Grosso; Universidade Estadual do Amazonas; Universidade Estadual da Bahia; Universidade de São Paulo; Universidade Estadual de Alagoas; e Universidade Estadual do Ceará. Dados da Coordenação Geral de Educação da Funai, os cursos de licenciatura são os que contam com o maior número de alunos indígenas matriculados, seguido pelos cursos Normal Superior, Pedagogia e Direito. Tive oportunidade de entrar em contato com o núcleo Takinahaky, da Universidade Federal de Goiás, como participante e monitora do curso em Licenciatura Intercultural de Formação de Professores Indígenas. A criação do curso de licenciatura indígena, surgiu da solicitação de algumas comunidades indígenas à universidade, visto que a Universidade Federal de Goiás possui inúmeras pesquisas antropológicas, linguísticas e históricas sobre o tema. Sua proposta se direciona a inclusão social, melhoria de vida dos índios e criação de escolas autônomas e geridas nas próprias aldeias, permitindo maior integração entre as sociedades indígenas e não indígenas. Na fundação do curso, no ano de 2007, sua ex coordenadora Prof.ª Dr.ª Maria do Socorro Pimentel da Silva, da Faculdade de Letras /UFG, em entrevista, afirmou que o principal objetivo dessa iniciativa é realmente a inclusão social. “Este não é um projeto de integração, mas de inclusão social baseado no diálogo entre as sociedades indígenas e as restantes.” (Jornal UFG, 2006). Atualmente o Núcleo Takinhakỹ é coordenado pela Prof.ª Drª Mônica Veloso, da FL/UFG. Hoje são dezesseis etnias, participando do Curso de Formação de Professores Indígenas na Universidade Federal de Goiás, são eles: Povo Apinajé, Povo Canela, Povo Gavião, Povo Guajajara, Povo Javaé, Povo Kamaiurá, Povo Karajá, Povo Karajá-Xambioá, Povo Krahô, Povo Krikati, Povo Tapirapé, Povo Tapuio, Povo Xacriabá, Povo Xavante, Povo Xerente. O curso tem como proposta trabalhar em conjunto com esses povos, dando-lhes a autonomia de definir ações de defesa de seus direitos, adotar políticas de manutenção de suas línguas e cultura, de suas terras e traçarem políticas de desenvolvimento sustentável, que poderia contribuir para a autonomia dos povos indígenas. A prioridade, para a formação na licenciatura, é pelo professor/pesquisador atuante em áreas indígenas e pelos que tenham experiência com educação escolar indígena. As etapas de aula na Universidade Federal de Goiás ocorrem no período de férias, para que não comprometa o período de aulas das escolas indígenas, já as etapas nas aldeias ocorrem conforme a organização dos grupos indígenas. O curso de licenciatura, não trabalha com o conceito de disciplinas, o principio do curso está na formação transdisciplinar e intercultural dos processos educacionais. Ou seja, a base dessa educação intercultural e transdisciplinar está no diálogo entre as culturas e o intercâmbio positivo e enriquecedor entre as diversas áreas do saber, sem que uma se sobreponha em relação à outra. Assim afirma Pimentel (2009) “(A licenciatura) privilegia a integração de áreas de conhecimento, de metodologias, de significados do saber, que procura superar a hierarquização entre saberes acadêmicos”. Pimentel (2009) afirma que a Educação Intercultural, está centrada no paradigma do conhecimento do outro, de aprender a viver juntos e de aceitar a riqueza das línguas e da diversidade cultural dos grupos. Nesse sentido, as áreas de conhecimento das diferentes ciências estarão relacionadas umas com a outras, sem separar, por exemplo, matemática de geografia, língua de história, literatura de arte, transdisciplinaridade ou e a seja, nessa concepção interculturalidade a acontecerão normalmente. Tampouco estarão separados os conhecimentos produzidos pelos indígenas daqueles considerados universais, a pesquisa do processo do ensino (Pimentel, 2009). O Núcleo de Formação Superior Indígena Takinahakỹ foi estruturado da seguinte maneira: constitui-se de uma matriz básica e de três matrizes de formação especifica (Ciência da Natureza, Ciência da Cultura, Ciência da linguagem). Essas matrizes são