FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE – FACS CURSO – PSICOLOGIA SER MÃE DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER: UM ESTUDO COMPREENSIVO GISELLE DE FÁTIMA SILVA Brasília Junho/ 2005 GISELLE DE FÁTIMA SILVA SER MÃE DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER: UM ESTUDO COMPREENSIVO Monografia apresentada como requisito para conclusão do curso de Psicologia do UniCEUB – Centro Universitário de Brasília sob a orientação do Professor Dr. Fernando Luis González Rey Brasília Junho/ 2005 Dedico meu trabalho às crianças que nesse momento estão nos hospitais enfrentando o câncer. Que essa monografia seja o primeiro passo para muitas produções cientificas que possam auxiliar equipes de saúde, acompanhantes e aos pequenos pacientes no enfrentamento dessa fase tão difícil da vida, que é o adoecimento. Em especial, dedico esse trabalho à K., que mesmo estando do outro lado da vida, me motivou ainda mais para aderir às Campanhas de Combate ao Câncer Infantil. ii AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar agradeço a Deus pela vocação para enveredar pela bela e rica Psicologia. Aos meus queridos pais Ronaldo e Marli, que sempre acompanharam meu desenvolvimento intelectual e pessoal. À querida tia-amiga Sandra Ventura, que motivou meu ingresso no curso de psicologia, e que sempre esteve disposta para me ouvir e compartilhar novas descobertas. À amiga e companheira de estudos Sandra Leão, que foi uma das principais responsáveis pelo meu entusiasmo na área da Psico-Oncologia. Aos amigos de profissão Mauricio Neubern e Alexandre Lima, que apoiaram meu estágio em psico-oncologia pediátrica. Ao amigo Zandhor Pradi, pela prestimosa colaboração referente ao material bibliográfico estudado para a realização dessa monografia. E um agradecimento especial ao querido mestre Fernando Rey, pela atenciosidade, apoio, amizade, e pelo incentivo à minha liberdade de pensamento. Estudar com esse grande pesquisador foi um marco importante na minha carreira profissional. iii “Quando acabamos de fazer tudo o que viemos fazer aqui na Terra, podemos sair de nosso corpo, que aprisiona nossa alma como um casulo aprisiona a futura borboleta. E, na hora certa, podemos deixá-lo para trás, e não sentimos mais dor, nem medo, nem preocupações – estamos livres como uma linda borboleta voltando para casa, para Deus...” De uma carta a uma criança com câncer (KÜBLER-ROSS, 1998). iv RESUMO Desde tempos remotos o câncer é conhecido pela humanidade e seu significado tem, na maioria das vezes, uma conotação pessimista, sendo o diagnóstico considerado como sentença de morte. Com a proposta de amenizar os sofrimentos emocionais e psicológicos advindos da doença e dos tratamentos, surge então a psico-oncologia, que é uma interface da psicologia e da oncologia. No Brasil, o câncer já é a terceira causa de morte por doença na faixa etária de 01 a 14 anos, no município e no estado de São Paulo é a primeira causa de óbito entre 05 e 14 anos de idade. Quando uma criança é acometida por tal enfermidade, ocorrem diversas alterações: a criança muitas vezes interrompe os estudos; sofre com os efeitos colaterais do tratamento; o funcionamento familiar modifica-se para acompanhar o paciente nos tratamentos; e a percepção de cada pessoa sobre vários aspectos da vida pode, também, se alterar. Nesse contexto, a epistemologia qualitativa abre as portas para compreender como essas pessoas enfrentam o adoecimento, os efeitos do tratamento e outros desdobramentos que a priori não prevemos. Para realizar esse trabalho, nos apoiamos na teoria da subjetividade, na epistemologia qualitativa e no conceito de sentido subjetivo desenvolvidos por González Rey. A produção de informação foi feita a partir da experiência de uma mãe solteira de 28 anos, que acompanha o tratamento de seu filho de 04 anos de idade, portador de câncer infantil. O objetivo de nosso trabalho não foi alcançar resultados absolutos e universais sobre a vivência da mãe durante o adoecimento do filho. Pretendemos abrir novas zonas de inteligibilidade acerca desse fenômeno e refletirmos sobre a complexidade do sentido subjetivo. Além disso, propomos novas alternativas para o trabalho junto aos acompanhantes, visando sua saúde psicológica durante o tratamento de suas crianças. v ABSTRACT Since remote times, cancer is known by humanity and most of the times its meaning has a pessimistic connotation, being the diagnosis considered a death sentence. With the proposal of softening the emotional and psychological suffering caused by the disease and the treatment, comes the psycho-oncology, which is an interface between psychology and oncology. In Brazil cancer is already the third cause of death by a disease among people ranging from 01 to 14 years old, and in the city and the state of São Paulo it is the first cause of death among 05 to 14 year-old people. When a child is diagnosed with such illness, many alterations occur: most of the times the child has to interrupt his/her studies; suffers with the collateral effects of the treatment; the family dynamics are modified to accompany the patient in the treatment; and the perception of each person about many aspects of life can also be changed. In this context, the qualitative epistemology opens the doors to understanding how these people face the sickness, the effects of the treatment and other things that happen that a priori we don’t foresee. To accomplish this job, we are based in the subjective theory, in qualitative epistemology and in the concept of subjective sense developed by González Rey. The production of information was made by the experience of a 28 year-old single mother who follows the treatment of her 4 year-old son that has child cancer. The objective of our work was not to achieve any absolute and universal results on the mother’s life experience during her son’s sickness. We intend to open new intelligibility zones for this phenomenon and to reflect about the complexity of the subjective sense. In addition, we propose new alternatives to the work with the companions, aiming at his/her psychological health during the children’s treatment. vi Centro Universitário de Brasília Faculdade de Ciências da Saúde: FACS Curso: Psicologia Período: 1º/2005 Estudante: Giselle De Fátima Silva RA:2005945/6 Orientador: Fernando Luis González Rey “Ser mãe de uma criança com cânce r: um estudo compreensivo” Resumo Desde tempos remotos o câncer é conhecido pela humanidade e seu significado tem, na maioria das vezes, uma conotação pessimista, sendo o diagnóstico considerado como sentença de morte. Com a proposta de amenizar os sofrimentos emocionais e psicológicos advindos da doença e dos tratamentos, surge então a psico-oncologia, que é uma interface da psicologia e da oncologia. No Brasil, o câncer já é a terceira causa de morte por doença na faixa etária de 01 a 14 anos, no município e no estado de São Paulo é a primeira causa de óbito entre 05 e 14 anos de idade. Quando uma criança é acometida por tal enfermidade, ocorrem diversas alterações: a criança muitas vezes interrompe os estudos; sofre com os efeitos colaterais do tratamento; o funcionamento familiar modifica-se para acompanhar o paciente nos tratamentos; e a percepção de cada pessoa sobre vários aspectos da vida pode, também, se alterar. Nesse contexto, a epistemologia qualitativa abre as portas para compreender como essas pessoas enfrentam o adoecimento, os efeitos do tratamento e outros desdobramentos que a priori não prevemos. Para realizar esse trabalho, nos apoiamos na teoria da subjetividade, na epistemologia qualitativa e no conceito de sentido subjetivo desenvolvidos por González Rey. A produção de informação foi feita a partir da experiência de uma mãe solteira de 28 anos, que acompanha o tratamento de seu filho de 04 anos de idade, portador de câncer infantil. O objetivo de nosso trabalho não foi alcançar resultados absolutos e universais sobre a vivência da mãe durante o adoecimento do filho. Pretendemos abrir novas zonas de inteligibilidade acerca desse fenômeno e refletirmos sobre a complexidade do sentido subjetivo. Além disso, propomos novas alternativas para o trabalho junto aos acompanhantes, visando sua saúde psicológica durante o tratamento de suas crianças. SUMÁRIO CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO ......................................................................................... 8 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................................. 10 2. 1. BREVE HISTÓRICO SOBRE O CÂNCER .....................................................................10 2.2. CÂNCER E PSICO-ONCOLOGIA ...................................................................................12 2.3. CÂNCER INFANTIL ........................................................................................................14 2.4. A FAMÍLIA DA CRIANÇA................................................................................................19 2.5. SUBJETIVIDADE ............................................................................................................24 2.6. SUBJETIVIDADE, SAÚDE E DOENÇA: UMA NOVA COMPREENSÃO.........................27 CAPÍTULO 3. METODOLOGIA .................................................................................... 30 3.1. EPISTEMOLOGIA QUALITATIVA...................................................................................31 3.2. SUJEITO PARTICIPANTE ..............................................................................................33 3.3. INSTRUMENTOS ...........................................................................................................35 CAPÍTULO 4. PRODUÇÃO DE INFORMAÇÃO ........................................................... 37 4.1. IMPACTO DO DIAGNÓSTICO........................................................................................38 4.2. SIGNIFICADO DO CÂNCER INFANTIL ..........................................................................40 4.3. TRATAMENTO DA CRIANÇA E EFEITOS COLATERAIS ..............................................42 4.4. SER MÃE DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER ...............................................................45 4.5. SER MULHER E PROFISSIONAL ..................................................................................49 4.6. A DOENÇA E O “APEGO A DEUS” ................................................................................50 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 52 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 55 ANEXOS........................................................................................................................ 58 8 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO A vida tem infinitas possibilidades: nascemos, vivemos, e morremos. E durante a vida também podemos ser confrontados com um ente familiar que é acometido por uma doença grave como o câncer. Culturalmente o câncer não é encarado como uma doença qualquer, tanto que os meios de comunicação ao se referirem às desordens extremas utilizam a metáfora “câncer social”. Em nossos estudos, verificamos que se trata de uma doença conhecida desde tempos remotos da humanidade e, atualmente, vemos uma representação intrinsecamente relacionada à morte. O impacto que a doença terá sobre a pessoa enferma e em seu contexto social será particular e diferenciado, a depender dentre outras coisas, do momento, das crenças, valores e estrutura familiar. Nesse trabalho, realizarei uma pesquisa qualitativa para aprofundar meus conhecimentos sobre a influência das representações sócio-históricas sobre o câncer e seu impacto na vida da mãe de uma criança portadora de câncer infantil. No segundo capítulo temos a fundamentação teórica que foi subdividida em seis tópicos. O primeiro item apresenta um breve histórico sobre o câncer, desde a sua descoberta e os estigmas e tabus sociais que envolveram a doença desde a antigüidade. O segundo item refere-se à nova área de conhecimento, a psico-oncologia como fonte de saber, intervenção e combate ao câncer. O terceiro tópico discorre sobre o câncer infantil em diversas perspectivas, desde o diagnóstico, percepção da doença pela criança, a hospitalização e sobre a quimioterapia, principal tratamento para o 9 câncer infantil. No quarto item falamos sobre a família da criança durante o processo do adoecimento bem como as alterações ocorridas nesse sistema. Em seguida falamos sobre a subjetividade e os principais conceitos sobre essa proposta epistemológica e ontológica desenvolvida por González Rey. No último item da fundamentação teórica, entrelaço as propostas teóricas da subjetividade na compreensão de fenômenos complexos como a saúde e a doença. O terceiro capítulo corresponde ao referencial epistemológico e metodológico utilizado, a Epistemologia Qualitativa, a participante de nosso trabalho e os instrumentos de pesquisa. Em seguida é apresentado o processo de produção de informação, a partir de quatro eixos temáticos, a saber: impacto do diagnóstico, significado do câncer infantil, tratamento da criança e efeitos colaterais e ser mãe de uma criança com câncer. Contudo, dois núcleos temáticos foram incorporados na produção de informações, devido à riqueza das informações da participante: ser mulher e profissional e a doença e o apego a Deus. Finalmente, o último capítulo apresenta as últimas considerações desta pesquisa. Ressaltamos que esse trabalho não pretende esgotar o tema nem apresentar conclusões universais e absolutas. Pretende mostrar algumas dimensões da vida de uma mãe que acompanha seu filho durante a difícil trajetória de combate do câncer infantil a partir dos eixos temáticos. Além disso, esse trabalho visa também a possibilidade de motivar novas áreas de pesquisa que focalizem as vivências dos acompanhantes das crianças com câncer, produzindo novas formas de conhecimento, bem como sugerindo novas formas de intervenção e de auxílio direto a essas pessoas. 10 CAPÍTULO 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 2. 1. BREVE HISTÓRICO SOBRE O CÂNCER Desde a antigüidade há relatos sobre o câncer e seu tratamento. Documentos da literatura hindu, persa, e papiros de Elbers (1500 a.C) relatam terapêuticas e conhecimentos rudimentares sobre a doença. Na Grécia Antiga, Hipócrates (460 - 375 a.C) descreveu diferentes tipos de câncer: pele, mama, útero e órgãos internos (KOWALSKI E SOUSA, 2002). O termo câncer (do grego karkinos = caranguejo) foi usado por Hipócrates para denominar qualquer proliferação ou tumoração crônica. Segundo Galeno, o nome da doença é devido à semelhança das pernas do caranguejo com as veias intumescidas ao redor de um tumor externo. Nos séculos XII à XV houve um estacionamento das pesquisas médicas devido às restrições da Igreja para realização de autópsias. Além disso, muitas literaturas foram proibidas ou supervisionadas pelos monges católicos. Em 1740 em Rheims, França, foi criado o primeiro hospital especializado para o tratamento oncológico. No entanto, o objetivo foi criar um espaço nos fundos de uma Igreja para isolar os pacientes, uma vez que a compreensão na época era que o câncer fosse contagioso (KOWALSKI E SOUSA, 2002). Houve um avanço considerável na historiografia da doença no séc. XVII a partir das descobertas da circulação sangüínea, quando os cientistas não encontraram indícios da bile negra1. 1 Galeno (131 – 203) consolidou a teoria humoral que constituiu a tese dominante durante um milênio, atribuindo ao excesso de bile negra a origem do câncer. 