Anais do IX Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216
UMA LEITURA CRÍTICA DO LIVRO O SÉCULO DE BORGES, DE ENEIDA
MARIA DE SOUZA
Geisiara Priscila Christ
(G-CLCA-UENP/CJ)
Nerynei Meira Carneiro Bellini
(Orientadora-CLCA-UENP/CJ)
RESUMO
Este trabalho pretende analisar, criticamente, o livro O século de Borges, composto por onze
capítulos, no qual é recontado o mundo de Borges a partir de determinados acontecimentos
vivenciados, como o exílio, as guerras, a cegueira e a morte que revelam situações
embaraçosas, do homem atual, criadas, literariamente, a partir de uma análise crítica de
particularidades do século XX, sob a ótica borgiana. O amor pelas enciclopédias, atlas e pelos
volumes, somado à bagagem literária universal, bem como o talento singular de escritor,
resultaram na abrangente e complexa produção borgiana. Recorrendo a uma metáfora do
próprio Borges, suas obras podem ser interpretadas como o Aleph cujo centro se encontra em
todas as partituras, mas a circunferência está ausente. Essa esfera intitula o conto O Aleph,
que sugere um ponto imaginário no infinito. A celebração dos cem anos de Borges no término
do milênio liga as pontas de dois séculos, como se a literatura do século XX acontecesse com
o nascimento do escritor.
Introdução
O escritor argentino José Francisco Isidoro Luiz Borges nasceu na cidade de
Buenos Aires em 1899. Admira-nos seu acúmulo de monografias e também de polêmicas no
que diz respeito à legitimidade da produção de Borges, já que autor teve medo de ser
declarado um falsário ou até mesmo um espertalhão. No entanto, essa questão é
desencadeadora de mistério, conforme se percebe em dados de sua biografia:
BORGES, JOSÉ FRANCISCO ISIDORO LUIS: Autor e autodidata, nascido na
cidade de Buenos Aires, na época capital da Argentina, em 1899. A data de sua
morte se ignora, já que os jornais, gênero literário da época, sumiram durantes os
grandes conflitos que os historiadores locais hoje coletam. [...] O renome que Borges
gozou durante sua vida, documentado por um acúmulo de monografias e de
polêmicas, não deixa de nos admirar agora. Consta que o primeiro surpreendido foi
ele e que sempre temeu ser declarado um impostor ou um espertalhão ou uma
singular mescla de ambos. Indagaremos as razões desse renome, que hoje nos resulta
misterioso. (BORGES, 1991, p. 505)
No
primeiro
capítulo
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“Minha
terra
tem
palmeiras”
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do livro O século de Borges, da professora e pesquisadora Eneida Maria de Souza condensase o momento em que o escritor Jorge Luis Borges parte com a sua família rumo à Genebra,
na Suíça, no ano de 1914. O escritor reproduz a imagem do Brasil durante uma entrevista a
Roberto d’ Ávila ao se recordar dos versos de Gonçalves Dias quando o navio chegou:
“Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá / As árvores que aqui gorjeiam /
Não gorjeiam como lá.” Ao reproduzir, sob a forma de música, o poema de
Gonçalves Dias – símbolo da nacionalidade romântica e da poetização do tema
exílio – Borges condensa o momento de partida para a Europa no destino do poeta
brasileiro, autor dos versos cantados por algum marinheiro no porto carioca.
(SOUZA, 2009, p. 9)
Borges não sabia que o poema dizia respeito ao escritor Gonçalves Dias e
reteve uma representação que foi fruto da sua lembrança de quando passou pelo Brasil,
concretizada na canção do sabiá. A sua definição de pátria é diferente daquela relatada pelo
romântico brasileiro por não sustentar a vontade de morrer no país de origem. Exilado
voluntariamente em Genebra, voltou na década de 20, do século XX, à Argentina,
atravessando muitas vezes o Atlântico sem sofrer nenhum naufrágio. Doente e à espera de sua
morte, decidiu voltar à Genebra, talvez, no afã de recuperar a satisfação de viver ali, fato
ocorrido quando era jovem. A cidade suíça, representava o local de seu “nascimento
cognitivo”, pois significava o lugar em que aprendeu vários idiomas e adquiriu o hábito de ler,
tornando-se sua obsessão, como afirma Eneida Maria de Souza:
A cidade suíça representava para o escritor o lugar de seu nascimento, pois lá não só
adquiriu o conhecimento do latim, do francês e do alemão, como também o hábito
da leitura, obsessão borgiana por excelência. (SOUZA, 2009, p. 10)
Borges foi enterrado perto do túmulo de Calvino, considerado um de seus
grandes admiradores, e do compositor Alberto Ginastera. O escritor argentino refere-se, em
sentido oposto, à canção de Gonçalves Dias, colocando a pátria como um local imaginário no
qual as fronteiras não coincidem com as do território habitado.
