REVISTA EDUCARE ISEIB - MONTES CLAROS - MG V. 1 2005
A TRANSTEXTUALIDADE E A LITERATURA DE CORDEL
Doralice Alves de Queiroz 
RESUMO
Na literatura de cordel, a transtextualidade, conceituação desenvolvida por Gerard Genette, garantiu a sobrevivência
desta forma de manifestação popular. O cordelista, ao transformar o tema original, possibilita o surgimento de um novo
texto, singular, mas que conserva o traço germinal e as formas virtuais. A reescritura de um folheto pressupõe
transformações textuais sucessivas, que tanto pode ser da oralidade quanto de textos eruditos. Nessa leitura
palimpsêstica, verdadeiro jogo entre o texto e seus pré -textos, o cordel recria uma literatura própria, em que elementos
combinados formam um sistema de representação cultural, adaptável ao contexto socio-político e econômico brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura de cordel, Genette, transtextualidade, oralidade, palimpsesto.
Octavio Paz, no ensaio “Tradução: literatura e literalidade”, faz reflexões sobre o
ato de traduzir: através da fala, desde a mais tenra idade a criança procura manifestar seus
desejos, sentimentos, necessidades; da mesma forma, as culturas, em diferentes épocas, e
sociedades, traduzem as diversas visões de mundo que se processam através dos tempos.
A possibilidade de traduzir essas manifestações é que permite que se conheçam aspectos
diferenciados de modos de falar e sentir, tanto dentro da língua materna, como também
de povos diversos e entre línguas estrangeiras.
Na literatura, a transformação do original em outra obra faz surgir uma nova
criação, um novo texto, singular, mas não inteiramente inédito, já que se encontra
interligado ao texto inicial que, por sua vez, é resultante de uma sucessão de outros
textos. Esses textos se multiplicam tantas quantas forem as releituras que se fizerem, face
à impossibilidade de se chegar a um sentido único, a uma única forma.
O que garante ao texto recriado o direito à sobrevivência é exatamente o senso
de descoberta que ele compartilha com o original: há o desdobramento, o enriquecimento,
a ampliação do texto de partida, a tradução criativa. Haroldo de Campos (1980) considera
a tradução criativa uma transcriação, que, transformando o original em outra obra,
possibilita o surgimento de um novo texto. Levando em conta a poética da tradução
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Mestranda em Estudos Literários – Literatura Brasileira, na UFMG
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benjaminiana, Campos define a prática tradutória e interpretativa como uma estratégia de
apropriação e transformação não servil; metamorfoseia a figura universal do Anjo,
aparição mediadora que anuncia mensagens, em anjos duplos: guardam e, ao mesmo
tempo, expõem ao perigo, abrem e fecham portas, estabelecem ligação mas também
separam. Sua hipótese é de uma tradução luciferina, em que o anjo cede lugar ao
demônio, usurpando de uma forma criadora o original. Nessa laboriosa operação, as
soluções possíveis de serem encontradas são desafios que o transcriador tem de enfrentar.
A literatura de cordel, conhecida como uma das mais representativas expressões
da cultura popular, tem sua origem na Europa e aqui chegou, via Portugal, com os
colonizadores. As primeiras histórias impressas, vindas de Portugal, faziam parte de um
conjunto de requisições manuscritas que compunham o “Catálogo para exame dos livros
para saírem do Reino com destino ao Brasil” (conservado no Arquivo Nacional da Torre
do Tombo) e destinavam-se à Real Mesa Censória a quem competia deliberar sobre a
autorização, uma vez que toda matéria impressa, para atravessar o Atlântico rumo à
Colônia, estava sujeita ao parecer de um censor, que conferia ou não a licença.