compostas de temas contextuais. É realizado um estudo introdutório durante dois anos (matriz básica), para que desenvolva a capacidade de elaboração e desenvolvimento de projetos pedagógicos, de regimentos e de calendários escolares e elaboração de material didático. Depois da matriz básica o professor indígena opta por uma das áreas da matriz especifica para se especializar. São três anos para a produção de um projeto que envolva a comunidade e o conhecimento tradicional de seu povo. O professor/pesquisador desenvolverá seus trabalhos de acordo com a linha de pesquisa dos eixos temáticos, a saber: 1) Educação Indígena e Educação Escolar; 2) Meio Ambiente e Auto-sustentação; 3) Políticas linguísticas e Ensino Bilingue; 4) Arte, Tradição e Mercado e 5) Políticas Indigenistas, Interculturalidade e Movimentos Indígenas. A produção dos trabalhos acadêmicos passa a ser contextualizado no contato com a comunidade, com amplas possibilidades de realização dos projetos. Os projetos sociais, geralmente, abordam o contexto social, político, ambiental ou cultural e indicam formas de reorientação desses contextos em benefício do bem viver dos seus grupos. Em palestra no PPGAS, o professor indígena, Wakuha Karajá, formado pela licenciatura intercultural afirma que “Os projetos surgem como um retorno à cultura, as pesquisas desenvolvem uma autoreflexão acerca do que se vive” (2013). Já a ideia de estágio supervisionado, geralmente desenvolvido na escola que os professores lecionam, tem como meta a reflexão da prática pedagógica em sala de aula. E3ssa prática possibilita ao professor indígena repensar como construir a educação escolar diferenciada. Esses projetos irão orientar algumas das atividades de prática de ensino e estágio, de modo que também nesses momentos a atuação do estudante indígena seja caracterizada pela interação entre a sua atividade enquanto docente e as suas ações enquanto membro da comunidade. (UFG, 2013) Ao fim de todas as etapas do curso de licenciatura indígena, muitos estudantes acreditam que a produção acadêmica possibilita documentação dos saberes, um registro da história do povo. uma Para Gilson Tapirapé, estudante da Licenciatura Indígena, “o índio que se transforma para transformar o meio social”. Nessa perspectiva constitui-se um processo que tem como ponto de partida a perspectiva das comunidades indígenas, na busca pela afirmação étnica de cada povo, valorizando as línguas, os costumes e as tradições. Para fins de exemplificação, retomo o trabalho de campo que realizei na Aldeia Nova (2013), para apresentar a visão de Creuza Krahô, estudante indígena, acerca dos trabalhos finais. De acordo com ela a escrita é muito importante para os povos indígenas. “Hoje estou escrevendo o meu Projeto Extra Escolar, contando para todo mundo o que o meu povo tem como tradição cultural. O meu trabalho é com o Resguarde. Meu povo não tem mais praticado esse costume, então eu pensei que escrevendo um projeto sobre isso, a comunidade pudesse voltar a praticar. Sei que poucos praticam esse costume. Mas eu sei que esse costume não estará perdido. Esse trabalho ficará para as crianças, pois mesmo que eu venha a morrer, as crianças poderão ler meu trabalho e praticar a tradição dos nossos antepassados.” Daniel Munduruku indígena escritor defende a autoria indígena. Para Munduruku a escrita fortalece pessoas, povos e movimentos, pois traz em si muito mais que uma leitura do mundo conhecido. Traz também em si todos os mundos: “o mundo dos espíritos, dos seres da floresta, dos encantados, das visagens visagentas, dos desencantados”. “A escrita vai além da compreensão humana, pois ela é trazida de dentro do homem e da mulher indígena”. A autoria indígena é, sem dúvida, uma afirmação da cidadania indígena e do respeito pela diferença. É a partir de uma auto afirmação étnica e participativa que os povos indígenas formam espaços de construção e ressignificação dos saberes, pois a educação e o domínio da escrita possibilita que grupos indígenas transformemse em autores dos seus próprios