IV Reunião Equatorial de Antropologia
XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste
04 a 07 de agosto de 2013
Fortaleza-CE
Grupo de Trabalho: Antropologia, Etnografias e Educação.
Educação Superior Indígena e Novas Relações Sociais
Dayane Renata Silva Pereira
[email protected]
Universidade Federal de Goiás
O movimento indígena iniciado nos anos 70 foi marcado por lideranças e
representantes de sociedades indígenas de todo o Brasil que passaram a se
articular em busca do respeito pela diferença cultural, pelo território e por uma
educação diferenciada (FERREIRA, p.95). Esse processo culminou com as
conquistas
nas
conjunturas
legais
do
estado
e
desde
então,
vem
proporcionando uma realidade diferente para os povos indígenas. Segundo
Araújo (2006, p.24), “os direitos dos povos indígenas, hoje fundamentados na
Constituição brasileira, foram sendo conquistados e amadurecidos no curso de
uma história nem sempre justa ou generosa que, por muito tempo, sequer
permitiu aos índios se fazerem ouvir”.
O acesso à educação escolar tem sido uma das bandeiras de luta
prioritária dos povos indígenas do Brasil nas últimas décadas. A conquista pelo
direito a educação diferenciada e intercultural tem instaurado um novo sistema
de relações interétnicas entre povos indígenas e a sociedade nacional. Isto
pode ser visto em especial na educação superior, onde a relação intercultural
vem transformando os professores índios em canais de comunicação entre a
escola, à comunidade e os “brancos”. Isto é, a formação de indígenas no
ensino superior contribui na autonomia e liderança desses grupos, que pode
ser vista na própria condução dos processos de ensino-aprendizagem, como
por exemplo a liberdade para a reformulação dos currículos escolares e a
construção de uma escola que atenda as especificidades de cada povo.
Estamos diante do surgimento de um novo paradigma com base no
pluralismo cultural (PIMENTEL, 2009). Tal mudança do paradigma na
educação escolar acabou abrindo novas possibilidades de se pensar a escola
indígena diferenciada, considerando as especificidades e as diversidades de
cada grupo indígena. “Uma educação na qual se aprende “o saber do branco”
sem esquecer ou desmerecer “o saber do índio” ( JANUÁRIO, 2002, p. 18).
Segundo Souza Lima e Hoffmann (2006), na virada do milênio surge a
proposta de formação universitária de indígenas, principalmente em cursos de
licenciatura específicos, em decorrência de normas jurídicas relativas à
obrigatoriedade da formação superior de professores indígenas, garantido a
eles pela Constituição de 1988. A Lei de Diretrizes e Bases (2001) estabelece o
apoio técnico e financeiro aos sistemas de ensino para o provimento da
educação intercultural às comunidades. Outro marco no estabelecimento legal
da educação indígena no país foi a resolução n.º 3 do Conselho Nacional de
Educação (CNE) de 1999, que estabeleceu como dever dos estados promover
a formação continuada do professorado indígena, bem como instituir e
regulamentar a profissionalização e o reconhecimento próprio do magistério
indígena. Pelo Plano Nacional de Educação (Lei n.º 10.172 de 09 de Janeiro de
2001), por sua vez, estabeleceu em sua meta n.º 17 a formação de professores
indígenas em nível superior, através da colaboração entre universidades e
instituições de nível equivalente.
Nesse novo cenário legal, os projetos educacionais de ensino superior
para povos indígenas estão se desenvolvendo de forma mais significativa no
país e traz em si uma nova relação com suas línguas, suas práticas culturais e
seus lugares de pertencimento étnico. Para os índios, a educação colonialista
deve ser desconstruída e assim, consolidada uma educação escolar indígena
diferenciada, específica, intercultural e bilíngue com formação de professores
indígenas ativos e qualificados. Como afirma o estudante indígena Fabinho
Tapirapé (Licenciatura Intercultural – UFG) “Estamos sempre em busca de
informações,
para
ter
domínio
do
que
aprendemos,
fortalecendo
o
conhecimento para defender nossa cultura” (2012).
