MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DE UMA DAS VARAS CÍVEIS DA 1ª SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO. O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pela Procuradora da República signatária, vem, à presença de Vossa Excelência, com fulcro no art. 127, caput, da Constituição Federal, no art. 6º, XIV, “g”, da Lei Complementar 75/93, e no art. 5º, § 1º, da Lei 7347/85, propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA, COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DA TUTELA, em face do CONSELHO REGIONAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA DO ESTADO DE SÃO PAULO – CREF/SP, com sede na Rua Líbero Badaró, 377, 27o andar – conj. 20704, CEP. 01009-000, Centro, São Paulo - SP, com base nas razões de fato e de direito a seguir apresentadas. I – DOS FATOS A entidade ré, com lastro na Lei 9.696/98 e Resolução CONFEF 32/2000, vem procedendo à cobrança de taxas de anuidades e de registro dos profissionais (pessoas físicas e jurídicas) sujeitos à inscrição perante o Conselho Regional de Educação Física do Estado de São Paulo – CREF/SP. 1 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Para o exercício de 2004, conforme se depreende do teor da Resolução CONFEF 65/2003, a título de taxa de anuidade, foi fixado o valor de R$ 380,00 (trezentos e oitenta reais) para pessoa física e R$ 800,00 (oitocentos reais) para pessoa jurídica, além do valor de R$ 60,00 (sessenta reais) a título de taxa de registro. Todavia, a obrigatoriedade de pagamento de tais valores não possui qualquer amparo legal, o que levou à instauração, perante a Procuradoria da República no Estado de São Paulo, da Representação n.º 1.34.001.006005/2003-53. Além de cobrar, ilegalmente, tais taxas, conforme se demonstrará ao longo desta peça, a entidade ré vem majorando, também ilegalmente, os seus valores desde o ano 2000, por meio das Resoluções CONFEF 20/2000, 42/2001, 51/2002 e 65/2003.1 A título de informação, vale mencionar que este Parquet Federal promoveu contra a entidade ré, em março deste ano, ação civil pública com o fim de afastar a exigência de inscrição e conseqüente pagamento de anuidades dos profissionais de artes marciais, capoeira, dança e ioga, tendo em vista que tal exigência lastreava-se em resolução emanada pelo CONFEF, sem qualquer supedâneo legal.2 Recentemente foi concedida a tutela antecipada. Na presente ação, o que se busca é o afastamento da cobrança de taxas a título de registro ou de anuidade, dos profissionais legalmente sujeitos à inscrição no referido Conselho (pessoas físicas ou jurídicas), em face da inexistência de previsão legal. II – DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL Antes da declaração de inconstitucionalidade do caput do art. 58 e §§ 1o, 2o, 4o, 5o, 6o, 7o e 8o, da Lei 9.649/98 (ADIn 1.717-DF), quando os conselhos de fiscalização das profissões tinham personalidade jurídica de direito privado, o § 8o estabelecia que era da Justiça Federal a competência 1 A Resolução CONFEF 20/2000 fixou, para o exercício de 2000, o valor da anuidade em R$ 120,00, apenas para as pessoas físicas. A Resolução CONFEF 42/2001 fixou, para o ano de 2002, o valor de R$ 180,00 para as pessoas físicas e de R$ 400,00 para as pessoas jurídicas. O registro, para ambas, foi fixado no valor de R$ 60,00. A Resolução CONFEF 51/2002 fixou, para o ano de 2003, o valor de R$ 260,00 para pessoas físicas e de R$ 600,00 para as pessoas jurídicas. Por fim, a RESOLUÇÃO CONFEF 65/2003 fixou a taxa de anuidade, para o exercício de 2004, nos valores máximos de R$ 380,00 para pessoas físicas e de R$ 800,00 para as pessoas jurídicas. O valor da taxa de registro, para ambas, foi fixado em R$ 60,00. 2 A Ação Civil Pública em comento tramita perante a 18a Vara Cível Federal, Autos 2004.61.00.006515-3. 2 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL para a apreciação das controvérsias que os envolvessem, no exercício dos serviços a eles delegados pelo Poder Público. Com a declaração de inconstitucionalidade dos mencionados dispositivos, os conselhos de fiscalização das profissões voltaram a possuir personalidade jurídica de direito público (autarquias federais), o que atrai a competência da Justiça Federal para o julgamento das lides em que estejam envolvidos, por força do art. 109, inciso I, da Constituição Federal. Esse é o entendimento da nossa jurisprudência, notadamente a do E. Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual: “RECURSO ESPECIAL. CONSELHO REGIONAL DE CONTABILIDADE. NATUREZA JURÍDICA. AUTARQUIA FEDERAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. RESOLUÇÃO DO CONSELHO FEDERAL DE CONTABILIDADE. APROVAÇÃO EM EXAME DE SUFICIÊNCIA PROFISSIONAL PARA REGISTRO NOS CONSELHOS REGIONAIS DE CONTABILIDADE. EXIGÊNCIA NÃO PREVISTA EM LEI. NÃO CABIMENTO. "O Superior Tribunal de Justiça entende que os Conselhos Regionais de fiscalização do exercício profissional têm natureza jurídica de autarquia federal e, como tal, atraem a competência da Justiça Federal nos feitos de que participem (CF/88, Art. 109, IV)" (AGREsp n. 314.237/DF, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 09.06.2003). (...) Recurso especial não conhecido” (STJ, 2a Turma, RESP 503918-MT, Proc. 200201688412, Rel. Min. Franciulli Netto, j. 24/6/2003, v.u., DJU 8/9/2003, p. 311 - Grifamos)3 Ademais, reconhece-se a competência da Justiça Federal quando cuidar-se de ação promovida pelo Ministério Público Federal. Nesse sentido já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (1a Seção, CC 4.927-0-DF, Proc. 1993/0013202-4, j. 14/9/1993, v.u., Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 4/10/1993). Desta feita, é a Justiça Federal competente para processar e julgar a presente ação civil pública. 3 A esse respeito, ainda: “Por se tratarem os conselhos de fiscalização de profissão de autarquias federais, a competência para o processamento e julgamento da presente lide é da Justiça Federal, com esteio no art. 109, I, da CF (...)” (STJ, 1a Turma, AGRESP 479025-DF, Proc.: 200201555660, Rel. Min. Francisco Falcão, j. 04/09/2003, v.u., DJU 20/10/2003, p. 189) 3 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL III – DA LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Trata-se de ação que busca tutela judicial para o livre exercício das profissões da área de Educação Física (pessoas físicas ou jurídicas), sem a cobrança ilegal de taxas ou anuidades. Este interesse é comum a um grupo determinável de pessoas ligadas por uma relação jurídicabase: a natureza e o exercício da atividade profissional, que vêm sendo lesados pela imposição ilegal da entidade ré, consubstanciada na mencionada cobrança. Insere-se, pois, no rol dos direitos coletivos. José Marcelo Menezes Vigliar entende que a principal característica dos interesses coletivos é a indivisibilidade, pois todos os membros do grupo merecem idêntico tratamento. Afirma que “não se conceberia mesmo um tratamento diversificado entre membros de uma mesma categoria, principalmente quanto àquilo que constituísse a essência da categoria” (Ação Civil Pública. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1999, pp. 52-53). A indivisibilidade do interesse significa que, uma vez tutelado o direito de um membro do grupo, automaticamente serão atendidos os interesses dos outros que se encontrem na mesma situação, já que todos merecem tratamento unificado. É o que ocorre no presente caso. Todos os profissionais que desenvolvem atividades relativas à Educação Física, dos quais são cobradas taxas, de registro ou anuidade, pelo CREF/SP, em decorrência das Resoluções CONFEF 32/2000 e 65/2003, têm como objetivo comum o direito ao livre exercício de sua profissão (CF, art. 5o, inciso XIII). Frise-se, ademais, que toda a sociedade tem direito subjetivo à observância e ao respeito dos direitos previstos na Constituição Federal. A defesa desses direitos foi atribuída ao Ministério Público, que exerce, no uso desta prerrogativa, verdadeira função de fiscalização dos poderes públicos e das entidades públicas e privadas que executem serviços de relevância pública. O Conselho Regional de Educação Física do Estado de São Paulo, por exercer função pública, no uso de competência delegada pela União Federal, submete-se ao crivo do Ministério Público Federal quando extravasa os seus limites de atuação e, principalmente, quando viola direito constitucional. 