processos históricos e dos seus modos de vida. A escrita, para a sociedade nacional, é um fator importante para a documentação do saber, portanto a escrita dos povos indígenas permite uma oportunidade de conhecer os conceitos, as suas histórias e suas representações culturais além de se reconhecerem como contadores de suas próprias histórias. Nessa direção, surge a necessidade de cultivar as relações interétnicas de modo que eles se afirmem sujeitos intelectuais marcando sua presença no mundo do “branco”. Para Fabinho Tapirapé “Admito que sou índio, admito que os outros falem que os índios não deveriam perder sua cultura, mas os outros tem que conhecer minha história, ver que também posso ser universitário, trabalhador e ajudar a minha cultura a partir do contato em vez de criticarem como eu vivo” ( 2012). A demanda estudantil indígena provém de razões intrínsecas ao processo histórico desses povos, pois retira-os da posição de marginalizados e limitados socialmente e afirma-os como indivíduos ativos no exercício da cidadania com maior participação política na vida do país. Em geral suas lutas dizem respeito ao acesso às políticas públicas e acaba com a ideia de tutela, antes responsabilidade de alguns órgãos que representavam os povos indígenas nas relações com o Estado. A ideia de tutela é apagada do pensamento indígena quando esses enxergam a possibilidade da auto representatividade, do auto governo de suas comunidades e de negociarem a melhor forma para viverem de acordo com suas pautas culturais, reivindicando assim sua capacidade integral como sujeito histórico. Segundo uma pesquisa realizada por Peter Gow (1991) antropólogo que pesquisou os Piro do Baixo Urubamba, à medida que os nativos se posicionam diante da sua história, eles tomam consciência da sua cultura e tornam comunicáveis suas significações, valores, ideais e efetivamente criam sua própria consciência histórica. O antropólogo e indígena Gersem José dos Santos Luciano (Baniwa), optou em seguir a trajetória acadêmica, melhorando sua formação intelectual e, assim, possibilitando diálogos constantes e conquistas no processo histórico do seu povo. Em sua tese apresentada ao Programa de Antropologia da Universidade de Brasília (2011), Baniwa relata “Logo percebi que as conquistas do mundo branco não eram para todos e nem de todos, mas daqueles que haviam estudado muito”. Conforme estudam mais e adquirem mais conhecimento, é possível assumir novas posições na sociedade, isto é, posições de representatividade e poder em defesa de seu povo. Assim continua Gersem Baniwa; “Percebi também que para melhorar minha contribuição com a luta dos povos indígenas precisava adquirir, além de novos e maiores domínios conceituais e técnicos do mundo branco, a força simbólica do status acadêmico.” Muitos jovens indígenas saem de suas casas, suas comunidades e muitas vezes de suas cidades para aumentar o nível de escolarização, para ali se formarem enfermeiros, advogados, antropólogos, escritores, técnicos agrícolas e professores de forma que atendam as necessidades básicas de seus povos. Esses indígenas retornam ao seu lar com a ideia de que há uma necessidade de descontruir as fronteiras entre indígena e sociedade nacional, que a idéia de isolacionismo já está ultrapassada. É tempo de se estabelecer um espaço de fluxo e de trocas de saber, garantindo uma permanente ressignificação de conhecimentos e formas de pensar a diversidade no campo interétnico. Segundo Fernando Xerente, estudante do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena, “vivemos misturados, não existe barreiras para vivermos com os outros, também fazemos parte da sociedade e temos nossos direitos. Direito de ter acesso, direito a possuir computador, a se vestir e chegar à universidade”. Hoje, são os índios que perguntam, os índios que aprendem, os índios que atuam em diferentes áreas como a educação, saúde, meio ambiente e agricultura. Para Baniwa para entender como funciona o mundo branco, em suas diferentes dimensões e intenções (exterior e