11 Foi a partir das publicações de Wilhelm Waledyer-Hartz (1836 - 1921) que o moderno conceito sobre o câncer foi estabelecido. Segundo ele, o câncer surge de células normais que sofrem modificações, crescendo desordenadamente por via sanguínea, linfática ou fluidos intersticiais. Ele ainda considerava a cura possível, desde que o diagnóstico fosse feito no início da doença. No século XX a comunidade médica tornou-se mais esperançosa no tratamento do câncer. Até então o diagnóstico da doença era tido como sentença de morte, além dos estigmas que interpretavam o câncer como produto de pecados, punição divina, negativismo ou “sujeira” física e moral. Infelizmente observamos nos dias atuais resquícios dessas representações pessimistas com relação ao câncer, o que pode acarretar diversos conflitos nos pacientes e entre aqueles que têm contato direto ou indireto com pessoas nessas condições. Em nossas experiências, verificamos que o diagnóstico de câncer é tido pelos familiares como “diagnóstico de morte”, o que nos leva a crer que todas essas representações e mitos sobre o câncer permanecem enraizadas no meio social e nas mentes das pessoas. A tentativa de modificar essas representações é um desafio para todos os envolvidos com essa doença: pacientes, rede social e profissionais da saúde. Porém, é fato que o câncer representa uma realidade de doença crônica e debilitante, com tratamentos agressivos e resultados incertos, o que, inegavelmente, incita reações negativas e pessimistas. 12 2.2. CÂNCER E PSICO-ONCOLOGIA Atualmente diversos cientistas compreendem o processo do adoecimento de forma sistêmica e complexa (GONZÁLEZ REY, 2004a; LESHAN, 1992; CAPRA, 1982; CARVALHO, 2002 e outros). Nessa perspectiva, inúmeros pesquisadores atêm-se a estudos sobre a influência de diferentes fatores que alteram o sistema imunológico, e sobre a relação entre estados psicológicos envolvidos nos processos de manifestação de neoplasias (LESHAN, 1992; SIMONTON et. al., 1987 apud CARVALHO, 2002). Podemos afirmar que a Psico-Oncologia foi impulsionada por essa nova forma de compreensão do adoecimento, uma vez que a comunidade científica reconhecia que o aparecimento, manutenção e remissão do câncer são intermediados por uma série de fatores que extrapolavam os limites do modelo biomédico2. Bayés (apud GIMENES, 1994) considera alguns fatores que determinaram o surgimento da Psico-Oncologia: a etiologia e desenvolvimento do câncer estão associados a fatores psicológicos, comportamentais e sociais; a importância da adesão do paciente aos tratamentos prescritos; o fato da adesão aos tratamentos de combate ao câncer estão associadas a fatores de natureza psicossociais, implica a necessidade de desenvolver estratégias que assegurem a participação do paciente no tratamento; o reconhecimento da substituição da tecnologia medicamentosa pelos recursos psicológicos 2 na área da saúde; com o avanço da medicina aumentou, “O modelo biomédico pressupõe que a doença é um mal do corpo, independente de processos psicológicos e sociais da mente. Essa concepção tornou-se amplamente aceita durante os séculos XIX e XX, representando até hoje a visão dominante na área médica” (SARAFINO, 1991 apud GIMENES 1994, p. 37). 13 significativamente, o número de sobreviventes e a qualidade de vida de ex-pacientes tornou-se alvo de discussões e preocupações na comunidade científica. Nesse contexto, a psiquiatra Jimmie Holland foi motivada a pesquisar de forma mais abrangente o câncer: funcionamento físico, psicológico, social, sexual, meio profissional e a partir dessas pesquisas e de outros trabalhos, tornou-se possível fundamentar e oficializar a Psico-Oncologia no meio científico: Uma sub-especialidade da oncologia, que procura estudar as duas dimensões psicológicas presentes no diagnóstico do câncer: (1) o impacto do câncer no funcionamento emocional do paciente, sua família e profissionais de saúde envolvidos em seu tratamento; (2) o papel das variáveis psicológicas e comportamentais na incidência e na sobrevivência ao câncer (HOLLAND, 1990 p.11; apud CARVALHO, 2002). No Brasil, a psico-oncologia foi impulsionada por profissionais que ofereciam atendimento psicossocial grupal, em instituições públicas, privadas, universitárias e por aqueles que desenvolviam pesquisas referentes à doença. A Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia foi fundada em 1994 e as atribuições dessa área foram formuladas por Maria da Glória Gimenes: A Psico-Oncologia representa a área de interface entre a Psicologia e a Oncologia e utiliza conhecimento educacional, profissional e metodológico proveniente da Psicologia da Saúde para aplicá-lo: (1) Na assistência ao paciente oncológico, sua família e profissionais de saúde envolvidos com a prevenção, o tratamento, a reabilitação e a fase terminal da doença; (2) Na pesquisa e no estudo de variáveis psicológicas e sociais relevantes para a compreensão da incidência, da recuperação e do tempo de sobrevida após o diagnóstico do câncer; (3) Na organização de serviço oncológico que visem o atendimento integral do paciente, enfatizando de modo especial à formação e o aprimoramento dos profissionais da saúde envolvidos nas diferentes etapas do tratamento (GIMENES, 1994, p. 46). 14 2.3. CÂNCER INFANTIL Criança é sinônimo de alegria, vitalidade, futuro e esperança. Contudo, essa premissa otimista é profundamente alterada quando essa criança é acometida por uma enfermidade grave como o câncer. Ao adoecer, sua vida e de toda sua rede social sofrem modificações fisiológicas, sociais, psicológicas e emocionais. No Brasil, o câncer já é a terceira causa de morte por doença entre 01 e 14 anos, e no município e no estado de São Paulo é a primeira causa de óbito entre 05 e 14 anos de idade (RODRIGUES e CAMARGO 2003). A literatura de países desenvolvidos mostra índices de cura superiores a 90%. Mendonça (2000) afirma que em nosso país a realidade é outra, uma vez que o diagnóstico é tardio por motivos diversos: precariedade do serviço público de saúde, profissionais inaptos3 para atendimento especializado, distância entre pacientes e hospitais dentre outros. Geralmente o câncer infantil apresenta alguns sinais como palidez, massas palpáveis, dor óssea, febre de origem desconhecida, linfadenopatia (aumento anormal das glândulas linfáticas) e transtornos neurológicos (VALLE, 1997). Além desses sintomas, a percepção de que algo anormal acontece dentro do próprio corpo faz com que a criança sinta-se insegura e ameaçada por algo perigoso. Segundo o INCA (2005), o câncer infantil, diferentemente do câncer de adulto, afeta, geralmente, as células do sistema sangüíneo e os tecidos de sustentação, enquanto que o câncer em adultos afeta células do epitélio, que recobre os diferentes órgãos (câncer de mama, câncer de pulmão). As doenças malignas da infância são, 3 A partir de nossa experiência no setor de psico-oncologia pediátrica, foi comum o relato de mães que ao levarem os filhos aos centros de saúde foram diagnosticados com verminoses ao invés de portadores de tumores malignos. 15 predominantemente, de natureza embrionária, constituída de células indiferenciadas e, geralmente, respondem melhor aos métodos terapêuticos da atualidade. A seguir, citaremos os alguns tipos de câncer infantil e seus principais sintomas: Nas leucemias, pela invasão da medula óssea por células anormais, a criança fica suscetível à infecção, palidez, sangramento e dor óssea. No retinoblastoma, um sinal importante de manifestação é o chamado "reflexo do olho do gato", embranquecimento da pupila quando exposta à luz. Pode-se apresentar também através de fotofobia ou estrabismo. Geralmente acomete crianças antes dos três anos de idade. Algumas vezes os pais notam uma massa no abdômen, podendo tratar-se nesse caso, também, de um tumor de Wilms ou neuroblastoma; Tumores sólidos podem se manifestar pela formação de massa, podendo ser visível e causar dor nos membros, sintoma, por exemplo, freqüente no osteossarcoma (tumor em osso em crescimento), mais comum em adolescentes; Tumor de sistema nervoso central tem como sintomas dor de cabeça, vômitos, alterações motoras, alterações cognitivas e paralisia de nervos; (INCA, 2005). A vivência das alterações fisiológicas pela criança pode se tornar mais difícil quando somadas ao silêncio dos adultos quando estes omitem (ou mentem) sobre o diagnóstico. Inegavelmente, o período do diagnóstico é de natureza altamente estressante, dificultando uma comunicação honesta entre os adultos e a criança, muitas vezes justificada como uma tentativa de “poupar” a criança de maiores sofrimentos. Nesse caso, Valle (1997) considera que o silêncio dos adultos poderá influenciar negativamente na emocionalidade da criança, que poderá sentir-se excluída ou abandonada do núcleo familiar. 16 Podemos analisar que a dificuldade dos pais em falar sobre o diagnóstico, ou a utilização de eufemismos para se referir ao câncer, seja um mecanismo de defesa que, inconscientemente, os adultos utilizam para evitar a real presença de uma doença crônica e suas conseqüências: onipresença da morte, a incerteza do futuro e a interrupção do ciclo vital. Delella (2000) afirma que a morte ou doença crônica de uma criança é tida como uma tragédia na vida dos pais, já que os filhos são extensões de suas esperanças e sonhos de uma vida futura. Além disso, em nossa cultura a morte de membros idosos é visto como algo “natural”, já a morte prematura é de difícil aceitação, pois há uma cessação da perpetuidade da família. O contar ou não-contar sobre a doença para a criança pode ter uma relação direta com as representações sócio-históricas do câncer e sobre a infância. Como vimos anteriormente, desde a descoberta do câncer sempre existiram conotações pessimistas referentes à doença. Com relação à criança vemos que nossa sociedade a considera como um ser passivo, ingênuo e incapaz, e a participação dela nas questões referentes à própria saúde são ocultadas. A esse respeito, Valle (1997) diz que crianças pequenas não compreendem o nome científico da doença, no entanto deve-se dar explicações práticas sobre internações e procedimentos cirúrgicos. Já as crianças maiores além das informações gerais, necessitam de explicações mais detalhadas sobre o tratamento e conseqüências, bem como do nome da doença. Alby diz que saber do nome da doença “reassegura à criança a consciência do que ela tem, pois uma doença sem nome é como um inimigo sem rosto, mais difícil de vencer” (apud VALLE 1997 p. 74). 17 Cabe ressaltar que em nosso país os aspectos sobre tratamento e direitos da criança e do adolescente hospitalizados estão previstos em lei4: Art. 8 – Direito de ter conhecimento adequado de sua enfermidade, dos cuidados terapêuticos e diagnósticos, respeitando sua fase cognitiva, além de receber amparo psicológico quando se fizer necessário. Art. 9 – Direito de desfrutar de alguma forma de recreação, programas de educação para a saúde, acompanhamento do curriculum escolar durante sua permanência hospitalar. Art. 10 – Direito de seus pais ou responsáveis, participarem ativamente do seu diagnóstico, tratamento e prognóstico, recebendo informações sobre os procedimentos a que será submetida. Após a confirmação do diagnóstico, de um momento para o outro a rotina de vida da criança é bruscamente alterada. Quando em idade escolar e dependendo da gravidade da doença, a criança interrompe os estudos devido às freqüentes internações, baixa imunidade ou restabelecimento de cirurgias. A impossibilidade de estudar pode ter uma conotação negativa para a criança já que a escola é um dos principais núcleos de interatividade social. É nesse contexto que o trabalho de pedagogos no ambiente hospitalar é de extrema importância para esses pacientes, resgatando um pouco da rotina escolar durante as internações. Com a entrada no hospital a criança se depara com um mundo novo. Salvo algumas exceções, muitos hospitais fazem com que a criança se torne um paciente no sentido estrito do termo. Nessa realidade a criança irá conviver com pessoas desconhecidas, terá horários diferentes aos de costume para acordar, dormir, deverá tomar remédios e injeções, será submetido a exames dolorosos, será lavado e manipulado. Valle (1997) afirma que nessas condições a criança torna-se uma “colaboradora-passiva” ao tratamento perdendo a sua autenticidade. A partir de nossa 4 Resolução 41, de outubro de 1995 do CONANDA: Direitos da Criança e do Adolescente Hospitalizado. 18 experiência, analisamos essa perda de autenticidade como uma profunda interferência do processo do adoecimento e do sistema hospitalar na identidade da criança. A internação poderá restringir visitas devido à baixa imunidade, impondo um afastamento de pessoas queridas como os pais, irmãos e amigos. Dependendo do caso, muitas famílias mudam de cidade na busca de centros especializados para o tratamento. Algumas crianças apresentam também mudanças de humor, no comportamento, distúrbios do sono, ansiedade e apatia (MORAIS e VALLE, 2001). Atualmente, para o tratamento do câncer infantil utiliza-se a quimioterapia, isoladamente ou em associação com outros procedimentos. Sua meta é destruir as células cancerosas e evitar danos às células saudáveis. Contudo, o problema dessas drogas é que sua ação atinge células normais, causando vários efeitos colaterais. Os efeitos tóxicos imediatos da quimioterapia são mal estar, febre, calafrios, anorexia, náuseas, vômitos e diarréia. Os efeitos tardios são mucosite (processo inflamatório e ulcerativo da mucosa oral), alopecia (perda e ausência de cabelo e pêlos), leucopenia (diminuição da quantidade de leucócitos no sangue), imunossupressão (baixa imunidade), neurotoxidade, podendo ocorrer a longo prazo esterilidade e, com menor freqüência efeitos cardiotóxicos, fibrose hepática e pulmonar (RAMOS apud VALLE, 1997). Além dos efeitos colaterais mais comuns, algumas crianças podem apresentar reações diferentes, como descontrole dos esfíncteres com evacuação e enurese, e/ou alterações comportamentais como gritar, debater-se, xingar o acompanhante e a equipe (VALLE 1997). Devido ao grande sofrimento com a doença, tratamento e alteração na rotina de vida, algumas crianças demonstram desejo de morrer numa tentativa de acabar com o sofrimento: “A quimioterapia mata; eu sei que vou morrer... Eu vou pular da janela e aí 19 eu morro antes. Aí é que eu não preciso de remédio e ninguém me vê mais” (F., 10 anos apud VALLE, 1997, p.103). 2.4. A FAMÍLIA DA CRIANÇA Para González Rey a família é um elemento fundamental na promoção de saúde humana e um cenário permanente de produção subjetiva. Para o autor, a família “é uma via primária e primordial para a educação afetiva da criança, por se basear fundamentalmente na valorização das relações familiares” (2004 a., p.30). Delella (2000) considera a família como uma unidade social e um grupo de suporte primário da criança. Nesse sentido, quando a criança adoece, ela buscará apoio social5 e emocional de que necessita na própria rede familiar. A mesma autora enfatiza que a natureza desse suporte dependerá de múltiplos fatores, como a estrutura familiar, o estilo de enfrentamento dos pais e a história dessa família. Consideramos também que esse suporte estará relacionado ao momento sócio-histórico que essa família está inserida, bem como as crenças e mitos que pairam na sociedade. O efeito da doença no funcionamento familiar dependerá de vários fatores, a começar pela natureza da enfermidade. A princípio, o câncer pode ser considerado como uma doença progressiva, quase sempre sintomático e com progressão rápida e grave. Nesse caso, a família depara-se com um membro cuja limitação aumenta gradativamente, exigindo contínua adaptação e mudança de papéis. Neste momento 5 Gatchel et. al. definem apoio social como “sentimento que uma pessoa tem de ser atendida e valorizada por outros e de pertencer a um determinado grupo social” (apud GONZÁLEZ REY, 2004a, p. 98). 