No livro Histórias de Cordéis e Folhetos, Márcia Abreu (1999) informa que
aproximadamente 250 títulos de cordel foram inicialmente remetidos para o Rio de
Janeiro, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará. Eram histórias de “Carlos Magno”, de
“Bertoldo, Bertoldinho e Cacasseno”, de “Belizário”, da “Princesa Magalona”, de
“D.Pedro”, da “Imperatriz Porcina”, da “Donzela Teodora”, de “Roberto do Diabo”, da
“Paixão de Cristo”, de “D.Inês de Castro”, de “João de Calais”, de “Santa Bárbara”, de
“Reinaldos de Montalvão”. Entretanto, ressalva que não é possível determinar se os
títulos eram efetivamente de folhetos de cordel. As narrativas eram publicadas,
inicialmente, sob a forma de livros, escritos por autores eruditos, com vistas à circulação
entre as elites; sofriam adaptações em seguida para a publicação sob a forma de folhetos
de cordel. A autora esclarece que, embora adaptadas e recriadas com uma linguagem
mais simples, as narrativas conserva os temas originais e possuem vários pontos em
comuns, que se repetem de história para história. A trama tem como estrutura básica o
confronto entre um herói, a quem são atribuídas virtudes morais como coragem, justiça,
honra, lealdade, em contraposição a um vilão, ou vilões, caracterizados pela mentira,
inveja, dissimulação ou o eterno confronto do bem contra o mal. A organização dos feitos
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sustenta-se no encadeamento de ações, não havendo nenhuma constituição de cenário, de
ambiente, descrição de paisagem ou situações que não envolvam atitudes dos
protagonistas, conferindo universalidade aos folhetos. As ações poderiam ambientar-se
tanto na Europa como no sertão nordestino: a acomodação dar-se-ia pela veia poética do
transcriador.
No Brasil, esses títulos passavam por outras adaptações, aproximando-os das
narrativas orais, já que se destinavam a um público composto por analfabetos, na sua
maioria. A originalidade criadora do cordelista transformavam as matrizes dos cordéis
portugueses, adequando-os ao cotidiano do povo brasileiro. Formas fixas preservavam
uma
regularidade
como
elemento
mnemônico,
criando
uma
propensão
ao
conservadorismo. A questão formal tornou-se de vital importância para reconhecimento
da literatura de cordel: a versificação, a sonoridade, a seleção vocabular determinavam a
arte e técnica da produção popular.
Sobre o assunto, Idellete Muzart (1995) escreve:
Pode parecer difícil distinguir o imenso conjunto das narrativas de tradição oral
(contos tradicionais) daquelas oriundas da tradição escrita – livros populares
tradicionais, contos, lendas e outros relatos de diversos países, transmitidos pela
literatura infanto-juvenil, ou ainda pelos romances e novelas do século XIX e início do
século XX, que foram publicados em folhetins ou em livros, ou recriadas pela novela
de televisão. Descobertos por um poeta popular que os “traduz” em folheto,
versejando e recriando na língua e na poética popular (p.36).
Inúmeros são os exemplos das recriações que passaram, e ainda passam, os
textos dos folhetos de cordel. Um dos exemplos citados por Idellete Muzart é o caso do
cordelista Altino Alagoano, pseudônimo de Maria das Neves Batista Pimentel, que
“traduziu” romances famosos, como Notre Dame de Paris, de Victor Hugo,
metamorfoseado em folheto com o título de O corcunda de Notre Dame. Com o folheto
O violino do Diabo, reescreveu em verso o romance homônimo de Victor Pérez Escrich,
autor popular espanhol do século XIX. Absorvendo o sistema linear do romance, a
cordelista provoca modificações em suas estruturas narrativas para estabelecimento dos
seus próprios recursos de poeticidade: “o poeta popular transforma o livro da cidade, do
autor letrado em romance, romance na acepção clássica de adaptação e assimilação
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destinada a um certo ambiente social” (CASCUDO, 1979,p.12). O folheto se inicia com a
adaptação de um trecho do romance:
“A virtude é um espelho de diamante que faz retroceder o vício, receoso de ver
retratadas as suas asquerosas feições. Algumas vezes intenta despedaçá-lo, e esgrime
ardilosamente as suas armas, mas não leva muito tempo para reconhecer a sua
importância, e foge envergonhado de si próprio” (ESCRICH, 1938, p.7).
A cordelista transpõe em versos o sentido captado do texto:
A virtude é um lago
de água bem cristalina,
um espelho de diamante,
uma jóia rara e fina,
onde o vício não pode
lançar a mão assassina!
