A CONSTRUÇÃO DO MITO E UMA LITERATURA
Francisco Edson Sousa de Oliveira¹
Perspectiva Amazônica - Santarém - PA. Ano I. Vol. 2 p. 44-53 ago. 2011
RESUMO
A referida pesquisa objetiva mostrar a construção do discurso fantástico do imaginário, que serviu como
cenário de fundo na imaginação dos arrivistas para engendrar conceitos de um mundo abundante de riquezas.
Mostrar o frenetismo que determinou a formação de idealizações que não se sustentam epistemologicamente,
por se tratar basicamente de interesses ideológicos e utópicos provindos de caricaturas imaginadas de
personagens que já existiram em outros espaços do mundo. Identifica também a diversidade e a dinâmica das
relações verdadeiras e responsáveis que deveriam existir entre o geral e o particular numa proposta dialética
que trate das especificidades do universalismo no regionalismo que habitam diariamente o quadro polivalente
daAmazônia.
Palavras-chave: Imaginário, Riqueza,Arrivistas.
ABSTRACT
This research SUMMARY objectively show the construction of the fantastic imaginary discourse, which
served as the backdrop in the imagination of arrivistas to engender concepts of a world abundant wealth. Show
the frantic who determined the formation of idealizacion that does not support epistemology, basically
ideological interests and imagined utopian from caricatures of celebrities that already existed in other spaces of
the world. Identifies also the diversity and dynamics of real and responsible relationships that should exist
between the General and particularly in a dialectical proposal dealing with the specifics of universalism in
regionalism that inhabit daily polyvalent framework from Amazon.
Keywords: Imaginary, Richness,Arrivistas.
¹Possui graduação em Letras pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Santarém (1994), mestrado em Gestão do Desenvolvimento e Cooperação Internacion pela
Universidade Moderna (1999) e doutorado em Literatura Geral e Comparada - Universite de Limoges (2006). Atualmente é coordenador - 5ª Unidade Regional de
Ensino, professor - Esc. Est. de Ens. Fund. e Médio Júlia Gonçalves Passarinho e professor - Faculdades Integradas do Tapajós. Tem experiência na área de
Administração, com ênfase em Administração, atuando principalmente nos seguintes temas:Amazônia, Literatura Emergentes, ensino, administração escolar, escola
rural e comunidade.
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O desenvolvimento da Amazônia nas últimas décadas tem sido objeto de debates e interesses dos
primeiros arrivistas, desde o início do processo de colonização. Porém, os discursos que tratam sobre o tipo de
desenvolvimento apropriado para essa espacialidade apresentam contornos diferentes, principalmente, quando
a referência são os aspectos: antropológicos, políticos, culturais e históricos.
São apresentados os sonhos do fantástico que a Amazônia sempre representou na imaginação dos
colonizadores ao longo da história, idealizavam-se riquezas na superfície da terra, animais monstruosos no seio
da selva e adamitas intrépidos que habitavam o fundo dos rios e as densas florestas.
O construto medieval servia de referencial para consubstanciar as ideias inusitadas projetadas durante o
período das grandes navegações, principalmente para alimentar o misticismo que pairava sobre a possibilidade
de explicar o Céu e o Inferno que cobriam tão vasta planície inatura de um mundo, ainda em segredo para a
maioria.
Nessa pesquisa, busca-se mostrar que a construção do imaginário sobre a Amazônia deu-se basicamente
pela idealização e não pelo amalgamento dos elementos em causa, que realmente poderiam ter servido como
espírito de construção antropológica para um desenvolvimento nteses publicadas, principalmente, na Europa
sobre a invenção daAmazônia.
Criticamente, a Amazõnia sofreu grandes involuções ocasionando-lhe o subdesenvolvimento,
ilustrando um cenário maravilhoso com visão europeizada e uma visão greco-latina contada por heróis
conquistadores. Expondo assim, uma realidade de que a Amazônia não foi descoberta nem inventada, mas sim
construída, fabricada sob a égide do imaginário, do engenhoso artífice que lembrava a Índia (HOLANDA,
1985).