De acordo com o ensaísta Enrique Foffani, a vontade borgiana de se exilar
e, consequentemente, de morrer em Genebra e o modo como as ruínas rodeavam o universo
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fantasioso de Jorge Luis Borges é interpretado através da alegoria do tempo:
1986 – Finalmente se instala com sua esposa Maria Kodama em Genebra, onde
morre a 14 de junho. Por que elege Genebra para morrer? Infinitas conjeturas são as
respostas possíveis. Por um lado a distância que carrega o gesto irônico, essa sua
espécie de última burla afastando-se do lugar natal. Por outro, o morrer fora ou
longe da pátria – a pátria do XIX ou do XX, o século da gauchesca ou do Facundo
que Josefina Ludmer lê a partir de Borges do século XX para concluir seu tratado
precisamente sobre a Pátria - evitaria, de algum modo, a oficialização da morte,
impedir fazer público um ato de verdade privado. Mas então as Pátrias – todas as
pátrias – reaparecem para confundir-se uma vez mais em uma série de fronteiras que
não chegam a ser totalmente congruentes. Se aceitamos que Genebra representa o
lugar onde se nasce para as diversas línguas e literaturas, será que Borges leitor
recupera a morte como uma ficção mais lida que vivida? (FOFFANI, 1993, p.42)
A poética de Borges também é marcada pela cegueira e reveste-se do marco
de um exílio dos livros e do objeto disposto sob a mesa, com o propósito de tornar verídico o
ato da leitura. As distinções entre ficção e realidade são desfeitas à medida que se entrega à
morte e repete os hábitos literários.
Na guerra das Malvinas, ocorrida por volta de 1982, escreveu “Juan López y
John Ward”, narrativa que trata do vínculo amistoso entre dois soldados que até o momento
não se conheciam, mas que se uniram pelo amor à literatura. Contesta assim às denúncias ao
tornar a tomar a metáfora da arte literária como mediadora nos conflitos entre as nações e
como meio de comunicação humana.
A literatura do escritor argentino pode ser interpretada como uma resposta à
desorganização dos fatos no século XX. Desordem que resultou o rompimento dos valores da
História. Possui a característica da poética moderna: esquecimento dos modelos, a ruptura
com o real e o desprezo ao discurso aderente da filosofia positivista dos anos de 1900.
Mesmo que tenha nascido no desaparecimento das luzes no século XIX, Borges imprime no
século posterior o seu traço de ficção, tornando-o dessa forma borgiano.
Se os seus textos literários servem como referência necessária para se pensar
novamente o século XX ocupado inteiramente pela ficção, ou seja, falta de limite entre o real
e o virtual, os protetores de uma ética da literatura e da história não se satisfazem em
concordar com tais provocações. No entanto, são separados os acontecimentos reais daqueles
inventados, os documentos da história e os da ficção:
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Se o crepúsculo representa para Borges o instante de afastamento do referente pela
força do simulacro, um dos princípios do saber pós-moderno segundo a
interpretação de Paul Virilio, ele não mais se pauta pela descontinuidade temporal.
