Anais do 5º Encontro do Celsul, Curitiba-PR, 2003 (813-819) EMPREGO VARIÁVEL DE SUJEITO NULO NA FALA DE UMA CRIANÇA ADQUIRINDO O PORTUGUÊS BRASILEIRO: INTERAÇÃO ENTRE RESTRIÇÕES SINTÁTICAS E FATORES DISCURSIVOS NO CONDICIONAMENTO DA ESCOLHA ENTRE MODOS DE CODIFICAR O SUJEITO Luciene Juliano SIMÕES (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) ABSTRACT: Different types of subjects are related to the degree of connection between subject and discourse antecedent in the speech of a Brazilian-Portuguese-speaking two-year-old child. Results reveal the importance of recoverability of reference for the high percentage of null subjects presented by children in the early stages of BP acquisition. KEYWORDS: null subjects; language acquisition; discourse analysis 0. Introdução Neste trabalho, analisarei as diferentes realizações de sujeitos referenciais nos dados de uma criança de dois anos a fim compreender qual o peso que fatores de caráter discursivo têm sobre a ocorrência de sujeitos nulos. Para tanto, tomo a noção de graus de conexão entre o sujeito e seu antecedente em discurso como quadro descritivo a partir do qual os sujeitos podem ser categorizados. Conforme será possível observar nos dados, há um grande número de ocorrências nas quais há conectividade entre o sujeito e seu antecedente. Esta propriedade do discurso da criança, acrescida da fácil recuperabilidade dos referentes dos sintagmas nominais utilizados, relacionada à dita concentração da fala da criança no “aqui” e “agora”, torna a probabilidade de ocorrência de sujeitos nulos bastante alta. Esse resultado aponta na direção de explicar a alta proporção de sujeitos nulos na produção oral espontânea da criança não como evidência relacionada à aquisição de restrições sintáticas de nível frasal, mas como fruto das propriedades pragmáticas e discursivas da fala da criança nos primeiros estágios de aquisição. 1. Pressupostos e Hipóteses de Trabalho A principal ferramenta de análise dos dados infantis a ser utilizada neste trabalho é a noção de grau de conectividade desenvolvida por Paredes da Silva (1991 e 1993) em estudo realizado por essa autora acerca dos fatores que determinam a opção entre a codificação de sujeitos referencias através do que ela denomina ‘anáfora zero’ ou através do emprego de um pronome. O estudo em cujo contexto a discussão de tal noção aparece é a análise de um corpus de cartas pessoais escritas por informantes cariocas. O trabalho da autora parte da interpretação anteriormente proposta por Li & Thompson (1979) segundo a qual a escolha entre o pronome nulo e o manifesto envolve tendências e não regras categóricas e de que essas tendências apontam na seguinte direção: a codificação do sujeito pela presença de um pronome será mais freqüente na medida inversa da conectividade em discurso que houver entre o sujeito em questão e seu antecedente. Partindo-se dessa interpretação, a análise não mais se concentra na simples consideração binária entre dado e novo, mas numa classificação mais graduada do estatuto discursivo do sujeito sob análise – entre os pontos extremos da retomada de um referente dado e da introdução de um novo referente, vários outros pontos numa escala de conexão do discurso devem ser considerados, sendo maior a probabilidade de aparecimento do pronome quanto mais o contexto se aproximar da descontinuidade discursiva. Considerando esse quadro, Paredes da Silva (1991) propõe seis graus de conexão e, através de análise fatorial, encontra os resultados expressos nas Tabelas 1 e 2 abaixo.1 As freqüências e os pesos relativos evidenciam haver de fato uma gradação que distingue as diferentes categorias entre si e uma diminuição do número de pronomes empregados à medida que se chega ao grau 1 de conexão: aquele em que a continuidade discursiva se verifica mais tipicamente, segundo a categorização da autora. Além disso, conforme os resultados do estudo, o efeito dos graus de conexão é mais determinante, de um modo geral, na determinação da codificação do sujeito de terceira pessoa – a escala vai de 4 a 94% de sujeitos nulos ou, nos termos de Paredes da Silva, de casos de anáfora zero – do que naqueles de primeira pessoa – nesse caso, a escala fica entre os 70 e os 99% de sujeitos nulos. É importante ressaltar, por fim, com 1 Respectivamente, Tabela 4 e Tabela 5 em Paredes da Silva (1991:32,33). 