O referido artigo então, procura num primeiro momento refletir sobre as ideias que foram sendo
construídas na imaginação dos arrivistas que “viajavam” em busca de riquezas e novas dimensões territoriais,
sem contudo, compreender o mundo real daquela espacialidade. E enfatizar que é esse discurso que ainda se
repete quando da implantação de grandes empreendimentos para aAmazônia.
Posteriormente, aponta-se para os aspectos vários vivenciados pelo nativismo ameríndio já existente
naquelas terras devolutas, porém, delimitadas por limites do ponto de vista antropológico, embora desconhecida
do velho mundo, e chama-se a atenção para uma necessidade emergente da construção de um discurso que se
sustente na identidade e nos pilares de desenvolvimento que convergem e emergem dessa espacialidade.
2 ACONSTRUÇÃO DO MITO E UMALITERATURA
AAmazônia desvenda e esconde a utopia do Novo Mundo. Desde o século XVI até o fim do século XX,
quando já se anuncia o XXI, há muito de utopia no que se pensar e dizer sobra aAmazônia. São muitos, em todo o
mundo, que ainda sonham com a ilusão de que ali se escondem exotismos, deslumbramentos, maravilhas. Muito
do que se diz sobre a Amazônia, em prosa e verso, nas mais diversas línguas, expressa a ilusão do outro mundo.
Ocorre que aAmazônia tornou-se o emblema de uma utopia situada na natureza.
2
Holanda, Sérgio Buarque de Visão do Paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil, 4 ed. São Paulo, Nacional, 1985, p. 62
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1 INTRODUÇÃO
Perspectiva Amazônica - Santarém - PA. Ano I. Vol. 2 p. 44-53 ago. 2011
Para os povos que viviam na outra metade do mundo, significou o contato com uma nova ética e
costumes estranhos – do traje à alimentação, organização social e construção das cidades abstratas2 - traçado
arquitetônico desvinculado de uma ancestralidade clânica e/ou divina.
Também eram guerreiros como eles, aqueles homens que diziam ter vindo do céu. O espanto inicial foi
mútuo, mas a primeira pegada fincada na areia marcou o encontro entre culturas e civilizações distintas e o
extermínio quase total do nativo pelas armas, doenças e escravidão. O filho de Manco II, TituCusiYupanqui, que
governou os incas em Vilcabamba de 1557 a 1570, descreve os conquistadores espanhóis como certas pessoas
muito diferentes de nosso costume e vestuário, vistos como “viracochas”, o criador de todas as coisas, gente de
semblante diferente porque andava em uns animais muito grandes, os quais tinham os pés de prata. Eram
homens diferentes também porque os viram falar sozinhos em uns panos brancos como uma pessoa falava com
outra, e isto era porque liam livros e cartas. Foram ainda chamados de “Huiracochas” porque tinham yllapas,
nome que nós temos para os trovões, e isto diziam por causa dos arcabuzes, porque pensavam que eram trovões
dos céus...3 Esses homens chegaram em espécies de torres ou pequenos morros que vinham flutuando sobre o
mar4, fatos que iam concretizando a série de augúrios pressagiados anos antes no reino de Motecuhzoma. Essa
visão mágica inicial dos habitantes da outra metade da terra é modificada posteriormente pelos cronistas incas,
como Guamán Poma, ao relatar que os estrangeiros sonhavam acordados com o ouro e a prata do Peru e se
matam os espanhóis e desterram os pobres dos índios, e por ouro e prata já ficam despovoados parte deste
reino, as aldeias dos pobres índios, por ouro e prata...5
A Idade Média viu desenvolver-se o gênio de Petrarca, Boccacio, e Dante, mas eles eram ilhas
iluminadas no universo imóvel do medievo, dominados pela vingança, paixão e aventura, pelo orgulho,
insegurança, sofrimento, miséria e pessimismo, ascetismo e apego à matéria, ódio e bondade6. Era como se o céu
e o inferno se tocassem e dois polos brotassem e para eles mesmos fluíssem e refluíssem a concepção de vida, o
misticismo, o ideal cavalheiresco, formalmente acomodados em alicerces abstratos que apontavam para o
abandono e melhoria do mundo.Afuga das pestes, da violência, da cobiça, dos demônios, das injustiças; o medo
do inferno, do fim do mundo e das bruxas teria pelo sonho a via que possibilitaria uma vida mais bela.