Surgem nesse movimento, novas iniciativas das universidades estaduais
e federais do país possibilitam um diálogo com os conhecimentos tradicionais
das realidades socioculturais, políticas e regionais dos povos indígenas com as
diversas interfaces culturais por meio da interação dos conhecimentos
indígenas e acadêmicos. O novo cenário indigenista no Brasil estabelece novas
formas de relação interétnica como pode ser observado dentro da
universidade. Tais relações não devem ser entendidas como perda da
identidade indígena, pois como afirma Carneiro da Cunha (1986), “querer a
integração não é, pois, querer assimilar-se: é querer ser ouvido, ter canais
reconhecidos de participação no processo político do país, fazendo valer seus
direitos específicos”. As iniciativas e ações dos grupos étnicos, por uma
integração participativa, são evidencias de que não desejam viver isolados e,
por mais que a noção de Reserva Indígena possa nos levar a uma leitura de
Confinamento Indígena, as fronteiras são constantemente apagadas nas
relações estabelecidas. Para os próprios índios a noção de isolados vem sendo
desconstruída, como na fala de Fabinho Tapirapé estudante indígena do Curso
de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal de Goiás (2012).
“Apesar dos problemas que o contato traz como a mudança no costume e do
perfil indígena, criou-se um caminho de interação, que retira os índios do
contexto de isolados e a partir do contato a cultura fica mais forte, o povo
indígena aparece e socializa ativamente sua cultura e sua arte.”
Nesses processos de relações de indígenas e “brancos”, surgem
demandas das comunidades indígenas tanto por bens de consumo como por
novos conhecimentos que se tornam elementos ativos, mesmo que utilizados
de maneira particular e específica, no processo histórico dos índios. Continua
Fabinho Tapirapé: “Se a era digital chegou pra todo mundo, porque os
indígenas também não podem possuir celular ou computador? O acesso é
dado a todos, disponível para qualquer um que queira”. (Entrevista, Goiânia,
2012)
Os povos indígenas são como qualquer outra sociedade humana, estão
sempre em busca de auto superação para melhores condições de vida. O
relato de uma professora indígena Krahô, me fez perceber que o trajeto escolar
está pautado em vários momentos de superação. Este caso vivenciei em minha
primeira pesquisa de campo e também como monitora para o Curso de
Licenciatura Indígena/UFG na Aldeia Nova, no estado do Tocantins, em junho
de 2013. Ela relatou brevemente sua inserção na educação, “Tudo que aprendi
como ler, escrever, dar aulas, aprendi com meu marido que também era
professor, resolvi seguir seus passos por ver a necessidade de professores
indígenas na minha comunidade”. A trajetória da professora Creuza Prumkwy
Krahô, que está formando no curso de Licenciatura Indígena da Universidade
Federal de Goiás, representa a trajetória de muitos estudantes indígenas que
enfrentam diversas dificuldades para a conclusão de seus estudos. Por
exemplo, a falta de auxílio e a distância entre as aldeias e a universidade
impossibilita em muitos momentos a permanência desses indígenas nos cursos
de formação.
Para Creuza Krahô, quando se adquire maior escolaridade, recaí sobre
esses indivíduos as responsabilidades de administrar e organizar os projetos
políticos de auxilio pois acabam se tornando um representante da comunidade.