20 entra em jogo a flexibilidade familiar, sobretudo em relação à reorganização interna de papéis e à disposição para a utilização de recursos externos (DELELLA, 2000). Brown (apud DELELLA, 2000) ressalta que a morte e/ou uma doença grave de qualquer membro rompem o equilíbrio familiar. O grau de ruptura é influenciado por vários fatores, como o contexto social e étnico da morte, as histórias anteriores de morte ou de doença grave, a posição e a função da pessoa doente no sistema familiar e a abertura que esse sistema possui. Esse autor diz que esses fatores determinarão o impacto que a doença ou morte terá na família. O câncer infantil mobilizará toda a família e, de certa forma, todos passam a habitar outro mundo: o mundo da doença da criança. Nesse caso, verificamos que a família também adoece e, conviver com o câncer requer dessa família novas formas para lidar com a ameaça de vida. Desde o diagnóstico toda a dinâmica familiar é alterada em seu funcionamento intra e extra-social. Vários autores afirmam que esse período é vivenciado de forma caótica e estressante por todos os membros (BARBOSA et. al, 1991; VALLE, 1997; MORAIS e VALLE, 2001; CARVALHO, 1994; RESENDE, 1999 apud DAUDT e SILVA, 2002 e outros). Nessas situações, surgem modificações de ordem emocional, na rotina e na configuração familiar. Geralmente no momento da confirmação do câncer, os pais buscam algum responsável pela doença, seja por acusações mútuas, ou atribuindo a causa às complicações da vida intra-uterina do filho, numa tentativa de compreender o aparecimento da enfermidade (VALLE, 1997). Além do desgaste emocional da doença e da ameaça da morte, a família precisa preocupar-se com a vida cotidiana e com problemas de ordem doméstica: durante a internação os outros filhos ficam sozinhos com parentes ou vizinhos; as tarefas 21 domésticas são desenvolvidas pelo pai e pelos outros filhos, já que a mãe está sobrecarregada com os cuidados ao filho doente; os pais precisam continuar trabalhando, muitas vezes apresentando altos níveis de absenteísmo; os outros irmãos podem apresentar baixo rendimento escolar e ciúmes do paciente infantil (DAUDT e SILVA, 2002; PEDROSA e VALLE, 2000; VALLE, 1997). Outra conseqüência comum nas famílias de crianças portadoras de câncer relaciona-se às despesas com o tratamento que desestabiliza o orçamento familiar, podendo influenciar negativamente nas relações entre os membros e com outras pessoas. Na literatura pesquisada, verificamos que muitos autores consideram que o adoecimento da criança é o responsável pelo desequilíbrio social e emocional da família. Contrapondo-se a essa visão de causa e efeito, Oppeinheim (apud VALLE 1997) diz que elementos da fragilidade familiar, dificuldades sociais, desajustes emocionais, crises etc, podem ser revelados com a doença, e não um produto desta. Com isso, não podemos afirmar que exista uma linearidade do impacto do câncer sobre a família, uma vez que todo processo de adoecimento será único em cada sistema familiar. No período de internação, geralmente os cuidadores da criança são do próprio núcleo familiar, mais especificamente a mãe da criança (FLORIANI, 2004). O papel dos pais em nossa cultura é, basicamente, de cuidadores da prole e, quando um filho adoece, a execução desse papel é dificultado pelas circunstâncias. McDaniel (apud DAUDT e SILVA, 2002) afirma que durante o adoecimento da criança, os pais desenvolvem um sentimento de impotência e de incapacidade por não terem meios de protegerem os filhos da doença, dos efeitos colaterais, do tratamento e das prováveis 22 seqüelas. As reações emocionais mais comuns entre os pais nessas condições são a tristeza, introspecção e apego à religiosidade (PEDROSA e VALLE, 2000). Para Valle (1994), o início do tratamento para a família propicia o surgimento de dificuldades emocionais intensas para enfrentar o adoecimento da criança. Os modos de enfrentamento da doença são peculiares a cada caso. Bayés (apud DELELLA, 2000) cita como estratégias mais utilizadas pelas famílias: busca de informação, busca de apoio, ação impulsiva, evitar confronto e enfrentamento ativo. Na busca de informação os pais terão conhecimento sobre o câncer a partir de livros, revistas, sites, ou perguntas aos médicos. A busca de apoio pode se dar com o próprio cônjuge, amigos, pessoas da mesma religião ou mesmo da equipe de saúde. A ação impulsiva caracteriza-se pela perda do auto-controle e na eclosão de emoções negativas, como gritar e xingar. Já a estratégia de evitar confronto refere-se a uma atitude passiva, em que os pais distanciam-se do problema, na busca de atenuar o próprio sofrimento. Nesse caso, alguns pais evitam participar do tratamento do filho, outros abandonam as crianças nos hospitais. Com a nova realidade instalada na família, os outros filhos podem sentir-se excluídos física e psicologicamente do contato com os pais e do irmão, podendo ocasionar o aparecimento de tristeza, revolta, insegurança e ciúmes da criança doente. Pedrosa e Valle (2000) observaram que determinados irmãos saudáveis podem apresentar sintomas semelhantes ao da criança doente sem qualquer causa aparente. Muitas vezes os pais evitam a participação dos outros filhos durante o processo de diagnóstico e tratamento do câncer. Contudo, consideramos importante a compreensão da nova realidade pelos irmãos saudáveis de acordo com a capacidade cognitiva dos mesmos. Pedrosa e Valle (2000) afirmam que a participação mais ativa dos irmãos 23 saudáveis sobre a doença possibilita amenizar os sentimentos de exclusão e rivalidade, proporcionando sentimentos de compaixão e solidariedade com o irmão doente. Verificamos que atualmente vários ramos da ciência preocupam-se com a relação doença-família. A psico-oncologia, por exemplo, tem realizado estudos que enfocam a família dos pacientes, uma vez que a cura da doença não se limita ao funcionamento normal do organismo, mas visa também a qualidade de vida da criança e de sua família. Na literatura de oncologia pediátrica alguns autores enfatizam o suporte social para o enfrentamento de doenças bem como a adaptação e enfrentamento da criança e da família. A Organização Mundial de Saúde (OMS) orienta que os cuidados com o paciente e sua família sejam considerados como uma unidade de características próprias em seu funcionamento, seu sistema de crenças e sua história particular (VALLE, 1997). Para Fernando Rey, a tendência atual é o apoio e a intervenção psicológica com os familiares, já que esse núcleo social tem influências emocionais e simbólicas importantes para o paciente (informação verbal). A proposta inicial de nosso trabalho foi verificar a repercussão do câncer infantil na família da criança doente a partir de uma análise qualitativa, baseada na teoria da subjetividade, desenvolvida por González Rey (2003, 2004a). No entanto, atualmente a organização familiar não corresponde a uma estrutura convencional, constituída por pai, mãe e filhos. No Estatuto da Criança e do Adolescente6 verificamos a atual compreensão da família natural: “Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes”. Para realizar essa pesquisa e tendo em vista essa nova compreensão de família, escolhemos a família de 6 Vide: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069Compilado.htm 24 uma mãe solteira de 28 anos, acompanhante de seu filho de 04 anos, portador de câncer infantil. 2.5. SUBJETIVIDADE A subjetividade é uma nova proposta epistemológica e ontológica, com uma nova representação da psiquê calcada em duas características essenciais: seu caráter sócio-histórico e sua natureza complexa7. Essa noção de psiquê não está centrada somente na psiquê individual, como afirma González Rey (2004 b): A subjetividade permite uma reconstrução não só da psiquê individual, como também das várias formas de produção psíquica, próprias dos cenários sociais em que vive o homem, assim também como da própria cultura. (p. 125) Para compreender essa nova categoria, faz-se necessária uma “libertação das amarras” do nosso pensamento para acessar formas diferentes de representação que repousam na compreensão moderna. O surgimento da psicologia moderna ocorreu quando a maioria das ciências pautava-se no positivismo e nos modelos cartesiano-newtonianos. Neubern (2004) afirma que o império da física no conhecimento do mundo ocidental preconizou um esquartejamento dos fenômenos, que aconteceu também na psicologia, rejeitando-se a subjetividade, as emoções, o social, o cultural etc, para alcançar o tão sonhado status científico. 7 Na perspectiva de Morin a complexidade refere-se a uma forma de pensamento, envolvendo as várias relações possíveis entre o todo e as partes que o integram. Ele emerge da interação dessas partes e possui qualidades que vão alem de suas propriedades ou do somatório delas; contudo ela não anula as propriedades dessas partes (NEUBERN, 2004 p. 216). 25 Avançando na dimensão do quantificar, a psicologia privilegiava o estudo daquilo que fosse passível de medição e, portanto tratava apenas dos aspectos que fossem passíveis de quantificação. Tudo aquilo que não se enquadrasse nesses requisitos foi desconsiderado pela psicologia científica, reduzindo sua área de estudo e, conseqüentemente, a visão de homem também se tornou reduzida, pois a atenção fixava-se no estudo das partes do indivíduo (comportamento, cognição, inconsciente etc), impossibilitando uma melhor compreensão integral desse ser tão complexo (VALLE, 1997). Podemos afirmar que foi nesse “clima” científico que muitos estudiosos mostraram-se insatisfeitos no que diz respeito à natureza e à direção da psicologia, alegando que, como ciência estaria se distanciando do mundo e da vida, esquecendose do homem enquanto pessoa (VALLE, 1997; NEUBERN, 2004; GONZÁLEZ REY, 2002, 2003, 2004a, e outros). Nesse contexto, González Rey (1997, 2002) propõe uma nova compreensão das dicotomias antes subjugadas: individual e social, interno e externo, atual e histórico, universal e singular etc, a partir de uma análise qualitativa. Ao considerar essa nova categoria, abandona-se a idéia comum de que a subjetividade é um fenômeno intrinsecamente individual. Para González Rey (2004 b) o individual e o social são interdependentes para serem compreendidos e não são vistos como dicotomia. Seguindo esse raciocínio, Spink (2003) comenta: Abandonar, portanto, a dicotomia indivíduo e sociedade retomando, em uma nova base o debate sobre a autonomia relativa das esferas social e individual sem cair no reducionismo sociologizante (quando o indivíduo é visto como produto do mundo social que o cerca) ou psicologizante (quando em última 26 análise o indivíduo é visto como um ser autônomo, produto da dinâmica de suas características individuais) (p. 41). Nos trabalhos desenvolvidos por González Rey há uma divisão no estudo da subjetividade individual e social. No entanto, sabemos que essa divisão enfatiza que a compreensão das questões individuais e sociais é impossível negar a influência inextrincável. Sobre esse aspecto o autor afirma: A subjetividade é um sistema complexo que tem dois espaços de constituição permanente e inter-relacionada: o individual e o social, que se constituem de forma recíproca e, ao mesmo tempo, cada um está constituído pelo outro. (2004 b, p. 141). A subjetividade individual indica processos e formas de organização da subjetividade que ocorrem nas histórias diferenciadas dos sujeitos individuais. Assim, a constituição do indivíduo não se dá a partir de um processo linear e estático: trata-se de uma dinâmica diferenciada, única e particular, dependendo de diversos fatores e que, dificilmente poderemos ter acesso a todos eles. Esses fatores estão também no âmbito social, que González Rey denominou subjetividade social: Ao falar de subjetividade social não estamos definindo uma entidade portadora de características universais estáticas [...] estamos definindo o complexo sistema da configuração subjetiva dos diferentes espaços da vida social que, em sua expressão, se articulam estreitamente entre si, definindo complexas configurações subjetivas na organização social (2003, p.203). Particularmente, acredito que essa teoria dá lugar à idéia de uma ciência limitada, que não pretende ser a verdade absoluta, capaz de explicar e controlar tudo a que se propõe. Ao invés disso, a subjetividade propõe que o homem é muito mais do que nossa vã ciência é capaz de explicar, parafraseando Shakeaspeare. A esse respeito González Rey considera: “A subjetividade é um sistema permanentemente em 27 processo, mas com formas de organização que são difíceis de descrever e que, portanto epistemologicamente, não são acessíveis à descrição” (2004 b, p. 126). O homem é, inegavelmente, uma realidade objetiva no âmbito social e, também, uma realidade subjetiva, produtor de uma história pessoal e de uma vivência única. Negar os aspectos sociais e individuais do homem é negar o próprio ser humano e retroceder à formulação de indivíduos abstratos e a-históricos. Sendo assim, a subjetividade abandona os preceitos concebidos pela psicologia cartesiana-positivista, que se pautam na idéia de causa e efeito, universalizações acerca da personalidade humana e certezas absolutas: o ser humano está além de nossas especulações. 2.6. SUBJETIVIDADE, SAÚDE E DOENÇA: UMA NOVA COMPREENSÃO De acordo com González Rey (2004a), a psicologia da saúde é um espaço novo de conhecimentos psicológicos, que tem maior ênfase na atuação prática, que no desenvolvimento teórico e metodológico. Com o surgimento dessa nova área da psicologia, a orientação concentrou-se em problemas relacionados com o desenvolvimento da saúde humana. No entanto, ao deparar-se com o complexo processo de saúde, verificou-se a debilidade dos postulados empiricistas e positivistas para o estudo desse tema, uma vez que, inicialmente a psicologia da saúde teve forte influência dos postulados psicanalíticos. Nesse contexto, verificamos que os princípios dominantes no pensamento psicológico analisavam esse tema a partir de dados descritivos, o que impossibilitava transcender a noção de saúde para um entendimento complexo, sistêmico e plurideterminado (GONZÁLEZ REY, 1997 b). 