O conteúdo deste ideal [o sonho] é um desejo de regresso à perfeição de um passado imaginário (...) Mais
forte e mais duradoura de todas é a ilusão de um regresso à natureza e aos seus inocentes prazeres pela
imitação da vida pastoril. Desde Teócrito ela nunca deixou de dominar as sociedades civilizadas7.
O idealismo medieval estava ligado a um princípio geral, que não necessitava encontrar as realidades
individuais das coisas – não era importante a construção das diferenças.
O conteúdo que prevalecia era a procura de um sentido universal que funcionava como norma e modelo
de concepção: todas as coisas serão absurdas se o seu significado se limitar à sua função imediata e a sua
fenomenalidade e se, pela sua essência, não alcançar um mundo para além deste8.
A procura de um significado comum que ultrapassasse a exterioridade do objeto, conectando sua
essência a uma ideia que indicasse finalidade e não efeito independente ou descolado do sofrimento ou da
3
León-Portilla, Miguel. A conquista da América Latina vista pelos índios. Relatos astecas, maiase incas. 2 ed. Petropólis, Vozes,1985,pp 120-1
4
Id. A visão dos vencidos. A tragédia da conquista narrada pelos astecas. Porto Alegre, L& PM, 1985, p.32.
5
Id. A conquista da América..., p.99.
6
Cf. Huizinga, Johan. O Declínio da Idade Média. Lisboa, 1924,pp. 10ss.
7
Huizinga, id., p. 39.
8
Id.,p. 208.
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virtude individual, não só caracteriza o pensamento simbolista medieval como foi um salutar
contrapeso ao forte individualismo religioso, inclinado á salvação pessoal9. O realismo do medievo – assim
alcunhado o idealismo pelos escolásticos – tendia a concretizar os conceitos, inclinava-se a transformar em
imagem o pensamento e, por esse motivo:
Quando o homem da idade média quer conhecer a natureza ou a razão duma coisa, não a observa para lhe
analisar a estrutura íntima, nem para inquirir sobre as suas origens; olha antes para o céu, onde ela brilha
como idéia. Quer se trate duma questão política, moral ou social, primeiro passo é reduzi-la sempre ao seu
princípio universal10.
Esse princípio fundamental emanava de Deus, que dá sentido àquilo que é vazio. Quando vemos todas as
coisas em Deus e com Ele nos relacionamos, poderemos ler nas coisas vulgares uma significação de ordem
superior11.
Embora a concretização dos conceitos levasse o homem do medievo a buscar relações simbólicas com
Deus – origem e fim de todas as coisas -, essa mentalidade ainda vai permanecer em obras como a preparada
entre 1645 e 1650 pelo licenciado Antônio AntonioLeoónPinelo, que vê as insígnias da paixão do senhor, na
flor do maracujá, símbolo do fruto proibido e tentação de Eva13.
Se a rígida estruturação social fortemente hierarquizada da Idade Média, fundamento da sua própria
filosofia de construção refletia-se nos conceitos e imagens relativos ao alto e baixo, na sua expressão espacial e
escala de valores14, o imaginário do homem medieval estava povoado, por outro lado, pelas lendas que
descreviam o mundo fantástico oriental, retratado nas viagens de Marco Pólo(1251-c. 1323), nas maravilhas do
mundo de Jehan de Mandeville(1300-1372, na Imago Mundi(1410) do Cardeal Francês Pierre d'Ailly(13501420), livro de cabeceira de Cristóbal Colón15.
