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O RETÁBULO FLAMENGO DE ÉVORA:
UMA PERSPECTIVA
Em 1495, uma bula do Papa Alexandre VI autorizava o bispo de Évora
e o cabido a retirar provisoriamente da capela-mor alguns altares e
a proceder a obras na catedral que, em algumas partes, ameaçava
ruína. Sabemos, por biógrafos do bispo, e alguns escudos de armas
ainda existentes no edifício, que essas grandes obras patrocinadas
pelo bispo D. Afonso de Portugal (bispo da cidade entre 1485 e 1522)
abrangeram não só a capela-mor, mas toda a nave sul do corpo da
catedral e ainda o baptistério inserido na torre norte da fachada, além
de vário mobiliário, como grades, púlpitos e, certamente também, o
grande retábulo flamengo que coroaria esta profunda intervenção na
catedral ducentista.
A data posterior a 1495 para a execução do retábulo é ainda reforçada
pelo facto do viajante alemão Jerónimo Münster, que visitou a Sé em
Novembro de 1494 e gabou a arquitectura do edifício e dos claustros,
não se referir a qualquer retábulo, o que talvez tivesse feito se um
Encontro de Santa Ana e São Joaquim na
grande conjunto de boa qualidade e recente já estivesse colocado na
Porta Dourada | Retábulo Flamengo do Museu
capela-mor, como fez frequentemente nos seus relatos de catedrais
de Évora | ME 1502.
Foto IMC | José Pessoa
espanholas.
D. Afonso foi um personagem importante no Portugal de D. João II e
D. Manuel. Filho natural do Marquês de Valença, julgou-se sempre com
direito à herança da Casa de Bragança, o que terá motivo a pressão do
rei para que entrasse na vida religiosa, já depois de ele próprio ter três
filhos naturais, de onde sairão os Condes de Vimioso. Esta condição
de grande senhor, primo directo da casa real, possibilitou-lhe fortuna
e vontade para grandes obras, como a edificação do seu palácio junto
à Sé de Évora e da famosa casa de campo da Sempre Noiva, o colecionismo de antiguidades e a manutenção de uma corte de poetas e
dramaturgos, e as grandes obras da Sé, em que avulta este retábulo,
um dos maiores conjuntos de pintura flamenga conhecidos. Sabe-se
que aspirou à púrpura cardinalícia e as suas empreitadas artísticas parecem integrar-se na diplomacia necessária para este desejo, frustrado
aliás quer pelo rei, quer pelo Cardeal de Alpedrinha.
Ao escolher uma empreitada flamenga D. Afonso acercava-se do gosto
português e peninsular da época. As relações comerciais intensas com
a Flandres possibilitavam contactos rápidos, frequentes e um conhecimento da realidade artística das principais cidades flamengas, sendo
então generalizado entre nós o gosto pela pintura da Flandres. D. Manuel
Museu de Évora Largo Conde de Vila Flor 8000-704 ÉVORA Telefone 266 702 604 E-mail [email protected]
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teve como seu pintor preferido o flamengo Francisco Henriques, que
trabalhou bastante para Évora (S. Francisco, 1508), a Sé de Coimbra,
em 1498-1502, teve o seu retábulo esculpido por dois flamengos, nos
retábulos das Sés de Viseu (1501-1506) e Funchal (c.1512) dominam
pintores flamengos. Em 1500 o bispo de Viseu escrevia ao seu cabido
sobre o retábulo a fazer, com a elucidativa expressão: “da Flandres se
há-de trazer melhor e mais barato”.
Não foi apenas no gosto flamengo que a encomenda de Évora se enquadrava na moda de renovações nas principais Sés, mas também na
tipologia retabular, com conjuntos narrativos construídos em altura,
com três ou mais andares sobrepostos. Esta tipologia, comum na
Península Ibérica, estava de acordo com a arquitectura das capelasmor nacionais e articulava-se, no caso das igrejas espanholas (e não
sabemos se das portuguesas também) com a presença do coro catedralício no início da nave central.
