O JOGO E TEMPO LIVRE NAS ROTINAS DE VIDA QUOTIDIANA
DE CRIANÇAS E JOVENS
Carlos Neto
Faculdade de Motricidade Humana
Universidade Técnica de Lisboa
INTRODUÇÃO
O jogo, o desporto e os tempos livres, constituem nas sociedades modernas uma parte
importante da vida das crianças e dos jovens. Este fenómeno deve ser analisado com a
atenção devida, pelas famílias e instituições públicas ou privadas envolvidas. A multiplicidade
de escolha de actividades artísticas, desportivas e religiosas na ocupação dos tempos livres
durante a semana, fim de semana ou em férias é enorme, tendo a família necessidade de
procurar as soluções adequadas para a ocupação dos tempos livres dos filhos, recorrendo na
maior parte dos casos a diversas instituições e agências especializadas neste domínio. Estas
escolhas variam em função do posicionamento dos pais, da influência dos restantes agentes
de socialização e do temperamento da criança, dos seus gostos e aptidões.
Da escassa quantidade de trabalhos de investigação existentes sobre a qualidade de
vida das crianças e jovens, poucos são os que têm nos seus pressupostos metodológicos,
ouvi-las sobre os seus quotidianos e perceber as expectativas e as motivações que as
acompanham. As mudanças sociais fazem-se acompanhar também de mudanças nas culturas
de infância e mais particularmente no consumo cultural do lazer. Principalmente com o
aparecimento de novas tecnologias de "écran", através dos jogos de vídeo, computadores e
mais recentemente a "internet", assiste-se a alterações significativas nos estilos de vida das
crianças e jovens. Se o fascínio por estas tecnologias é um desafio a um novo mundo a
conquistar, são por outro lado intrigantes as soluções a implementar sobre o aumento do
sedentarismo corporal devido ao decréscimo da actividade física (1); a diminuição de
competências sociais e auto-estima relacionadas com o aparecimento de novas patologias do
foro psicológico (2); o desaparecimento progressivo de hábitos de literacia (3); e o
aparecimento de fenómenos relacionados com comportamentos anti-sociais (agressividade),
eventualmente associados a um envolvimento violento (4). A adaptação da criança a estas
novas mudanças, requer uma reflexão apurada de pessoas e instituições envolvidas na
organização de tempos livres e uma melhor harmonização entre a vida da família, da escola e
do trabalho.
O objectivo deste trabalho, centra-se na apresentação de um conjunto de ideias sobre
o jogo em crianças e jovens a partir de resultados de alguns estudos realizados sobre os
tempos livres, independência de mobilidade e percepção do espaço físico, situação dos
espaços de jogo ao ar livre e algumas medidas de intervenção visando a valorização da cultura
lúdica infantil.
HABITAÇÃO E JOGO DE RUA
Brincar na rua é em muitas cidades do mundo uma espécie em vias de extinção. As
mudanças sociais ocorridas nos últimos 20-30 anos alteraram significativamente a estrutura de
vida familiar. Os hábitos quotidianos transformaram-se radicalmente, os ritmos e as rotinas das
crianças também. O tempo espontâneo, da imprevisibilidade, da aventura, do risco, do
confronto com o espaço físico natural, deu lugar ao tempo organizado, planeado, uniformizado.
Do estímulo ocasional passou-se a uma hegemonia do estímulo organizado, tendo como
consequência a diminuição do nível de autonomia das crianças, com implicações graves na
1
esfera do desenvolvimento motor e emocional. Sem a imunidade que lhe é conferida pelo jogo
espontâneo, pelo encontro com outras crianças num espaço livre, onde se brinca com a terra,
se inventam jogos, se vivem aventuras, a criança revela menos capacidade de defesa e
adaptabilidade a novas circunstâncias. É um facto que as possibilidades de acção
(independência de mobilidade ) da criança e do jovem, tem vindo a diminuir drasticamente
como consequência de um estilo de vida padronizado. A rua não é só um espaço onde
circulam carros e gente apressada, mas sim um espaço de encontro, descoberta e até
desordem. Tudo isto é importante para crescer. A promoção do jogo e actividade física na vida
da cidade, deverá constituir-se como um indicador decisivo de qualidade de vida. A
investigação centrada nas relações entre jogo e actividade física, necessita ser retomada,
melhorando os métodos naturalistas de observação e um olhar atento à diversidade de
contextos de acção no sentido de analisar os obstáculos que se colocam ao exercício do jogo
livre nas primeiras idades (Pellegrini & Smith, 1998).