4 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Para a defesa de tais direitos, tem o Ministério Público legitimidade para agir, seja pelo que dispõe a Constituição Federal em seus arts. 127 e 129; seja pelo que dispõe a Lei Complementar 75/93, no art. 6o, inciso VII, alíneas “a” e “d”. Além da mencionada legitimidade para buscar em juízo a cessação da cobrança indevida das anuidades, tem o Parquet legitimidade para pleitear a devolução dos valores pagos indevidamente, que deverão ser executadas em habilitações individuais, nos moldes permitidos pelo Código de Defesa do Consumidor, ou, ainda, em execução coletiva, a cargo do Ministério Público. A esse respeito, v., adiante, item V, n. 4. IV – DA LEGITIMIDADE PASSIVA DO CREF/SP Embora o ato inquinado de ilegal tenha origem no Conselho Federal de Educação Física, situado no Rio de Janeiro, as providências concretas ora questionadas vêm sendo praticadas pelo Conselho Regional de Educação Física do Estado de São Paulo. Ele é que tem cobrado as taxas de registro e de anuidades dos profissionais inscritos perante a entidade. Além disso, a própria Resolução 32/2000, que dispõe sobre o Estatuto do Conselho Federal de Educação Física – CONFEF, estabelece que: “Art. 2o (...) Parágrafo único - O CONFEF tem personalidade jurídica distinta dos Conselhos Regionais de Educação Física, e de seus registrados. Art. 4o (...) Parágrafo único – Os Conselhos Regionais de Educação Física, organizados nos moldes determinados pelo Conselho Federal de Educação Física, ao qual se subordinam, são autônomos, no que se refere à administração de seus serviços, gestão de seus recursos, regime de trabalho e relações empregatícias. Art. 55 (...) Parágrafo único – Os CREFs terão personalidade jurídica distinta do Conselho Federal de Educação Física. Art. 61 – Além do disposto nos seus Estatutos, aos CREFs compete: (...) VII – arrecadar anuidades, taxas, multas e emolumentos na forma que deliberar o CONFEF.” Grifamos. 5 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Considerando-se que a presente ação tem por objeto a cessação dos atos ilegais supra mencionados - e não a discussão sobre o conteúdo, em tese, da Resolução – exsurge a legitimidade passiva do Conselho Regional de Educação Física. Por ser sediado em São Paulo, exsurge a competência ratione loci dessa r. Subseção Judiciária. V – DO DIREITO 1. Da violação aos princípios constitucionais do livre exercício profissional e da legalidade O artigo 5º, XIII da Constituição estabelece que “é livre o exercício de qualquer trabalho, emprego ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.” A significação clara do dispositivo, portanto, é que apenas a lei pode estabelecer restrições à liberdade de trabalho, sendo que tais restrições só podem se referir a qualificações profissionais. Por outro lado, a Constituição Federal, também no art. 5o, positivou, no inciso II, o princípio da legalidade, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. A competência legislativa para dispor sobre a “organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões”, é privativa da União, conforme preceitua o art. 22, inciso XVI, da Constituição Federal. A União Federal, em relação a determinadas profissões, delega, por intermédio de lei, o poder-dever de fiscalização a outras pessoas jurídicas, criadas por lei específica para esse fim, como é o caso do Conselho Federal de Educação Física. A Lei 9.696/98, “dispõe sobre a regulamentação da Profissão de Educação Física e cria os respectivos Conselho Federal e Conselhos Regionais de Educação Física”. A lei é tão sucinta que cabe sua reprodução integral: 6 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL “Art. 1o O exercício das atividades de Educação Física e a designação de Profissional de Educação Física é prerrogativa dos profissionais regularmente registrados nos Conselhos Regionais de Educação Física. Art. 2o Apenas serão inscritos nos quadros dos Conselhos Regionais de Educação Física os seguintes profissionais: I - os possuidores de diploma obtido em curso de Educação Física, oficialmente autorizado ou reconhecido; II - os possuidores de diploma em Educação Física expedido por instituição de ensino superior estrangeira, revalidado na forma da legislação em vigor; III - os que, até a data do início da vigência desta Lei, tenham comprovadamente exercido atividades próprias dos Profissionais de Educação Física, nos termos a serem estabelecidos pelo Conselho Federal de Educação Física. Art. 3o Compete ao Profissional de Educação Física