FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE – FACS
CURSO – PSICOLOGIA
SER MÃE DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER:
UM ESTUDO COMPREENSIVO
GISELLE DE FÁTIMA SILVA
Brasília
Junho/ 2005
GISELLE DE FÁTIMA SILVA
SER MÃE DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER:
UM ESTUDO COMPREENSIVO
Monografia apresentada como requisito
para conclusão do curso de Psicologia do
UniCEUB
–
Centro
Universitário
de
Brasília sob a orientação do Professor Dr.
Fernando Luis González Rey
Brasília
Junho/ 2005
Dedico meu trabalho às crianças que nesse
momento estão nos hospitais enfrentando o
câncer. Que essa monografia seja o primeiro
passo para muitas produções cientificas que
possam
auxiliar
equipes
de
saúde,
acompanhantes e aos pequenos pacientes no
enfrentamento dessa fase tão difícil da vida, que é
o adoecimento. Em especial, dedico esse trabalho
à K., que mesmo estando do outro lado da vida,
me motivou ainda mais para aderir às Campanhas
de Combate ao Câncer Infantil.
ii
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeço a Deus pela vocação para enveredar pela bela e rica
Psicologia.
Aos meus queridos pais Ronaldo e Marli, que sempre acompanharam meu
desenvolvimento intelectual e pessoal.
À querida tia-amiga Sandra Ventura, que motivou meu ingresso no curso de psicologia,
e que sempre esteve disposta para me ouvir e compartilhar novas descobertas.
À amiga e companheira de estudos Sandra Leão, que foi uma das principais
responsáveis pelo meu entusiasmo na área da Psico-Oncologia.
Aos amigos de profissão Mauricio Neubern e Alexandre Lima, que apoiaram meu
estágio em psico-oncologia pediátrica.
Ao amigo Zandhor Pradi, pela prestimosa colaboração referente ao material
bibliográfico estudado para a realização dessa monografia.
E um agradecimento especial ao querido mestre Fernando Rey, pela atenciosidade,
apoio, amizade, e pelo incentivo à minha liberdade de pensamento. Estudar com esse
grande pesquisador foi um marco importante na minha carreira profissional.
iii
“Quando acabamos de fazer tudo o que viemos
fazer aqui na Terra, podemos sair de nosso
corpo, que aprisiona nossa alma como um
casulo aprisiona a futura borboleta. E, na hora
certa, podemos deixá-lo para trás, e não
sentimos mais dor, nem medo, nem
preocupações – estamos livres como uma linda
borboleta voltando para casa, para Deus...”
De uma carta a uma criança com câncer
(KÜBLER-ROSS, 1998).
iv
RESUMO
Desde tempos remotos o câncer é conhecido pela humanidade e seu significado tem,
na maioria das vezes, uma conotação pessimista, sendo o diagnóstico considerado
como sentença de morte. Com a proposta de amenizar os sofrimentos emocionais e
psicológicos advindos da doença e dos tratamentos, surge então a psico-oncologia, que
é uma interface da psicologia e da oncologia. No Brasil, o câncer já é a terceira causa
de morte por doença na faixa etária de 01 a 14 anos, no município e no estado de São
Paulo é a primeira causa de óbito entre 05 e 14 anos de idade. Quando uma criança é
acometida por tal enfermidade, ocorrem diversas alterações: a criança muitas vezes
interrompe os estudos; sofre com os efeitos colaterais do tratamento; o funcionamento
familiar modifica-se para acompanhar o paciente nos tratamentos; e a percepção de
cada pessoa sobre vários aspectos da vida pode, também, se alterar. Nesse contexto, a
epistemologia qualitativa abre as portas para compreender como essas pessoas
enfrentam o adoecimento, os efeitos do tratamento e outros desdobramentos que a
priori não prevemos. Para realizar esse trabalho, nos apoiamos na teoria da
subjetividade, na epistemologia qualitativa e no conceito de sentido subjetivo
desenvolvidos por González Rey. A produção de informação foi feita a partir da
experiência de uma mãe solteira de 28 anos, que acompanha o tratamento de seu filho
de 04 anos de idade, portador de câncer infantil. O objetivo de nosso trabalho não foi
alcançar resultados absolutos e universais sobre a vivência da mãe durante o
adoecimento do filho. Pretendemos abrir novas zonas de inteligibilidade acerca desse
fenômeno e refletirmos sobre a complexidade do sentido subjetivo. Além disso,
propomos novas alternativas para o trabalho junto aos acompanhantes, visando sua
saúde psicológica durante o tratamento de suas crianças.