Essas histórias maravilhosas falavam de povos estranhos, grotescos, monstruosos. A natureza não
menos fantástica era povoada por animais não menos estranhos: unicórnios passeavam por entre a vegetação
encantada, composta por ervas capazes de curar qualquer doença, podendo ser encontradas próximas a fonte da
eterna juventude. Eram histórias construídas, coletadas ou reproduzidas a partir de relatos de homens que
viveram na Antiguidade, como Heródoto, almirantes que comandaram a expedição de reconhecimento do Rio
Indo a mando de Alexandre, o Grande, padres missionários que visitaram o reino do Grão Khan, peregrinos em
busca dos lugares santos, comerciantes árabes e judeus. Muitos viajavam à procura do berço da humanidade
descrito na Sagrada Escritura ou em busca da história da sua raça.
De todos os lugares visitados pelos antigos e medievais, houve um que os impressionou mais vivamente:
9
Id.,p.212
10
Id., p. 221
11
James W. apudHuizinga, op.cit., p.208.
12
Huizinga, id, p XXII.
13
Holanda, Sérgio Buarque de, Visão do Paraíso. Os Motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil, 4 ed. São Paulo, Nacional,1985, p. 62.
14
Bakhtin Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo/ Brasília ,Huicitec/UNB,1987,p.319.
15
Cf. Dias José Sebastião da Silva, Influencia de Los Descobrimentos em la vida cultural Del siglo XVI. México, Fondo de Cultura Econômica, 1986, p 149.
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Relação profunda do espírito ou relação misteriosa entre duas idéias, o simbolismo medieval foi um
obstáculo ao desenvolvimento do pensamento causal, visto que as relações causais e genéticas deviam
parecer insignificantes ao pé das ligações simbólicas12.
a Índia misteriosa, para onde confluía a síntese dos climas, dos acidentes geográficos, da flora, da fauna e
da religião. Lugares quentes e frios, vales e montanhas, rios e mares, aves e elefantes, verdor eterno das árvores,
mitologia metempsicose, vegetarianismo, sensualidade, ascetismo, luxo e despojamento. Talvez somente
através de comparações ou a partir da verdade das Escrituras ou, ainda, com a ajuda do imaginário de cada um,
fosse possível falar ou escrever sobre ela.
Perspectiva Amazônica - Santarém - PA. Ano I. Vol. 2 p. 44-53 ago. 2011
Nem descoberta, nem inventada, mas construída, fabricada, obra constantemente refeita sobre o ofício de
ingênuos ou engenhosos artífices e traficantes do imaginário, a Índia nos lembraria, se assim fosse
necessário, que a observação é filha da memória e que o espantoso retira seu sabor da repetição insaciável
do ouvir dizer16.
A construção da Índia teria como arcabouço a soma das Realiae das Mirabilia Indiae, no horizonte das
quais se insere a mitologia indiana como a fornecedora dos arquétipos das mirabilia e a realidade observada sob
o prisma do maravilhoso, sendo agrupada nos relatos dos argonautas da frota do conquistador macedônico,
penetrada na Europa através da historiografia greco-romana. Fundindo-se nas duas, acrescente-se ainda as
maravilhas da Índia de Heródoto- que talvez tenha se inspirado em Hécato de Mileto ( séc. Vl a.C.) e este,
provavelmente em Scylax (c.515) __, popularizadas pelos repetidores e/ ou coletadores de Ctésias de Cnido17.
Estava fortemente enraizada na Idade Média a doutrina da unidade fundamental do gênero humano18.
Além das fronteiras geográficas conhecidas, nem os doutos da Antiguidade, nem os escolásticos admitiam a
ideia da existência de antropóides adamitas normais. Temas como o da inabitabilidade da zona tórrida, do antimundo, do Paraíso terrestre, do inferno, dos antípodas, do mar tenebroso, do movimento das águas, da grandeza
da terra, da anunciação do Evangelho a todos os povos eram conhecidos, discutidos e aceitos como verdades
inquestionáveis. A doutrina da unidade humana postulava a impossibilidade da existência de adamitas fora do
circuito judeu-arábico-cristão e periferia. Somente como hipótese ilustrativa desse universalismo cristão, Santo
Agostinho em sua Civitas Dei (413-426) admitia a existência de adamitas fora da oikoumené, mas antropóides
não normais19.