As condições de habitação tem um efeito determinante no clima familiar. Em certas
comunidades residenciais ou também conhecidas por áreas sociais localizadas, pode
constatar-se, em muitos casos, em zonas públicas da habitação, geralmente no rés do chão,
pontos de encontro de crianças e também entre adultos. É normalmente no átrio ou "hall" de
entrada, passeios e espaços adjacentes à habitação, que as crianças inicialmente satisfazem
as suas necessidades de jogo e independência de acção. Este espaço de convívio, de
socialização e de jogo e aventura tem vindo a decrescer de importância nos quotidianos das
crianças em meio urbano, devido aos constrangimentos relacionados com o aumento do
tráfego automóvel, violência e insegurança. Esta cultura de rua é fundamental no processo de
desenvolvimento da criança, nomeadamente em experiências de jogo informal e decisivas
nas aquisições motoras, perceptivas e sociais. O aumento progressivo de sedentarismo infantil
é proporcional á diminuição da qualidade ambiental em termos de condições e oportunidades
de jogo livre. Pode constatar-se pela análise das rotinas de vida das crianças (Neto, 1997;
Serrano & Neto, 1997), que a gestão do tempo escolar e o tempo adicional passado em
actividades organizadas ou institucionalizadas, não permitem às crianças o uso do tempo
considerado verdadeiramente livre (espontâneo), consequência provável das transformações
urbanas e da construção de imaginários de segurança que os pais têm na educação dos
filhos.A rua é um espaço potencial de jogo que está em desaparecimento progressivo da
cultura lúdica infantil. Recentes investigações demostram também o efeito da alta habitação
em relação ao padrão de jogo de crianças de idades baixas. Os resultados são alarmantes:
1-as crianças que vivem em prédios altos descem sós para jogar/brincar, numa idade mais
tardia do que aqueles que vivem em casas de tipo baixo;
2-as crianças que vivem em altas habitações têm um tempo mais curto para jogar/brincar e não
saem para a rua com tanta frequência;
3-as crianças de alta habitação têm dificuldade de contacto com os amigos e brincam longe da
sua área;
4-as crianças do sexo masculino têm mais liberdade territorial do que as do sexo feminino. Os
espaços de jogo ao redor da habitação são mais atraentes para os rapazes; 5-a densidade
populacional em áreas de alta habitação resulta em muitas circunstâncias em conflitos e
"stress", durante as actividades de jogo entre as crianças.
Nas resoluções da "International Association for Children,s Right to Play - IPA" em
Malta (1977), foi concluído que as necessidades de jogo da criança têm de ser uma prioridade
no planeamento urbano, nomeadamente nos parques habitacionais e outras instituições de
utilidade pública e social. Toda a propriedade habitacional deverá seguir a legislação que
determina qual o espaço que deverá ser reservado para o jogo das crianças e jovens.
JOGO E INDEPENDÊNCIA DE MOBILIDADE
A densidade populacional associada à densidade de tráfego automóvel, tem vindo a
transformar os estilos de vida das crianças nas grandes cidades. Os percursos entre a
habitação e a escola e vice-versa e o conjunto de experiências individuais ou de grupos de
amigos, em função do espaço físico disponível, seguem uma orientação adaptável a essas
2
mudanças no tecido urbano. Para além de diversos problemas (características do tráfego,
limitações fisiológicas e perceptivas), os problemas das instruções relacionadas com as
estradas são as mais graves. Segundo o estudo de Sandels (1975), uma grande percentagem
de crianças em idades escolares não sabiam interpretar o significado de atravessar a rua
(97%), zona pedestre (10%) e entroncamento (30%). O autor conclui que as crianças com
idade inferior a 10 anos não possuem capacidade biológica para terem um comportamento
sistematicamente seguro nas ruas, visto não serem capazes de adoptar comportamentos que
ultrapassem as limitações impostas pelo seu nível maturacional.