“Como estou me formando, a SEDUC me repassou o cargo de diretora, agora
além das aulas, tomo conta das papeladas da escola, dos outros professores e
dos alunos”. Estes professores indígenas acabam tomando para si as
mudanças e as realizações de uma escola diferenciada como seu papel de
sujeito que age como mediador das relações entre suas comunidades e o
estado nas questões educacionais. A professora Creuza Krahô faz uma
observação sobre a escola diferenciada:
“As escolas dos Kupê fez um arrastão na cultura dos índios, não se via
nada de índio nas escolas, agora com a escola diferenciada
resgatamos nossa cultura. Acho que isso é muito importante para nós,
mas ainda não vi essa escola sendo realizada, para mim ainda falta
muito, ainda vejo a escola dos índios cheia de palavras em português,
com muita presença dos brancos. Para mim, a escola deveria ser
ornamentada de artesanatos indígenas, com o uso dos textos na nossa
língua, queria que a minha escola tivesse a cara dos Krahô”
A partir dessa experiência, penso que a formação universitária revestese de importância estratégica para a construção de espaços e experiências de
convivência intercultural no estabelecimento de novas posições e relações no
mundo contemporâneo. Tais relações contribuem para a afirmação das
singularidades da identidade indígena, levando a valorização e reprodução
coletiva consciente dos valores e conhecimentos tradicionais. Desta forma no
livro Cultura com aspas (2009), Carneiro da Cunha explica:
“As situações interétnicas não são desprovidas de estrutura. Ao
contrário elas se auto-organizam cognitiva e funcionalmente. (...) Numa
situação interétnica são as próprias sociedades como um todo que
constituem as unidades da estrutura interétnica, constituindo-se assim
em grupos étnicos. Estes são elementos constitutivos daquela e dela
derivam seu sentido. Segue-se que traços que derivava de sua posição
num esquema cultural interno passam a ganhar novo significado como
elementos de contraste interétnico.”
Sahlins
(1997)
evidencia
que
essa
autoconsciência
cultural
é
característica do fim do séc. XX, conjugado a exigências políticas de um
espaço indígena dentro das sociedades.
Trata-se da desconstrução do antigo panorama histórico que dá lugar a
um protagonismo exercido hoje amplamente pelos povos indígenas. (ARAÚJO,
2006). O protagonismo indígena revela uma sociedade que participa e articula
ações em prol de sua tradição e da efetivação de projetos futuros, bem como
utiliza as relações para fins de mudança política, cultural e social. Portanto as
mudanças nas relações com a sociedade nacional é, principalmente, produto
de suas agências. “Os povos indígenas apesar de estarem vestidos, usando
computador, celular e morar na cidade, não transforma o índio em branco.
Apesar de falar português tenho minha língua própria e minha cultura.” Fala de
Fabinho Tapirapé (2012).
Tal afirmação do estudante indígena não deve ser confundida em
dissolver-se no todo, o que se pretende, e que se constitui em questão
essencial, é ser reconhecido e aceito em suas diferenças. Portanto, apesar de
populações indígenas participarem do “sistema mundial”, conferem a essa
participação significados e valores muito diferentes do que aqueles da lógica de
mercado e muito mais condizente com suas tradições. (TASSINARI, 2001,p.53)
A esse respeito à presença de povos indígenas no ensino superior,
ajuda a pensar a elaboração dos projetos de educação específico e
intercultural no Brasil, que buscam desenvolver um modelo de formação de
professores indígenas que valorizem e reafirmem o saber da tradição. Desta
forma prioriza o conhecimento de que são portadores, de maneira que
estabeleça a relação entre saber tradicional e saber científico.
O governo desenvolveu a partir de 2005 a abertura de editais para a
promoção
da
educação
superior
indígena
específica.
As
primeiras
universidades a criar de forma autônoma a licenciatura Intercultural Indígena,
foram a Universidade Estadual do Mato Grosso – UNEMAT e o núcleo Insikiran
na Universidade Federal de Roraima –UFRR. A criação desses cursos se
deram, sobretudo, pelo auxílio da FUNAI, por meio de um dos seus núcleos
implementadores de ações, voltados exatamente para a educação escolar
indígena. Segundo pesquisa realizada por Paladino e Almeida (2012, p. 116)
no final do ano de 2010, estavam em andamento no país 24 licenciaturas
interculturais para indígenas, coordenadas por 23 Instituições de Ensino
Superior localizadas em 17 estados, sendo 17 das licenciaturas coordenadas
por universidades federais e sete por universidades estaduais, ofertando um
total de 2.781 vagas. Essas instituições são: Universidade Federal de Roraima;
Universidade Federal de Minas Gerais; Universidade Federal de Grande
Dourados; Universidade Federal do Mato Grosso do Sul; Universidade Federal
de Goiás e Universidade Federal de Tocantins; Universidade Federal de
Pernambuco; Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia;
Universidade Federal do Amapá; Universidade Federal do Ceará; Universidade
Federal do Amazonas; Instituto Federal do Amazonas; Universidade Federal do
Acre; Universidade Federal de Rondônia; Universidade Federal de Campina
Grande; Universidade Federal de Santa Catarina; Universidade Federal do
Espírito Santo; Universidade Estadual do Mato Grosso; Universidade Estadual
do Amazonas; Universidade Estadual da Bahia; Universidade de São Paulo;
Universidade Estadual de Alagoas; e Universidade Estadual do Ceará. Dados
da Coordenação Geral de Educação da Funai, os cursos de licenciatura são os
que contam com o maior número de alunos indígenas matriculados, seguido
pelos cursos Normal Superior, Pedagogia e Direito.