Com o passar dos séculos e o respectivo fortalecimento do catolicismo, essas anomalias humanas foram
se apresentando cada vez mais nas obras dos viajantes, nas prédicas religiosas ou nos textos puramente
ficcionais, mas sempre distantes daquele círculo geográficos. Adquiriram tal requinte no medievo que cartas
náuticas localizavam com precisão ficcional os pontos onde o mar desaparecia, tragado por imenso buraco. As
delicadas iluminuras que ornavam os textos manuscritos retratavam e contavam a história daqueles entes
extraordinários extraídos dos relatos de viagens ou da geografia de Ptolomeu. Autores havia que falavam pela
boca de remitas ou que afirmavam terem pessoalmente estado nesses lugares extraordinários. Copiar textos dos
outros não era uma atividade inédita. As narrativas mesclavam o fantástico pagão e cristão – o jardim das
Hespérides e o Gênese confirmam20 -- muito tempo antes que o homem ocidental se lançasse em viagens mais
arrojadas pelo oceano desconhecido. Buscava-se o Paraíso, que representava o sonho sempre perseguido de
viver eternamente, longe das pestes e da fome, sem necessidade de trabalhar, pois aquele lugar prodigioso, com
uma só estação perdurando o ano inteiro, tinha árvores que produziam sem cessar e eram banhadas por rios
perenes.
16
Weinberger - Thomas, Catherine (org.) et alii. L 'Indeet l 'Inde et l 'imaginaire. Paris, École dês HautesÉtudesemSciencesSociales, 1988, p. 11.
17
Cf. Idem, p. 15.
18
Dias, op. Cit., p. 148.
19
Cf. Dias, op. Cit., p. 148
20
Cf. Holanda, op. Cit., p. 131.
48
colonização e dos assentamentos de garimpeiros em toda a região.
As matrizes culturais indo-caboclas foram cedendo espaço a economia, nos beiradões e nos centros dos
seringais e castanhais, ao novo grupo “cearense” e depois aos “gaúchos”, ficando cada vez mais isolados nas
suas reservas e malocas, ou nos seus sítios e roçados dos baixos rios. Os contatos entre esses grupos nem sempre
foram pacíficos, pois a história registra lutas e conflitos pela posse, domínio de vastas áreas de floresta densa,
disputadas por seringalistas, extratores, fazendeiros e agricultores.
A contribuição indígena - cabocla para a ocupação e desenvolvimento da Amazônia foi, no entanto,
considerável e sem ela a tarefa de descoberta e exploração teria possível. Submissos, subordinados, adaptados
ou integrados, eles assinaram aos novos senhores e imigrantes os segredos do rio, da terra e da floresta. Dessa
20
Benchimol, Samuel. Amazônia Formação Social e Cultura p. 21. Manaus; Valer., 1999
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Portanto, essa é uma interpretação milenar que sempre fertilizou as grandes viagens em busca do eterno
paraíso, sabe-se que, seria fácil idealizar o que foi essa constituição, pois, partia-se do princípio de que numa
África esturricada habitar animais monstruosos, o que não habitaria por estas bandas do ocidente? Então, essa
construção dedutiva, não se corroborou na prática.
Esses aspectos históricos da formação dos primórdios da Amazônia, apresentam-se marcantes em toda
sua evolução, principalmente, o medievo, onde se constata nas aldeias mais originais a preocupação não
intencional com aquele contexto do sagrado. O conhecer, o saber, o viver e o fazer na Amazônia colonial foi um
processo predominantemente indígena. Os ameríndios que iniciaram essa ocupação e os seus descendentes
caboclos (do tupi caá-boc, “tirado ou procedente do mato”, segundo Teodoro Sampaio) desenvolveram as suas
matrizes e os seus valores, a partir do íntimo contato com o ambiente físico e biológico. O seu ciclo de vida se
adaptava às peculiaridades regionais, delas retirando os recursos matérias de subsistência e as fontes de
inspiração do seu imaginário de mitos, lendas e crenças. Especiarias, drogas do sertão, ervas medicinais,
madeiras, óleos, essências, frutos, animais, pássaros, bichos de casco e peixes, constituíram um mundo novo e
exótico que exacerbava a cobiça do colonizador e excitava o paladar dos novos senhores. No fundo desse
quadro, centenas de nações e etnias indígenas dívidas pelas falas, linguajares e rivalidades, apesar da rebeldia e
insubmissão, pouca resistência puderam oferecer ao invasor caraíba.