A importância e a maneira como a criança aprende o funcionamento do próprio
envolvimento, considerando os lugares por onde passa, joga ou convive com os amigos, tem
permitido a alguns investigadores
compreenderem melhor como se desenvolve esta
capacidade de autonomia progressiva em relação ao espaço físico. Alguns estudos similares
quanto a objectivos, métodos e instrumentos de estudo, têm procurado compreender como a
independência de mobilidade é um factor crucial no desenvolvimento da criança (Hillman &
Adams, 1992; Kyttä, 1995; Van der Spek & Noyon, 1995; Heurlin-Norinder, 1996; Vercesi,
1999; Arez & Neto, 1999). O conceito de independência de mobilidade deverá ser entendido
numa perspectiva evolutiva, isto é, como a criança desenvolve ao longo do tempo uma
representação mais consistente do espaço físico (memória, percepção, identificação) bem
como uma liberdade progressiva
de acção no espaço quotidiano de vida. Esta capacidade de autonomia de mobilidade face ao
envolvimento físico, permitirá o desenvolvimento das representações cognitivas do espaço
físico, o desenvolvimento da liberdade e autonomia em jogo, a descoberta do envolvimento e o
seu funcionamento, a descoberta das relações com o mundo adulto, o sentido de descoberta e
a resolução de problemas, o desenvolvimento de hábitos saudáveis de vida activa e a prática
do jogo e actividade física, essenciais para o equilíbrio emocional e psicológico. Esta
percepção das possibilidades de acção não se confinam apenas ao facto de a criança poder ir
para a escola sózinha, mas também a um nível de independência mais vasto: poder brincar
fora de casa, visitar amigos, ir a clubes ou associações, ir às compras, etc.
No nosso trabalho sobre independência de mobilidade e percepção do espaço físico
(Arez & Neto, 1999), foram estudadas cerca de 60 crianças (8 e 9 anos) de áreas urbanas e
rurais, utilizando questionários dirigidos a crianças e pais (Hillman, 1990), entrevistas guiadas
sobre as possibilidades de acção no envolvimento físico (acções em superfícies planas
relativamente suaves, acções em declives relativamente suaves, acções com manipulação de
objectos/materiais, acções com objectos fixos, acções com objectos fixos não rígidos, acções
em superfícies escaláveis, abrigos, acções com materiais moldáveis, acções com água, acções
na natureza e acções de jogo social), a partir de uma adaptação da taxonomia funcional de
envolvimentos ao ar livre (Kittä,1995) e diários de actividade sobre o tempo e gestão de
actividades realizadas em vários períodos do dia. Algumas conclusões deste estudo são
surpreendentes e intrigantes quando são comparados os resultados sobre independência de
mobilidade entre alguns Países Europeus.
Quando são analisadas as acções diárias, verifica-se uma clara superioridade de
autonomia de mobilidade por parte das crianças do sexo masculino, com particular relevo para
a actividade de andar de bicicleta na rua (ver quadro 1 ). As percentagens encontradas entre o
meio rural e urbano são significativamente diferentes para o primeiro grupo, principalmente em
actividades de ir para a escola, atravessar ruas e jogar no exterior. Se comparar-mos os
resultados com outros estudos, encontram-se níveis mais elevados de autonomia de
mobilidade para as crianças Filandesas (Kittä,1995) e valores mais próximos das crianças
Inglesas (Hillman & Adams, 1992).
3
Quadro 1 - Percentagem total de autonomia de acção em situações do dia-a-dia, em crianças
do sexo masculino e feminino (n=59). Comparação com a literatura, Kittä (1995), Hillman &
Adams (1992).