v
ABSTRACT
Since remote times, cancer is known by humanity and most of the times its meaning has
a pessimistic connotation, being the diagnosis considered a death sentence. With the
proposal of softening the emotional and psychological suffering caused by the disease
and the treatment, comes the psycho-oncology, which is an interface between
psychology and oncology. In Brazil cancer is already the third cause of death by a
disease among people ranging from 01 to 14 years old, and in the city and the state of
São Paulo it is the first cause of death among 05 to 14 year-old people. When a child is
diagnosed with such illness, many alterations occur: most of the times the child has to
interrupt his/her studies; suffers with the collateral effects of the treatment; the family
dynamics are modified to accompany the patient in the treatment; and the perception of
each person about many aspects of life can also be changed. In this context, the
qualitative epistemology opens the doors to understanding how these people face the
sickness, the effects of the treatment and other things that happen that a priori we don’t
foresee. To accomplish this job, we are based in the subjective theory, in qualitative
epistemology and in the concept of subjective sense developed by González Rey. The
production of information was made by the experience of a 28 year-old single mother
who follows the treatment of her 4 year-old son that has child cancer. The objective of
our work was not to achieve any absolute and universal results on the mother’s life
experience during her son’s sickness. We intend to open new intelligibility zones for this
phenomenon and to reflect about the complexity of the subjective sense. In addition, we
propose new alternatives to the work with the companions, aiming at his/her
psychological health during the children’s treatment.
vi
Centro Universitário de Brasília
Faculdade de Ciências da Saúde: FACS
Curso: Psicologia
Período: 1º/2005
Estudante: Giselle De Fátima Silva RA:2005945/6
Orientador: Fernando Luis González Rey
“Ser mãe de uma criança com cânce r: um estudo compreensivo”
Resumo
Desde tempos remotos o câncer é conhecido pela humanidade e seu significado tem,
na maioria das vezes, uma conotação pessimista, sendo o diagnóstico considerado
como sentença de morte. Com a proposta de amenizar os sofrimentos emocionais e
psicológicos advindos da doença e dos tratamentos, surge então a psico-oncologia, que
é uma interface da psicologia e da oncologia. No Brasil, o câncer já é a terceira causa
de morte por doença na faixa etária de 01 a 14 anos, no município e no estado de São
Paulo é a primeira causa de óbito entre 05 e 14 anos de idade. Quando uma criança é
acometida por tal enfermidade, ocorrem diversas alterações: a criança muitas vezes
interrompe os estudos; sofre com os efeitos colaterais do tratamento; o funcionamento
familiar modifica-se para acompanhar o paciente nos tratamentos; e a percepção de
cada pessoa sobre vários aspectos da vida pode, também, se alterar. Nesse contexto, a
epistemologia qualitativa abre as portas para compreender como essas pessoas
enfrentam o adoecimento, os efeitos do tratamento e outros desdobramentos que a
priori não prevemos. Para realizar esse trabalho, nos apoiamos na teoria da
subjetividade, na epistemologia qualitativa e no conceito de sentido subjetivo
desenvolvidos por González Rey. A produção de informação foi feita a partir da
experiência de uma mãe solteira de 28 anos, que acompanha o tratamento de seu filho
de 04 anos de idade, portador de câncer infantil. O objetivo de nosso trabalho não foi
alcançar resultados absolutos e universais sobre a vivência da mãe durante o
adoecimento do filho. Pretendemos abrir novas zonas de inteligibilidade acerca desse
fenômeno e refletirmos sobre a complexidade do sentido subjetivo. Além disso,
propomos novas alternativas para o trabalho junto aos acompanhantes, visando sua
saúde psicológica durante o tratamento de suas crianças.