Assim, começou a Amazônia Lusíndia, mais índia que lusa, porém, mesmo assim, suficientemente forte
para influenciar os novos padrões culturais e espirituais europeus a serviço da fé e do império. Estes acabaram
por desintegrar a identidade cultural indígena, através das tropas de resgates, aldeias, missões, reduções,
catequeses, queima de malocas, dízimos e trabalho servil20.
Andar pelo interior da Amazônia é compreender a expressão do medievo na face dos indígenas, desde a
obediência ao arrivista à fidelidade aos princípios da doutrina católica. Observa-se que as narrativas apresentam
certo tom de heroísmo nas atividades agrícolas, pastoris e pesca. Asimbologia no tratamento com os fenômenos
naturais; a atribuição do desconhecido á deuses que habitam a imaginação do objeto estranho. Com isso, aparece
o aspecto da magia, sem contudo, desconsiderar a força da natureza, que atua beneficamente sobre um sujeito
temente, que considera o céu e o inferno como sendo verdades imutáveis.
Mais tarde, quando se iniciou a marcha dos cacaueiros e seringueiros nos baixos e altos rios, a onda
invasora nordestina transformou os seringais e castanhais em centros de extermínio de muitas tribos e etnias
ameríndias, processo esse que seria mais tarde repetido quando da expansão da fronteira agrícola e pecuária que,
nas últimas décadas, desceram do planalto central para ocupar as terras dos eixos rodoviários dos projetos de
herança cultural indígena-cabocla destacam-se muitas contribuições, que abaixo procuramos resumir e
inventariar:
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Conhecimento dos rios, furos, paranás, igarapés e lagos como meio de transporte, fonte de água doce,
viveiro de plantas, peixes, animais e gramíneas;
Aproveitamento das várzeas dos rios de águas barrentas e claras, aos quais se denominavam de paranástingas, em contraste com os pobres rios de água preta - os paranás-pixuna;
Convivência com o regime das enchentes e vazões fluviais, um importante fator de adaptação e uso
potencial de suas águas e terras;
Uso da floresta com a sua distinção entre o cáa-etê das terras firmes das madeiras de lei e o cáa-igapó das
áreas inundadas, das madeiras brancas;
Construção de montarias, igarités, jacumãs, remos, balsas e jangadas para dominar o transporte sobre os
rios e vencer os estirões da distância;
Percalços da navegação das sacados, remansos, terras caídas, praias, pedras, calhaus e troncos;
Práticas agrícolas dos roçados de mandioca e o seu preparo mediante maceração, uso do tipiti, fervura
para eliminar os tóxicos dos tubérculos e o seu preparo nas casas de farinha;Técnicas de desmatamento
de floresta pela broca, derrubada, queima e coivara, típicas da agricultura itinerante do slasch-andburn,
em virtude da pobreza dos solos tropicais de terra firme;
Caça e identificação de animais silvestres para fins alimentares e aproveitamento do couro para fins
industriais, como o caititu, capivara, anta, cutia, tatu, veado, onça e outros bichos do mato;
Pesca e identificação das principais espécies como o pirarucu, tambaqui, tucunaré, pacu, sardinha,
jaraqui, matrinchã, piramutaba, piraíba e outros peixes de escamas e peles, bem como, dos instrumentos
e artefatos de apanha e captura;
Apanha dos bichos de casco como a tartaruga, tracajá, iaça, jabuti, matamatá, muçuã e dos mamíferos
aquáticos como peixe-boi,lontra, ariranha, e os lendários botos vermelhos e tucuxi;