________________________________________________________________________________
Sexo feminino
Sexo masculino
________________________________________________________________________________
Acções
Arez & Kittä Hillman
Arez & Kittä
Hillman
Neto
& Adams
Neto
& Adams
________________________________________________________________________________
Ir e voltar da escola
6,3
98
10
25
99
90
Atravessar ruas principais
39,2
73
25
46,2
98
65
Andar de bicicleta na rua
65,4
46
69,6
74
Brincar só fora de casa
45,8
50
Andar de transportes públicos
2
36
5
6
43
32
Sair depois do escurecer
4,2
60
16,7
72
Ir para actividades de lazer
39,1
92
30
52,2
97
50
_________________________________________________________________________________
Os dados referentes aos percursos realizados de forma individual, acompanhados por
amigos ou adultos, são demonstrativos do sentido de protecção e segurança seguido pelos
pais, principalmente no meio urbano (ver quadro 2). Apenas uma pequena percentagem de
crianças faz esses trajectos (escola, rua, etc.) com autonomia pessoal, com ligeira
superioridade para as crianças do sexo masculino e do meio rural. Estes valores revelam as
grandes mudanças ocorridas nas áreas urbanas quanto aos padrões de vida familiar e os
constrangimentos existentes nos quotidianos de vida diária das crianças.
Quadro 2 - Percentagem de trajectos realizados sozinhos, com amigos ou com adultos (n=59)
em função do sexo e contexto social.
_________________________________________________________________
Contexto Social
Sozinho
Com amigos
Com adultos
________________________________________________________________________
Meio Rural
10,2
6,4
83,3
Meio Urbano
5,3
2,7
92
________________________________________________________________________
Sexo Masculino
15,1
9,7
75,2
Sexo Feminino
5
2,6
92,4
________________________________________________________________________
Baseados no conceito de "affordance" pretendeu-se saber quais as actividades que as
crianças sabiam ser possíveis de realizar no local onde vivem e de acordo com as vivências
que possuem. As entrevistas eram compostas por onze categorias, contendo cada uma delas a
identificação de actividades específicas, no sentido de se verificar como percepcionam o seu
envolvimento físico mais próximo. Foram encontrados valores superiores quanto ao número de
possibilidades de acção motora por parte das crianças do meio rural e com ligeira
superioridade para as crianças do sexo masculino (ver quadro 3). Estas percentagens são mais
uma vez superiores para as crianças Filandesas, confirmando que a independência de
mobilidade e a percepção do envolvimento físico variam de país para país. Admite-se pelos
estudos já realizados, que esta liberdade de acção seja inferior nas crianças que vivem na
Europa Central e Europa do Sul, devido provavelmente a questões relacionadas com o perigo
da densidade de tráfego, nível de segurança em relação a receios de assaltos ou molestações
e situação da qualidade de vida ambiental, factores habitualmente referenciados pelos pais
como os causadores da diminuição de possibilidades de mobilidade dos seus filhos. Por outro
lado, deve acrescentar-se que o facto de as crianças de hoje brincarem menos na rua, se deve
também ao aumento significativo de actividades dentro de casa (televisão, computador, vídeo,
brinquedos padronizados, etc.) e fora dela (tempo livre institucionalizado). Os efeitos do
urbanismo sobre a liberdade que as crianças têm em relação às actividades de rotina diária e
4
experiências motoras, lúdicas e desportivas, é acompanhada em larga medida pela natureza
das decisões da família (atitudes parentais).
Quadro 3 - Percentagem total de possibilidades de acção percepcionadas pelas crianças
(n=59). Comparação com a literatura (Kittä, 1995)
__________________________________________________________________
Meio rural
Meio urbano
Meio Rural
Meio Urbano
(Arez & Neto, 1999)
(Kittä, 1995)
_________________________________________________________________________
Sexo Feminino
62,1
59,3
Sexo Masculino
71,9
65,6
Total
66,7
62,5
97
72
_________________________________________________________________________
Em todo o mundo estão a ser criadas ruas de jogo ou ruas residenciais. Trata-se de
locais onde se pode circular convencionalmente e em condições de segurança, jogar, passear,
conversar, fazer actividade física, tornando agradável a vida da cidade. Em certos países
iniciaram-se outros projectos relacionadas com o encerramento de ruas ao trânsito durante os
fins de semana (Argentina) ou ruas de jogo organizadas com a intervenção de animadores de
jogo (Holanda). Nas resoluções da IPA (Paris, 1969; Milão,1975), é proposto que todos os
aspectos referentes ao jogo e desenvolvimento da criança deverão ser incluídos na formação
de arquitectos paisagistas, educadores, directores de reservas, animadores, autarcas, pessoal
de hospitais e todas as pessoas que planeiam ou se preocupam com as crianças.