Tive oportunidade de entrar em contato com o núcleo Takinahaky, da
Universidade Federal de Goiás, como participante e monitora do curso em
Licenciatura Intercultural de Formação de Professores Indígenas. A criação do
curso de licenciatura indígena, surgiu da solicitação de algumas comunidades
indígenas à universidade, visto que a Universidade Federal de Goiás possui
inúmeras pesquisas antropológicas, linguísticas e históricas sobre o tema. Sua
proposta se direciona a inclusão social, melhoria de vida dos índios e criação
de escolas autônomas e geridas nas próprias aldeias, permitindo maior
integração entre as sociedades indígenas e não indígenas.
Na fundação do curso, no ano de 2007, sua ex coordenadora Prof.ª Dr.ª
Maria do Socorro Pimentel da Silva, da Faculdade de Letras /UFG, em
entrevista, afirmou que o principal objetivo dessa iniciativa é realmente a
inclusão social. “Este não é um projeto de integração, mas de inclusão social
baseado no diálogo entre as sociedades indígenas e as restantes.” (Jornal
UFG, 2006). Atualmente o Núcleo Takinhakỹ é coordenado pela Prof.ª Drª
Mônica Veloso, da FL/UFG.
Hoje são dezesseis etnias, participando do Curso de Formação de
Professores Indígenas na Universidade Federal de Goiás, são eles: Povo
Apinajé, Povo Canela, Povo Gavião, Povo Guajajara, Povo Javaé, Povo
Kamaiurá, Povo Karajá, Povo Karajá-Xambioá, Povo Krahô, Povo Krikati, Povo
Tapirapé, Povo Tapuio, Povo Xacriabá, Povo Xavante, Povo Xerente. O curso
tem como proposta trabalhar em conjunto com esses povos, dando-lhes a
autonomia de definir ações de defesa de seus direitos, adotar políticas de
manutenção de suas línguas e cultura, de suas terras e traçarem políticas de
desenvolvimento sustentável, que poderia contribuir para a autonomia dos
povos indígenas.
A
prioridade,
para
a
formação
na
licenciatura,
é
pelo
professor/pesquisador atuante em áreas indígenas e pelos que tenham
experiência com educação escolar indígena. As etapas de aula na
Universidade Federal de Goiás ocorrem no período de férias, para que não
comprometa o período de aulas das escolas indígenas, já as etapas nas
aldeias ocorrem conforme a organização dos grupos indígenas.
O curso de licenciatura, não trabalha com o conceito de disciplinas, o
principio do curso está na formação transdisciplinar e intercultural dos
processos educacionais.
Ou seja, a base dessa educação intercultural e
transdisciplinar está no diálogo entre as culturas e o intercâmbio positivo e
enriquecedor entre as diversas áreas do saber, sem que uma se sobreponha
em relação à outra. Assim afirma Pimentel (2009) “(A licenciatura) privilegia a
integração de áreas de conhecimento, de metodologias, de significados do
saber, que procura superar a hierarquização entre saberes acadêmicos”.
Pimentel (2009) afirma que a Educação Intercultural, está centrada no
paradigma do conhecimento do outro, de aprender a viver juntos e de aceitar a
riqueza das línguas e da diversidade cultural dos grupos.