28 Portanto, um dos desafios da psicologia nesse campo é o desenvolvimento de teorias que abarquem a complexidade da saúde, considerando-a como um processo dinâmico, que expressa qualidade do desenvolvimento do sistema humano como um todo, em que configuram aspectos biológicos, subjetivos e sociais. Para González Rey “a subjetividade, como nível ontológico da constituição humana, representa um momento essencial para a construção teórica dos processos de saúde e de doença” (2004 a, p. 119). Em nossa opinião a subjetividade abre vieses para a compreensão desses temas tão complexos, estabelecendo a integração de fatores sócio-históricoculturais (subjetividade social) com elementos individuais (subjetividade individual) dentro de uma mesma construção teórica, possibilitando-nos uma análise complexa e abrangente. [...] outro desafio importante da psicologia no campo da saúde é incorporar esta dimensão de constituição social e subjetiva do homem ao campo da psicologia social [...] Saúde e doença não podem ser explicadas apenas a partir da subjetividade individual, devendo passar a ser momentos da construção teórica da subjetividade social (GONZÁLEZ REY, 1997b, p. 284). Na perspectiva da subjetividade a doença será considerada, além de uma enfermidade orgânica, como uma experiência culturalmente produzida, portadora de um sentido subjetivo social e culturalmente produzido, influenciando e sendo influenciado pelo sentido subjetivo individual que, de forma diferenciada, apresenta-se em cada pessoa concreta portadora da doença. No caso do câncer infantil, vários elementos serão integrados à subjetividade social da família como o diagnóstico, o tratamento, internamento, seqüelas, incerteza da cura etc. Além disso, existe uma configuração complexa da subjetividade social que relaciona câncer à dor, morte, sofrimento e punição divina, promovendo um grande 29 impacto na subjetividade individual de cada membro da família. Vimos também que essa doença causa um impacto em toda a rede familiar, o que alguns autores definem como um adoecimento da família. Podemos definir esse adoecimento como um impacto de vários agentes sociais como mitos, crenças errôneas sobre a doença, a hospitalização e tratamento da criança, os efeitos colaterais etc., causando uma desestruturação do funcionamento da família, com alterações que impossibilitam uma rotina saudável entre os membros, conflitos intrafamiliares, sofrimentos, podendo inclusive causar déficits orgânicos em algumas pessoas da família, inclusive nos acompanhantes do paciente infantil. Compartilhamos com o posicionamento de González Rey (2004a), ao considerar que os avanços da ciência médica são incapazes de amenizar e/ou “curar” essa desestruturação e que as propostas sociológicas e psicológicas são as mais viáveis para a saúde integral das pessoas envolvidas com o adoecimento. No que concerne à experiência da mãe, uma nova condição de vida se integrará em sua subjetividade: a descoberta de um tumor maligno no filho. Com o entendimento proposto da teoria da subjetividade, esse momento vivido pela mãe dependerá não somente de sua história de vida, mas também a uma subjetividade social anterior à subjetividade individual, que são sistemas que se entrelaçam e geram, dinamicamente, novos sentidos e significados (GONZÁLEZ REY, 1997b, 2004a). Em nosso trabalho, verificaremos como se dá esse sentido subjetivo da mãe ao acompanhar o processo de adoecimento e tratamento do filho portador de câncer infantil. 30 CAPÍTULO 3. METODOLOGIA Desde o segundo semestre de 2004 realizo pesquisas sobre Subjetividade e Câncer com a supervisão e apoio do professor Fernando Rey. Nesse período trabalhei com pacientes e ex-pacientes de câncer (adultos de ambos os sexos) no Hospital Universitário de Brasília – HUB. Em março de 2005 iniciei um trabalho de apoio psicológico às crianças com câncer e seus acompanhantes no setor de pediatria do mesmo hospital. A partir das minhas experiências no estágio em psico-oncologia pediátrica, decidi realizar meu trabalho de monografia, com o objetivo de analisar os sentidos subjetivos da mãe de uma criança portadora de câncer. Para realizá-lo, apoiei-me na teoria da subjetividade, numa perspectiva histórico-cultural que González Rey vem desenvolvendo (1997a, 2000, 2002, 2003) a partir do conceito de sentido subjetivo8. Cabe salientar, porém, que o objetivo desse trabalho não é chegar a uma representação sistemática e exata sobre a realidade vivenciada pela participante, mas abrir uma nova zona de inteligibilidade sobre essa temática. Verificamos também que o produto dessa pesquisa é subjetivo, pois a pesquisadora analisará seu objeto a partir de suas perspectivas e vivências particulares. É aqui que observamos o fim da falsa idéia de neutralidade, uma vez que seja impossível ao pesquisador desfazer de si mesmo para realizar suas pesquisas. As configurações dos diferentes sentidos subjetivos que se expressam na subjetivação da doença são singulares para cada indivíduo ou grupo. Analisar a forma 8 Segundo o autor, o sentido subjetivo define-se como a integração dos processos emocionais e simbólicos que caracterizam as diferentes experiências humanas. 31 em que estas configurações se produzem, e como elas influenciam as pessoas ou a família frente à doença, é um processo de fundamental importância para o desenvolvimento de estratégias preventivas, de intervenção psicossocial e produções teóricas. 3.1. EPISTEMOLOGIA QUALITATIVA Para aprofundar nossos conhecimentos sobre a repercussão do câncer infantil, utilizamos a epistemologia qualitativa desenvolvida por González Rey (1997a, 2002), pois acreditamos que este referencial possibilita um acesso ao sistema de sentidos subjetivos da mãe da criança com câncer. Segundo González Rey (2002): A epistemologia qualitativa é um esforço na busca de formas diferentes de produção de conhecimento em psicologia que permitam a criação teórica acerca da realidade plurideterminada, diferenciada, irregular, interativa e histórica, que representa a subjetividade humana. (p.29) A epistemologia qualitativa baseia-se em três princípios: - O conhecimento é uma produção construtiva e interpretativa, que significa uma valorização da subjetividade do pesquisador enquanto sujeito, e que a pesquisa não se resume à coleta de dados como propunha o modelo positivista. Esse princípio refere-se também ao lugar secundário da teoria no processo da construção do saber, pois o pesquisador desenvolve seus modelos e hipóteses durante a pesquisa; a teoria será um subsídio, não mais um guia para que as investigações validem as propostas teóricas; 32 - O segundo princípio é a interação entre pesquisador e participante que é considerada essencial na produção de conhecimento, desmistificando-se a neutralidade do pesquisador. A ação do participante é valorizada, sendo fundamental para a pesquisa o que ele pensa, fala e sente acerca do que está sendo estudado. Considero esse item de extrema importância, pois, até então fazer ciência era desconsiderar a participação alheia (até mesmo do próprio pesquisador com a “neutralidade”) e, na proposta de González Rey, prima-se pela participação, pelo vínculo e interesse de ambas as partes – pesquisador e participante – para o êxito da pesquisa. Além disso, esse princípio da interação possibilita uma aceitação da informalidade e dos imprevistos, sendo considerados como momentos de sentido subjetivo que possibilitam aprofundar ainda mais o conhecimento acerca do estudado, e não mais como erros que surgem na produção científica; A partir da epistemologia adotada, aceitamos a natureza diferenciada do objeto de pesquisa das ciências sociais e humanas, o qual é um sujeito interativo, motivado e intencional [...]. A investigação sobre esse sujeito não pode ignorar essas características gerais (GONZÁLEZ REY, 2002, p. 53). - O terceiro princípio é a singularidade como nível legítimo na produção científica, ou seja, o estudo de caso é válido, pois possibilita abrir novas discussões acerca da realidade diferenciada e subjetiva do sujeito. A partir dessa compreensão epistemológica, a legitimidade de um trabalho não se verificará pela quantidade de sujeitos a serem estudados, mas pela qualidade da sua expressão. É por esse motivo que é tão importante o vínculo entre pesquisador e participante e o comprometimento de ambos para o êxito do trabalho proposto. Nessa pesquisa utilizamos um estudo de 33 caso, para analisar a realidade única e particular de uma mulher que se defronta com um filho de 04 anos, portador de uma doença grave e estigmatizada: o câncer infantil. 3.2. SUJEITO PARTICIPANTE Para escolher a participante dessa pesquisa, observei os casos de oncologia pediátrica durante os meses de março e abril de 2005 no estágio de psico-oncologia pediátrica realizado no Hospital Universitário de Brasília (HUB). Essa observação consistia numa aproximação profissional e afetiva das crianças e de seus acompanhantes durante a fase de internação e tratamento de quimioterapia. Nesse período conheci Maria mãe do menino Pedro9 de 04 anos e 11 meses, que teve o diagnóstico de linfoma não-Hodgkin. Desde o início eu tive uma aproximação muito amistosa com mãe e filho, o que me motivou convidá-la para participar da minha pesquisa. Maria é mãe solteira de 28 anos, mora sozinha com seu filho e desde fevereiro desse ano acompanha o tratamento de Pedro. No primeiro falei da pesquisa e apresentei-lhe a carta convite (ANEXO I), e li oralmente para ela. Enfatizei que a participação era voluntária e da relevância que esse trabalho se propõe: analisar as vivências pessoais e da família em que um de seus membros, no caso uma criança, é portador de câncer. Expliquei que a partir desse estudo eu poderia motivar reflexões de equipes de saúde sobre a importância de um trabalho de suporte e apoio psicossocial às famílias quando uma criança é acometida por câncer. Disse também sobre a gravação das entrevistas, do sigilo do conteúdo informado e da omissão da 9 Atendendo aos princípios éticos, a identificação de todos os participantes da pesquisa foi alterada. 34 identidade de todos os participantes. Com a aceitação de Maria, pedi que ela assinasse duas vias de consentimento informado (ANEXO II), uma que está em seu poder e a outra via com a pesquisadora. Para compreendermos melhor o cenário de nossa participante, consideramos importante citar algumas informações sobre o caso clínico da criança. Tubino e Alves (2003) afirmam que a etiologia exata do linfoma não-Hodgkin é desconhecida, porém, acredita-se que esteja relacionada a um defeito no funcionamento do sistema imunológico que permitiria a expansão de um clone maligno. O início da doença é, geralmente agudo. Os linfomas não-Hodgkin em crianças crescem rapidamente; em alguns casos a fração de crescimento chega a 100% com o tempo de 12 horas ou poucos dias para que o tumor duplique seu tamanho inicial. De acordo com Tubino e Alves (2003) o tratamento é basicamente com quimioterapia, já que esses linfomas comportam-se como uma doença multicêntrica, sendo necessária uma abordagem sistêmica em todas as crianças, a despeito do estadiamento ou da histologia. Na criança há maior possibilidade para a transformação em leucemia, que pode ser seguida ou precedida pela doença meníngea. Os mesmos autores consideram que a operação limita-se à biópsia, a menos que seja possível a ressecção total ou quase completa (> 90%) de um tumor abdominal primário. Em todas as crianças com linfoma não-Hodgkin deve ser feito tratamento quimioterápico profilático do sistema nervoso central. Em casos refratários ou recorrentes, o transplante de medula óssea deve ser considerado. 35 3.3. INSTRUMENTOS Nessa pesquisa utilizei dois instrumentos: sistema de conversação e complementos de frases. Esses recursos foram utilizados de forma aberta e não impuseram restrição para a livre expressão da participante, pois acredito quem em pesquisas qualitativas é essencial o desenvolvimento progressivo de diálogos como fontes ricas sobre as configurações subjetivas do sujeito. Para González Rey (2002), o instrumento só terá sentido quando se relaciona especificamente com o participante, pois o objetivo não é criar categorias, mas preservar a singularidade dos sujeitos pesquisados e abrir novas zonas de sentidos. No roteiro de conversação (ANEXO III) apresentei tópicos para estabelecer um diálogo inicial com a participante da pesquisa. Esse roteiro foi feito a partir das diversas leituras de capítulos de livros, na tese de mestrado de Luciana Delella (2000) e artigos sobre psico-oncologia pediátrica. Com esse instrumento a expressão da participante seria ampla e não estaria limitada aos tópicos previamente elaborados. Minha proposta foi sugerir temas para uma conversa livre, em que a participante poderia desdobrar em outros temas relacionados ou não ao tópico sugerido por mim. Sobre a participação ativa do participante na pesquisa, González Rey (2002) discorre: “A reação é impossível de controlar, pois faz parte da condição subjetiva da pessoa; portanto, a melhor forma de enfrentá-la é o caráter aberto dos instrumentos e sua multiplicidade” (p.81). Com o lugar que a epistemologia outorga ao diálogo, o papel do pesquisador será de sujeito intelectual ativo, pois produzirá idéias na medida em que indicadores surgem no processo da pesquisa. É nessa participação do pesquisador que verificamos 36 a simultaneidade no processo de construção de indicadores que acontece durante a pesquisa. O complemento de frases (ANEXO IV) será o outro recurso utilizado, que consiste na apresentação de cinqüenta e quatro frases para serem completadas com aquilo que viesse na mente da participante na hora que lesse a frase. Esse recurso será utilizado após o diálogo inicial baseado no roteiro de conversação. Cabe salientar que esses instrumentos não oferecerão restrições na participação espontânea do sujeito, pois as informações que ali surgirem serão o meio para a produção de indicadores. Os indicadores são momentos que adquirem significação graças à interpretação do pesquisador, tendo relevância somente nos limites do processo de construção de informação. Com as respostas do complemento de frases e com o conteúdo dos diálogos, será possível uma compreensão da produção de sentidos acerca de vários fatores envolvidos na vida particular dessa mãe. Para analisar todo esse material, estabelecemos os seguintes núcleos temáticos para a construção de informação: significado do câncer infantil; funcionamento familiar após a confirmação da doença; impacto do diagnóstico; tratamento da criança e efeitos colaterais. A partir desses eixos temáticos, será abordado o sistema de sentidos desenvolvidos pela mãe e o desdobramento destes. 37 CAPÍTULO 4. PRODUÇÃO DE INFORMAÇÃO Após a conversação com Maria e com o complemento de frases já feito, li todo o material diversas vezes. Quando observava aquele material parecia-me estar à frente de uma constelação de informações, que possibilitaria uma compreensão parcial dos sentidos subjetivos das vivências daquela mulher. Parcial porque acredito ser impossível acessar todos os sentidos subjetivos e compreender toda a complexidade da experiência dessa pessoa. No processo de conversação eu e Maria estávamos descontraídas, afinal já nos conhecíamos há três meses e tínhamos afeição recíproca. Inicialmente começamos um diálogo a partir dos tópicos do roteiro de conversação. Contudo, durante o diálogo surgiram temas muito interessantes que iam se desdobrando em subitens que não imaginei anteriormente, o que me fez abandonar o roteiro e ir conversando com ela. Dito de outra forma, outros núcleos temáticos foram agrupados na produção de informações devido à riqueza das informações e pelo fato desses temas estarem relacionados ao sentido que Maria dava à sua vida frente ao adoecimento de seu filho. Considerei o não-seguimento do roteiro como um momento de construção de novos sentidos da pesquisadora e da participante, pois esta participava ativamente da pesquisa e propunha itens relevantes. A esse respeito, Bechhofer (apud GONZÁLEZ REY, 2002) salienta: O processo de pesquisa, então, não representa uma clara seqüência de procedimentos fragmentados que seguem um padrão, mas uma desordenada e complexa interação entre os mundos conceitual e empírico, em que a dedução e a indução ocorrem ao mesmo tempo (p.67). 38 Durante a produção de informação, verifiquei que pela estrutura da família de mãe solteira, surgiram mais elementos referentes à vivência particular dessa mãe. É por esse motivo que o objetivo desse trabalho foi de certa forma alterado, da repercussão do câncer infantil na família para a análise do sentido subjetivo da mãe de uma criança com câncer. Além disso, discutiremos também itens referentes às vivências da família extensa de Maria, que também sofreu o impacto do câncer infantil. 