814 EMPREGO VARIÁVEL DE SUJEITO NULO NA FALA DE UMA CRIANÇA ADQUIRINDO O PORTUGUÊS BRASILEIRO: INTERAÇÃO ENTRE RESTRIÇÕES SINTÁTICAS E FATORES DISCURSIVOS NO CONDICIONAMENTO DA ESCOLHA ENTRE MODOS DE CODIFICAR O SUJEITO relação aos números das duas tabelas, que se trata de uma variedade de dados na qual a presença de sujeitos nulos é expressiva de forma geral, sendo, portanto, o foco da discussão os fatores que levam à escolha de um pronome num lugar em que a gramática da língua oferece como opção o aparecimento de uma categoria vazia. TABELA 1 Efeito da conexão do discurso na ausência de sujeitos de 1ª pessoa2 Apl/T Freq. Grau 1 209/212 99% Grau 2 336/395 85% Grau 3 143/178 80% Grau 4 055/078 70% Grau 5 262/410 64% Grau 6 266/377 70% Prob. .94 .59 .47 .34 .25 .23 TABELA 2 Efeito da conexão do discurso na ausência de sujeitos de 3ª pessoa3 Apl/T Freq. Grau 1 165/176 94% Grau 2 079/120 66% Grau 3 021/055 38% Grau 4 077/243 32% Grau 5 006/082 7% Grau 6 001/026 4% Prob. .93 .70 .53 .37 .21 .15 Com relação a esse último ponto, há uma diferença crucial entre a análise de Paredes da Silva e aquela que será aqui apresentada. A discussão das manifestações do sujeito na fala de crianças empreendida neste trabalho tem como pano de fundo hipóteses tecidas em torno de dados de algumas variedades da fala brasileira no âmbito da Teoria da Variação e Mudança, por exemplo Tarallo (1993) e Duarte (1996; 2000), e em torno do que se considera a variedade brasileira do português no âmbito da Teoria de Princípios e Parâmetros, por exemplo Figueiredo Silva (1996; 2000), segundo as quais estão em curso mudanças gramaticais significativas no que toca à possibilidade de o sujeito ser nulo no português falado no Brasil. Segundo Duarte (1996), em dados do vernáculo carioca, a proporção total de sujeitos nulos é de apenas 29% dos dados, sendo os contextos de primeira e segunda pessoas do discurso mais restritivos do que os de terceira pessoa: na primeira pessoa do singular ocorrem 28% de nulos; na segunda, 11%; e na terceira, 57%. Outros resultados importantes do estudo quantitativo da autora são, primeiro, que há diferença significativa entre as diferentes faixas etárias examinadas na amostra, sendo os mais jovens os que mais restringem os empregos de sujeitos nulos e, também, o fato de que a construção sintática em que ocorre o sujeito afeta significativamente os percentuais; em frases relativas, por exemplo, apenas 7% dos sujeitos são nulos. De modo geral, quanto à questão da construção sintática envolvida, há efeitos restritivos do encaixamento no emprego de sujeitos nulos; as frases raízes são contextos preferenciais para esse tipo de sujeito. Esse efeito de certos tipos de encaixamento corrobora a análise proposta por Figueiredo Silva (1996; 2000), cujo quadro de análise é bastante diferente do de Duarte. Segundo esta autora, que trabalha no quadro da sintaxe gerativa de princípios e parâmetros, o tipo de categoria vazia presente na posição de sujeito na gramática brasileira depende de certo tipo de ligação sintática com a posição de especificador de CP, de tal modo que, caso essa posição esteja preenchida por elemento estranho à cadeia referencial do sujeito, este não poderá ser nulo. Este é o caso de frases como as apresentadas em (1), ocorrências de fala infantil. Nelas, o objeto topicalizado impede que o sujeito seja nulo. (1) a. A2-682*A: Esse eu também conségu. b. A5-006*A: O motoqueiro eu vou cortar. c. A6-416*A: E esse também tu quer? d. A16-545A: A minha malinha eu peguei. 