Nesse sentido, as áreas de conhecimento das diferentes
ciências estarão relacionadas umas com a outras, sem separar,
por exemplo, matemática de geografia, língua de história,
literatura
de
arte,
transdisciplinaridade
ou
e
a
seja,
nessa
concepção
interculturalidade
a
acontecerão
normalmente. Tampouco estarão separados os conhecimentos
produzidos pelos indígenas daqueles considerados universais,
a pesquisa do processo do ensino (Pimentel, 2009).
O Núcleo de Formação Superior Indígena Takinahakỹ foi estruturado da
seguinte maneira: constitui-se de uma matriz básica e de três matrizes de
formação especifica (Ciência da Natureza, Ciência da Cultura, Ciência da
linguagem). Essas matrizes são compostas de temas contextuais. É realizado
um estudo introdutório durante dois anos (matriz básica), para que desenvolva
a capacidade de elaboração e desenvolvimento de projetos pedagógicos, de
regimentos e de calendários escolares e elaboração de material didático.
Depois da matriz básica o professor indígena opta por uma das áreas da matriz
especifica para se especializar. São três anos para a produção de um projeto
que envolva a comunidade e o conhecimento tradicional de seu povo.
O professor/pesquisador desenvolverá seus trabalhos de acordo com a
linha de pesquisa dos eixos temáticos, a saber: 1) Educação Indígena e
Educação Escolar; 2) Meio Ambiente e Auto-sustentação; 3) Políticas
linguísticas e Ensino Bilingue; 4) Arte, Tradição e Mercado e 5) Políticas
Indigenistas, Interculturalidade e Movimentos Indígenas.
A produção dos trabalhos acadêmicos passa a ser contextualizado no
contato com a comunidade, com amplas possibilidades de realização dos
projetos. Os projetos sociais, geralmente, abordam o contexto social, político,
ambiental ou cultural e indicam formas de reorientação desses contextos em
benefício do bem viver dos seus grupos. Em palestra no PPGAS, o professor
indígena, Wakuha Karajá, formado pela licenciatura intercultural afirma que “Os
projetos surgem como um retorno à cultura, as pesquisas desenvolvem uma
autoreflexão acerca do que se vive” (2013). Já a ideia de estágio
supervisionado, geralmente desenvolvido na escola que os professores
lecionam, tem como meta a reflexão da prática pedagógica em sala de aula.
E3ssa prática possibilita ao professor indígena repensar como construir a
educação escolar diferenciada. Esses projetos irão orientar algumas das
atividades de prática de ensino e estágio, de modo que também nesses
momentos a atuação do estudante indígena seja caracterizada pela interação
entre a sua atividade enquanto docente e as suas ações enquanto membro da
comunidade. (UFG, 2013)
Ao fim de todas as etapas do curso de licenciatura indígena, muitos
estudantes
acreditam
que
a
produção
acadêmica
possibilita
documentação dos saberes, um registro da história do povo.
uma
Para Gilson
Tapirapé, estudante da Licenciatura Indígena, “o índio que se transforma para
transformar o meio social”. Nessa perspectiva constitui-se um processo que
tem como ponto de partida a perspectiva das comunidades indígenas, na
busca pela afirmação étnica de cada povo, valorizando as línguas, os costumes
e as tradições.
Para fins de exemplificação, retomo o trabalho de campo que realizei na
Aldeia Nova (2013), para apresentar a visão de Creuza Krahô, estudante
indígena, acerca dos trabalhos finais. De acordo com ela a escrita é muito
importante para os povos indígenas.
“Hoje estou escrevendo o meu Projeto Extra Escolar, contando para
todo mundo o que o meu povo tem como tradição cultural. O meu
trabalho é com o Resguarde. Meu povo não tem mais praticado esse
costume, então eu pensei que escrevendo um projeto sobre isso, a
comunidade pudesse voltar a praticar. Sei que poucos praticam esse
costume. Mas eu sei que esse costume não estará perdido. Esse
trabalho ficará para as crianças, pois mesmo que eu venha a morrer,
as crianças poderão ler meu trabalho e praticar a tradição dos nossos
antepassados.”
