X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis As vozes não caladas na canção Cálice - uma perspectiva bakhtiniana Fabiana Kanan Oliveira Mestranda bolsista institucional em Letras Centro Universitário Ritter dos Reis – UNIRITTER [email protected] RESUMO A perspectiva bakhtiniana apresenta o conceito conhecido como vozes do discurso, o qual refere-se a um discurso permeado por uma multiplicidade de outros discursos ou enunciados que o antecedem histórica e socioculturalmente; e também o de dialogismo, uma propriedade da linguagem que estabelece interrelação permanente com outros discursos e o discurso do outro. Nosso objetivo é verificar a presença de vozes do discurso e características do dialogismo que estão presentes na letra da música “Cálice”, de Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil. Para tanto, o presente trabalho fundamenta-se nos pressupostos teóricos de Bakhtin (1999, 2006, 2010) e Machado (2001), entre outros. Palavras-chave: Linguística aplicada. Bakhtin. Vozes do discurso. Dialogismo. 1. INTRODUÇÃO Este artigo visa a análise da letra da música Cálice, escrita por Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil, em 1973, dentro da perspectiva bakhtiniana; mais especificamente, sob a ótica de dois conceitos – o das vozes do discurso e o do dialogismo. Uma das características mais marcantes da letra é o elaborado jogo de palavras, construído com o intuito de driblar e contestar a censura imposta pela ditadura militar, regime que se estendeu de 1964 a 1985 no Brasil. Durante o período da ditadura, a “Doutrina de Segurança Nacional” justificava as intervenções militares com a desculpa de proteger os interesses de segurança nacional e inaugurou não somente um período de repressão, mas também de perseguição às pessoas que eram tidas como contrárias ao regime. Essas pessoas eram submetidas aos Inquéritos Policiais Militares, podendo ser presas, ter mandatos cassados ou seus bens indisponíveis. Um dado divulgado pela Comissão de Mortos e Desaparecidos e pela Comissão de Anistia mostra que 358 pessoas foram assassinadas ou desapareceram em virtude da repressão política e esse é apenas o registro oficial1. Nesse contexto histórico, a letra de Cálice é 1 Dado encontrado no site Dossiê – Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil. X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis escrita, sendo imediatamente censurada e liberada cinco anos mais tarde, em novembro de 1978, no lançamento do álbum Chico Buarque; e um mês depois, no lançamento do álbum Álibi, de Maria Bethânia. Através da perspectiva Bakhtiniana, podemos compreender a linguagem como uma prática social, que nos remete à realidade fundamental de que a língua é uma interação verbal – proposição feita pelo Círculo de Bakhtin – ao afirmar que ela acontece entre sujeitos situados em um contexto sociocultural. O entendimento de que a linguagem é de natureza social foi marco fundador do pensamento dos pesquisadores russos. Tendo isso em mente, o sujeito que tiver conhecimento dos fatos que envolviam o período da ditadura terá uma compreensão bem diferente daquele que não tiver, estando apto a reconhecer as muitas vozes presentes na letra – a voz do regime militar, a voz da igreja, a voz do povo oprimido e ainda, a voz dos autores. A análise da letra da música Cálice se apoia principalmente em dois conceitos da perspectiva bakhtiniana, as vozes do discurso e o dialogismo. Assim, se faz presente importância de definir também o conceito de diálogo a partir desta ótica. No Dicionário de Linguística da Enunciação, temos que para Bakhtin, o discurso é a propriedade constitutiva de todo discurso que pressupõe comunicação com outros discursos e o discurso do outro, independente da estrutura dos enunciados. Portanto, a linguagem é dialógica, estabelecendo uma permanente relação de interação e relações de sentido com os outros discursos. Na letra em questão, identificamos muitas relações de sentido, onde a plurivocidade – uma outra denominação para as diferentes vozes do discurso – se intercalam para discordar da realidade social e confrontar o regime imposto pela ditadura. 