2 Repetimos aqui a terminologia do texto original, embora não estejamos de acordo com a descrição dos casos como contextos de “ausência de sujeito”. 3 Ver nota 2. Luciene Juliano SIMÕES 815 Tendo por base os estudos de Duarte e Figueiredo Silva citados, em Simões (1999, 2000) realizei análise dos dados a serem discutidos neste trabalho inspirada nas hipóteses acerca de fixação paramétrica propostas no quadro teórico da gramática gerativa. Os resultados corroboram em grande parte as hipóteses de trabalho lá estabelecidas. A criança observada apresentou em sua fala emprego de sujeitos nulos em 51,2% do total de ocorrências de enunciados com verbo em toda a amostra. Essa proporção total reflete de maneira aproximada as proporções encontradas em cada uma das faixas etárias analisadas, sendo interessante também o fato de que a proporção média de nulos é ainda mais baixa do que a total. Ou seja, mesmo sendo verdade que há picos percentuais, em que a criança usa mais nulos, há também amostras em que esse percentual é ainda mais baixo. Fica também evidente nos dados que os percentuais de sujeitos nulos variam segundo a pessoa do discurso: na primeira pessoa, ocorre uma proporção de 36% de sujeitos nulos; na segunda, 37%; e na terceira, 63%. Numa análise mais qualitativa das construções, inspirada em Figueiredo Silva, observou-se que as construções nas quais a autora considera a ocorrência de nulos agramatical na gramática brasileira, há apenas dois casos de sujeito nulo. Esse quadro de resultados referentes à criança observada em Simões (1999; 2000) levou à interpretação de que aos 2;4 a criança brasileira já usa sujeitos nulos da mesma forma que o adulto no que concerne às restrições sintáticas que atuam nesse subsistema. Permaneceu, no entanto, uma questão para análise futura: a razão por que havia mais sujeitos nulos nos dados infantis do que naqueles atestados na fala de adultos no trabalho quantitativo de Duarte (1996). Ou seja, embora os empregos sejam qualitativamente coincidentes e quantitativamente comparáveis aos de adultos, especialmente considerando-se os contextos de distribuição, há diferenças quantitativas entre os dados de adultos e os da criança; tais diferenças, é possível supor, deverão desaparecer ao longo do desenvolvimento. O presente estudo pretende lançar luz sobre essa questão. A hipótese de trabalho em torno da qual ser organiza o trabalho é a de que as propriedades discursivas da fala inicial tenham papel fundamental na maior presença de sujeitos nulos. Mesmo as análises que apontam mudança no português do Brasil com relação à possibilidade de emprego dos sujeitos nulos reconhecem que tais sujeitos seguem ocorrendo, sendo gramaticais em certos contextos. Sendo esse o caso, é de se esperar que fatores relativos ao estatuto discursivo do sujeito ainda operem, uma vez que, em diversos contextos, ainda há a possibilidade da opção por codificar o sujeito através de um sintagma lexical, de um pronome ou de um sujeito nulo. Nesses casos, a escolha será regida por propriedades funcionais do sujeito. Com base na hipótese descritiva oferecida por Paredes da Silva (1991), analisarei parte dos dados discutidos em Simões (1999; 2000) a fim de encontrar evidências relevantes para a compreensão da diferença quantitativa constatada entre os dados infantis e os dados de adultos. 2. Dados Os dados que analisarei aqui formam um conjunto de cinco sessões de observação de um menino falante monolíngüe do português brasileiro. As cinco sessões de coleta de dados foram realizadas em seqüência, numa periodicidade quinzenal, no início do terceiro ano de vida do menino – as idades observadas vão de 2;4 a 2;6 meses. Cada sessão constava de uma hora durante a qual eu interagia em situação de brincadeira espontânea com o menino em sua casa. A hora de gravação em áudio resultante de cada sessão foi transcrita ortograficamente em sua íntegra; tais transcrições compõem o conjunto de dados. 