A preocupação com a originalidade da obra não prejudica a criação nas
narrativas populares. Reelaborando o esquema narrativo, o cordelista transcriador dá
autonomia a uma outra obra, em que se pode reconhecer traços da obra original. O
desafio que se impõe para a tarefa é fazê-la ser reconhecida pela comunidade, na
adaptação que se processa aos moldes e valores regionais.
Jerusa Pires Ferreira (1995) discorre em seu artigo “Matrizes impressas da
oralidade” sobre o conto Pássaro de Fogo, da tradição russa, encontrado no Nordeste
brasileiro em uma versão da década de 1960, provavelmente da autoria do pernambucano
Severino Borges da Silva. Segundo a autora é possível que o texto-matriz tenha aportado
no Brasil através de coletâneas, destinadas ao público infantil, difundidas pelas editoras
populares portuguesas e brasileiras.
Jerusa Ferreira explica o processo criativo:
Foi através da leitura deste conto, numa das edições brasileiras que adaptaram o
poema russo em prosa, que se deu a criação em verso pelo nosso folheto popular. É
bem claro, no entanto, que esta relação se encaixa num amplo universo intertextual,
presente em outras criações semelhantes e naquela apontada matriz oral e virtual que
organiza e ajuda a conduzir o feixe lendário, apropriado do texto impresso. Há uma
espécie de malha do conto maravilhoso conduzindo os esquemas narrativos;
comparando-os, passo a passo, veremos que, se estão diretamente ligados, vão se
cumprindo em cada um dos textos soluções poéticas diferenciadas”(p.49).
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É importante salientar que os folhetos trazem uma multiplicidade abundante de
criações, havendo várias edições para um mesmo folheto ou diversos textos são escritos
sobre um mesmo tema, para diferentes públicos. Assim, convivem na literatura de cordel
as mais variadas transcriações de temas como, por exemplo, a religiosidade que se
mistura com resíduos de cultos africanos e indígenas. É comum se encontrar folhetos que
versam sobre cultos dos santos, rituais, festas católicas, messianismo, adivinhação, curas
terapêuticas, elementos que, combinados, formam um sistema de representação do mundo
próprio à cultura brasileira. Versos para o sertão ou para a cidade, a feira ou a praça,
folhetos de louvação ou de divertimento, de informação ou de conselho, de religião ou de
política. Enfim, os cordéis retratam um universo múltiplo, versátil, prolífico, traduzindo
em verso aspirações, sentimentos e vozes populares. Os folhetos de cordel ganharam uma
forma peculiar a partir do trabalho exaustivo de talentosos artistas, os cordelistas
transcriadores, que, através dos seus poemas, cantorias e desafios, não somente utilizaram
os passos do enredo lusitano (ou europeu), mas recriaram uma literatura própria,
adaptável ao contexto sociopolítico e econômico brasileiro, em cujas criações se pode
perceber claramente o processo da transtextualidade.
Gerard
Genette,
em
Palimpsestes,
esclarece
que
seu
conceito
de
transtextualidade alcança “tudo o que coloca (um texto) em relação, manifesta ou secreta,
com outros textos”(p.7). Assim, a transtextualidade ultrapassa as cinco categorias
postuladas como relações transtextuais: a intertextualidade, a paratextualidade, a
metatextualidade, a arquitextualidade e a hipertextualidade. Na intertextualidade existe
uma relação de co-presença entre os textos, como a citação, plágio, alusão e são
encontrados dentro do texto. A paratextualidade representa a relação entre o texto
propriamente dito e seus “paramentos” assim considerados o título, subtítulo, posfácio,
notas de rodapé e tantos outros sinais que cercam o texto. A metatextualidade configura
um comentário explícito ou implícito de um texto a respeito de outro texto e a
arquitextualidade designa um texto como parte de um gênero ou gêneros, no sentido de
classificá-lo. As categorias não são classes estanques, sem comunicação. Ao contrário,
elas atuam de forma muitas vezes conjunta e complementar, sendo importantes na
construção textual. Considera, ainda, a hipertextualidade como um aspecto universal da
literariedade, não havendo, ao seu ver, obra literária que não evoque, de alguma forma,
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uma outra. Nesse sentido, todas as obras seriam hipertextuais, pois retomam outras, de
uma forma explícita ou não tão manifesta, constituindo-se como um palimpsesto.