A transformação dos espaços urbanos têm vindo a colocar o problema da concepção e
implementação de áreas especiais no ambiente construído, ambientes projectados nos quais a
criança tenha ocasião de explorar, crescer, adaptar-se e construir-se pessoal e socialmente
através do jogo. Um espaço de jogo é mais que um espaço físico.
A cidade que esteja realmente preocupada com as necessidades de mobilidade e
autonomia das suas crianças tornará o ambiente acessível a experiências lúdicas e sociais. As
crianças brincam e jogam onde quer que estejam. Se projectar-mos correctamente este
envolvimento de jogo, é esperável o desenvolvimento de segurança e comportamentos
progressivamente mais lógicos e adaptados a situações imprevisíveis em função das
referências culturais.
Nas resoluções da IPA em Milão (1975) e Otawa (1978), foi concluído que a área
urbana total deverá ser vista como um potencial ambiente de jogo e desenvolvida
adequadamente para a criança (1); a diversidade de ambientes acessíveis deverão incluir
todos os aspectos da vida quotidiana da comunidade adulta e seus ambientes naturais e
construídos (2); as crianças necessitam de um ambiente diverso e expansível, perto de casa,
sem a constante segurança e supervisão adulta (3).
Os nossos dados ( Pereira & Neto, 1999;Neto, 1997; Serrano & Neto,1997; Pereira &
Neto, 1997), permitem deduzir que as crianças (6-12 anos) vivem o seu quotidiano com uma
"agenda" preenchida com actividades orientadas ou intitucionalizadas (tipo, número e
frequência) para além do tempo escolar, principalmente centradas em actividades desportivas
e artísticas. Esta tendência observa-se nos grandes centros urbanos e em agregados
familiares de classe média e alta. Para além das actividades desportivas e artísticas
estruturadas, praticadas regularmente fora de casa, verifica-se que o passear com a família ou
amigos, frequentar o cinema, assistir a espectáculos desportivos e ir à catequese
(principalmente no meio rural) são rotinas frequentes nos hábitos das crianças. Quanto às
actividades realizadas fora de casa e não estruturadas, as rotinas diárias são muito dispersas
se considerarmos o meio social, a idade e o género. Foi no entanto encontrada alguma
consistência nos resultados quanto aos tipos de jogo mais praticados pela sua ordem de
importância (jogos de corrida e perseguição; escaladas; jogos com bola; dramatizações; jogos
de locomoção e jogos de descoberta). As condições dos espaços exteriores (rua, zonas
adjacentes à habitação e existência de amigos de jogo) influenciam drasticamente o tempo e
frequência destas actividades. Independentemente do contexto social, as crianças demonstram
uma tendência para brincarem com amigos do mesmo sexo e da mesma idade com
predominância de jogos mais activos para os rapazes e menos activos para as raparigas. No
5
que respeita às actividades praticadas em casa, os resultados demonstram uma grande
consistência em relação à sua ordem de importância: ver televisão e vídeo, usar brinquedos, e
fazer trabalhos escolares, seguidas pela leitura e ouvir música. Os brinquedos de uso mais
frequentemente, favorecem os jogos de imitação, de exercício e de construção seguidos dos
jogos de mesa e electrónicos. Quanto aos programas televisivos mais escolhidos, verifica-se
uma preferência pelos desenhos animados, filmes, concursos, telenovelas e documentários,
com ligeiras diferenças entre rapazes e raparigas quando é considerada a preferência entre
concursos e telenovelas.