Daniel Munduruku indígena escritor defende a autoria indígena. Para
Munduruku a escrita fortalece pessoas, povos e movimentos, pois traz em si
muito mais que uma leitura do mundo conhecido. Traz também em si todos os
mundos: “o mundo dos espíritos, dos seres da floresta, dos encantados, das
visagens visagentas, dos desencantados”. “A escrita vai além da compreensão
humana, pois ela é trazida de dentro do homem e da mulher indígena”. A
autoria indígena é, sem dúvida, uma afirmação da cidadania indígena e do
respeito pela diferença.
É a partir de uma auto afirmação étnica e participativa que os povos
indígenas formam espaços de construção e ressignificação dos saberes, pois a
educação e o domínio da escrita possibilita que grupos indígenas transformemse em autores dos seus próprios processos históricos e dos seus modos de
vida. A escrita, para a sociedade nacional, é um fator importante para a
documentação do saber, portanto a escrita dos povos indígenas permite uma
oportunidade
de
conhecer
os
conceitos,
as
suas
histórias
e
suas
representações culturais além de se reconhecerem como contadores de suas
próprias histórias. Nessa direção, surge a necessidade de cultivar as relações
interétnicas de modo que eles se afirmem sujeitos intelectuais marcando sua
presença no mundo do “branco”.
Para Fabinho Tapirapé “Admito que sou
índio, admito que os outros falem que os índios não deveriam perder sua
cultura, mas os outros tem que conhecer minha história, ver que também posso
ser universitário, trabalhador e ajudar a minha cultura a partir do contato em
vez de criticarem como eu vivo” ( 2012).
A demanda estudantil indígena provém de razões intrínsecas ao
processo histórico desses povos, pois retira-os da posição de marginalizados e
limitados socialmente e afirma-os como indivíduos ativos no exercício da
cidadania com maior participação política na vida do país. Em geral suas lutas
dizem respeito ao acesso às políticas públicas e acaba com a ideia de tutela,
antes responsabilidade de alguns órgãos que representavam os povos
indígenas nas relações com o Estado. A ideia de tutela é apagada do
pensamento indígena quando esses enxergam a possibilidade da auto
representatividade, do auto governo de suas comunidades e de negociarem a
melhor forma para viverem de acordo com suas pautas culturais, reivindicando
assim sua capacidade integral como sujeito histórico. Segundo uma pesquisa
realizada por Peter Gow (1991) antropólogo que pesquisou os Piro do Baixo
Urubamba, à medida que os nativos se posicionam diante da sua história, eles
tomam consciência da sua cultura e tornam comunicáveis suas significações,
valores, ideais e efetivamente criam sua própria consciência histórica.
O antropólogo e indígena Gersem José dos Santos Luciano (Baniwa),
optou em seguir a trajetória acadêmica, melhorando sua formação intelectual e,
assim, possibilitando diálogos constantes e conquistas no processo histórico do
seu povo. Em sua tese apresentada ao Programa de Antropologia da
Universidade de Brasília (2011), Baniwa relata “Logo percebi que as conquistas
do mundo branco não eram para todos e nem de todos, mas daqueles que
haviam estudado muito”. Conforme estudam mais e adquirem mais
conhecimento, é possível assumir novas posições na sociedade, isto é,
posições de representatividade e poder em defesa de seu povo. Assim
continua Gersem Baniwa; “Percebi também que para melhorar minha
contribuição com a luta dos povos indígenas precisava adquirir, além de novos
e maiores domínios conceituais e técnicos do mundo branco, a força simbólica
do status acadêmico.”
Muitos jovens indígenas saem de suas casas, suas comunidades e
muitas vezes de suas cidades para aumentar o nível de escolarização, para ali
se formarem enfermeiros, advogados, antropólogos, escritores, técnicos
agrícolas e professores de forma que atendam as necessidades básicas de
seus povos. Esses indígenas retornam ao seu lar com a ideia de que há uma
necessidade de descontruir as fronteiras entre indígena e sociedade nacional,
que a idéia de isolacionismo já está ultrapassada. É tempo de se estabelecer
um espaço de fluxo e de trocas de saber, garantindo uma permanente
ressignificação de conhecimentos e formas de pensar a diversidade no campo
interétnico. Segundo Fernando Xerente, estudante do Curso de Licenciatura
Intercultural Indígena, “vivemos misturados, não existe barreiras para vivermos
com os outros, também fazemos parte da sociedade e temos nossos direitos.