interior) é necessário “dominar o mundo do jogo de palavras, ideias e intenções”. Haja vista que o anseio dos povos indígenas pela vida moderna, transita por um domínio maior dos bens e serviços da ciência, da tecnologia e de outros valores de outras culturas, de maneira que neste trânsito possam aperfeiçoar e melhorar a capacidade das tradições em satisfazer as demandas e necessidades atuais. Diante dos fatos apresentados não podemos esperar por políticas homogeneizadoras da cultura alheia. O que se busca é um sistema que reconheça a diversidade cultural dos povos do Brasil e crie mais canais de diálogo e troca entre as diferentes culturas. Os povos indígenas aparecem como habilidosos indivíduos que manuseiam as transformações culturais e a política de manutenção e afirmação étnica. O fundamental, portanto, é considerar-se e ser considerado índio; para isso, pouco importa o fato de usar relógio e roupas, ou falar português. Terence Turner (2008) fornece um bom exemplo disso em seu trabalho junto à população Kayapó de Gorotire/Pará. Para ele, Os Kayapó sofreram uma revolução de consciência, agora eles estavam envolvidos ativamente nas políticas de afirmação da sua cultura e adquiriram o controle das transformações de sua própria história. Turner escreve “ouvi homens e mulheres comuns, dizendo ter como motivação fundamental de sua luta política a manutenção de seu modo de vida cultural e a defesa deste contra pressões de assimilação e destruição por parte da sociedade nacional” (SAHLINS apud TURNER,1997, p.125) Para muitos antropólogos o desafio dos grupos indígenas não está somente na efetivação dos direitos indígenas no âmbito educacional diferenciado, mas também por um maior acesso a outras áreas do conhecimento que permutam o ideário indígena como áreas estratégicas de conhecimento, como é o caso da medicina, direito, engenharia florestal/ambiental (ALMEIDA E PALADINO, 2012). Em muitos casos o acesso a outras áreas ocorre através de ações afirmativas que compreendem a garantia de vagas em cursos de graduação regulares em universidades públicas. Segundo Paladino e Almeida “O cenário atual conta com mais de 70 universidades com programas de acesso diferenciado para povos indígenas por reserva de vagas, acréscimo de pontos no vestibular ou sistema de vagas suplementares para a inclusão de estudantes indígenas nos cursos regulares.” (p.121). Essas são algumas ações afirmativas de política de inclusão no ensino superior: “Reserva de vagas: a universidade estabelece, em consonância com o total de vacâncias disponíveis em cada curso para o ingresso de alunos, uma percentagem reservada aos indígenas; Vagas suplementares: a universidade oferece vagas a mais, fazendo com que os beneficiados que ingressam por esse meio não disputem as vagas com os que ingressam através do vestibular convencional; Acréscimo de pontos: o estudante indígena realiza o vestibular comum, mas ao resultado que obtém acrescenta-se uma quantidade de pontos determinada pela Instituição de Ensino Superior.” (Almeida e Paladino, 2012, p.121) A implementação dessas ações afirmativas facilita parte do processo de inclusão dos povos históricos nas universidades, em que tanto esses povos são beneficiados uma vez que são contemplados com a maior acessibilidade ao conhecimento, quanto a própria universidade é beneficiada com o enriquecimento de perspectivas e abordagens diferenciadas sobre a realidade, refletindo em novos trabalhos e pesquisas. A inclusão de minorias como negros e indígenas nas universidades, tanto diversifica o cenário da educação superior, como minimiza as distâncias entre os diferentes e desta forma reduz as discriminações sociais. Muitas dessas diferenças já se apresentam nos campos universitários. Por exemplo, muitos estudantes que ingressam nas universidades não são da própria cidade, muitos vem do interior ou mesmo de outros estados em busca de qualificação. Nesse sentido o contexto das diferenças culturais emerge não só no sentido de introduzir povos historicamente discriminados mas também