coordenar, planejar, programar, supervisionar, dinamizar, dirigir, organizar, avaliar e executar trabalhos, programas, planos e projetos, bem como prestar serviços de auditoria, consultoria e assessoria, realizar treinamentos especializados, participar de equipes multidisciplinares e interdisciplinares e elaborar informes técnicos, científicos e pedagógicos, todos nas áreas de atividades físicas e do desporto. Art. 4o São criados o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Educação Física. Art. 5o Os primeiros membros efetivos e suplentes do Conselho Federal de Educação Física serão eleitos para um mandato tampão de dois anos, em reunião das associações representativas de Profissionais de Educação Física, criadas nos termos da Constituição Federal, com personalidade jurídica própria, e das instituições superiores de ensino de Educação Física, oficialmente autorizadas ou reconhecidas, que serão convocadas pela Federação Brasileira das Associações dos Profissionais de Educação Física FBAPEF, no prazo de até noventa dias após a promulgação desta Lei. Art. 6o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.” Conforme se observa, tal lei não previu, em nenhum de seus artigos, a possibilidade de cobrança de qualquer valor pecuniário das pessoas inscritas nos Conselhos Federal ou Regionais de Educação Física. Todavia, o Conselho Federal de Educação Física entendeu possuir atribuição complementar para fixar a cobrança e os valores de taxas a título de registro e de anuidades, e o fez por meio da Resolução CONFEF 32/2000, cujos termos que pertinem à presente ação, são os seguintes: 7 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL “Art. 8º - Compete ao Conselho Federal de Educação Física: (...) XXVIII – fixar o valor das contribuições anuais ou anuidades devidas pelos profissionais de Educação Física e pelas pessoas jurídicas, bem como os preços de serviços, taxas e multas, cuja cobrança e execução constituem atribuição dos Conselhos Regionais de Educação Física; Art. 22 – (...) Parágrafo único: O não pagamento da anuidade será considerado infração disciplinar. Art. 23 – Constituem infração disciplinar: (...) V – deixar de pagar, pontualmente, ao Conselho, as contribuições a que está obrigado; Art. 30 – Compete ao Plenário do CONFEF, por maioria simples dos votos: (...) V – fixar o valor das anuidades, taxas, emolumentos e multas devidas pelos profissionais e pelas pessoas jurídicas ao CREF a que estejam jurisdicionados; Art. 61 – Além do disposto nos seus Estatutos, aos CREFs compete: (...) VII – arrecadar anuidades, taxas, multas e emolumentos na forma que deliberar o CONFEF; ” Em complementação a tais dispositivos, o CONFEF baixou as Resoluções 20/2000, 42/2001, 51/2002, 65/2003, que fixam os valores das anuidades para os anos correspondentes. Da análise de tais dispositivos verifica-se que, desde 2000, referidos valores vêm sendo majorados: dos R$ 120,00 fixados em 2000, para os R$ 380,00 atuais, para pessoas físicas; para as pessoas jurídicas, o valor fixado em 2001 era de R$ 400,00, atualmente o valor é de R$ 800,00. Ocorre que, a Resolução 32/2000, bem como as que dela decorreram, desbordaram dos limites de regulamentação da lei, in casu, da Lei 9.696/98. Isto porque, os conselhos de fiscalização das profissões detêm competência normativa complementar e não inovadora dos limites permitidos pela lei. Ademais, as anuidades pagas aos conselhos profissionais, conforme se demonstrará no item seguinte, têm natureza jurídica de tributo e, nessa medida, sujeitam-se ao respectivo regime legal, tanto para fixação, quanto para majoração. Assim, a norma determinada pelo CONFEF e executada pelo Conselho Regional de Educação Física do Estado de São Paulo (CREF/SP) viola, além do princípio da legalidade, o da liberdade de exercício 8 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL profissional, pois os profissionais da Educação Física (pessoas físicas ou jurídicas), para que possam exercer a profissão sem se sujeitarem à prática de infração disciplinar, vêm sendo compelidos a custear o pagamento de taxas fixadas e majoradas sem o devido amparo legal. 2. Da natureza jurídica das anuidades devidas aos conselhos de fiscalização das profissões Preceitua o caput do art. 149, da Constituição Federal que “compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6.