Num outro estudo (Rodrigues & Neto, 1999), e referente ás actividades de tempo livre
relacionadas com as culturas de jovens (12-18 anos) da população de uma escola da cidade
de Lisboa, pode constatar-se uma alteração substancial dos quotidianos de vida quanto ao
nível de mobilidade e autonomia. As principais actividades de lazer, praticadas em casa,
situam-se em ouvir música (29.6%); ver televisão (24.5%); estudar (15%); ajudar os pais
(11.8%); usar computador (11.4%); ler (5%) e outras actividades diversas ( 2,7%). Nas
actividades realizadas com os amigos fora de casa, a maior atenção é dada ao conversar
(30%); ouvir música (20%); praticar desporto (13%); frequentar o cinema/teatro (11%);
frequentar o café (10%); frequentar a praia (5%); não fazer nada (4%); estudar (4%) e ir ao
futebol (3%).
Pode concluir-se que a influência crescente dos jogos estruturados, com um caracter
desportivo e envolvimento electrónico, ocorre principalmente nos grandes centros urbanos e
nas famílias de classe média e alta. Estamos conscientes que as actividades lúdicas de rua, de
exploração do meio natural e influência dos jogos tradicionais e populares, tendem a
desaparecer lentamente nos próximos anos, como uma consequência inevitável das mudanças
que têm ocorrido no tecido social, da mobilidade da população e da melhoria geral da
qualidade de vida. No entanto, a preservação do património lúdico infantil deve permanecer
como uma preocupação fundamental para os especialistas que investigam o jogo e o
desenvolvimento da criança numa perspectiva histórica e antropológica.
A NECESSIDADE DE ESPAÇOS PARA JOGAR
Cenário do brincar no exterior (Espaços de jogo ao ar livre)
Quanto à análise do estado actual dos espaços de jogo para crianças e jovens ao ar
livre (parques infantis), considerando a complexidade do fenómeno e as características
históricas de um ponto de vista social, político e económico, faz-nos pensar que estamos num
período de transição e reestruturação. No caso de Portugal com a adesão à Comunidade
Europeia e a necessidade de harmonização de normas de segurança (veja-se a recente
legislação sobre espaços de jogo e recreio - Dec.-Lei nº3 379/97), deu-se o aparecimento de
novos projectos relativos à concepção do espaço, estrutura e desenho de materiais e
equipamentos, gestão e manutenção, animação, treino de especialistas e supervisão técnica e
pedagógica. Esta evolução traduz também o respeito pelas decisões aprovadas pelos Estados
Membros na Declaração Internacional dos Direitos da Criança, com especial relevo para o
artigo 31º referente ao direito ao jogo e tempos livres.
Os estudos que temos desenvolvido sobre o estado de segurança dos espaços de jogo
(Cruz & Neto, 1991), os critérios de construção e avaliação (Neto, Brito & Barreiros, 1992) e a
avaliação da situação actual (Inácio do Vale & Neto, 1993; Neto & Ribeiros,1995), permitem
concluir que estamos longe de ter obtido uma situação aceitável do ponto de vista da
modernização e inovação deste tipo de espaços lúdicos dirigidos a crianças. Concluí-se que
cerca de 85-90% destes espaços apresentam um concepção tradicional (arqueologia lúdica?),
não existindo até hoje qualquer espaço de jogo de aventura. Do equipamento existente, uma
grande percentagem (50-60%) relaciona-se com experiências sensório-motoras, seguido dos
equipamentos para exercício físico (16-38%) e equipamentos integrados (8-9%). Os
equipamentos de construção e de representação estética apresentam uma expressão reduzida
ou quase inexistente (ver quadro 4).