2. AS VOZES NÃO CALADAS EM CÁLICE Segundo Bakhtin, “um enunciado absolutamente neutro é impossível. A relação valorativa do falante com o objeto do seu discurso também determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado” (2006, p.289). Assim, o posicionamento do enunciador determina o enunciado. O conceito de voz é proveniente dessa marca. Se compreende por vozes do discurso os diversos posicionamentos e marcas no enunciado, que trazem consigo um acento valorativo frente a um enunciado e frente à vida. Por isso temos a diferença entre dar voz a alguém – como no caso da letra de Chico Buarque e Gilberto Gil – ao povo oprimido e reprimido pela ditadura, entre outras vozes. Outro conceito importante para a análise da letra em questão é o de dialogismo, noção que evidencia que todo o enunciado está inscrito em um determinado momento sócio-histórico, precisamente a situação de Cálice, que faria muito pouco sentido se fosse desvinculada de seu contexto histórico e social. Anexo 1: A letra da canção Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil2 CÁLICE (1973) Pai, afasta de mim esse cálice 2 A letra da canção Cálice foi reproduzida neste artigo do site oficial de Chico Buarque de Holanda. X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor, engolir a labuta Mesmo calada a boca, resta o peito Silêncio na cidade não se escuta De que me vale ser filho da santa Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada pra a qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa De muito gorda a porca já não anda De muito usada a faca já não corta Como é difícil, pai, abrir a porta Essa palavra presa na garganta Esse pileque homérico no mundo De que adianta ter boa vontade Mesmo calado o peito, resta a cuca Dos bêbados do centro da cidade Talvez o mundo não seja pequeno Nem seja a vida um fato consumado Quero inventar o meu próprio pecado Quero morrer do meu próprio veneno Quero perder de vez tua cabeça Minha cabeça perder teu juízo Quero cheirar fumaça de óleo diesel Me embriagar até que alguém me esqueça Partindo de uma compreensão geral, a letra da música está repleta de versos que exibem vozes distintas, que de maneira velada, mas nem sempre, tentam relatar o drama vivido por muitos brasileiros torturados pelo regime militar. Já no título da canção existe um jogo de palavras. “Cálice” visto enquanto substantivo, não teria uma conotação ameaçadora ou subversiva. Porém, se entendemos o mesmo título como um verbo, mais precisamente uma ordem designada pelo modo imperativo, o sentido muda drasticamente, para uma tentativa de calar os responsáveis pelas atrocidades cometidas nessa época, discurso que poderia representar a população, aterrorizada e indefesa perante o regime autoritário e também pela voz criativa dos autores. X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis Os primeiros versos da letra, “Pai, afasta de mim esse cálice/De vinho tinto de sangue”, e que também voltam como refrão, apresentam uma outra voz, representada pela Igreja Católica, com uma analogia entre a Paixão de Cristo e o drama vivenciado pela população. Esses versos poderiam fazer referência à agonia de Jesus no calvário, mas ao mesmo tempo, a ambivalência presente no som da palavra cálice, fazendo com que outra leitura possa ser feita, através do imperativo “cale-se”, que poderia também remeter ao papel que a censura representou nesse período. Somente nesses versos, é possível identificar a voz dos autores, a voz da igreja Católica e a voz do povo, numa tentativa de enfrentar e calar as vozes do regime. Um cálice deve armazenar algo em seu interior, mas se considerarmos os textos bíblicos, o conteúdo será o próprio sangue de Cristo. O sangue na música representaria o sangue derramado das vítimas oprimidas e torturadas. Bakhtin também refere-se as vozes do discurso como plurivocidade, heteroglossia e bivocalidade. O que significa que um enunciado, ou discurso é permeado por discursos ou enunciados que o antecedem, que não pertencem exatamente a uma pessoa, mas sim ao meio social que esse indivíduo pertence, pois quem se fala, fala apropriando-se da voz de uma sociedade, que às vezes está distante no tempo e no espaço. Assim, além da voz do falante e do ouvinte que a interpreta a sua própria maneira, ainda existem as vozes daqueles que já disseram algo a respeito daquilo que está sendo dito. Uma vez que esses versos iniciais reproduzem o clamor de uma oração, somos levados a relacionar o léxico utilizado pelos autores, como “Pai”, “cálice” e “sangue” com os textos bíblicos. E a partir disso, levando em consideração o contexto político e social que existiu durante a ditadura militar, podemos fazer uma relação entre os fatos para identificar também a voz do povo oprimido, que quer de alguma maneira enfrentar e calar os horrores vividos nessa época. Na obra Estética da Criação Verbal, Bakhtin escreve: “O autor (falante) tem seus direitos inalienáveis sobre a palavra, mas o ouvinte também tem os seus direitos; têm também os seus direitos aqueles cujas vozes estão na palavra encontrada de antemão pelo autor (por que não há palavra sem dono)”. (2010, p.328). E também: “Na relação criadora com a língua não existem palavras sem voz, palavras de ninguém. Em cada palavra há vozes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais, quase imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente. (2010, p.330). Todos os versos de Cálice estão marcados por vozes e significados implícitos ou explícitos, alguns com conteúdos mais significativos que outros. Por esse motivo, nem todos os versos serão explorados neste artigo. Os versos “Tanta mentira, tanta força bruta / Como é difícil acordar calado / se na calada da noite eu me dano/ Quero lancer um grito desumano / que é uma maneira de ser escutado” fazem referência às imposições e ilusões criadas pelo regime, a voz dos autores, mas também uma representação do povo brasileiro. Em consonância com as vozes sociais X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis encontradas nos versos, Bakhtin destaca ser a plurivocidade dialogizada o verdadeiro meio da enunciação, considerando não só a diversidade de vozes sociais e históricas, mas também as relações dialógicas, relações de sentido, que se estabelecem necessariamente entre as linguagens. O indivíduo que quiser ter uma boa compreensão da letra de Cálice, deverá ter uma série de conhecimentos prévios para fazer essas relações; como os acontecimentos que sucederam durante o período da ditadura e das passagens bíblicas. Somente tendo noção do contexto histórico, que o ouvinte poderá entender que “na calada da noite” faz uma alusão às torturas, que eram sempre realizadas à noite. Ou então, que nos versos “Tanta mentira, tanta força bruta”, podemos inferir por “mentira” a falsa ilusão de que o regime ditatorial propiciava segurança e estabilidade econômica à população, referência ao famoso “milagre econômico”. Mais para o final da letra, encontramos mais referências atribuidas a voz da religião e à do povo, já desgastado com as técnicas de submissão empregadas durante a ditadura: “De muito gorda a porca já não anda / De muito usada a faca já não corta / Como é difícil, pai, abrir a porta / Essa palavra presa na garganta”. Entendemos que por “porca” seria possível fazer uma relação ao regime militar, pois já não funcionava, tamanha era a corrupção. Por outro lado, poderíamos entender também como uma alusão aos elementos bíblicos, uma vez que “porca” poderia remeter ao símbolo da gula, parte dos sete pecados capitais, o que daria sequência à temática da religiosidade presente desde o início dos versos. A “porta” pode simbolizar um novo tempo no contexto bíblico e por outra ótica, a mudança de um contexto violento para uma realidade melhor. O verso final desta estrofe, se refere claramente à liberdade de expressão, o desejo de confrontar a repressão imposta. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em Diálogos com Bakhtin, Machado (2001) coloca que subjacente a todo texto está uma língua, e seria impossível desassociar da língua os aspectos socioculturais. O registro histórico é extremamente importante para uma compreensão total do texto. Com a análise dos versos evidenciados neste artigo, fica claro o papel que o conhecimento dos fatores sociais, políticos e econômicos do período da ditadura desempenham no entendimento completo das vozes e dos sentidos encontrados na letra de Chico Buarque e Gilberto Gil. Machado ainda lembra-nos que, em consonância com os conceitos utilizados para analisar a letra de Cálice, “o texto não é uma coisa sem voz; é, sobretudo, ato humano”. Fundada na linguagem está toda a produção cultural, e para Bakhtin, não existe produção cultural fora da linguagem. Outro estudo importante, desenvolvido em Marxismo e Filosofia da Linguagem por Bakhtin, é