4.1. IMPACTO DO DIAGNÓSTICO Conversando com Maria, observei que o câncer ainda tem uma conotação extremamente pessimista, como se o diagnóstico da doença fosse uma sentença de morte. No complemento de frases pude analisar alguns itens sobre esse pessimismo referentes ao câncer: 5. Meu maior medo a morte; 22. Diariamente me esforço para aceitar as situações; e 28. A doença é miserável. Verifiquei também, que esse momento foi de intensa conturbação emocional, como nos dizeres dela: “E quando eu descobri, eu falei assim: ‘Meu Deus do céu!!!’ [...]. Eu fiquei abalada, triste, chorava, chorava e chorava, e quando andava na rua eu não conseguia ver o chão... eu esbarrava nas pessoas na rua, eu pisava e tropeçava... caía nos buracos... mas eu não via nada. Eu olhava assim pro tempo e não conseguia enxergar, só com aquilo no meu pensamento. [...] Eu pensava assim... que ele não ia agüentar, que ele não ia conseguir porque tantas crianças morrem com câncer, tantas pessoas morrem...” A partir desse trecho conferi o sentido subjetivo individual sobre o 39 câncer, que está intimamente relacionado à morte, que está também muito presente na subjetividade social. Além disso, Maria informou sobre o impacto na família extensa. Disse que um ponto positivo que surgiu com o adoecimento de seu filho refere-se à sua família, que se tornou mais presente. Como sabemos, o câncer pode ser agente desestruturante no funcionamento individual e do grupo familiar, ou tornar explícito problemas pessoais, intra e extra-familiares que antes estavam velados. Porém, na experiência de Maria verifiquei outra conseqüência advinda da doença da criança, que não encontrei referência na bibliografia consultada: o câncer teve uma importância singular para uma relação mais afetiva e sólida entre os familiares com Maria, que com certeza a auxilia no enfrentamento da doença de seu filho. Essa interpretação está relacionada ao item 41 do complemento de frases: “Tenho ajuda moral da minha família” e no trecho da conversa: “A minha família também mudou. O que aconteceu com a família foi uma aproximação, devido à doença houve mais uma aproximação... Mas meu pai é mais afastado, ele é separado da minha mãe... ele ficou sabendo da doença, mas não se aproximou”. Mas quem aproximou? “Minha mãe, minha tia, meus primos, minha avó”. A relação dos membros da família extensa com a criança também mudou. Maria acredita que devido ao sofrimento de Pedro, a família tornou-se mais atenciosa e superprotetora com a criança, numa tentativa de amenizar o sofrimento: “Já tratavam ele assim... com dengo... piorou mais... com muito mimo, demais. O que ele pede dá... por causa da doença né?! Fazem de tudo por ele, ‘o que você quer comer, o que você quer ganhar..’. Antes de adoecer não ligavam tanto pra ele, passava um mês... agora ligam pra saber como que ele tá... então teve mais uma aproximação...”. Com esse trecho podemos analisar que os familiares estreitaram as relações afetivas com Maria e Pedro 40 quando souberam da gravidade da doença. De certa forma, essa atitude dos familiares tem uma conotação positiva que advém do câncer infantil, ou seja, nem sempre o câncer traz somente perdas e tristezas, mas também sentimentos de solidariedade e compaixão. 4.2. SIGNIFICADO DO CÂNCER INFANTIL Durante a conversa, Maria fez uma relação entre câncer e aids. No primeiro instante fiquei muito surpresa com esse relato. Acredito que tal pensamento possa estar de acordo com as idéias de Sontag, que analisa o câncer e a aids como as doençasmetáfora do século XXI. Para a autora, as doenças-metáfora são enfermidades que ensejam catástrofes e tomam um caráter social, como por exemplo a peste na Idade Média; a sífilis e a tuberculose no século XIX; já no século XX e XXI, o câncer e a aids incitam a idéia de poder maligno e descontrole exclusivo do mundo moderno (apud KOWALSKI e SOUSA, 2002). Essa analogia entre aids e câncer pode também estar relacionada ao desconhecimento (ou negação) da possibilidade de cura do câncer já que, atualmente, a aids não tem cura. Sobre esse ponto vale ressaltar que as informações sobre diagnóstico precoce e cura do câncer são muito escassas em nossa sociedade. A própria mãe disse que seu conhecimento sobre câncer limitava-se a morte de expacientes: “Porque a palavra câncer... todo mundo que eu conheço vem e me fala: ‘Ah, meu pai morreu de câncer, minha tia, meu primo...’ entendeu? Quando eu falo que meu filho tem câncer, a pessoa fala assim: ‘Meu tio morreu de câncer’. Ai outra pessoa vem 41 e fala: ‘A minha mãe, a minha tia morreu de câncer...’ só vem assim... Ninguém fala de cura... Logo quando eu cheguei e que algumas mães tinham filhos internados e fazendo tratamento de câncer, pegavam e falavam: ‘Nossa, aqui teve tal criança que morreu, teve outra, outra...’ foi relatando e me contando nos dedos as crianças que morreram, mas não falaram pra mim das crianças que salvaram. Então deixa a gente deprimida sabe... deixa a gente assim... sem esperança na hora... mas a gente tem que acreditar na palavra do médico, com a evolução e com o acompanhamento do tratamento você vai vendo, vai observando como vai o andamento e vai aceitando mais a situação...”. É nesse contexto que considero extremamente importante o desenvolvimento de projetos que desmistifiquem o câncer como doença fatal nos meios de comunicação, esclarecendo à sociedade que se trata de uma doença crônica com possibilidades terapêuticas eficazes e cura. Recentemente tive a oportunidade de conhecer um belo trabalho desenvolvido pelo Instituto Maurício de Sousa em que uma personagem é portador de câncer infantil (ANEXO VI). Nesse cartaz há informações sobre os principais sintomas da doença e, o mais importante, a criança doente fala que o câncer tem cura. Medidas como essa poderão alertar a sociedade para a prevenção do câncer, e da possibilidade do diagnóstico precoce, que aumenta as chances de cura e, no futuro, poderão também modificar a percepção individual e social sobre o câncer, diminuindo o sofrimento causado pelo diagnóstico dessa doença tão estigmatizada. Com relação à etiologia da doença, a mãe disse que tentou abortar a criança e acredita que isso pode ter desencadeado alguma alteração nas células da criança, como ela relatou: “antes dele nascer eu tentei tirar né... as vezes eu acho que pode ter acontecido de ter... não sei... de ter dado algum probleminha nas células dele... ter ficado diferente...” Em nosso país o aborto é ilegal, e muitas religiões condenam esse 42 ato. Podemos analisar que o câncer revelou um conflito pessoal da mãe: a tentativa de abortar o filho e o sentimento de culpa influenciado pela religiosidade. Analisamos esse núcleo temático a partir dos itens 47: Meu maior medo castigo de Deus; e no item 4: Lamento as coisas que fiz antes de meu filho nascer. Inferimos, portanto, que a causa da doença para Maria seja um castigo/punição divino por atentar contra a vida do seu próprio filho. É importante lembrar que a compreensão da doença como intervenção divina é muito antiga como vimos na introdução de nosso trabalho. Essa compreensão pode ser considerada como uma representação social, que tem uma forte influência no sentido subjetivo individual e social sobre o câncer. Além da tentativa de aborto, Maria acredita que outros fatores poderiam estar relacionados à causa do adoecimento de Pedro, como abandono e doenças préexistentes. Analiso que essas prováveis causas da doença (aborto e o abandono) estão também, ligados ao sentimento de culpa da mãe. Considero pertinente nesse caso um acompanhamento psicoterapêutico para essa mãe, uma vez que além de toda turbulência da doença, internação e tratamento, psicologicamente encontra-se angustiada ao acreditar ser responsável pela enfermidade de seu filho. 4.3. TRATAMENTO DA CRIANÇA E EFEITOS COLATERAIS Sabemos que os tratamentos para o câncer são muito agressivos para o organismo, que é percebido muitas vezes como um paradoxo para os pais: o que pode salvar meu filho faz muito mal à saúde dele. 43 No caso de Pedro, o principal tratamento é a quimioterapia que traz modificações físicas, como a queda de cabelo, enjôo, feridas na boca, alterações comportamentais e psicológicas. Durante a conversa perguntei o que Maria pensava sobre quimioterapia, e ela respondeu: “Um tratamento muito pesado. Um tratamento violento pro corpo de uma criança [...] a criança muda totalmente. Ele fica nervoso, agitado, ele briga comigo, luta, chuta sabe... é uma coisa horrível. Então a gente tem que ter aquela paciência, é uma coisa assim que eu tenho que ir adquirindo com o tempo, porque a gente nunca tá preparada pra isso, mas a gente tem que tá tipo moldando... porque aquela situação ali vai acontecer com mais freqüência então você tem que tá procurando ter aquela paciência senão a tendência é piorar”. No complemento de frases percebi que a quimioterapia não tem repercussão somente na vida do Pedro, mas também na vida de Maria, como ela expressou no complemento de frase: 9. Sofro com meu filho na quimioterapia; Quando conversávamos sobre a quimioterapia, Maria começou a enfatizar sobre a queda de cabelo. Com a dinâmica da conversação, simultaneamente me interessei com os detalhes e desdobramentos que esse tema teve, que para a mãe tinha um sentido muito relevante: “Aí... quando caiu o cabelo até eu me assustei... as pessoas dizem assim: ‘Vai cair o cabelo é simples...’ mas quando você vê, quando você pega no cabelo, o cabelo soltando assim... como se fosse uma espuma é uma coisa muito estranha... aí eu comecei a tirar como se fosse uma espuminha... aí meu coração acelerou, me deu vontade de chorar... eu fiquei assim... aí com essa situação do cabelo dele cair: ‘O quê que as pessoas iriam comentar?’”. A partir desse trecho parece que a queda do cabelo foi a reafirmação do diagnóstico, além das pessoas notarem que seu filho era portador de câncer infantil. Para a mãe de Pedro, ele era visto pelas pessoas 44 como uma criança “normal” antes do cabelo cair. No entanto, ao ficar careca as pessoas tornaram-se mais curiosas e se aproximaram de Maria para terem o “veredicto” da doença. Considerei muito interessante essa reação das pessoas, que explicita o forte estigma que envolve o câncer. “Porque quando alguém vê uma pessoa com cabelo... normal, andando e brincando pra lá e pra cá, ninguém chega e pergunta não... mas quando o cabelo caiu, várias pessoas chegaram lá em casa pra perguntar... aí eu chegava e respondia... falei toda a verdade, porque as pessoas ficam curiosas, preocupadas [...] muitos deles ficaram espantados... nunca ninguém imaginaria que isso poderia acontecer com o Pedro [...] algumas pessoas ficaram sabendo quando o cabelo dele caiu”. De acordo com Maria, a quantidade de pessoas curiosas aumentou quando Pedro perdeu o cabelo e, numa tentativa de se proteger dessa “invasão” ela evita falar sobre o diagnóstico, respondendo simplesmente que seu filho está submetido à quimioterapia. Em determinada circunstância que conversávamos sobre a reação das pessoas, perguntei se ela achava ruim explicar o que estava acontecendo com seu filho, e ela respondeu: “Vai chegando uma hora que vai incomodando... Hoje vêm pessoas me perguntar lá embaixo [no pátio do hospital]... muitas pessoas ficam apontando só porque ele tá carequinha sabe... as vezes vêm na minha direção, pergunta e a gente fica conversando meia hora para explicar... Hoje eu já não tenho aquela paciência que eu tinha antes pra explicar... é como se fosse um afronta pra mim, como se eu fosse invadida tá entendendo? A gente vai cansando... Porque tipo assim, algumas [pessoas] dizem: ‘Como é que ele tá?’ e a gente tem aquela resposta automática: ‘Tá bem!’ pra evitar de entrar em detalhes... mas a gente vê que a pessoa quer chegar, quer perguntar ... algumas pessoas vêm e pergunta ‘O que é que ele 45 tem?’ e eu só falo ‘ele faz quimioterapia’, já pra evitar...” Considerei relevante essa passagem da conversação de Maria, que denota como o câncer ainda tem um sentido de “tabu social”. Enquanto que no passado a referência ao câncer era feita a partir de eufemismos como “aquela doença”, hoje ela continua sendo uma doença de forte impacto individual e social, instigando a curiosidade alheia e, no caso da mãe, uma vontade de esconder-se numa tentativa de restabelecer a sua privacidade e de seu filho. No complemento de frases observei que alguns itens relacionam-se justamente à questão da privacidade e do incômodo de falar sobre o filho: 6. Em casa me sinto protegida; 37. Me esforço para agir como se nada estivesse acontecendo; 4.4. SER MÃE DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER Maria não planejou ser mãe. Em outras conversas com a pesquisadora, disse ter engravidado por não ter usado preservativo. Talvez os motivos que impulsionaram Maria a tentar abortar relacionam-se ao despreparo financeiro e psicológico para a maternidade. Durante o diálogo, Maria afirmou que está aprendendo a ser mãe com o câncer. É muito interessante esse relato, pois novamente encontramos um indicador que descaracteriza o câncer como produtor apenas de sofrimentos psicológicos e emocionais. Nesse estudo de caso o câncer foi uma oportunidade para desabrochar naquela mulher os instintos maternais, que até então ela mesma desconhecia: “Eu acho que toda essa experiência que eu tô tendo é como se fosse um amadurecimento pra mim para o futuro... porque eu nunca me achei com cara de mãe sabe... com jeito de 46 mãe... eu me acho assim... muito nova pra ser assim: mãe... isso tudo está me amadurecendo muito, como cuidar dele, como fazer a alimentação dele [...] então hoje tá servindo pra mim passar a cuidar dele melhor, pra observar ele melhor... Hoje eu me sinto mais responsável... não que eu não fosse responsável... mas uma responsabilidade que eu não tinha... na questão de cuidar dele melhor...” No complemento de frases existem alguns indicadores sobre o ser mãe para Maria: 21. Ser mãe estou aprendendo... 