de se perceber que o povo brasileiro é rico em diversidade cultural, tendo em vista as características performáticas e os costumes de indivíduos de Norte ao Sul do país. Cada estado corresponde há uma percepção do meio, do território, da culinária, da vida em comunidade e outros, ou seja, cada meio tem uma maneira particular de expressar sua maneira de ser e estar no mundo. Estamos no campo das relações interculturais, desse modo a reflexão sobre Interculturalidade, utilizado nos cursos indígenas, apresenta outras reflexões acerca do tema, como as feitas pelos autores, Catherine Walsh (2002) e Walter Mignolo (1999), que abordam de modo mais complexo o conceito de interculturalidade. Estes autores focam seus trabalhos na ideia da “descolonização do saber”, isto é, para eles, um povo não consegue sua autonomia apenas por meio do ato político de separação do Estado colonizador. É fundamental também a elaboração de outra ideologia capaz de subverter as formas de pensar e agir que esse Estado impõe. (PALADINO E ALMEIDA, 2012). Em síntese, buscou-se com esse texto fornecer um quadro do atual dos povos indígenas frente às novas relações interétnicas e o modo como transitam e como definem suas relações a partir do ensino superior. Foi a partir de movimentos históricos de luta dos povos indígenas, que foi possível a criação de programas de educação especifica e intercultural. Muitos programas de licenciatura intercultural ainda estão em construção e reformulando suas matrizes curriculares para atender as especificidades dos povos indígenas. Espera-se que estes programas de ensino superior possam cumprir com as demandas da sociedade Indígena por uma Educação Escolar Diferenciada de qualidade, além de possibilitar uma autonomia intelectual que lhes dê a possibilidade de transitar tanto entre os saberes científicos quanto os saberes da cultura. Cria-se novas relações interétnicas para um efetivo compartilhamento de saberes, neste viés Daniel Munduruku expõe seu olhar sobre esse espaço. Muitos desses programas de educação indígena têm partido do princípio que é preciso fortalecer a autoria como uma forma de fortalecer também a identidade étnica dos povos que atendem. Isso é muito positivo se a gente entender que a autoria, aqui defendida, signifique que estes povos possam num futuro próximo, criar sua própria pedagogia, seu modo único de trafegar pelo universo das letras e do letramento.(...)Se estes grupos de fato acreditarem que estão criando pessoas para a autonomia intelectual e se abrirem espaço na sociedade para a livre expressão deste pensamento, então eles estarão, realmente, fortalecendo a autoria e apresentando um caminho novo para as manifestações culturais, artísticas, políticas, lúdicas e religiosas dos nossos povos indígenas. Caso contrário, estarão levando nossa gente para o mesmo buraco ocidental de antes. (Munduruku) Os povos indígenas, assim como qualquer sociedade, precisam e buscam mais conhecimento que o qualifique como indivíduos, preparando-os para atuarem socialmente em prol de seu povo e de seu tempo. Portanto, espera-se que este trabalho traga uma reflexão acerca do modo que o Ensino Superior tem contribuído para o ativismo dos povos indígenas, em especial como a Universidade Federal de Goiás vem desenvolvendo sua proposta de licenciatura indígena, pois o objetivo não deve ser apenas o enquadramento desses grupos e sim a real contribuição para uma formação de qualidade. Referência Bibliográfica ARAÚJO, Ana Valéria et al. Povos indígenas e a lei dos “brancos”: o direito à diferença. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. Via dos Saberes, nº 3.Carneiro da Cunha, Manuela. 2009. "Cultura com aspas." São Paulo: Cosac e Naif . CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1986. Antropologia do Brasil. Critérios de indianidade ou lições de antropofagia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. ________________________, (Org). 1992. História dos índios no Brasil. São Paulo. 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