6
Quadro 4 - Características de Espaços de Jogo (tipos de equipamentos) para crianças na
Grande área de Lisboa (N=65)
______________________________________________________________________
EQUIPAMENTOS
%
__________________________________________________________P________T___
Equipamento de equilíbrio
1,4
Equipamento
Armações para trepar (ferro)
24,2
De Exercício
Armações para trepar (madeira)
3,6
37,1
Físico
Armações para trepar (corda)
2,9
Equipamento de barras (ferro)
3,6
Equipamento de barras (madeira)
1,4
______________________________________________________________________
Equipamento
Baloiços (tradicionais e com pneus)
19,8
De
Carroceis (cavalinhos)
5,8
Experiência
Balancés
12,4
51,2
Sensorial
Escorregas
8,8
"Vai e Vem"
4,4
______________________________________________________________________
Equipamento
Combinação de equipamento pequeno
2,9
Integrado
Combinação de equipamento grande
4,8
7,9
Jogos
0,2
______________________________________________________________________
Animais (fixos ou móveis) 1,2
Representação
Barcos-Automóveis
0,3
Estática
Esculturas
0,2
2,6
Troncos e árvores
0,5
Manilhas
0,4
Equipamento
____________________________________________________
De
Cabanas
0,2
Construção
Criação
Abrigos
0,1
De
Torres/Fortes
0,3
0,7
Intimidade
Casa de jogo tradicional
0,1
____________________________________________________
Materiais de
Caixas de areia
0,4
Construção
Blocos de construção
0,1
0,5
_______________________________________________________________________
Dos dados recolhidos, pode confirmar-se a existência de deterioração dos espaços e
dos equipamento (de acordo com as normas actuais) por insuficiência de estratégias de
concepção, manutenção e gestão, e causando problemas de higiene e acidentes. Constata-se
igualmente uma falta de equilíbrio entre espaços de jogo tradicionais, contemporâneos e de
aventura, o que favorece a existência de actividades pré-determinadas ou impostas pelas
tipologias “standard” dos equipamentos existentes. Algumas linhas de orientação no futuro
deveriam ser seguidas com o objectivo de ultrapassar os obstáculos existentes sobre as
possibilidades de acção e desenvolvimento da cultura lúdica infantil relacionada com o
envolvimento físico:
a) definir novas estratégias sobre a qualidade do espaço de jogo para crianças;
b) definir uma perspectiva multidimensional para o espaço e equipamento de jogo (perspectiva
integrada) através da criação de condições de estimulação sensorial, perceptiva, motora,
cognitiva, estética e social, ultrapassando as velhas concepções de espaços tradicionais que
se encontram habitualmente num estado de elevada degradação;
c) Definir tipos de iniciativas relativamente aos espaços de jogo, seguindo um critério
interdisciplinar e científico, considerando a relação entre espaços de jogo contemporâneos e de
aventura (Frost & Klein,1979);
d) definir modelos de espaços de jogo de acordo com objectivos (polivalente), relações sociais,
diferenças de idade, exigências funcionais, critérios de uso (durabilidade, quantidade de
espaço, e tipo de equipamento) e a capacidade e limite das acções de jogo (avaliação técnica,
financeira e médica);
7
e) definir adequadamente critérios de avaliação do planeamento (objectivo, local, equipamento,
modelo de gestão, tipo de actividades e modelos funcionais), a sua execução (construção do
equipamento, preparação das superfícies de impacte, implementação das características do
espaço físico) de acordo com as normas nacionais e internacionais de segurança para espaços
e equipamentos de jogo e recreio;
f) definir com mais precisão em termos de planeamento urbano, a localização dos espaços de
jogo (zonas habitacionais, escolares, hospitalares e centros de saúde, de diversão pública,
rodoviárias, de jardins públicos, etc.) os factores influentes ( sociais e culturais, infra-estruturas
e dados topográficos, demografia, clima, tipo de acessos, nível de protecção e segurança,
iluminação, tipo de materiais, etc.);
g) definir a mobilização da comunidade local e participação das estruturas municipais em
todas as fases de desenvolvimento dos projectos relacionados aos espaços de jogo, não
esquecendo a colaboração das crianças e das famílias;
h) definir padrões de referência em termos de regras e medidas de controlo na gestão e
manutenção dos espaços de jogo;
i) sensibilizar as estruturas municipais para o importante papel que podem assumir na
mudança dos espaços de recreação e lazer e como consequência da qualidade de vida de
cada cidadão e da comunidade em geral.