27. Minha família eu e meu filho; 30 Pedro se ainda existo é devido a ele; 32. Farei o possível para conseguir o melhor para o meu filho; 35. Dedico a maior parte do meu tempo com meu filho; Outra questão muito interessante que surgiu durante a conversa foi Maria enfatizar que não pretende ter outros filhos porque tem traumas. Novamente vemos o significado de ser mãe para Maria, mas sob outro prisma, com o receio de gerar outro filho doente, como vemos no trecho da conversa: “Eu tô com trauma de ter outro filho... tô com trauma... mais [filhos] de jeito nenhum! Não tenho coragem de ter outro filho... não quero... tô com trauma... já não queria... depois dessa, aí é que eu não quero mais... eu já coloquei o DIU pra evitar mesmo eu não penso mesmo em ter outro filho, imaginando como é que seria essa situação”. No complemento de frases ela também escreveu em dois itens sobre não querer mais filhos: 38. Ter filhos não mais! 42. Os filhos não terei, pois só quero a um: Pedro. Em nossos estudos sobre psicologia da saúde, percebemos que a doença pode influenciar na identidade do paciente. No nosso estudo de caso, verificamos que o adoecimento de Pedro tem forte influência na identidade de sua mãe. Na conversação que tivemos, ela menciona que antes do diagnóstico tinha uma vida “normal” e, atualmente, ela vive em função do filho e está sempre no hospital, como afirma: “tava 47 tudo bem, tava tudo ótimo, dormia, amanhecia, arrumava a casa, lavava a roupa, minha vida era normal, tranqüila, fazia o almoço [...] Hoje não! Hoje a minha vida tá assim: hospital e olhe lá dentro de casa, por que eu fico mais aqui dentro do hospital do que dentro de casa... eu fico no máximo uma semana em casa, não passa de sete dias... ultimamente tá sendo assim... a não ser que venha melhorar e ficar uns vinte dias em casa que nem o médico disse”. Além do câncer, Maria falou sobre a influência do sistema hospitalar em sua vida: “eu não me sinto à vontade dentro de um hospital... a gente se sente assim... tipo controlada entendeu? Tipo como se fosse um controle do filho, porque a gente tá ali submetida ao filho e não por causa dele.. você tá ali submissa a ele.. e ele tá submisso aos médicos e aos enfermeiros...” Nesse item observei que o sentido da permanência de Maria no hospital não é encarada como uma acompanhante e mãe de uma criança, mas de alguém também submissa às diretrizes do hospital. Outro ponto que considerei muito interessante a partir da fala de Maria refere-se às atividades desenvolvidas no hospital para as crianças internadas. Ela diz: “tem coisas que animam a gente né... tem os palhaços alegres, tem as psicólogas, as pedagogas também que fazem as tarefinhas, os desenhos, as pinturas, recortes... então eu acho assim, que isso ajuda bastante a criança, e não só a criança, mas a mãe também, porque deixa a gente assim... é como se tirasse a gente um pouco do quarto que a gente está, tirasse a gente do mundo que a gente se encontra”. Outro item que Maria trouxe espontaneamente durante a conversação foi sobre o vício de fumar: “E eu comecei a fazer um tanto de coisa errada... comecei a fumar depois que deixei a Igreja... eu tô tentando parar de fumar... não dá pro meu filho ter câncer e eu ter depois... Mas aqui no hospital não tem o que fazer... é como se fosse 48 assim um ‘passatempo’... eu tô ali e o tempo vai passando... e passa rápido”. Esse item nos leva a pensar sobre a estagnação da vida do acompanhante dentro do hospital. Mesmo conhecendo sobre os malefícios do tabagismo, Maria fuma para se distrair e para o tempo “passar mais rápido”. É nesse sentido que reflito sobre a benéfica repercussão que terapias laborais teriam para os acompanhantes das crianças internadas. Não desconsidero as diversas dificuldades que o sistema público de saúde enfrenta para atender as necessidades básicas no tratamento dos pacientes, e que não seria fácil empreender atividades como essas. Contudo, acredito que a saúde da criança depende da saúde integral (corpo, mente e espírito) de seu acompanhante para ajudá-la durante a internação e tratamento. É nesse sentido que considero fundamental a reflexão sobre as condições dos acompanhantes e, no futuro próximo, empreender medidas que possam auxiliar e amenizar a permanência dessas pessoas no ambiente hospitalar. No complemento de frases Maria se referiu em vários itens sobre outras mães e seus filhos saudáveis: 7. As crianças de fora vejo saúde, e as mães desesperadas; 39. Penso que os outros são mais felizes, pois seus filhos são saudáveis 40. Me incomodam as mães que por uma pequena doença reclamam! Nesse caso observo que Maria apresenta um ressentimento por estar passando pela situação de adoecimento de Pedro. Comenta sobre as outras mães que se desesperam com doenças “mais simples” e que acredita que as outras pessoas são mais felizes por não terem uma criança com câncer no seio familiar. Considero comum esse posicionamento referente às outras mães, pois quando as pessoas enfrentam qualquer situação aversiva, a tendência é considerar a experiência pessoal mais árdua que a das outras pessoas. 49 4.5. SER MULHER E PROFISSIONAL Durante os diálogos e com o complemento de frases, observei que Maria desempenhava outros papéis antes do diagnóstico e que, atualmente, sente-se impedida para exercê-los. Segundo ela, devido às hospitalizações freqüentes e cuidados com o filho, precisou de licença profissional e não consegue manter um bom relacionamento afetivo com o namorado. Esses indicadores ficaram muito claros principalmente no complemento de frases: 16 O trabalho é a minha diversão; 18 Eu prefiro a vida que eu tinha há 02 anos atrás; 23 Sinto dificuldade em ficar só! 24 Meus maiores desejos é constituir minha família; 25 Tenho vontade de amar e ser amada; 29. Com freqüência sinto solidão; 33. Com freqüência reflito na minha vida; 51. Meus amigos afastaram-se um pouco. Com tantos itens do complemento de frases referindo a aspectos profissionais e pessoais, pude observar que atualmente Maria sente-se muito só e que, mesmo enfrentando uma doença grave, tem necessidades afetivas como de outra mulher, como a presença do companheiro, dos amigos e de trabalhar. É nesse contexto que assimilo o complexo sentido que a hospitalização de Pedro pode assumir na vida de Maria: ao mesmo tempo que esse local pode salvar seu filho, é também um empecilho para sua vida amorosa e profissional. Acredito que essas dificuldades tenham um sentido negativo na vida de Maria, pois emocionalmente não está satisfeita por vários motivos: a solidão, o afastamento do trabalho e, principalmente, o adoecimento do filho. Nesse caso, um grupo de apoio emocional dentro do hospital, para atender aos acompanhantes de crianças internadas, poderia ter um resultado positivo. 50 Considerando que todos os acompanhantes estão enfrentando problemas parecidos, num trabalho de grupo as pessoas poderiam participar desse processo de auto-ajuda. 4.6. A DOENÇA E O “APEGO A DEUS” Um tema recorrente no discurso de Maria, e que não delimitei anteriormente, refere-se à religiosidade. Considerando os sentidos que surgiram a partir dessa temática, abri uma nova zona de inteligibilidade sobre nosso estudo de caso: a religiosidade na vida de Maria. O interessante é que esse tema aparece no cenário da participante como um fator conflitante: Deus é conforto para o sofrimento e é também punitivo. Pode-se compreender essa ambigüidade considerando a presença permanente da religião na cultura brasileira e os atributos divinos. Um dos significados mais presentes na subjetividade social acerca da religião é de consolo para os momentos difíceis. Já o caráter punitivo relaciona-se com a proibição do aborto, já que a crença religiosa indica que somente a Deus é permitido tirar a vida. Verificamos esse conflito a partir da fala de nossa participante: No momento do diagnóstico: “Ah meu Deus, o quê que eu vou ter que enfrentar...”; No início do tratamento: “Eu tenho que aceitar essa situação e que Deus me dê força [...] Ultimamente Deus tem me dado força [...]”; No momento da quimioterapia: “Ai meu Deus, vai começar de novo, sofrimento de novo”; Como fonte de esperança: “você se apega mais a Deus... a melhor coisa mesmo pra te ajudar só Deus pra te dar força...”. Já no complemento de frases vemos dois itens que demonstram a 51 conotação punitiva e do poder absoluto de Deus, que está muito presente na subjetividade social: 11. Meu futuro só Deus! 47. Meu maior medo castigo de Deus; Portanto, com essas informações ponderei a ambigüidade da religião na vida de Maria. Contudo, parece-me que a religião tem mais importância para a saúde psíquica e emocional na vida dessa mãe, uma vez que em várias circunstâncias ela menciona Deus como suporte para os momentos de angústia e desespero. Corroborando com esse fato, Pedrosa e Valle (2000) falam que uma das reações mais comum dos pais de crianças com câncer é justamente o apego à religião. Nesse sentido, considero fundamental a reflexão da equipe de saúde, inclusive dos psicólogos, referente à crença das pessoas, pois na Academia esse tema é tido muitas vezes como tabu ou visto com desdém. Acredito que em determinadas circunstâncias, uma conversa com um padre ou pastor será mais terapêutico que uma intervenção psicoterápica e nós, psicólogos, precisamos de uma certa “humildade” para aceitar que a psicologia não é a solução dos problemas das pessoas, como crê a maioria das abordagens psicológicas. Compartilho com o pensamento do professor Walter Ribeiro (gestaltista), ao afirmar que as relações terapêuticas podem acontecer em diversas circunstâncias, não necessariamente com um psicólogo. 52 CONSIDERAÇÕES FINAIS O trabalho com crianças com câncer não é uma tarefa fácil. Participei semanalmente de suas vidas e acompanhei durante meses várias sessões de quimioterapia, os efeitos agressivos do tratamento, e esperei ansiosamente com os pais e mães os resultados do hemograma e das radiografias. Tive que confrontar também a sombra da morte que ronda os corredores da pediatria, além de acolher os acompanhantes angustiados com a realidade da incerteza referente à cura de suas crianças. Muitas vezes deparei-me com o desespero de pais e mães que, com os olhos marejados questionavam-me “Por que isso está acontecendo com o meu filho?”. Porém vivenciei momentos alegres, desde os resultados de regressão de tumores, e com o carinho verbalizado e demonstrado pelas crianças e pelos pais ao visitá-los. O principal objetivo desse trabalho foi analisar o sentido subjetivo que tem o câncer infantil a partir da perspectiva singular da mãe de uma criança acometida por tal doença. Em outras palavras, o sentido subjetivo do câncer infantil foi considerado a partir da subjetividade configurada na vida de Maria. Ao longo da pesquisa observamos claramente que a vivência da mãe é complexa: com medos, receios, traumas e, também de aprendizado. A experiência de conviver com um filho doente teve momentos positivos e negativos. Maria está “aprendendo” a ser mãe, mais responsável e cuidadosa com seu filho, além dos outros familiares aproximarem-se mais dela para confortá-la nesses momentos difíceis. Mesmo com esse caráter positivo, o câncer também significa um obstáculo na vida 53 dessa mãe, que a impossibilita de ter experiências como mulher e profissional, além da doença ser uma ameaça constante à vida do seu filho. Em outras circunstâncias observamos que a doença tem também um caráter de punição divina para Maria. Sabemos que essa compreensão do câncer como intervenção sobrenatural é muito antiga e, nesse trabalho foi possível verificar que muitas Representações Sociais sobre o câncer, como a punição divina, ainda estão muito presentes na subjetividade individual e social. Além disso, verificamos que Maria compreendia o câncer como sentença de morte. Podemos afirmar que nesse caso há vários fatores que impossibilitaram uma compreensão real dos avanços médicos na área de oncologia e das possibilidades terapêuticas e cura. Infelizmente em nosso país as informações sobre essa doença são muitos escassas. Acreditamos que a veiculação na televisão e no rádio sobre prevenção e diagnóstico precoce auxiliaria as pessoas no enfrentamento dessa doença. Durante o estágio em psico-oncologia pediátrica, observamos diversas dificuldades dos acompanhantes, desde as acomodações nos quartos, precariedade do serviço público de saúde que inviabiliza a agilidade nos procedimentos cirúrgicos e de tratamento, até à impossibilidade desses pais e mães para expressarem suas angústias acerca do tratamento e da doença. É nesse sentido que se torna imprescindível maior atenciosidade de nosso governo ao sistema público de saúde, uma vez que os direitos humanos são desconsiderados nos bastidores dos hospitais. Além disso, salientamos a importância de trabalhos de apoio e suporte emocional realizado por psicólogos, com acompanhamento individual e trabalhos de grupo. Consideramos também que a terapia laboral teria grande valia, pois seu auxiliará aos acompanhantes durante o processo de internação de seus filhos. Nesse caso, trabalhos manuais e o incentivo à leitura 54 poderiam amenizar a solidão e a angústia que os acompanhantes sofrem durante o tratamento das crianças. Com certeza essas medidas teriam influência direta na saúde da criança, uma vez que o restabelecimento dela depende da integridade física, mental e espiritual de seu acompanhante. Sugerimos também o acesso de grupos religiosos nas dependências do hospital, a fim de auxiliar religiosamente os acompanhantes e as crianças internadas. Nesse trabalho foi fundamental a participação ativa da participante e da pesquisadora, pois as informações e outros temas que surgiram durante diálogo propiciaram a construção de diferentes eixos para a inteligibilidade do nosso tema. Novamente verificamos o fim da neutralidade e a importância do envolvimento da pesquisadora no desenvolvimento eficaz de seus trabalhos. Consideramos que a metodologia utilizada, a Epistemologia Qualitativa, foi adequada para atender nossos objetivos para compreender os sentidos subjetivos da mãe da criança com câncer. Como observamos no desenvolvimento dos núcleos temáticos, o sistema de conversação e o complemento de frases foram recursos que possibilitaram informações ricas sobre a repercussão do câncer na vida da mãe, bem como outros desdobramentos que surgiram. Finalizando, acredito que as experiências vividas dentro da pediatria oncológica foram muito importantes, tanto para a minha profissão quanto para o meu amadurecimento pessoal. Após a conclusão desse trabalho tenho mais entusiasmo para continuar pesquisando, investigando e, principalmente, propondo novas medidas que possibilitem uma melhor qualidade de vida para as crianças e de seus acompanhantes, além de sugerir estratégias psicológicas que auxiliem as equipes de saúde que combatem, diariamente, o câncer infantil. 55 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Jésia Albuquerque; FERNANDES, Maria Zélia; SERAFIM, Edvis Soares. Atuação do Psicólogo no Centro de Oncologia Infantil. Jornal de Pediatria. v. 67 nº9 p.344- 347, São Paulo, 1991. CAPRA, Fritjof.. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix. 1982. CARVALHO, Maria Margarida Moreira Jorge de. Psico-oncologia: História, características e desafios. Revista Psicologia USP, v.13 nº. 1. São Paulo. 2002 DAUDT, Patrícia Ruschel, e SILVA, Tanise Franklin da. A repercussão do câncer infantil: um estudo do funcionamento familiar. Revista Alethéia. nº16 p. 47-61. Canoas: RS. 2002 DELELLA, Luciana Aparecida. Sobrevivência de câncer na infância: uma investigação sobre a avaliação da desordem do estresse pós-traumático (PTSD) e as relações familiares. Brasília, 2000. 165p. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília. FLORIANI, Ciro Augusto. Cuidador familiar: sobrecarga e proteção. Revista Brasileira de Cancerologia. v. 50 nº4, p. 341-345. 2004. FRANÇOSO Luciana Pagano Castilho, VALLE, Elizabeth Ranier. Morais. A criança com câncer - estudo preliminar. Revista Pediatria Moderna,v. 35 nº 05 Maio, 1999. GIMENES, Maria da Glória Gonçalves. Definição, foco de estudo e intervenção. In CARVALHO, Maria Margarida Moreira Jorge de. Introdução à Psiconcologia. São Paulo: Editorial Psy. 1994. p. 35-56. GONZÁLEZ REY, Fernando Luis. Epistemologia Cualitativa y Subjetividad. São Paulo: Educ. 1997 a _____ Psicologia e Saúde: Desafios Atuais. Revista Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.10 nº.2 p. 275-288.1997 b 56 _____ Sujeito e Subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. São Paulo: Thomson Learning. 2003. _____ Personalidade, Saúde e Modo de Vida. São Paulo: Thomson Learning. 2004 a. _____ O Social na Psicologia e a Psicologia Social: a emergência do sujeito. Petrópolis: Vozes. 2004 b. _____ Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Thomson Learning. 2002. GRANDESSO, Marilene Sobre a reconstrução do significado: uma análise epistemológica e hermenêutica da prática clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2000. INCA Particularidades do câncer infantil Disponível < http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?id=343 > Acesso em 28 fev. 2005 em KOWALSKI, Ivonte S. G. e SOUSA, Clarilza P. Câncer: uma doença com representações historicamente construídas. Revista Acta Oncológica, v. 22, nº 4. 2002. KÜBLER-ROSS, Elisabeth A roda da vida. Rio de Janeiro: Sextante. 