Direito de ter acesso, direito a possuir computador, a se vestir e chegar à
universidade”.
Hoje, são os índios que perguntam, os índios que aprendem, os índios
que atuam em diferentes áreas como a educação, saúde, meio ambiente e
agricultura. Para Baniwa para entender como funciona o mundo branco, em
suas diferentes dimensões e intenções (exterior e interior) é necessário
“dominar o mundo do jogo de palavras, ideias e intenções”. Haja vista que o
anseio dos povos indígenas pela vida moderna, transita por um domínio maior
dos bens e serviços da ciência, da tecnologia e de outros valores de outras
culturas, de maneira que neste trânsito possam aperfeiçoar e melhorar a
capacidade das tradições em satisfazer as demandas e necessidades atuais.
Diante dos fatos apresentados não podemos esperar por políticas
homogeneizadoras da cultura alheia. O que se busca é um sistema que
reconheça a diversidade cultural dos povos do Brasil e crie mais canais de
diálogo e troca entre as diferentes culturas.
Os povos indígenas aparecem como habilidosos indivíduos que
manuseiam as transformações culturais e a política de manutenção e
afirmação étnica. O fundamental, portanto, é considerar-se e ser considerado
índio; para isso, pouco importa o fato de usar relógio e roupas, ou falar
português.
Terence Turner (2008) fornece um bom exemplo disso em seu trabalho
junto à população Kayapó de Gorotire/Pará. Para ele, Os Kayapó sofreram
uma revolução de consciência, agora eles estavam envolvidos ativamente nas
políticas de afirmação da sua cultura e adquiriram o controle das
transformações de sua própria história. Turner escreve “ouvi homens e
mulheres comuns, dizendo ter como motivação fundamental de sua luta política
a manutenção de seu modo de vida cultural e a defesa deste contra pressões
de assimilação e destruição por parte da sociedade nacional” (SAHLINS apud
TURNER,1997, p.125)
Para muitos antropólogos o desafio dos grupos indígenas não está
somente na efetivação dos direitos indígenas no âmbito educacional
diferenciado, mas também por um maior acesso a outras áreas do
conhecimento que permutam o ideário indígena como áreas estratégicas de
conhecimento,
como
é
o
caso
da
medicina,
direito,
engenharia
florestal/ambiental (ALMEIDA E PALADINO, 2012). Em muitos casos o acesso
a outras áreas ocorre através de ações afirmativas que compreendem a
garantia de vagas em cursos de graduação regulares em universidades
públicas. Segundo Paladino e Almeida “O cenário atual conta com mais de 70
universidades com programas de acesso diferenciado para povos indígenas
por reserva de vagas, acréscimo de pontos no vestibular ou sistema de vagas
suplementares para a inclusão de estudantes indígenas nos cursos regulares.”
(p.121). Essas são algumas ações afirmativas de política de inclusão no ensino
superior:
“Reserva de vagas: a universidade estabelece, em consonância com o
total de vacâncias disponíveis em cada curso para o ingresso de
alunos, uma percentagem reservada aos indígenas;
Vagas suplementares: a universidade oferece vagas a mais, fazendo
com que os beneficiados que ingressam por esse meio não disputem
as vagas com os que ingressam através do vestibular convencional;
Acréscimo de pontos: o estudante indígena realiza o vestibular
comum, mas ao resultado que obtém acrescenta-se uma quantidade
de pontos determinada pela Instituição de Ensino Superior.” (Almeida
e Paladino, 2012, p.121)
A implementação dessas ações afirmativas facilita parte do processo de
inclusão dos povos históricos nas universidades, em que tanto esses povos
são beneficiados uma vez que são contemplados com a maior acessibilidade
ao conhecimento, quanto a própria universidade é beneficiada com o
enriquecimento de perspectivas e abordagens diferenciadas sobre a realidade,
refletindo em novos trabalhos e pesquisas. A inclusão de minorias como negros
e indígenas nas universidades, tanto diversifica o cenário da educação
superior, como minimiza as distâncias entre os diferentes e desta forma reduz
as discriminações sociais. Muitas dessas diferenças já se apresentam nos
campos universitários. Por exemplo, muitos estudantes que ingressam nas
universidades não são da própria cidade, muitos vem do interior ou mesmo de
outros estados em busca de qualificação.