A literatura de cordel mantém aspectos da literatura oral e popular, bem como
percebe-se nela a presença de textos eruditos, de contos de encantamentos, de fábulas, de
bestiários medievais. O folheto é fruto de reescrituras e transformações textuais
sucessivas, criando, assim, um texto inteiramente novo que, mesmo guardando algumas
marcas de suas origens e dos caminhos percorridos em seu processo de elaboração, tornase completamente outro. As principais transformações, relativas ao esquema narrativo, ao
papel dos personagens etc., introduzem novas motivações e significações.
Dentre as várias práticas transtextuais conceituadas por Genette, a transposição
da Bíblia é um dos muitos exemplos que se pode encontrar na literatura de cordel. O
mundo do cordel é impregnado de uma religiosidade primitiva; apesar de dominante, o
Catolicismo não é vivido em sua pureza ortodoxa e deixa-se invadir por superstições e
crendices. Ao lado do culto da Virgem e dos santos, o cordel revela uma religião
dominada também por artes de magia; intensamente marcada pela presença do Bem e do
Mal, cultiva uma noção do sagrado muito próxima dos cultos primitivos. Animista,
atribui poderes ocultos e misteriosos a animais, objetos, lugares e até ao tempo. O
sagrado se manifesta através de celebrações, fatos e coisas primordiais da religião. O
profano é a realidade, o dia-a-dia, sujeita à invasão das forças do mal.
A cordelista Célia Castro produziu um folheto intitulado O Nascimento de Jesus
(Foi aqui no sertão Nordestino), em que se pode perceber o processo da transposição do
texto bíblico. A ambientação é no sertão nordestino, “no sítio de Nazaré”, e a figura de
Herodes é transposta para um “coronel, cruel, brabo mais do que serpente”; Jesus, ou
simplesmente “Zé”, nordestino, pobre, anda no lombo do jumento e enfrenta o sol
abrasador do Nordeste. A estrofe inicial conclama o leitor para o assunto principal dos
versos, prática adotada pelos cordelistas:
Chamo atenção do meu povo
Deste Sertão nordestino
Pra falar dum casamento,
E da vida de um Menino
Que mudaram nossa história
Salvando nosso destino.
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A presença do Anjo Anunciador presente no texto bíblico é assim descrita pela
poetisa:
Soou a voz de Asa Branca
Dizendo: Vixe Maria!
Tu vai receber de Deus
Com a luz que alumia
Um presente precioso
Filho da nossa alegria.
Dois elementos populares podem ser destacados nesta estrofe. A expressão
“Vixe Maria!”(Virgem Maria), transcrita da linguagem oral nordestina, e a referência à
“Asa Branca.”. Ave da família dos pombos foi transformada pela tradição popular em
símbolo do sertão; a presença da Asa Branca é sinal de bom agouro e da estação de
chuvas. Nos versos do cordel, a ave representa também a mensagem divina, anunciadora
da boa nova ao povo, a esperança do renascimento. Ao transpor a figura do anjo à da
“Asa Branca”, a cordelista marca a presença do invisível no visível, em que as fronteiras
do humano e do divino se juntam determinando o lugar transitório entre um e outro.
Traduzindo a fuga de Maria e José para o Egito, a autora escreve:
Num terreiro de fazenda
Um povo que lá está
Dançando todos em volta
De um tal de Boi-Bumbá,
Uma festa interessante
Que se puseram a olhar.
.......................................
Foi então que Pau de Arara
Parando no pé da serra
Levou os três caminhantes
Em busca de Nova Terra,
A Virgem estava cansada
A viagem se encerra.
As transformações simbólicas que são realizadas pela autora deixam
transparecer tanto vestígios do texto erudito como da cultura oral tradicional. Ao serem
representados num contexto da realidade do Nordeste, como festas populares, meio de
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transporte, os fatos religiosos misturam-se ao profano, à crença do povo, perpetuando a
memória cultural.