1998. LESHAN, Lawrence O câncer como ponto de mutação: um manual para pessoas com câncer, seus familiares e profissionais de saúde.3. ed. Tradução: Denise Bolanho. São Paulo: Summus.. 1992. MCNAMEE, Sheila, GERGEN, Kenneth J. Além da Narrativa na Negociação do Sentido Terapêutico. In A Terapia como construção social.Porto Alegre: Artes Médicas. 1998 p. 202-222. MENDONÇA, Núbia Por que o câncer deve ser considerado como uma doença “própria” da infância. Jornal de Pediatria. Rio de Janeiro. vol.76 nº4 p. 261-262. 2000 57 MORAIS, Luciene Vaccaro e VALLE, Elizabeth Ranier Martins do. A terapia ocupacional e a criança hospitalizada. Pediatria Moderna. v.37 nº 5 Maio de 2001 NEUBERN, Maurício Silva. De Sentidos, Subjetividade e Teoria: uma relação possível? In _____. Complexidade e Psicologia clínica: desafios epistemológicos. Brasília: Plano. 2004. p. 50-63. PEDROSA, Cláudia Mara e VALLE, Elizabeth Ranier Martins. Ser irmão de criança com câncer: um estudo compreensivo. Pediatria, São Paulo v.22, nº2, p.185-194. 2000. RODRIGUES, Karla Emília e CAMARGO, Beatriz. Diagnóstico precoce do câncer infantil: responsabilidade de todos. Rev. Assoc. Med. Bras. v.49, nº.1, p.29-34, jan/mar 2003. SIOP Sociedade Internacional de Oncologia Pediátrica: orientações psicossociais em oncologia pediátrica. Tradução: Luciana Pagano Castilho Françoso e Elizabeth Ranier Martins do Valle. Brasil. 2000. SPINK, Mary Jane. Psicologia social e saúde: práticas, saberes e sentidos. Petrópolis: Vozes, 2003. TUBINO, Paulo e ALVES, Elaine Pediatria Cirúrgica: diagnóstico e tratamento. Brasília: UNB, 2003. VALLE, Elizabeth Ranier Martins. Câncer Infantil: compreender e agir. Campinas: Editorial Psy, 1997. _____ Vivência da família da criança com câncer. In Carvalho, Maria Margarida Moreira Jorge (org), Introdução à Psico-oncologia. Campinas: Editorial Psy II. p.219 – 242, 1994. VALLE, Elizabeth Ranier Morais; FRANÇOSO, Luciana Pagano Castilho. Quimioterapia em crianças. Clínica Pediátrica. v.16 nº4 p.40-52, 1992. 58 ANEXOS 59 ANEXO I – CARTA CONVITE CARTA CONVITE Prezada Participante, Gostaria de convidá-la para participar de um estudo conduzido como parte da monografia de conclusão do curso de Psicologia do UniCeub, pela estudante Giselle de Fátima Silva, orientada pelo Prof. Dr. Fernando Rey e pelo Psicólogo Alexandre Lima. Nesse estudo, estarei estudando os aspectos psicossociais da família quando uma criança adoece e com esta finalidade gravarei nossas conversas. Ao final desse trabalho todas as fitas serão desgravadas. Sua participação será totalmente voluntária. Caso aceite participar desse estudo, será pedido a você que fale sobre suas experiências, sobre família, medos, alegrias etc. Você não precisará dar informações que não queira e poderá interromper sua participação a qualquer momento. Sua experiência pessoal será de extrema importância para esse estudo. Com o material de nossas conversas e entrevistas publicarei meu trabalho de monografia, sendo que todas as informações que possam identificá-la serão omitidas. A partir desse trabalho terei meios para analisar e enfatizar a relevância do apoio psicológico e de toda equipe de saúde não somente à criança, mas a toda à sua família. Desde já agradeço sua valorosa atenção e colaboração. _______________________________________ Giselle de Fátima Silva Brasília, _____de __________ em 2005 60 ANEXO II – CONSENTIMENTO CONSENTIMENTO Brasília, ____ de ________________ em 2005. Compreendo o objetivo desse trabalho desenvolvido pela estudante de psicologia Giselle de Fátima Silva, bem como o que é esperado por mim como participante. Entendo que as informações por mim fornecidas serão totalmente confidenciais, e que as fitas utilizadas serão desgravadas ao final dessa pesquisa. Entendo também que a qualquer momento posso interromper a minha participação. Tendo em vista as declarações acima, concordo participar desse estudo. Nome.................................................................................... Assinatura............................................................................ Brasília, ____ de __________ em 2005 61 ANEXO III - ROTEIRO DE ENTREVISTA FASE DO DIAGNÓSTICO 1. Qual idade tinha Pedro quando descobriram a doença? Como foi essa descoberta? 2. Como foi o momento em que você souberam o diagnóstico? O que vocês pensaram e sentiram? 3. Quais as principais lembranças deste período? 4. Mudou alguma coisa na sua vida depois que Pedro adoeceu? E na vida familiar? 5. Você e os outros familiares mudaram a forma de tratar Pedro? FASE DO TRATAMENTO 6. O que você sentiu quando entrou pela primeira vez no Hospital para o início do tratamento? 7. Há quanto tempo ele está fazendo tratamento? Já fez alguma cirurgia? 8. O que você pensa sobre a Quimioterapia? 9. Como vocês se sente durante o tratamento dele? ORGANIZAÇÃO FAMILIAR 10. Quais as pessoas que cuidam do Pedro? De que maneira? 11. Como ficaram os cuidados da casa e dos outros filhos? 12. Como a família se organizou para cuidar dele enquanto ele estava internado? 13. Como ficou a rotina da família? Foi alterada de alguma forma? 14. O comportamento dos membros da família mudou? 15. Como as outras crianças da família (filhos, sobrinhos, primos etc) reagiram quando Pedro foi internado? 16. Como ficou o trabalho dos pais e das outras pessoas que moram aqui desde o início do tratamento dele? 17. A família recebeu algum tipo de ajuda? De quem? 18. Como a família pode ajudar nessa fase? 62 COMPREENSÃO DO CÂNCER 19. Por que você acha que sua criança adoeceu? 20. O que é câncer para você? 21. Como você se sente falando sobre essa experiência? 22. Quais as sugestões você daria aos pais que souberam do diagnóstico de câncer em seu filho? 23. Teve ou tem alguma experiência positiva durante essa fase da vida de Pedro? 63 ANEXO IV - COMPLEMENTO DE FRASES 1. Eu gosto de fazer amizades 2. O tempo mais feliz os meus 10 anos de idade 3. Gostaria de saber se meu filho vai vencer e crescer 4. Lamento as coisas que fiz antes de meu filho nascer 5. Meu maior medo a morte 6. Em casa me sinto protegida 7. As crianças de fora vejo saúde, e as mães desesperadas 8. Não posso me desesperar 9. Sofro com meu filho na quimioterapia 10. A vida é preciosa 11. Meu futuro só Deus! 12. Minha preocupação principal saúde do Pedro 13. Desejo ver todos nós felizes 14. Secretamente eu creio na cura 15. O maior problema da minha família a distância 16. O trabalho é a minha diversão 17. Amo minha vida 18. Eu prefiro a vida que eu tinha há 02 anos atrás 19. Acredito que minhas melhores atitudes será manter a calma e paciência 20. A felicidade conquisto a cada dia! 21. Ser mãe estou aprendendo... 22. Diariamente me esforço para aceitar as situações 23. Sinto dificuldade em ficar só! 24. Meus maiores desejos é constituir minha família 25. Tenho vontade de amar e ser amada 26. Hoje eu quero ser feliz 27. Minha família eu e meu filho 28. A doença é miserável 64 29. Com freqüência sinto solidão 30. Pedro se ainda existo é devido a ele 31. Minha vida futura será sem doenças 32. Farei o possível para conseguir o melhor para o meu filho 33. Com freqüência reflito na minha vida 34. Esperam que eu vença 35. Dedico a maior parte do meu tempo com meu filho 36. Sempre que posso saio com ele para passear 37. Me esforço para agir como se nada estivesse acontecendo 38. Ter filhos não mais! 39. Penso que os outros são mais felizes, pois seus filhos são saudáveis 40. Me incomodam as mães que por uma pequena doença reclamam! 41. Tenho ajuda moral da minha família 42. Os filhos não terei, pois só quero a um: Pedro 43. Quando tenho dúvidas pergunto aos médicos ou pessoas 44. No futuro espero que tudo seja diferente, “mais alegre” 45. O Hospital tratamento que auxilia Deus 46. Detesto inveja, egoísmo e falsidade 47. Meu maior medo castigo de Deus 48. Os psicólogos trabalham a nossa mente 49. Estou melhor por estar vendo o meu filho bem! 50. Me deprimo quando ele está muito mal e fraco 51. Meus amigos afastaram-se um pouco 52. Se eu pudesse ser “Deus” nunca deixaria as crianças sofrerem 53. Internação casualidade 54. Os médicos mãos que auxiliam a Deus 65 ANEXO V - DEGRAVAÇÃO Participante: Maria mãe do paciente Pedro Idade: 28 anos 1. Quando você ficou sabendo do diagnóstico? Do diagnóstico mesmo, ele tinha 3 anos... 2. Como foi quando o médico disse o diagnóstico? Foi um choque né, porque eu não esperava que isso poderia acontecer com ele... igual tinha nesse programa agora, que tá passando agora na Globo né.. Laços de Família. Na época que eu assisti, eu nem imaginava e sempre dizia assim: “Isso nunca vai acontecer com o meu filho, graças a Deus!”. Eu nem assistia direito, nem queria ver, eu não tava me importando... E quando eu descobri eu falei assim: “Meu Deus do céu!!!” pensei que a gente nunca pode dizer “Dessa água não beberei” porque isso pode acontecer com você depois. Eu fiquei abalada, triste, chorava, chorava e chorava, e quando andava na rua eu não conseguia ver o chão.... assim... eu esbarrava nas pessoas na rua, eu pisava assim e tropeçava... caía nos buracos... mas eu não via nada. Eu olhava assim pro tempo e não conseguia enxergar, só com aquilo no meu pensamento. 3. O que você pensava nessa hora? Eu pensava assim... que ele não ia agüentar, que ele não ia conseguir porque tantas crianças morrem com câncer, tantas pessoas morrem, porque o câncer é uma doença tão pesada como a AIDS né? Ai eu pensava assim: “Poxa, meu filho não vai conseguir?!”. Ai quando o médico explicou direitinho o tratamento e tudo e como que seria... 4. Foi aqui no HUB o diagnóstico? Foi, foi aqui que foi diagnosticado como câncer maligno. A doutora do HMIB ela tinha dito que poderia ser um tumor, mas quando eu liguei pra ela e disse que em menos de 15 dias o tumor tava crescendo mais ou menos uns 10 cm a mais do que 66 ela tinha visto, ela me encaminhou pra cá. Ai os médicos daqui me explicaram que se tratava de um câncer maligno mas que tinha tratamento. Mas até ali eu não tava confortada porque eu comecei a pensa, “Ah meu Deus, o que eu vou ter que enfrentar...” tem remédio, as doenças que poderiam vir, os efeitos também amidalite, estomatite, mucosite na boca, que ficou super ferida , e tem um monte de coisa que eu posso tá durante um ano enfrentando porque eles (os médicos) falaram que seria um ano de tratamento, esperando qualquer coisa pela frente. 5. E como você sente sabendo que vai ter que enfrentar a doença por um ano? Olha, é difícil a gente ficar aqui dentro de hospital. Porque assim... as normas... Eu to com trauma de ter outro filho.... to com trauma... mais de jeito nenhum! Não tenho coragem de ter outro filho ... não quero.... to com trauma... já não queria... depois dessa, aí é que eu não quero mais... eu já coloquei o DIU pra evitar mesmo eu não penso mesmo em ter outro filho, imaginando como é que seria essa situação. 6. Você acha que se tivesse outro filho aconteceria a mesma coisa? Acho que poderia ter ou não ter, mas se não tivesse, como é que eu poderia cuidar do meu filho porque eu sou só. Aí tipo assim, eu moro só com meu filho, e quem iria cuidar dele? Ia ser uma situação difícil, e eu não quero de jeito nenhum. 7. O que mudou na sua vida depois que ele adoeceu? Eu trabalhava... parei de trabalhar. Pedi licença... A minha família também mudou. O que aconteceu com a família foi uma aproximação, devido a doença houve mais uma aproximação... Mas meu pai é mais afastado, ele é separado da minha mãe... ele ficou sabendo da doença mas não se aproximou. 67 8. Como é que era a relação com a família antes do adoecimento? A família sempre foi afastada... eu comecei a morar sozinha desde os 22 anos. Eu saí de casa com 18 anos com a minha mãe. Ai quando eu tinha 22 anos ela voltou pra casa e eu continuei a morar sozinha. Ai nunca mais voltei... eu casei, separei.... 9. Mas quem aproximou? Minha mãe, minha tia, meus primos, minha avó. 10. Você e as pessoas de sua família mudaram a forma de tratar ele depois do diagnóstico? Já tratavam ele assim... com dengo... piorou mais... com muito mimo, demais. O que ele pede dá... por causa da doença né?! Fazem de tudo por ele, “o que você quer comer, o que você quer ganhar...”. Antes de adoecer não ligavam tanto pra ele, passava um mês... agora ligam pra saber como que ele ta... então teve mais uma aproximação.... 11. E o que você sentiu quando entrou pela primeira vez aqui no hospital para iniciar o tratamento? Eu pensei “Ai meu Deus, eu não acredito que vou ter que ficar aqui”, porque o médico disse que ele teria que fazer um exame, estudo né... pra poder descobrir realmente que tipo de tumor era. Ai eu ficava pensando que ia ter que ficar dentro do hospital direto... Mas ai eu pensei: “Bem, se for preciso para a saúde do meu filho, eu tenho que aceitar essa situação...” porque eu nunca fiquei tanto tempo dentro de um hospital... Eu tenho que aceitar essa situação e que Deus me dê força. Ultimamente Deus tem me dado força porque eu não gostava de ficar em lugar fechado. Porque eu também tinha um namorado, e como ficaria minha situação? 12. Já tem quanto tempo que ele ta fazendo tratamento? Quatro meses. Ele já fez cirurgia ou tem previsão? Não, o médico me explicou que não seria necessário e começaríamos com a quimioterapia. Com a quimioterapia diminuiu 90%... 95%, quase totalmente agora né... A partir da primeira (do primeiro ciclo de 68 QT) diminuiu 90%, e depois sumiria, e a partir de agora ele ta naquela fase de manutenção como se estivesse enfraquecendo o câncer né, pra não voltar... 13. Como você se sente quando ele está fazendo quimioterapia? Ai... eu penso assim... “Ai meu Deus, vai começar de novo, sofrimento de novo” porque ele sofre muito... igual agora ele disse: “Mamãe, eu to tonto.” Ai ele sente tonteira, vontade de vomitar... Aí agora eu fico com medo dele vomitar, dele não comer direito... porque quando tem quimioterapia ele emagrece mesmo.... e o medo de voltar um outro problema... aquelas feridas na boca e ele ficar mais 10 dias sem comer. 14. O que você pensa sobre Quimioterapia? Um tratamento muito pesado. Um tratamento... eu acho assim, é violento pro corpo de uma criança, porque... da forma como ela age... Nossa, eu acho ela muito forte, muito forte, só sabe quem ta perto pra observar, porque a criança muda totalmente. Ele fica nervoso, agitado, ele briga comigo, luta, chuta sabe... é uma coisa horrível. Então a gente tem que ter aquela paciência , é uma coisa assim que eu tenho que ir adquirindo com o tempo, porque a gente nunca tá preparada pra isso, mas a gente tem que tá tipo moldando... porque aquela situação ali vai acontecer com mais freqüência então você tem que ta procurando ter aquela paciência senão a tendência é piorar. 15. E da onde você tira forças para ter essa paciência? Eu penso que é só aquele período que ele ta tendo, seis dias de quimioterapia e que naquele período tem que ter paciência, falar manso com ele né... e que depois daqueles seis dias vai passar e que eu vou poder voltar ao normal (risos). Tem que ter paciência com ele nesse período... Quando a gente ta em casa.... o que eu não relevava hoje eu relevo 40... 50 % Primeiro porque ele ta sofrendo com essa doença fica mais nervoso e agitado por causa dessa doença... então é isso, tem que ter paciência. 