Nas palavras do filósofo torna-se possível, nos dias atuais, atingir um grau de
indistinção entre os “raios vermelhos de crepúsculo e os clarões esverdeados da
aurora”. (SOUZA, 2009, p.38)
Como leitor de escritores considerados clássicos na história do cânone
literário, Calvino elege Borges como um dos escritores para ter em sua biblioteca,
constituídos em grande parte de escritores europeus. No conjunto de referências à obra de
Borges, Calvino afirma que existe um espelho que reflete “outro mundo”, o mundo futuro,
vindouro. E esta aventura artística tem a consagração estilística na brevidade da expressão, o
que Calvino classifica como “economia expressiva’’ que difere de “minimalismo”. Com a
propriedade de descobrir o que está oculto, o que é difícil, confuso ou obscuro, a clássica obra
O Aleph apresenta tal prática em sua escrita, influenciando a literatura italiana a partir da
década de 50 e promovendo uma conexão intensa entre Borges e toda a trajetória literária da
Itália. O escritor argentino Jorge Luis Borges é um dos clássicos preferidos do escritor,
romancista, crítico literário e contista italiano. O êxito editorial de Borges esteve sempre
acompanhado ao êxito literário, pois este exerceu grande influência sobre a nova geração de
escritores italianos que assimilaram parte do escrever breve, uma das marcas da poética
moderna, do escritor argentino. Segundo Calvino, a obra de Borges representa a metáfora da
literatura que liberta das prisões que causaram a História e dá abertura aos jogos de
significados:
O que mais me interessa anotar aqui é que nasce com Borges uma literatura elevada
ao quadrado e ao mesmo tempo uma literatura como extração da raiz quadrada de si
mesma: “uma literatura potencial”, para usar um termo que será desenvolvido mais
tarde na França, mas cujos prenúncios podem ser encontrados em Ficciones, nos
estímulos e formas daqueles que poderiam ter sido as obras de um hipotético Herbert
Quain. (CALVINO, 1993, p. 249)
A cegueira de Borges foi manifestada e procedida por graus, quando o
escritor se viu na necessidade de ditar os seus textos para alguém fazendo uso do recurso da
memória e da oralidade para transmitir a literatura que aí é produzida. No capítulo intitulado
“Lo cercano se aleja”, palavras de Jorge Luis Borges citadas a Johann Goethe na sua
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conferência “A cegueira” entendemos que o que está próximo se afasta, distancia. Para o
argentino, não se pode imaginar as coisas melhor ou até mesmo lembrá-las, já que a ausência
é uma forma de presença e qualifica a cegueira como valiosa, bela. Não a vê como uma
desgraça, mas sim como um instrumento:
Aos poucos fui compreendendo a estranha ironia dos fatos. Sempre imaginei o
Paraíso como uma espécie de biblioteca. Há pessoas que o imaginam como um
jardim e outras que pensam nele como um palácio. Em todo caso, aí estava eu, no
centro de novecentos mil volumes, em diversos idiomas. Verifiquei que só tinha
condições de decifrar as capas e lombadas. (BORGES, 1983, p. 168)
O entardecer significa para Borges o momento de distanciamento das coisas
que estão ao seu redor, assim como o mundo anteriormente possível de ser visto, também se
afastou de seus olhos. Essa representação é um dos princípios do pós-modernismo segundo
Paul Virilio, que não se relaciona mais com a descontinuação do tempo.
O amor pelas enciclopédias, Atlas e catálogos resultou na elaboração da
complexidade borgiana e futuramente do lugar ocupado na história da literatura, e a biblioteca
representa o lugar no qual, de forma metafórica, ocorre sua profícua criatividade. De acordo
com Souza:
Na condição de escritor clássico e por ter adquirido, como consequência, a dimensão
resumida e sintética de um verbete de Enciclopédia, atinge paradoxalmente a
imortalidade e o anonimato, uma vez que sua obra se transformou, como ele próprio
profetizava, numa ”miscelânea de citações e de fragmentos de textos alheios”.
(SOUZA, 2009, p. 98)
Considerações finais
Há um convite para quem se aventura a percorrer a narrativa borgiana, de
modo a vislumbrar a construção da literatura, que depende de alusões e símbolos, uma caixa
dentro de outra caixa, e assim infinitamente. Esse tipo de escrita é o que se estipula chamar de
labirinto. Na concepção do autor, labirinto é a própria literatura, já que ela é uma construção
complexa que abrange muitos elementos ou partes deles, cheia de referências na qual cada
esconderijo é capaz de lançar o leitor a outro, imediatamente, contido em seu interior e, assim,
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sucessivamente até o infinito. A literatura é uma prática que nunca se esgota, flui na direção
do infinito; culminado na verdadeira forma de ser do ofício literário.
Referências
BORGES. O Aleph. Disponível em: <http://riesemberg.blogspot.com/2009/08/o-aleph-jorgeluis-borges.html>. Acesso em: 01 ago. 2011.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
SOUZA, Eneida Maria de. O século de Borges. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
Para citar este artigo:
CHRIST, Geisiara P. Uma leitura crítica do livro O século de Borges, de Eneida Maria de
Souza. In: IX SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA SÓLETRAS - Estudos
Linguísticos e Literários. 2012. Anais... UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná –
Centro de Letras, Comunicação e Artes. Jacarezinho, 2012. ISSN – 18089216. p. 939-944.
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