A paródia, prática textual apontada por Genette como de regime lúdico, também
pode ser encontrada nos folhetos de cordel. Inúmeros cordelistas utilizaram-se dessa
forma de transtextualidade para popularizar alguns poemas de poetas famosos. No folheto
Canudos, de autor desconhecido, encontra-se uma paródia ao poema “Vozes d’África”,
de Castro Alves. A estrofe abaixo transcrita faz alusão ao jogo do bicho:
Castro Alves
“Deus! O’ Deus, onde estás que não respondes!?
Em que mundo, em que tu t’escondes,
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
Paródia
Avestruz! Avestruz! Aonde estás tão escondida?
Em qual campo, em qual bosque estás metida,
Que não ouves o meu eco?
Há mais de um mês que te mandei meu grito
Que reboa daqui ao infinito
O dinheiro que perco!...
O poeta popular ao parodiar o texto erudito, o faz alterando algumas palavras ou
dando-lhes sinônimos adequados ao novo contexto. Configura-se dessa forma a imagem
do “palimpsesto, na qual vemos, sobre o mesmo pergaminho, um texto se superpor a
outro que ele não dissimula completamente, mas deixa ver por transparência”
(GENETTE, p.21).
Os folhetos que narram histórias de encantamentos também utilizam a paródia
como prática textual. Yvonne Bradesco-Goudemand, no livro O ciclo dos animais na
literatura popular do Nordeste, cita algumas especificidades encontradas nos folhetos
que narram essas histórias: a heroína, sempre bela e sensível, não exerce nenhum papel
ativo, contenta-se em ficar apaixonada à primeira vista e em esperar o herói. É o aspecto
tradicional da Dama dos romances medievais, bela, amorosa e pura. Os animais
representam um papel determinante: é preciso vencer um monstro com a ajuda de um
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animal encantado. A história é moral e otimista em sua conclusão. Ela exprime uma
reivindicação social e um sentido de justiça que fazem com que o monstro, quer dizer, o
mal, a crueldade, o vício, seja sempre física e visivelmente repugnante, e será sempre
vencido pelo bem. A mitologia, as lendas européias, os romances de cavalaria formam as
matrizes dessas histórias, elementos que permanecem vivos e populares até os nossos
dias, adaptados harmoniosamente à vida e à mentalidade do sertanejo.
Raquel e a Fera Encantada, folheto anônimo, retoma todos os elementos de
base dos contos: trata-se de um pai viúvo, com três filhas, cuja caçula, Raquel, doce, boa,
amável, é detestada por suas duas irmãs, que são más e orgulhosa, numa alusão à história
da “Gata Borralheira”. O pai faz uma viagem e pergunta às filhas o que querem de
presente. As duas mais velhas pedem jóias preciosas, a mais nova não quer nada, mas,
pressionada, pelo pai, pede uma rosa.
O velho pelejou muito
Na mesma ocasião
Raquel estava sentada
Com uma rosa na mão
Lhe disse: traga uma rosa
Descanse seu coração
Note-se que há uma co-relação também com o conto de “A Bela e a Fera”
bastante difundido na cultura popular. Os versos continuam com a narrativa: o pai perdese numa floresta, em plena tempestade e, tendo recorrido à Nossa Senhora, encontra um
abrigo encantado no bosque, onde vive um monstro. Depois de pernoitar, na saída, colhe
uma rosa nos jardins, para levar para sua filha. O monstro lhe diz:
“Qualquer pessoa que tire
Uma flor deste jardim
Não há perdão para ele
Aqui mesmo leva fim”.
Mas o monstro não é má pessoa, e concede-lhe três meses de prazo para que
possa assegurar o futuro de sua querida filha, depois, o pai deve voltar e morrer. Raquel,
por abnegação, toma o lugar do pai, se sente comovida ante esse monstro que se funde
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em lágrima de emoção a cada passo. A emotividade é outro ponto forte na literatura
popular e o poeta utiliza este aspecto para humanizar a fera:
A fera muito tristonha
Chorando lhe disse: vá
Mas tenho a plena certeza
Que tu não voltas mais cá
..........................................