3. Categorias de Análise Os dados serão analisados com relação aos seguintes aspectos: presença ou ausência do referente do sujeito em questão no contexto extralingüístico imediato da conversa e o grau de conexão no discurso entre o sujeito sob análise e sua menção anterior na conversa. Com relação ao grau de conexão em discurso, serão considerados os seis graus propostos por Paredes da Silva (1991), definidos segundo os critérios da autora acrescidos de algumas considerações necessárias para que se tornassem aplicáveis aos dados acima descritos, evidentemente diferentes dos dados de cartas pessoais numa série de aspectos. Os seis graus segundo os quais foram classificadas as ocorrências são os seguintes: Grau 1 – sujeitos que apresentam o maior grau de conexão possível com seu antecedente; nesses casos, o antecedente é o sujeito da oração anterior, ambos têm o mesmo referente e não há qualquer mudança de tópico ou de plano discursivo – essa última característica implica que o tempo e o modo verbal são os mesmos nas orações envolvidas. Grau 2 – sujeitos em que há uma sutil queda na conexão discursiva com o antecedente; nesses casos, há continuidade de tópico e correferencialidade, mas ocorre alguma mudança de plano 816 EMPREGO VARIÁVEL DE SUJEITO NULO NA FALA DE UMA CRIANÇA ADQUIRINDO O PORTUGUÊS BRASILEIRO: INTERAÇÃO ENTRE RESTRIÇÕES SINTÁTICAS E FATORES DISCURSIVOS NO CONDICIONAMENTO DA ESCOLHA ENTRE MODOS DE CODIFICAR O SUJEITO discursivo (de figura a fundo, de real a irreal, de fato a comentário); estão incluídos aqui casos em que há diferença de tempo e modo entre os verbos das orações envolvidas e também os casos em que há mudança de interlocutor – esta última característica não está presente em Paredes da Silva. Grau 3 – aqui não há continuidade estrita entre os sujeitos das orações que se sucedem, mas o segmento que interfere entre o sujeito sob análise e seu antecedente é impessoal e não chega a interromper o tópico. Foram analisados como pertencentes a esta categoria os sujeitos de primeira pessoa que não tinham característica de correferencialidade, mas que não tinham valor contrastivo com um referente anterior. Ou seja, casos em que o falante era introduzindo como referente relevante na conversa, mas não havia nem contraste entre a referência ao falante e a referência a outro participante nem mudança de tópico discursivo não foram considerados como casos de descontinuidade discursiva.4 Grau 4 – neste ponto, quebra-se a topicalidade do referente, o que gera um efeito mais significativo na conexão discursiva; são casos em que o antecedente e o sujeito em questão não estão na mesma função sintática. Grau 5 – há nesses casos uma queda sensível na conexão entre o sujeito e seu antecedente em virtude da ocorrência de outro participante na posição de sujeito da oração anterior àquela sob análise. Foram também analisados nessa categoria os casos de aparecimento de primeira pessoa com valor contrastivo. Grau 6 – é o grau mínimo de conexão, no qual há introdução de novos referentes e mudança de tópico discursivo. 4. Resultados e Discussão O Quadro 1 apresenta algumas contagens mais gerais relativas aos sujeitos analisados. Cabe destacar dois pontos com relação aos números ali evidenciados. Primeiro, o pequeno número de sujeitos que se referiam a outras pessoas do discurso que não a primeira do singular e a terceira. Não houve casos de segunda pessoa do plural e pouquíssimos de segunda do singular e primeira do plural. Em virtude desse baixo número de ocorrências, não se procedeu à analise do estatuto discursivo desses sujeitos; esta restringiu-se aos contextos de primeira pessoa do singular e aos de terceira do singular e plural tomadas conjuntamente. O outro ponto que cabe