Construções de casas de paxiúba e palha de buçu, de pau a pique para vencer as enchentes, de flutuantes,
tapiris, marombas, palafitas e malocas;
Artesanato de cuias, paneiros, jamaxis, cestos, tipitis, redes e produtos ergológicos de cerâmica como
alguidares, igaçabas, vasos e objetos de adorno, tatuagens e outras manifestações criativas da arte
indígena plumária, cetária, tecelagem, artefatos de barro e amuletos;
Culinária e preparo de peixes: frito, assado, cozido, moqueado, seco-salgado, defumado, temperado
com molhos de pimenta-de-cheiro, murupi e jambu; no preparo da mixira de peixe-boi e na farinha de
piracuí; no cozimento das carnes deliciosas dos bichos de casco e no preparo dos seus ovos, no estilo do
arabu(com sal) ou mujanguê (com açúcar), para comer ou para ser transformado em banha de tartaruga
que, durante décadas, serviu de energia alternativa para iluminação das casas portuguesas ou para fins
culinários, proteção e embelezamento da pele;
 Descoberta dos deliciosos frutos silvestres como tucumã, pupunha, cupuaçu, bacuri, mari, pajurá, abiu,
cubiu, murici, açaí, bacaba, patauá, uixi, mangaba, sorva, piquiá, caramuri, camu-camu, buriti,
maracujá do mato, camapu, castanha-do-pará, castanha sapucaia e de macaco, ingá, cutiribá, sorva,
abricó, biribá, jenipapo, entre outros;
 Revelação e preparação de raízes e tubérculos de alto valor alimentício, como a mandioca, a macaxeira,

50
índios mansos e “domesticados', importa pelos missionários e catequistas que a aprenderam e
gramaticalizaram em oposição ao nheengaiba ou língua má, rebelde dos índios tapuius, de fala travada
do interior bravio;
 Revelação de lendas, mitos, crenças, crendices e histórias que constituem um rico acervo do seu místico
e messiânico imaginário; Criação de símbolos, heróis civilizadores e mártires, como o Ajuricaba dos
Manaus e o mártir tupinambá do Forte do presépio de Belém, que preferiram a morte à escravidão da
vida.
 Dessa forma, é possível compreender o discurso que sustenta a existência antropológica da Amazônia,
tanto no aspecto literário, como no aspecto econômico e político, principalmente, quando se trata de
suplantar uma ideologia dominante de desenvolvimento “sustentável”.
 Assim, percebe-se que, as questões norteadoras que promoveram o desenvolvimento naAmazônia não
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ária, cará e outros rizomas;
 Divulgação de bálsamos, resinas voláteis como o breu-branco, jutaicica, bálsamo de copaíba, óleos de
andiroba, patauá, mutamba, essência de pau-rosa, louro-pimenta, vetiver, raízes aromáticas como o
patchuli, priprioca, canela, casca-preciosa, favas de cumaru;
 Fibras como a piaçava, tucum, malva, jaruari, buçu, miriti, uacima, painas de samaúma, cipó-titica;
 Plantas e ervas medicinais como a ipecacuanha ou poaia, salsaparrilha, copaíba, andiroba, preciosa,
ucuuba, quina, curare, sacaca, carajiru, jaborandi, amor-crescido, caapeba, capim-santo, carapanaúba,
cidreira, cumaru. erva-de-bicho, imbaúba, jambu, jurubeba, malícia, (sensitiva e juquiri-rasteiro, que o
povo chama de “Maria-fecha-a-porta-que-a-tua-mãe-morreu”), malsã, marupá, mastruz, mulungu,
mururé, pega-pinto, quebra-pedra, saracuramirá, vassourinha, verônica, entre centenas de outras
plantas, ervas, raízes, frutos, cascas, folhas, cujos princípios ativos e fármacos um dia irão revolucionar a
biotecnologia médica e farmacêutica.