A fera banhada em pranto
Deu um suspiro e um ai
Dizendo: a dor de quem fica
Não é como a de quem vai
O monstro é um príncipe encantado, que retoma sua forma humana e o final feliz
recupera a história tradicional. Nesse folheto, aparecem os clichês dos contos de fadas,
tanto no que diz respeito ao tema, como aos personagens e ao encaminhamento para um
sentido moral. A fera cumpre castigo enquanto metamorfoseado e seu encantamento é
rompido pelas boas qualidades da heroína, que reconhece suas próprias virtudes refletidas
no monstro.
Outro folheto, A bela e o bode, de autoria de Sílvia Matos Rocha, dá ao leitor a
pista falsa de que a inspiração para a poetisa teria sido novamente o conto de fadas A bela
e a fera. Na verdade, os versos narram a trajetória de Manuela, “moça mais bela que um
jasmim”. Com a sua beleza, a moça casou-se inúmeras vezes, sempre ficando viúva em
seguida. Manuela escolhia seus maridos pelos bens que eles tinham, o que lhe
proporcionava uma vida de luxo e riqueza. Até que aparece em sua vida um novo
pretendente, descrito como dono de um “coração encantado, muito rico e engraçado”.
Mas, mesmo sendo “feliz e viver a sorrir e a cantar” com o novo parceiro, a moça
desconfiava de que havia algo errado:
Nas noites de lua cheia
Ele se punha a berrar
Virava coisa feia
Que dá medo até falar
Se esponjava na areia
Com dois chifres a despontar
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Num bode se transformava
Pra Manuela gritando
Se você me procurava
Eu já estava chegando
A terra pisoteava
Saía tudo chifrando
Manuela apavorada
Pedia a Deus proteção
Nos pés dos santos chorava
Com fé e com devoção
E arrependida ficava
De toda a sua má ação.
Mais uma vez a poeta popular utiliza-se da metamorfose para castigar aquele
que não se enquadra nos padrões morais e conservadores do povo do sertão. No Grande
Livro dos Símbolos (TRESIDDER, 2003), virilidade, potência, luxúria, astúcia e
destrutividade são qualidades atribuídas ao bode. O bode era a montaria do deus védico
Agni, puxava a carruagem de Thor e estava estreitamente ligado ao deus Dionísio, além
de fornecer muitas das características físicas de Pã e dos sátiros. O bode é lembrado
tradicionalmente, no imaginário popular, como a imagem do diabo, a tal ponto que este é
representado com chifres, barba e patas do animal e é também associado a significações
depreciativas, como a de bode-expiatório, culpado de todas as faltas dos homens. Vários
folhetos de cordel foram escritos tendo como tema maldições que transformam pessoas
em bode. A exemplo dos bestiários medievais, as narrativas tem um objetivo moral,
mostrando a metamorfose de humanos em animais, como resultado de castigo ou como
redenção dos pecados.
Maurice van Woensel (2001) informa que o termo “bestiário” apareceu no
começo do século XII, na França, expandindo-se logo em seguida para outros países do
Norte da Europa. Designavam-se Bestiários as obras redigidas em prosa ou verso que
continham descrição de certos animais, reais ou legendários, visando a um ensinamento
religioso e moral. Modalidade literária popular na Idade Média, os Bestiários eram
manuais de história natural e de doutrina cristã, em cuja veracidade o homem medieval
acreditava como se fossem um tratado científico. A inspiração inicial para a construção
dos Bestiários medievais foi a Antiguidade Clássica greco-latina, com a compilação
alexandrina, de autor anônimo, surgida no século II, chamada Physiologus ou
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“Naturalista”, que consistia em um repertório de animais, de plantas e de pedras
utilizadas como suportes simbólicos de uma educação doutrinária e de preceitos morais.