Nesse sentido o contexto das diferenças culturais emerge não só no
sentido de introduzir povos historicamente discriminados mas também de se
perceber que o povo brasileiro é rico em diversidade cultural, tendo em vista as
características performáticas e os costumes de indivíduos de Norte ao Sul do
país. Cada estado corresponde há uma percepção do meio, do território, da
culinária, da vida em comunidade e outros, ou seja, cada meio tem uma
maneira particular de expressar sua maneira de ser e estar no mundo.
Estamos no campo das relações interculturais, desse modo a reflexão
sobre Interculturalidade, utilizado nos cursos indígenas, apresenta outras
reflexões acerca do tema, como as feitas pelos autores, Catherine Walsh
(2002) e Walter Mignolo (1999), que abordam de modo mais complexo o
conceito de interculturalidade. Estes autores focam seus trabalhos na ideia da
“descolonização do saber”, isto é, para eles, um povo não consegue sua
autonomia apenas por meio do ato político de separação do Estado
colonizador. É fundamental também a elaboração de outra ideologia capaz de
subverter as formas de pensar e agir que esse Estado impõe. (PALADINO E
ALMEIDA, 2012).
Em síntese, buscou-se com esse texto fornecer um quadro do atual dos
povos indígenas frente às novas relações interétnicas e o modo como transitam
e como definem suas relações a partir do ensino superior. Foi a partir de
movimentos históricos de luta dos povos indígenas, que foi possível a criação
de programas de educação especifica e intercultural. Muitos programas de
licenciatura intercultural ainda estão em construção e reformulando suas
matrizes curriculares para atender as especificidades dos povos indígenas.
Espera-se que estes programas de ensino superior possam cumprir com
as demandas da sociedade Indígena por uma Educação Escolar Diferenciada
de qualidade, além de possibilitar uma autonomia intelectual que lhes dê a
possibilidade de transitar tanto entre os saberes científicos quanto os saberes
da
cultura.
Cria-se
novas
relações
interétnicas
para
um
efetivo
compartilhamento de saberes, neste viés Daniel Munduruku expõe seu olhar
sobre esse espaço.
Muitos desses programas de educação indígena têm partido do
princípio que é preciso fortalecer a autoria como uma forma de
fortalecer também a identidade étnica dos povos que atendem. Isso é
muito positivo se a gente entender que a autoria, aqui defendida,
signifique que estes povos possam num futuro próximo, criar sua
própria pedagogia, seu modo único de trafegar pelo universo das letras
e do letramento.(...)Se estes grupos de fato acreditarem que estão
criando pessoas para a autonomia intelectual e se abrirem espaço na
sociedade para a livre expressão deste pensamento, então eles
estarão, realmente, fortalecendo a autoria e apresentando um caminho
novo para as manifestações culturais, artísticas, políticas, lúdicas e
religiosas dos nossos povos indígenas. Caso contrário, estarão levando
nossa gente para o mesmo buraco ocidental de antes. (Munduruku)
Os povos indígenas, assim como qualquer sociedade, precisam e
buscam mais conhecimento que o qualifique como indivíduos, preparando-os
para atuarem socialmente em prol de seu povo e de seu tempo. Portanto,
espera-se que este trabalho traga uma reflexão acerca do modo que o Ensino
Superior tem contribuído para o ativismo dos povos indígenas, em especial
como a Universidade Federal de Goiás vem desenvolvendo sua proposta de
licenciatura indígena, pois o objetivo não deve ser apenas o enquadramento
desses grupos e sim a real contribuição para uma formação de qualidade.
Referência Bibliográfica
ARAÚJO, Ana Valéria et al. Povos indígenas e a lei dos “brancos”: o direito à
diferença.
Brasília:
Ministério
da
Educação,
Secretaria
de
Educação
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