º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo”. No parágrafo único, dispõe que “os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e assistência social”. Por seu turno, determina o art. 150 que: “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; (...); III – cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado; b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; (...)”. Vale salientar que, a investida do Estado contra o bolso do cidadão pressupõe a observância rigorosa de uma série de requisitos e princípios, a maioria deles com fundamento constitucional (princípio da legalidade, princípio da anterioridade, princípio da irretroatividade, entre outros). Ademais, a ilicitude da cobrança/majoração das anuidades independe de sua natureza jurídica: sem lei não pode o réu, especialmente se considerada que sua atuação decorre de delegação estatal, investir contra o bolso do profissional sujeito à sua fiscalização. De acordo com Roque Antônio Carrazza4, é inequívoca a natureza jurídica tributária da exação cobrada pelos Conselhos Profissionais, pois “... as contribuições de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas destinam-se a custear entidades (pessoas jurídicas de direito público ou privado) que têm por escopo 4 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995. 9 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL fiscalizar e regular o exercício de determinadas atividades profissionais ou econômicas, bem como representar, coletiva ou individualmente, categorias profissionais, defendendo seus interesses.(...). Tais contribuições também são tributos (revestindo, normalmente, a natureza de imposto), devendo, destarte, ser instituídas ou aumentadas por meio de lei ordinária, sempre obedecido o regime jurídico tributário.” Ao discorrer sobre o princípio da legalidade com relação ao tema, Geraldo Ataliba lecionava que “(...) pode a lei estabelecer contribuições aos advogados, médicos, engenheiros, etc, para sustentação financeira de suas autarquias corporativas, tutelares dessas profissões.”5. Ademais, “a circunstância de querer a lei federal financiar certas finalidades, mediante contribuição, não significa que possa descaracterizar ou violar as principais regras constitucionais que aos impostos são aplicáveis. (...)”6. Desse modo “às contribuições aplica-se, na sua inteireza o princípio da estrita legalidade.”7 Nesse sentido vêm decidindo os nossos tribunais: “ ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA. INSCRIÇÃO DE PESSOA JURÍDICA. - Registro para fiscalização não se confunde com inscrição para legítimo exercício profissional, relacionada com pagamento de anuidade. - A Lei 9.696/98 não prevê a inscrição nem a contribuição de pessoas jurídicas nos Conselhos Regionais de Educação Física. - O Estatuto do CONFEF não substitui mandamento legal.” (TRF 4a Região, 4a Turma, MAS 81406-PR, Proc. 200270000002974, Rel. Juiz Alcides Vettorazzi, j. 9/4/2003, v.u., DJU 16/4/2003, p. 192). Grifamos. “CONSELHO REGIONAL DE CONTABILIDADE. ANUIDADE. MAJORAÇÃO POR MEIO DE RESOLUÇÃO. ILEGALIDADE. 1. Em sendo a anuidade tributo da espécie taxa, deve obedecer o princípio da legalidade, somente podendo ser alterado por lei, e não, por resolução do conselho. 2. Precedentes desta Corte. 3. Apelação improvida.” (TRF 4a Região, 4a Turma, AC 9504555497/RS, Rel. Juiz José Luiz B. Germano da Silva, v.u., DJ 28/10/98, p. 377) “MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL. CONSELHO REGIONAL DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL. ANUIDADE. NATUREZA JURÍDICA. FIXAÇÃO. PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL. 1. A contribuição social devida aos conselhos regionais de fiscalização profissional tem natureza tributária art. 149, da CF/88). Precedentes do tribunal. 2. O valor dessa contribuição não pode ser fixado por simples Resolução, em respeito ao princípio da reserva legal insculpido no art. 150, I, a Constituição Federal. 3. Apelação e remessa oficial desprovidas”. (TRF 1a Região, 6a Turma, AMS 01000323763/MG, Rel. Juiz Souza Prudente, v.u., DJU 7/2/02, p. 203) 5 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros, 1995. p.180. Op. cit. p. 182. 7 Op. cit. p. 175. 