destacar é o baixíssimo número de sujeitos cujo referente não estava presente no contexto imediato da interação face-a-face em curso na sessão. Essa proporção confirma mais uma vez a característica de “aqui e agora” das conversas de crianças pequenas e demonstra que, em qualquer dos casos de conectividade discursiva, os sujeitos têm referentes facilmente recuperáveis, desde que esteja assegurado foco de atenção conjunta entre os interlocutores. Veremos a seguir que esse fator é crucial para certas ocorrências aparentemente desviantes atestadas nos dados. QUADRO 1: Distribuição do sujeitos por pessoa do discurso e pela presença ou ausência do referente no contexto extralingüístico imediato Total de ocorrências Referentes presentes na situação Referentes ausentes da situação Ocorrências descartadas Ocorrências de 1ª pessoa do singular Ocorrências de 3ª pessoa Outras pessoas 652 618 (94,7%) 22 (3,4%) 12 170 456 14 As Tabelas 3 e 4 apresentam os resultados da correlação entre o tipo de sujeito e seus grau de conexão em discurso; na Tabela 3, são apresentados os números referentes à primeira pessoa do singular e na Tabela 4, à terceira pessoa. 4 Devo essa análise à contribuição pessoal da colega Ana Maria S. Zilles, que sugeriu que em termos informacionais as propriedades referenciais da primeira pessoa são bastante diferentes das de pronomes de terceira pessoa. Num diálogo, parece que de fato a primeira pessoa é altamente topical, sendo seu aparecimento sem um antecedente em discurso de natureza distinta daquela de um elemento de terceira pessoa. Ou seja, a primeira pessoa só foi considerada um caso de introdução de referente quando tinha valor contrastivo com um referente anteriormente mencionado em discurso. Ver a propósito, a noção de shifter sugerida por Jakobson (1970). Luciene Juliano SIMÕES 817 TABELA 3: Efeitos do grau de conexão no discurso na ocorrência de pronomes ou nulos de 1ª pessoa do singular nos dados de uma criança de 2 anos de idade Pronomes Grau 1 Grau 2 Grau 3 Grau 4 Grau 5 Grau 6 7/110 5/110 28/110 0/110 52/110 18/110 Nulos 6,3% 4,5% 25,5% 47,3% 16,3% 1/60 17/60 38/60 0/60 2/60 2/60 1,6% 28,3% 63,3% 3,3% 3,3% TABELA 4: Efeitos do grau de conexão no discurso na ocorrência de sujeitos manifestos ou nulos de 3ª pessoa nos dados de uma criança de 2 anos de idade Grau 1 Grau 2 Grau 3 Grau 4 Grau 5 Grau 6 Pronomes 8/75 10,6% 26/75 34,6% 16/75 21,3% 4/75 5,3% 14/75 18,6% 7/75 9,3% Nulos 28/232 12,06% 125/232 53,8% 44/232 18,9% 7/232 3,0% 7/232 3,0% 21/232 9,0% Demonstrativos 2/72 2,7% 6/72 8,3% 2/72 2,7% 0/72 57/72 79,1% 5/72 6,9% SNs lexicais 1/77 1,2% 2/77 2,5% 0/77 5/77 6,5% 40/77 51,9% 29/77 37,6% Começando a discussão desses resultados pelos da Tabela 4, referente à terceira pessoa, a primeira questão a ressaltar é que a correlação mais importante é aquela que se estabelece entre o aparecimento de sujeitos nulos e os graus mais altos de conexão em discurso. A conexão de grau 2, exemplificada pela ocorrência em (2) e referente, na quase totalidade dos casos, ao aparecimento do antecedente na fala do interlocutor no turno imediatamente anterior àquele em que ocorre o nulo, é responsável pela maior parte dos empregos de sujeito nulo. Além disso, somando-se os casos de nulo dos três primeiros graus – aqueles que permanecem dentro de um limite de continuidade discursiva – teremos uma proporção de 197/232 sujeitos nulos; ou seja, 85% das ocorrências de sujeito nulo aparecem em contextos de continuidade discursiva, podendo seu emprego ser considerado uma marca de continuidade discursiva na fala da criança observada. (2)L: Pum! Caiu a caixa. A: Caiu assim. (2;5:19) Por fim, ainda com relação a essa questão, embora a relação entre o emprego da anáfora zero e a continuidade discursiva não seja considerada uma regra categórica, mas um fator condicionante de natureza gradual, a presença de 21 casos desse tipo de sujeito no