 Especiarias como a pimenta grossa e fina, cravo, canela, anil, urucu, baunilha, puxuri, jarina, mutamba,
louro, cacau e outras que eram conhecidas no período colonial como as“drogas do sertão”, que foram os
primeiros produtos da biodiversidade a serem objeto de intercâmbio e exportação dos colonizadores
europeus;
 Madeiras de leis duras e pesadas, como itaúba, angelim, sucupira, acariquara, macaraúba, pau-amarelo,
pau-mulato, piquiá, jacarandá, paracuuba, aguano, cedro, freijó, e madeiras leves e brancas como açacu,
sumaúma, virola, faveira, marupá, quaruba, molongo, mungumba, pau-de-balsa e centenas de outras
espécies de madeiras para movelaria, ebanisteria, obras hidráulicas, estacas, tanoaria, tinturaria,
oleaginosas e palmáceas;
 Alucinógenos como ipadu, coca, aiuasca, iagê, caapi; estimulantes a afrodisíacos como guaraná,
muirapuama, catuaba, xéxua; e plantas tóxicas e venenosas como buiçu, cipó amargoso, curare, galeria,
erva-de-passarinho, timbó, entre outros,
 Hábitos alimentares baseados no complexo da mandioca e seus derivados como farinha-d'água, seca,
suruí, tapioca, beiju, caribe, carimã, “mingau de caridade”, goma, tucupi, tacacá, maniçoba, fécula,
amido, sagu, pouvilho, cauim, casxiri, tiquira;
 Nomenclatura e nomes que serviram para identificar as plantas, árvores, bichos, peixes, aves, madeiras,
rios, e lugares que constituem a riqueza da toponímia e da linguagem regional. A maior parte desses
nomes provém do nheengatu ou abanheenga, língua geral e boa, derivada do tupi, que era falada pelos
levou em questão os aspectos lógico, Antropológico e o humano para um crescimento sustentável do ponto
de vista de melhorar o contexto global.
 Logo, dificilmente, o povo da floresta será incluído nas questões que ajudariam colocá-los no centro do
debate antropológico, por isso, o desenvolvimento deixa de lado o real valor da Amazônia: Os mitos, as
lendas, os costumes, a identidade linguística e os aspectos humanos.
Perspectiva Amazônica - Santarém - PA. Ano I. Vol. 2 p. 44-53 ago. 2011
3 CONCLUSÃO
Percebeu-se que a ideia de desenvolvimento na Amazônia, ainda se reporta ao ideário Medieval,
conceitos de paraísos eternos de grandiosidades e riquezas infinitas e abundantes. Que a Amazônia, tornou-se
conhecida a partir de ideias que viajaram atreladas aos anseios de encontrar paraísos, não só de riquezas
minerais, mas também em busca de ampliar territórios, pois, quanto mais colônias conquistadas, mais prestígios
para seus emblemas, construindo assim, uma espécie de nação balizada por várias fronteiras de diversas
culturas, valores e costumes.
Ainda foi possível entender a origem e o significado do acervo místico e messiânico revelado nas lendas,
mitos, crenças e histórias que constituem símbolos, heróis civilizadores e mártires. E que esses aspectos
históricos da formação dos primórdios daAmazônia apresentam-se pontuais em toda a Evolução.
Outro aspecto que foi deduzido diz respeito a identidade na Amazônia, que apresenta-se obscurecida,
desde a construção das cidades até a formação de um tipo humano aproximado da vida existente na floresta. O
que existe de fato, é uma transitoridade mergulhando a mágica dos rios de água doce e a escuridão da floresta,
verifica-se um discurso frenético que não aprofunda, vivido nas aventuras de garimpos, e nas cidades empresas.
Diante do exposto, entende-se que é necessário promover alternativas de desenvolvimento que se
compatibilizem com a defesa e o respeito ao “outro”, isto é, aos povos indígenas e suas terras, muitas vezes
localizados e utilizados industrialmente, o que suscita a cobiça, inclusive, internacional, e se constitui numa
fonte de intermináveis conflitos e que tem causado transtornos na construção desse espaço.
REFERÊNCIAS
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A CONSTRUÇÃO DO MITO E UMA LITERATURA