A produção literária está cheia de histórias sobre animais; muitos escritores
dedicaram-se a esses companheiros, cujos costumes é muitas vezes assimilados aos dos
seres humanos, fazendo-os participar estreitamente de nossa vida, como verdadeiros
protagonistas, intérpretes e caricaturas de nossos pensamentos, de nossas reações;
animais que falam e agem como homens ou, então, que os julgam e criticam. Alguns dos
grandes mitos e lendas baseiam-se na simbiose, analogia orgânica dos dois reinos. Quase
não se encontra narrativa folclórica ou conto popular em que o animal não se misture às
aventuras dos humanos. Essas narrativas possuem um valor educativo e constitui uma
espécie de documentário sobre a astúcia invencível, graças à qual os fracos, os pobres, os
desafortunados devem defender-se dos fortes, dos arrogantes. É, também, um
documentário da sabedoria popular, pragmática, que, muitas vezes, nada tem a ver com
os preceitos morais e cristãos. A literatura de cordel, como principal manifestação da
cultura popular, tem como um dos seus temas classificatórios o ciclo dos animais. Velhas
narrativas, em contos maravilhosos ou em novelas tradicionais, consagram o papel dos
animais. Muitos folhetos de cordel foram escritos tendo como tema maldições que
transformam pessoas em bode ou cabra. O cordelista José Costa Leite elaborou o folheto
A briga de Antônio Silvino com a moça que virou cabra, iniciando com a descrição do
personagem Antônio Silvino e as atividades da moça que virou cabra:
Antônio Silvino foi
Um homem de gênio cru
Matou diversos capangas
Nas terras do Pajeú
E teve uma luta braba
Com a moça que virou cabra
Entre salgueiro e Exu.
A moça que virou cabra
Só andava na rodagem
Perseguindo aquele povo
Que gosta de malandragem
Para lhes desacatar
E gostava de lutar
Com sujeito de coragem.
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Depois de narrar inúmeros embates entre o herói Antônio Silvino e o animal
metamorfoseado, nos versos finais há a explicação e o desfecho da história:
A cabra disse: - Silvino
Eu sou um ser encantado
Mamãe amaldiçoou-me
Já andei por todo Estado
Correndo de mundo afora
Peço por Nossa Senhora
Não seja assim tão malvado.
Silvino disse pra ela
- Você também é malvada!
Ela disse: - Eu daria tudo
Pra não viver encantada
Parece uma coisa louca
Se beijares minha boca
Ficarei desencantada.
Ele beijou-a na boca
A cabra desencantou-se
Numa moça muito linda
Num instante transformou-se
Muito meiga e sorridente
Chorando de tão contente
E com Silvino abraçou-se.
O folheto faz aproximações com o conto de fadas A Bela Adormecida. Porém, a
inventividade do poeta faz um conto às avessas, invertendo papéis e situações. A bela,
não é tão bela, pois está travestida de cabra; ademais, enquanto animal, provocou
inúmeras badernas e confusões, diferente da “adormecida” do conto, encarcerada no
castelo. O herói, descrito na primeira estrofe, está mais para bandido do que para
príncipe, e enfrenta de todos os modos a cabra, num embate de igual para igual. A
maldição da moça só é desfeita depois de muito sofrimento e luta e da compaixão do
homem que a beija, tornando-a “uma moça muito linda, meiga e sorridente”,
configuração que ratifica o protótipo tradicional da mulher.
A expiação dos pecados através de sofrimentos e castigos estabelece paralelos,
aproximações, reforçando a afirmativa e a argumentação dos valores esperados para a
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conduta da comunidade. Ao refazer o percurso que vai do oral ao escrito, percebe-se um
hipertexto com as marcas dos muitos caminhos que toma a comunicação narrativa. Essas
marcas, estejam elas no título ou em outros sinais que apontem a relação entre os textos, é
um indicativo paratextual que o autor remete a seu leitor. As alusões, referências,
representações imediatas vão delineando a dimensão regionalizante.
Finalizando, poderia se dizer que o poeta cordelista ao contar suas histórias,
produz afirmações historicamente possíveis para o Nordeste, repetindo anacronismos e
fórmulas feitas, elaborando e reelaborando eventos passados e presentes. E que, ao propor
uma reinterpretação local dos fatos reais, ele recupera a tradição regional da mesma
forma que a interliga com outras fontes orais ou escritas. Utilizando-se de mecanismos
como a transcriação, e de práticas da transtextualidade como a transposição, paródia,
paráfrase, cria uma literatura própria, única e, ao mesmo tempo, múltipla, em que se pode
visualizar
outros
textos,
caracterizando
verdadeiras
operações
palimpsêsticas
responsáveis pela perpetuação dos valores e costumes da comunidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Letras,1999.
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1 A TRANSTEXTUALIDADE E A LITERATURA DE CORDEL