o do discurso de outrem, que constitui mais do que o tema do enunciado. O discurso citado conserva sua autonomia estrutural, mas mantem as tendências sociais estáveis que são características da apreensão ativa do discurso de outrem, manifestadas nas formas da língua. Segundo o autor, Há diferenças essenciais entre a recepção ativa da enunciação de outrem e sua transmissão no interior de um contexto (...) Além disso, a transmissão leva em conta X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis uma terceira pessoa – a pessoa a quem estão sendo transmitidas as enunciações citadas. (1999, p. 146) A partir dessa perspectiva, consideramos que no momento em que a letra Cálice foi escrita por Chico Buarque e Gilberto Gil, fatores relacionados com o contexto social, político e econômico do Brasil, desempenharam um papel fundamental, determinando com quem a canção dialogaria; e, precisamente, como ela seria construída, cientes do regime militar vigente e de que ela seria submetida à censura. Anexo 2: Quadro comparativo relacionando as ações e as vozes presentes nos versos da letra Cálice, de Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil. Ação na letra Oram, léxico relacionado com passagens bíblicas As vozes presentes Voz da igreja, voz dos autores, que também representam o povo Questionam e resistem ao quadro social vigente Voz do povo oprimido, voz dos autores Criticam as imposições feitas e o regime (marcas ideológicas) Voz do regime, voz dos autores, que também representam o povo Expõem as atrocidades do regime (marcas ideológicas e relações com os textos bíblicos). Querem voltar a ter uma voz Voz do regime, voz dos autores, voz do povo Sentem e passam esperança Clamam por um regime diferente (marcas ideológicas e literárias) Voz dos autores, que também representam a voz do povo oprimido Voz dos autores, voz do povo Voz do regime ditatorial, voz dos autores, voz do povo Os versos da letra Cálice Pai, afasta de mim esse cálice/De vinho tinto de sangue/Como é difícil, pai, abrir a porta Como beber dessa bebida amarga/Como é difícil acordar calado/ Mesmo calado o peito, resta a cuca Na arquibancada pra a qualquer momento/Ver emergir o monstro da lagoa/ De muito gorda a porca já não anda/De muito usada a faca já não corta Tanta mentira, tanta força bruta/Se na calada da noite eu me dano/Quero cheirar 3 fumaça de óleo diesel Quero lançar um grito desumano/Que é uma maneira de ser escutado Talvez o mundo não seja pequeno/Nem seja a vida um fato consumado Quero morrer do meu próprio veneno/Quero perder de vez tua cabeça Sob o olhar da teoria bakhtiniana – principalmente, no que diz respeito à relação entre enunciador e suas vozes, à interação dialógica e conteúdo ideológico contido nos textos e nas práticas discursivas – concluímos que tais preceitos contribuíram e foram 3 Neste último verso encontramos uma referência explícita a um dos métodos de tortura mais utilizados durante a ditadura com o intuito de extrair informações das vítimas. X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis valiosos para a análise e compreensão da letra em questão. Os versos de Cálice fariam muito pouco ou nenhum sentido se interpretados por qualquer sujeito, que não consiga perceber as diferentes vozes ou associar seus versos ao contexto da ditadura. As muitas vozes encontradas em Cálice; que, ora rezam, questionam, criticam, querem, resistem, entre tantas outras ações encontradas na letra, exprimem a insatisfação dos autores, por sua vez representando seu povo durante o importante periodo político da ditadura no Brasil. Essas vozes até poderão ser silenciadas e não compreendidas por um receptor incauto. Então oremos – Pai, que o cálice esteja sempre cheio de conhecimento. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006. _________ . Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999. FLORES, Valdir do Nascimento. Dicionário de Linguística da Enunciação. Organizadores Valdir no Nascimento Flores [et al.] – São Paulo: Contexto, 2009. MACHADO, Irene. Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Ed. Da UFPR, 2001. Letra de Cálice no site oficial de Chico Buarque de Holanda (http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=calice_73.htm) Acesso em 03/12/2013. http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pagina.php?id=221