grau 6 de conexão pode ser considerado evidência de que a criança não distribui seus sujeitos de forma comparável à distribuição adulta, devendo a direção desses condicionamentos ainda ser adquirida ulteriormente. Isso porque, em primeiro lugar, a proporção deste emprego aumenta na direção do menor grau de continuidade discursiva ao invés de diminuir e, além disso, porque, na realidade, os graus 4 e 5 de conexão não se demonstraram de fato úteis para a interpretação dos dados, não parecendo operar de modo significativo no discurso da criança. Dito de outro modo, parece que especialmente os graus 5 e 6, selecionados como fatores que levam a uma despreferência pelo sujeito nulo no adulto, atuam de maneira diferente aqui. Nossa interpretação para essa maior aceitação do sujeito nulo nesses contextos está relacionada ao achado de que a quase totalidade dos sujeitos da amostra se referem a objetos e participantes da brincadeira que estão imediatamente presentes na situação de interação, sendo, desse modo, altamente recuperáveis mesmo que, se considerados no fluxo do discurso, sejam informacionalmente novos e ocorram em contexto de descontinuidade de tópico. É interessante notar com relação a isso que a totalidade dos casos encontrados são de sujeitos que se referem a objetos que estão sendo manipulados pelo menino ou que se movimentaram ou foram movimentados no desenrolar das ações da brincadeira sendo narrada, o que significa que eram objetos não apenas presentes na situação, mas também perceptualmente salientes: o exemplo em (3) ilustra esse conjunto de ocorrências. (3)L: Tu vai come(r) picolé? A: Vou L: O pai foi buscar? A: Pai (chamando o pai) 818 EMPREGO VARIÁVEL DE SUJEITO NULO NA FALA DE UMA CRIANÇA ADQUIRINDO O PORTUGUÊS BRASILEIRO: INTERAÇÃO ENTRE RESTRIÇÕES SINTÁTICAS E FATORES DISCURSIVOS NO CONDICIONAMENTO DA ESCOLHA ENTRE MODOS DE CODIFICAR O SUJEITO I: Eu gosto de chocolate Nestlé (L tinha trazido bombons para as crianças, por isso I está falando em chocolates. A está brincando com papel e lápis enquanto a interação se desenrola) A: Não tá colado L: Quê? A: Não tá colado isso. (2;5:19) Participam da conversa o menino (A), a entrevistadora (L), o pai (P) e a irmã do menino (I). O tópico da conversa era o que as crianças comeriam; na linha grifada, o menino introduz novo tópico fazendo uso de sujeito nulo. Nesse ponto, vale notar que ele está com o objeto referido nas mãos ao dizer que “não tá colado”. Curiosamente, a entrevistadora não entende, e o menino faz um reparo exatamente na direção de introduzir um demonstrativo à direita – emprego claramente condicionado por quebra de continuidade referencial nos dados, conforme se pode ler na Tabela 4 na coluna dos demonstrativos. A outra evidência interessante com relação à Tabela 4 é a distribuição dos pronomes de terceira pessoa. Suas ocorrências, embora sejam mais altas nas três primeiras categorias, não estão tão concentradas nem nas categorias de continuidade, nem nas de descontinuidade. Parece mesmo que aqui o pronome não é uma marca de descontinuidade, o que seria de se esperar num conjunto de dados nos quais o sujeito nulo é simultaneamente restringido por fatores sintáticos frasais que forçam o emprego do pronome em contextos bastante contínuos discursivamente. Por fim, fica evidente que os demonstrativos e o emprego de nomes próprios e descrições definidas são os mecanismos mais condicionados pelos graus de descontinuidade discursiva, o que se poderia esperar. Quanto à Tabela 3, relativa aos empregos de primeira pessoa, as mesmas direções de condicionamento ficam corroboradas. As ocorrências de sujeito nulo estão concentradas nas categorias de continuidade, sendo seu emprego marginal nos contextos cujo grau de conexão discursiva é baixo. Ou seja, novamente os nulos são marcas de continuidade discursiva. No caso da primeira pessoa, não havendo mais contrastes do que