A actividade de brincar na infância é, com efeito, um problema essencial nas
sociedades contemporâneas ou pós-industriais, nas quais o assunto do espaço disponível e
tempo de lazer, deve ser reconsiderado de acordo com as mudanças sociais, e a mobilidade
populacional existente nas cidades, vilas, e aldeias. Embora possamos notar uma grande
evolução no aparecimento dos "espaços de jogo e lazer temáticos" (disneylândia, parques
aquáticos, parques de diversões, etc.) que se enquadram em dinâmicas empresariais de tipo
multinacional (perspectiva de negócio do uso do tempo livre), devemos conciliar com
abordagems a actividades de confronto com o espaço físico natural (risco e aventura) existente
e disponível no espaço urbano. Os espaços de jogo e aventura ao ar livre destinado a crianças
e jovens devem ser dimensionados de acordo com níveis de decisão em que todos os
elementos estejam implicados no processo (estruturas comunitárias e políticas, especialistas
de educação e saúde, arquitectos, economistas e gestores de projectos, pais e crianças, etc.)
Nas ultimas décadas assiste-se a uma progressiva sensibilidade política e social sobre o
significado dos quotidianos de vida e culturas específicas de infância e também a defesa do
direito da criança ao jogo, embora não exista de forma satisfatória uma legislação capaz de
ultrapassar a dicotomia entre o espaço habitacional e social, de acordo com o crescimento
populacional e os problemas relacionados com as dimensões da rede urbana.
Conclusão
A interpretação das disposições aprovadas na Convenção dos Direitos da Criança
(ONU), bem como a Declaração da Associação Internacional para o Direito de Brincar (Viena,
IPA, 1982), levam-nos a considerar da necessidade de pensar sobre este tema numa
perspectiva universal, bem como especificar a diversidade das suas realidades sociais e
culturais. Um olhar atento sobre a defesa destes direitos não pode conviver com soluções
corporativas ou conservadoras. A necessidade de espaço e tempo para a criança brincar, de
forma livre e espontânea, depende em larga medida da necessidade de tempo e espaço para a
família. As características da Sociedade Pós-Industrial (padrões de vida sedentária, "stress"
emocional, maus hábitos de vida, e inactividade física) e o nascimento de uma Sociedade de
Informação, implica uma estratégia nova na visualização das diferentes estruturas sociais (a
família, a escola, o trabalho e a comunidade) a partir de políticas integradas e procurando a
harmonização possível, visando a qualidade de vida de todos os cidadãos (Neto,1998).
Algumas medidas podem ser tomadas neste sentido:
1-Devem ser redimensionados novos modelos de construção das áreas residenciais,
procurando na medida do possível, definir condições para as crianças jogarem em liberdade e
segurança, e assegurarem os dispositivos de acção que estimulem os parâmetros
fundamentais do seu desenvolvimento motor, cognitivo e social.
2-Devem aproveitar-se as potencialidades das escolas e edifícios públicos para o
desenvolvimento lúdico da comunidade. Os espaços de recreio poderiam com a intervenção de
8
animadores, criar um melhor ambiente com mais jogos construtivos e menos tumultos. Após o
período de aulas e durante as férias os espaços de jogo deveriam ser aberto à vizinhança.
3-O planeamento de espaços de jogo para crianças é um assunto muito sério. A participação
activa das crianças no planeamento, projecto e direcção do espaço urbano é uma garantia
eficaz para a sua frequência, manutenção, e animação quanto ao acesso e participação em
grupo.
4-O futuro do planeamento urbano deve considerar as culturas específicas de infância e de
jovens quanto ao acesso aos espaços de jogo perto das áreas residenciais ou de espaços
públicos exclusivamente dedicados à recreação e tempos livres. Onde não existam espaços de
jogo deveriam ser desenvolvidos espaços alternativos como corredores, estradas e baldios,
após se assegurar a segurança da criança.
A independência de mobilidade das crianças nos meios urbanos, está deste modo,
associada a uma série de factores complexos, que passam por uma boa definição de decisões
governamentais e municipais sobre políticas centradas na infância. O espaço para brincar com
autonomia pessoal na cidade do futuro, inclui a reabilitação da rua como lugar de encontro, a
reorganização dos locais de transição com qualidade ambiental e a renovação do espaço de
recreio na escola numa perspectiva diferente da actual. Em todas estas situações, é impossível
pensar num tempo e espaço padrão como a única alternativa. È urgente procurar novas
linguagens e outros modelos de referência mais apropriados ao mundo actual para
compreendermos as necessidades de jogo da criança.
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