69 16. Eu me lembro que no dia que a K. (07 anos) faleceu você estava muito nervosa... O que você sente quando você vê outras crianças fazendo tratamento para a mesma doença? Eu tava arrasada... Quando a menina da Carmem faleceu, é como se o meu filho tivesse morrido... Assim, porque eu vi o meu filho no lugar da K.... eu me senti no lugar da Carmem. Porque a gente nunca ta preparada para a morte... a gente fala assim: “ah, eu não to preocupada não”... e quando a gente vê aquela criança prostrada na cama, sem se mexer, a gente nunca imagina... a gente vê ela sofrendo aos poucos né.. mas a gente nunca pensa que ela vai morrer da forma como ela (K.) morreu. Então quando eu vi eu fiquei super chateada, super assim... triste porque... eu pensava “Ai meu Deus do Céu, será que meu filho vai passar pela mesma situação? Será que ele vai conseguir?” Porque essa menina fez um tratamento de sete anos... no dia antes dela morrer a mãe dela tava assim... parece que ela sentia... e eu também sentia entendeu... então eu fico pensando, “Meu Deus do céu, meu filho vai conseguir, vai vencer essa doença, porque a mãe dela lutou durante sete anos né.. o câncer da filha dela... e ela foi derrotada, perdeu a batalha. Mas você sabe que o caso da K. era diferente, ela teve câncer no rim... 17. Quem te ajudou no tratamento dele? Eu... (risos).. eu moro só né... lá em casa eu trabalho... quando eu não sabia do problema dele eu trabalhava e tinha uma vizinha que cuidava dele, eu pagava ela e ela olhava ele pra mim, e era assim todo dia... eu trabalhava e não dependia de ninguém. Hoje não porque eu to sem trabalhar, eu vivo mais pra ele do que pra mim... 18. E como é que você ta fazendo para se sustentar? Eu tô recebendo normalmente né... eu trabalhava numa escola e eu entrei com atestado e pedi licença durante um ano... e eu vou me sustentando... 70 19. E como você sente sem o trabalho? Eu sinto falta porque a minha vida era mais tranqüila, sem preocupação, eu ia trabalhar, era só meio período, só trabalhava cinco horas né... eu ia trabalhar e voltava pra casa... pra mim era mais como uma diversão... porque lá eu trabalhava na secretaria da escola, então trabalhava diretamente com o publico e me distraía, conversava, fazia amizades e o tempo passava muito rápido ... aí eu voltava para casa, tava tudo bem, tava tudo ótimo, dormia, amanhecia, arrumava a casa, lavava a roupa, minha vida era normal, tranqüila, fazia o almoço. Na época ele tava na escolinha e teve que deixar por causa do tratamento. Hoje não, hoje a minha vida ta assim: hospital e olhe lá dentro de casa, por que eu fico mais aqui dentro do hospital do que dentro de casa... eu fico no máximo uma semana em casa, não passa de sete dias... ultimamente ta sendo assim... a não ser que venha melhorar e ficar uns vinte dias em casa que nem o médico disse. 20. Como que é dormir no hospital? Olha, é uma coisa assim... muito desconfortável... ninguém gosta de ficar num hospital, eu não me sinto a vontade dentro de um hospital... a gente se sente assim... tipo controlada entendeu? Tipo como se fosse um controle do filho, porque a gente ta ali submetida ao filho e não por causa dele.. você ta ali submissa a ele.. e ele ta submisso aos médicos e aos enfermeiros... mas fora isso tem as pessoas que a gente me distrai, porque eu gosto de fazer amizade e isso ajuda muito aqui dentro do hospital... adoro fazer amizade. 21. E como que é o clima aqui dentro do hospital, assim, médicos, enfermeiros, psicólogos... como é que você sente com eles? Ah, eu me sinto assim... com eles eu me sinto a vontade porque o que eles passam pra gente é não deixar a gente ficar preocupada... os médicos estão sempre conversando com a gente... a gente faz uma pergunta e eles vêm pra conversar... tem coisas que animam a gente né... tem os palhaços alegres, tem as psicólogas, as pedagogas também que fazem as tarefinhas, os desenhos, as pinturas, recortes.. então eu acho assim, que isso ajuda bastante a criança, e não só a criança, mas a 71 mãe também, porque deixa a gente assim... é como se tirasse a gente um pouco do quarto que a gente está, tirasse a gente do mundo que a gente se encontra. 22. Tem crianças na sua família? Como elas ficaram quando o Pedro precisou internar? Teve as minhas sobrinhas né... elas moram perto lá de casa... elas tinham 06 anos e a outra tinha 11 anos.. foi um choque pra elas... elas choraram, ficaram tristes né... acho que elas pensaram né ... elas ficaram sabendo que o Pedro tinha uma doença muito grave né... e elas começaram a chorar e a ficar desesperadas.. ai a mãe delas conversou sobre o tratamento né... ai quando viram que ele voltou pra casa ai elas devem ter pensado “Não deve ser tão grave assim”... 23. E como foi quando caiu o cabelo? (Pausa) Ai... quando caiu o cabelo ate eu me assustei... as pessoas dizem assim: “Vai cair o cabelo” é simples... mas quando você vê, quando você pega no cabelo, o cabelo soltando assim... como se fosse uma espuma é uma coisa muito estranha... ai eu comecei tirar como se fosse uma espuminha... aí meu coração acelerou, me deu vontade de chorar... eu fiquei assim... aí com essa situação do cabelo dele cair: “O quê que as pessoas iriam comentar?” *Pedro interrompe e diz: “Ai as pessoas me chamava de careca”. Ninguém ficou com medo de chamar ele de careca. Porque quando alguém vê uma pessoa com cabelo, normal, andando e brincando pra lá e pra cá, ninguém chega e pergunta não... Mas quando o cabelo caiu, várias pessoas chegaram lá em casa pra perguntar.. ai eu chegava e respondia... falei toda a verdade, porque as pessoas ficam curiosas, preocupadas... 24. E como foi a reação deles? Ah... muitos deles ficaram espantados... nunca ninguém imaginaria que isso poderia acontecer com o PEDRO Mas você não contou o diagnóstico pra eles? Não, algumas pessoas ficaram sabendo ne... e só descobriram quando o cabelo dele caiu algumas dessas pessoas eu não tinha contato com eles.. quando eles viram ele careca e assim se aproximou a mim e perguntava “Nossa, fiquei sabendo 72 que o seu filho tá fazendo tratamento de quimioterapia... nossa, até o cabelinho dele caiu” ai eu expliquei toda a situação, ai elas dão aquelas palavras de conforto ne... ai a gente bola pra frente de novo, e assim vai... 25. Você achou ruim ter que explicar para as pessoas? Vai chegando uma hora que vai incomodando... quando eu cheguei aqui tinha umas mães que não tinha paciência pra falar das meninas delas... a Carmem é um exemplo. Eu perguntava e ela ficava com a cara fechada, mudava de assunto e saia de perto. E eu não conhecia ela e eu não entendia... ai eu pensava que ela era muito mal humorada, que ela era chata... Mas não. Hoje eu entendo a situação, porque eu to passando pela mesma coisa que a Carmem tava passando. Hoje vem pessoas me perguntar lá embaixo... muitas pessoas ficam apontando só porque ele tá carequinha sabe... “Olha lá, olha lá...” as vezes vêm na minha direção, pergunta e a gente fica conversando meia hora para explicar... Hoje eu já não tenho aquela paciência que eu tinha antes pra explicar... é como se fosse um afronta pra mim, como se eu fosse invadida ta entendendo? A gente vai cansando... Porque tipo assim, algumas assim e dizem “Como é que ele ta?” e a gente tem aquela resposta automática “Tá bem!” pra evitar de entrar em detalhes... mas a gente vê que a pessoa quer chegar, quer perguntar ... algumas pessoas vêm e pergunta “O que é que ele tem?” e eu só falo “ele faz quimioterapia”, já pra evitar... 26. E como é a reação das pessoas quando elas realmente sabem do diagnóstico? Nossa, eles ficam assim: “Nossa, coitadinho! Tadinho dele! Como é que pode isso acontecer com criança...” Elas ficam assustadas, como se fosse uma AIDS... uma doença que não tem cura. Ai já teve ate uma senhora que disse “Ah, mina filha, ele não vai escapar”. Ai eu fiquei calada e depois dei a resposta pra ela... porque ela teve um filho que teve câncer, e ela acha que da mesma forma que o filho dela morreu, o meu vai morrer também. Ela acha que todo o câncer é igual, sendo que o câncer não é igual, cada câncer é diferente. 73 27. Por que você acha que ele adoeceu? Ai... vem tanta coisa na minha cabeça... antes dele nascer eu tentei tirar ne... as vezes eu acho que pode ter acontecido de ter... não sei... de ter dado algum probleminha nas células dele... ter ficado diferente... Eu penso também que pode ter sido porque eu coloquei ele na creche, durante dois anos na creche direto... eu trabalhava... ele ia pra creche durante o dia e eu ficava em casa... sendo que eu poderia ficar com ele... só que eu queria que ele fizesse alguma coisa. Ele não poderia ir pra creche só a tarde? Eu coloquei ele pra ficar o dia todo. Eu poderia ter colocado ele só em meio período... então eu tenho essa culpa na cabeça, eu acho que poderia ter colocado só em meio período não em dois. E quando ele chegava eu dava pra menina que olhava ele e corria pra escola. Era uma troca no portão. Eu só via ele durante vinte minutos todos os dias, durante dois anos. Então ele chorava, e pedia, “Mamãe, mamãe...” gritava, não queria que eu fosse trabalhar... é como se eu tivesse largado, abandonado ele.. mas assim, era só por causa de questão do trabalho, mas assim, eu nunca sai final de semana pra deixar ele em casa ou deixar ele com alguém. Eu nunca sai assim, pra festa... a minha vida sempre foi assim, pra ele. Porque eu era sozinha, como é que toda vez eu iria ficar pagando alguém pra ficar olhando ele? Era a minha consciência que ia pesar também... eu ficava pensando que poderiam bater dele, não cuidar bem dele... são essas situações. Outra situação também é que ele sempre foi muito doentinho. Já nasceu doentinho. Quando ele nasceu, com 9 meses ele deu infecção intestinal, teve também um problema no ouvido, e ficou 1 ano e uns 9 meses, quase 2 anos com o ouvido purgando... ai eu ficava procurando otorrino, fazia drenagem no ouvido e saia muito pus... minha vida sempre foi hospital e nada resolvia, até que graças a Deus que uma vizinha pingou um “óleo de pau” e curou ele. Porque senão eu tinha que ficar numa lista de espera pra conseguir otorrino ou ir pra emergência, e ele só ficava tomando amoxilina, nassin e outros antibióticos... ai ela colocou uma gota desse óleo de pau em cada ouvido a cada dois dias e ele melhorou, nunca mais.. então você vê, uma coisa simples curou ele. Então eu penso que pode ser essas coisas: o abandono, essa coisa que eu fiz de querer tirar, e essas doenças 74 que vieram.. eu acho que pode ser uma dessas três coisas, mas não sei te dizer qual... eu sinto isso. 28. O que é câncer pra você? Como você define essa doença? Câncer... câncer... eu acho que é uma doença muito triste. Porque ela vai definhando a criança aos poucos, a pessoa... ela vai acabando com a pessoa aos poucos, vai destruindo aos poucos até a morte. É como se não tivesse bom pra ela... é como se para o câncer nada tivesse bom e ele quisesse tomar conta de todos os órgãos até a morte. Ela pára os rins, pára o pulmão, pára várias partes do corpo até a criança não ter mais força... então eu acho assim, uma doença muito triste... (pausa) Mas eu também acho que é uma doença curável também ... porque... as vezes, sabia, é bom ver crianças aqui que curaram, porque a gente tem mais força, mais esperança... porque as vezes aparece criança aqui que já foi pra UTI, que foi pro quarto de isolação, que já passou por várias situações difíceis e você vê a mãe relatando ai eu pensei: “Poxa, então tem cura!” O menino cresceu, ta cabeludinho, gordinho, saudável, só vem aqui só pra fazer exame de rotina, pra ver se ta tudo bem, se não ta voltando... então eu acho que tinha que ter isso... acho que os hospitais tinham que colocar fotos de crianças que começaram o tratamento, durante e depois... porque se tivesse isso aqui eu seria uma das voluntárias, colocaria a foto dele, se no caso meu filho conseguir a cura, porque eu acredito que ele vai ter a foto dele lá... eu acho que ele vai conseguir... uma foto lá, cabeludinho e sem quimioterapia. Então quando as pessoas falam assim: “Queria fazer uma entrevista, só que eu não vou colocar o seu nome... igual tirou as fotos dele na odontologia voluntária pra mostrar a situação da boca.. ai eu falo que não tem problema colocar a foto dele, não tem problema nenhum”. 29. Qual sugestão você daria para uma mãe e para um pai que soubesse agora do diagnóstico do filho? (Pausa) Eu acho que a sugestão que eu daria, é que eles tivessem paciência... e que aguardasse o tratamento, que ela acompanhasse direitinho, e que ela tivesse certeza que o filho dela poderia curar. Porque quando eu cheguei aqui eu estava 75 sem esperança... com o tempo que a gente vai adquirindo, que a gente vai vendo a evolução. 30. Por que você não tinha esperança? Porque a palavra câncer... todo mundo que eu conheço vem me fala: “Ah, meu pai morreu de câncer, minha tia, meu primo...” entendeu? Quando eu falo que meu filho tem câncer a pessoa fala assim: “Meu tio morreu de câncer”. Ai outra pessoa vem e fala: “A minha mãe, a minha tia morreu de câncer...” só vem assim... Ninguém fala de cura... Logo quando eu cheguei e que algumas mães tinham filhos internados e fazendo tratamento de câncer, pegavam e falavam: “Nossa, aqui teve tal criança que morreu, teve outra, outra...” foi relatando e me contando nos dedos as crianças que morreram mas não falaram pra mim das crianças que salvaram. Então deixa a gente deprimida sabe... deixa a gente assim... sem esperança na hora... mas a gente tem que acreditar na palavra do médico, com a evolução e com o acompanhamento do tratamento você vai vendo, vai observando como vai o andamento e vai aceitando mais a situação... hoje eu aceito. Antes não aceitava, me revoltava: “Por que isso ta acontecendo comigo?” O meu filho já nasceu dentro do hospital, e eu vinha acompanhando meu filho até essa idade dentro do hospital e agora vem um câncer?! Pra me deixar mais tempo dentro do hospital? Então isso me revoltou... então o que acontece... você se apega mais a Deus... a melhor coisa mesmo pra te ajudar só Deus ... pra te dar força... 31. Como é que foi esse apego a Deus? Eu era evangélica, ai eu sai da Igreja... ai veio essa situação dele e eu voltei para a Igreja... por causa dele. Tem um culto evangélico aqui no hospital e eu vou, levo ele... e eu tinha me afastado de Deus. E eu comecei a fazer um tanto de coisa errada... comecei a fumar depois que deixei a Igreja... eu to tentando parar de fumar... não dá pro meu filho ter câncer e eu ter depois... Mas aqui no hospital não tem o que fazer... é como se fosse assim um “passatempo”... eu to ali.. e o tempo vai passando... e passa rápido. 76 32. Como é que você se sente falando sobre as suas experiências? Eu acho assim... que toda essa experiência que eu to tendo é como se fosse um amadurecimento pra mim para o futuro... porque eu assim... eu nunca me achei com cara de mãe sabe... com jeito de mãe.. eu me acho assim... muito nova pra ser assim... mãe... isso tudo ta me amadurecendo muito, como cuidar dele, como fazer a alimentação dele.... Coisas que na verdade... antes eu não fazia jantar, não fazia almoço... pegava e comprava lanche... Fazia compra só de besteiras: comprava biscoitos, danone, fazia sanduíche, misto quente... eu não comia nem ele. A gente vivia de guaraná, suco... então depois disso eu comecei a fazer uma alimentação certa, então hoje ta servindo pra mim passar a cuidar dele melhor, pra observar ele melhor... Hoje eu me sinto mais responsável... não que eu não fosse responsável... mas uma responsabilidade que eu não tinha... na questão de cuidar dele melhor... 33. Você acha que teve algum lado positivo com o adoecimento dele? Acho. Na questão dele está mais próximo da Igreja... antes eu não fazia questão ne... hoje eu levo ele pra igreja... não assim, aquela coisa certinha de estar dentro da Igreja.. mas eu levo ele... assim, eu acho que melhorou mais nessa questão: no meu amadurecimento e como encarar a vida... Porque essa fase está sendo tão difícil na minha vida que eu acho que o que vier pela frente eu vou tirar de fichinha... 77 ANEXO VI - CARTAZ SOBRE CÂNCER INFANTO-JUVENIL