6 10 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL “Processual civil. Ação civil pública. Resolução nº 583/99 do COFECI. Anuidades. Fixação do valor. Liminar. Ausência de requisitos. Inidoneidade da via eleita. (...) V – A natureza da obrigação é de cunho tributário, consoante regime jurídico ao qual está submetida.” (TRF 3a Região, 3a Turma, AG, Proc. 199903000041706/SP, Rel. Juíza Cecília Marcondes, v.u., DJU 20/10/99, p. 163) Também o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre o tema, ao julgar o Recurso Extraordinário 138.284, em julho de 1992. Entendeu-se que as anuidades possuem natureza tributária, tanto é que estariam sujeitas ao princípio da anterioridade. Do voto do Relator, Ministro Carlos Velloso, extrai-se a seguinte passagem: “As contribuições de intervenção no domínio econômico (art. 149), como as contribuições do IAA, do IBC estão sujeitas ao princípio da anterioridade. As corporativas (art. 149), cobradas por exemplo, pela OAB, pelos Conselhos de Fiscalização de profissões liberais e pelos sindicados (contribuição sindical) estão sujeitas, também, ao princípio da anterioridade”. Cumpre ressaltar, por relevante, que o § 4o, do art. 58, da Lei 9.649/98, estabelecia que: “os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas são autorizados a fixar, cobrar e executar as contribuições anuais devidas por pessoas físicas ou jurídicas, bem como preços de serviços e multas, que constituirão receitas próprias, considerando-se título executivo extrajudicial a certidão relativa aos créditos decorrentes”. Todavia, referido dispositivo, juntamente com o caput do artigo e seus §§ 1o, 2o, 5o, 6o, 7o e 8o foram declarados inconstitucionais pelo E. Supremo Tribunal Federal, no bojo da ADIn 1.717-DF. Desse modo, inexiste dispositivo legal que permita a cobrança/majoração de anuidades ou quaisquer outras taxas por parte da entidade ré. Nessa medida, os arts. 8o, XXVIII; 30, V e 61, VII, da Resolução CONFEF 32/2000, bem como a Resolução 65/2003, porque dela decorrente, não podem ser aplicadas, em face de sua ilegalidade e inconstitucionalidade. 3. Da legalidade como legitimação democrática Mesmo que se considere que as mencionadas taxas já cobradas e as que o réu pretende cobrar não se sujeitam ao regime tributário, subsiste a vedação decorrente do princípio da legalidade inserido no artigo 5o, inciso II, da Constituição Federal. 11 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL A fixação e a cobrança das anuidades e outras taxas, ora impugnadas, poderiam ter sido incluídas pela lei que criou os Conselhos Federal e Regionais de Educação Física (Lei 9.696/98). Contudo, o legislador não o fez. Não se ignora que a arrecadação de tais valores condiz com a saúde financeira da entidade. Todavia, o espaço próprio para a sua fixação e regulação é o Congresso Nacional. Este é o papel do princípio da legalidade. Lá, os representantes do povo poderão ponderar sobre as conseqüências de sua decisão, pensar regras, estabelecer exceções... Não se trata, portanto, de decisão que possa ser tomada pela maioria simples do Plenário de um Conselho de Fiscalização Profissional (Resolução CONFEF 32/2000, art. 30, inciso V). Falta-lhe legitimidade para tanto! Desta feita, sem prévia autorização legal, carece de fundamento jurídico qualquer investida do réu contra os profissionais da Educação Física. Além disso, não existe poder de polícia sem prévia e específica previsão em lei. 4. A devolução dos valores pagos indevidamente A presente ação visa, ainda, se julgada procedente, servir como título judicial para a devolução das importâncias pagas indevidamente. Tal dano foi experimentado por milhares de profissionais sendo que, referido interesse, obviamente, é divisível entre os profissionais que efetuaram tais pagamentos indevidos; além disso, é facilmente calculável, bastando que os interessados apresentem os respectivos comprovantes de pagamento. A devolução das importância pagas, portanto, insere-se na categoria dos interesses individuais homogêneos. Logo, aplica-se o disposto nos artigos 98, 99 e 100 do Código de Defesa do Consumidor, segundo os quais a execução das indenizações individuais será feita por meio de habilitações, também individuais, por cada interessado, para as quais o Ministério Público não tem legitimidade. O Ministério Público atuará na execução da devolução dos valores pagos indevidamente, apenas na hipótese do art. 100, que passamos a transcrever “in verbis”: “Art. 100. Decorrido o prazo de 1 (um) ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida. Parágrafo único. O produto da indenizada devida reverterá para o Fundo criado pela Lê 7.347, de 24 de julho de 1985.” 