o do aparecimento de um pronome versus o não aparecimento, o pronome está mais nitidamente ligado aos graus de descontinuidade, sendo seu aparecimento especialmente motivado pelo fato de o referente ter um valor contrastivo com relação a um referente animado anteriormente mencionado na conversa. Nesse sentido, vale examinar os exemplos. Nos casos em (4), temos ocorrências classificadas como grau 3 e 2, pois, embora a primeira pessoa não tivesse menção anterior no diálogo, ela não cria descontinuidade. Já no caso em (6), temos um caso de grau 5 de conexão, pois a primeira pessoa aparece com valor contrastivo; não só a irmã do menino deve sair, mas ele também. (4)A: Mais [A está comendo um picolé] A: Tila o papel fora. Tila o papel fola. P: Tirar o papel fora? A: Não consigo. Não consigo morder. (2,5:19) (5) P: É a Luisa que tá vestindo a capa dela porque ela vai sair. O André só vais vestir a dele mais tarde, quando ele sair, né? A: Eu também quero sair. A: Eu quero ir no super. (2;4:18) Assim, parece que os resultados obtidos em termos de proporções já indicam que a criança conhece o contraste entre continuidade e descontinuidade discursiva e que tal contraste condiciona as diferentes realizações dos sujeitos em sua fala espontânea. Tal condicionamento vai especialmente na direção da despreferência por nulos em situação de descontinuidade, tornando tais sujeitos marcas de continuidade. Sendo o discurso em questão pouco complexo, constituído de perguntas e respostas adjacentes referentes ao aqui e agora da interação, muitos são os casos de continuidade discursiva máxima, determinando uma freqüência relativamente alta de sujeitos nulos. 5. Considerações Finais Este trabalho teve por objetivo explorar a noção de grau de conexão no discurso como possibilidade de compreensão da freqüência de sujeitos nulos na fala de uma criança. Tal compreensão insere-se numa interpretação da gramática em questão como uma gramática restritiva com relação ao emprego de sujeitos nulos, o que tornava sua alta freqüência inesperada. Sugerimos aqui que os números de tais sujeitos não são tão altos porque a criança não conhece os fatores que os restringem, mas porque as condições discursivas do uso da língua pela criança favorecem o aparecimento de sujeitos não Luciene Juliano SIMÕES 819 manifestos. A fim de confirmar a plausibilidade de uma tal explicação, pesquisas futuras deverão examinar os números em termos do peso relativo dos diferentes fatores sintáticos e discursivos que afetam o emprego de sujeitos nulos e pronominais, uma vez que apenas a proporção não nos oferece respostas realmente seguras com relação aos condicionamentos verificados. Além disso, pesquisa futura deverá também observar se há uma correlação entre o tipo de discurso e a queda desses percentuais em fases posteriores do desenvolvimento infantil. RESUMO: Diferentes tipos de sujeito são correlacionados ao grau de conexão no discurso entre o sujeito e seu antecedente para entender por que a criança pequena falante de português brasileiro apresenta número maior de nulos do que o adulto. A recuperabilidade do referente é apontada como determinante no emprego de nulos pela criança. PALAVRAS-CHAVE: sujeito nulo; aquisição da linguagem; conexão em discurso REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DUARTE, Maria Eugênia L. A Perda do Princípio “Evite Pronome” no Português Brasileiro. Sínteses, Campinas, v. 1., p. 87-105, 1996. _____. The Loss of the ‘Avoid Pronoun’ Principle in Brazilian Portuguese. In: KATO & NEGRÃO (org.) Brazilian Portuguese and the Null Subject Parameter. Frankfurt: Vervuert, 2000. p. 17-36. FARIA, Isabel H. A Aquisição da Noção de “Agente” e a Produção de Sujeitos Sintáticos por Crianças Portuguesas até aos Dois Anos e Meio. Revista Internacional de Língua Portuguesa, Lisboa. n. 10, p. 16-50, 1993. 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