A iconografia do conjunto de Évora tem também paralelos, na reunião
de cenas da Paixão de Cristo, com um número superior de painéis da
Vida da Virgem com outros retábulos coevos, como Viseu, ou Freixode-Espada-à-Cinta, mas apresenta a particularidade da Paixão ocupar
apenas os painéis de predela. Que saibamos apenas outro exemplo
contemporâneo se encontra em toda a Península – a catedral de Nossa
Senhora de Assunção de Trujillo, em Espanha, para onde Fernando
Gallego pintou um retábulo cerca de 1490. A comparação dos dois
conjuntos, Évora e Trujillo é particularmente interessante, pois parece
haver uma profunda coincidência nos temas e na posição narrativa
dos vários painéis. Acrescente-se que Trujillo era comumente visitada
por Portugueses (como o próprio rei D. Manuel, que com o seu séquito
passa pela cidade na visita a Espanha de 1498), quer porque se situasse na rota normal para Toledo, onde a corte espanhola permanecia
frequentemente, quer por ser a cidade mais próxima ao Mosteiro de
Guadalupe, então um dos centros peregrinacionais mais importantes
de Espanha e de particular devoção portuguesa.
Detalhe do Rosto de São Joaquim | Encontro
de Santa Ana e São Joaquim na Porta Dourada
| Retábulo Flamengo do Museu de Évora | ME
1502.
Foto IMC | José Pessoa
Desde 1890, quando o historiador alemão Carl Justi observou as pinturas de Évora, que o conjunto retabular tem sido maioritariamente
colocado na órbita de Gerard David (c.1455-1523), pintor que se instalou em Bruges a partir de 1484. Muito nas pinturas de Évora lembra
David – a suavidade do colorido, as elegantes figuras femininas, certos
rostos muito próximos a desenhos seus, a minúcia da paisagem, etc., e
talvez deva mesmo considerar-se, ainda hoje, David como a influência
mais marcante nos mestres que colaboraram no retábulo de Évora. Na
data em que os painéis podem ter sido pintados, depois da morte de
Hugo Van der Goes (c. 1440-1482) e de Memling (act. 1465-1494),
o atelier de David era o mais influente de Bruges e, mesmo pondo
em causa a autoria directa da sua oficina, a crítica é praticamente
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unânime em situar o conjunto de Évora na proximidade estilística da
obra de David. É significativo que as últimas propostas autorais para
o conjunto, respectivamente de Didier Martens (1995) e de Mathias
Weninger (1999), tenham avançado os nomes dos Mestre da Madonna
André e do Mestre do Retábulo de Santa Ana de Washington, dois
nomes convencionais que definem ignorados artistas relacionados com
a oficina, ou pelos menos com os modelos, de Gerard David.
A fase de estudo que se segue incidirá em boa parte na análise dos materiais recolhidos e na sua comparação com as informações disponíveis
sobre obras flamengas, mas é desde já possível ver que se detectam,
no retábulo de Évora, não só modelos de David, mas também de Goes,
de Bouts, de Weyden e de uma série de obras de iluminura gantobrugense. Também é possível ver que são utilizados vários processos
de assemblagem, diversos métodos de desenho e um uso quase generalizado de métodos de transposição de desenho, como a duplicação
de modelos através de cartões perfurados, conhecido como “poncif” ou
estrazido. Esta realidade não é inusual e quer o recurso a “citações” de
obras e mestres célebres, quer os métodos mecânicos de transposição
de desenho, caracterizam bem a pintura de Bruges do final do século
XV. A situação da cidade mudara muito, em relação ao seu período
áureo de meados do século XV. As guerras com o Imperador, o cerco
da cidade e, sobretudo, o crescimento de Antuérpia, criaram na última
década do século uma decadência da cidade, sobretudo motivada pela
preferência das comunidades estrangeiras pela florescente Antuérpia.
O sistema de oficinas de pintura também se alterou. A enorme maioria
passa a ser uninominal e, exceptuando as que funcionavam como
escolas, todas eram muito pequenas. Uma obra com a dimensão do
retábulo de Évora necessitava de um esforço de união de mestres e
oficiais o que explicará certa diferença de processos e a grande variedade de modelos que se detecta neste conjunto.
Reflectografia de infra-vermelhos | Encontro
de Santa Ana e São Joaquim na Porta Dourada
| Retábulo Flamengo do Museu de Évora | ME
Joaquim Oliveira Caetano
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1502.
Foto IMC | José Pessoa
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