12 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Tendo em vista que o Ministério Público é um dos legitimados mencionados no art. 82, do Código de Defesa do Consumidor, nada impede que venha a pleitear na presente ação a devolução dos valores pagos indevidamente, não a título de habilitações individuais, mas a título de garantia de que a sentença, em caso de procedência, venha a servir como título judicial, ou, ainda, para promover a execução de valores para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos Lesados. Nem se alegue que a devolução dos valores pagos indevidamente não encerra relevante interesse social. Repetimos: não estamos a pleitear indenizações individuais, estas serão decorrência lógica de toda ação civil pública que resvale em danos individualmente sofridos, e passíveis de quantificação, tanto que o Código de Defesa do Consumidor inovou para admitir tal tipo de execução (arts. 98, 99 e 100), com o fim de garantir maior efetividade às decisões judiciais. Frise-se, a propósito, que a efetividade e a celeridade da prestação jurisdicional constitui, atualmente, o norte de todo o sistema processual civil; não é o outro o espírito das recentes reformas processuais! A natureza eminentemente social aqui patente, revela-se na necessidade urgente de se obstar a cobrança indevida de valores de centenas de milhares de profissionais, bem como na dificuldade de atuação de outros milhares que não conseguem acesso ao trabalho por não terem condições de arcar com as altas taxas cobradas e majoradas, sem critério e sem lei. Considerando, então, que a admissão de habilitações individuais é expediente previsto no Código de Defesa do Consumidor, o interesse social é vislumbrado, no mínimo, em se evitar a corrida ao Poder Judiciário, com ações individuais de conhecimento, para repetição do indébito, o que geraria acúmulo desnecessário de feitos, além do risco de decisões conflitantes. Finalmente, vale frisar que a jurisprudência e a doutrina já evoluíram no sentido de que as disposições do Código de Defesa do Consumidor, relativas a ações civis públicas e coletivas, não se aplicam apenas às relações de consumo, mas formam um sistema integrado com o Código de Processo Civil e a Lei 7.347/85, para disciplinar toda e qualquer ação civil pública. Veja-se, a propósito, a lição de Motauri Ciocchetti de Souza: “(...) a parte processual do Código de Defesa do Consumidor compõe, com a Lei 7.347/1985, o que podemos chamar de ‘sistema da ação civil pública’. Com efeito, enquanto os princípios procedimentais trazidos, ‘v.g.’, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente são prevalentes na defesa dos interesses por ele retratados – comportando a aplicação dos dispositivos insertos na Lei 7.347/1985 de forma subsidiária, com os efeitos de tal decorrentes – entre a 13 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL parte processual do Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação civil Público vige autêntica relação de reciprocidade, de interação, mercê do disposto em seus arts. 90 e 21, respectivamente.”8 Presente, pois, a legitimidade do Ministério Público para se buscar em juízo a cessação da cobrança indevida, bem como para se pleitear a devolução dos valores pagos indevidamente, a serem executados em habilitações individuais9, que não ficarão a cargo deste Ministério Público Federal; ou, em execução coletiva, sob a nossa responsabilidade. VI – DA NECESSIDADE DE ANTECIPAÇÃO DA TUTELA Há dano coletivo na continuidade das cobranças perpetradas pela entidade ré, pois atinge todos os profissionais de Educação Física sujeitos à sua fiscalização. O dano irreparável ou de difícil reparação revela-se na possibilidade de se obstar o livre exercício da profissão da área da Educação Física, na medida em que o seu inadimplemento implica a prática de infração disciplinar, sujeita à aplicação de penalidades pelo Conselho. A plausibilidade do pedido exsurge do ferimento de garantias fundamentais e de princípios constitucionais (legalidade e liberdade de trabalho). A verossimilhança da alegação resulta da argumentação ora trazida, bem como da solicitação de providências junto ao Ministério Público Federal, que deu ensejo instauração da Representação nº o 1.34.001.006005/2003-53, em trâmite perante a Banca I, do 4 Ofício da Tutela Coletiva. Assim, presentes os requisitos do art. 273, caput e inciso I, do Código de Processo Civil, a antecipação dos efeitos da tutela, para que o Conselho Regional de Educação Física do Estado de São Paulo abstenha-se de cobrar, dos profissionais da Educação Física (pessoas físicas ou jurídicas), 8 Ação Civil Pública (Competência e Efeitos da Coisa Julgada). São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2003, p. 43. Tais habilitações ocorrem em procedimento que deve primar pela simplicidade e não implicam em se onerar esta ação principal, pois não se exige que elas se dêem nos autos principais ou suplementares, nem por carta de sentença (execução provisória). As execuções individuais dar-se-ão em face do devedor, no domicílio de cada credor, apenas com base em certidão da sentença condenatória em ação civil pública. É o ensinamento de Ada Pelegrini GRINOVER, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, p. 689. 9 14 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL qualquer valor a título de taxas ou anuidades, determinando-se ao referido Conselho que adote as providências que se fizerem necessárias para a ampla divulgação da tutela antecipada que aqui se pleiteia, caso concedida, como é medida que se impõe e que se ora requer. VII – DO PEDIDO Diante das considerações apresentadas, o Ministério Público Federal requer, liminarmente, antes da citação do réu, mas após a concessão do prazo de 72 horas previsto no art. 2o, da Lei 8.437/92, o deferimento de tutela antecipada consistente em impor ao réu a seguinte obrigação, sob pena de pagamento de multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais), por infração, sem prejuízo da prática do crime de desobediência (art. 330 do Código Penal): - não cobrar ou realizar qualquer ato tendente a receber valores a título de taxa de anuidades obrigatórias como condicionantes para o registro ou outro título dos profissionais da Educação Física (pessoas físicas ou jurídicas). A título de provimento definitivo requer seja o presente pedido julgado procedente confirmando-se, por sentença, a tutela requerida liminarmente, para o fim de condenar o réu em obrigação de não fazer, consistente em se abster de cobrar, dos profissionais da Educação Física (pessoas físicas ou jurídicas), qualquer valor a título de taxas ou anuidades obrigatórias como condicionantes para o registro profissional, bem como para condenar o réu a devolver as importâncias recebidas indevidamente, após regular execução de sentença, nos moldes previstos nos artigo 98, 99 e 100 da Lei 8.078/90; Requer ainda: a) a citação do réu para, querendo, responder aos termos da presente ação coletiva, sob pena de revelia; b) a imposição de multa no valor de R$ 15.000,00 (quinze mil reais), cada vez que houver infração ao quanto decidido, sem prejuízo da prática do crime de desobediência (art. 330 do Código Penal); c) a publicação, em órgão oficial, do edital referido pelo artigo 94 da Lei 8.078/90, a fim de que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes; 15 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL d) em caso de procedência, a publicação, em órgão oficial, do edital referido pelo artigo 94 da Lei 8.078/90, a fim de que os interessados possam se habilitar individualmente, fixando-se o início do prazo previsto no art. 100 da Lei 8.078/90; e) a condenação do réu no pagamento de custas, despesas processuais e honorários advocatícios a serem revertidos em favor da União. VIII – DO JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE Por tratar-se de questão exclusivamente de direito, o Ministério Público Federal apresenta, com esta peça inicial, cópia das principais peças da Representação 1.34.001.006005/2003-53 e, por inexistirem outras provas a serem indicadas, requer, desde já, o julgamento antecipado da lide. IX – DO VALOR DA CAUSA Dá à causa o valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). São Paulo, 22 de junho de 2.004. Eugênia Augusta Gonzaga Fávero PROCURADORA DA REPÚBLICA 16