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO ......................................................................................... 8
CAPÍTULO 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................................. 10
2. 1. BREVE HISTÓRICO SOBRE O CÂNCER .....................................................................10
2.2. CÂNCER E PSICO-ONCOLOGIA ...................................................................................12
2.3. CÂNCER INFANTIL ........................................................................................................14
2.4. A FAMÍLIA DA CRIANÇA................................................................................................19
2.5. SUBJETIVIDADE ............................................................................................................24
2.6. SUBJETIVIDADE, SAÚDE E DOENÇA: UMA NOVA COMPREENSÃO.........................27
CAPÍTULO 3. METODOLOGIA .................................................................................... 30
3.1. EPISTEMOLOGIA QUALITATIVA...................................................................................31
3.2. SUJEITO PARTICIPANTE ..............................................................................................33
3.3. INSTRUMENTOS ...........................................................................................................35
CAPÍTULO 4. PRODUÇÃO DE INFORMAÇÃO ........................................................... 37
4.1. IMPACTO DO DIAGNÓSTICO........................................................................................38
4.2. SIGNIFICADO DO CÂNCER INFANTIL ..........................................................................40
4.3. TRATAMENTO DA CRIANÇA E EFEITOS COLATERAIS ..............................................42
4.4. SER MÃE DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER ...............................................................45
4.5. SER MULHER E PROFISSIONAL ..................................................................................49
4.6. A DOENÇA E O “APEGO A DEUS” ................................................................................50
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 55
ANEXOS........................................................................................................................ 58
8
CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO
A vida tem infinitas possibilidades: nascemos, vivemos, e morremos. E durante a
vida também podemos ser confrontados com um ente familiar que é acometido por uma
doença grave como o câncer.
Culturalmente o câncer não é encarado como uma doença qualquer, tanto que
os meios de comunicação ao se referirem às desordens extremas utilizam a metáfora
“câncer social”. Em nossos estudos, verificamos que se trata de uma doença conhecida
desde tempos remotos da humanidade e, atualmente, vemos uma representação
intrinsecamente relacionada à morte.
O impacto que a doença terá sobre a pessoa enferma e em seu contexto social
será particular e diferenciado, a depender dentre outras coisas, do momento, das
crenças, valores e estrutura familiar.
Nesse trabalho, realizarei uma pesquisa qualitativa para aprofundar meus
conhecimentos sobre a influência das representações sócio-históricas sobre o câncer e
seu impacto na vida da mãe de uma criança portadora de câncer infantil.
No segundo capítulo temos a fundamentação teórica que foi subdividida em seis
tópicos. O primeiro item apresenta um breve histórico sobre o câncer, desde a sua
descoberta e os estigmas e tabus sociais que envolveram a doença desde a
antigüidade. O segundo item refere-se à nova área de conhecimento, a psico-oncologia
como fonte de saber, intervenção e combate ao câncer. O terceiro tópico discorre sobre
o câncer infantil em diversas perspectivas, desde o diagnóstico, percepção da doença
pela criança, a hospitalização e sobre a quimioterapia, principal tratamento para o
9
câncer infantil. No quarto item falamos sobre a família da criança durante o processo do
adoecimento bem como as alterações ocorridas nesse sistema. Em seguida falamos
sobre a subjetividade e os principais conceitos sobre essa proposta epistemológica e
ontológica desenvolvida por González Rey. No último item da fundamentação teórica,
entrelaço as propostas teóricas da subjetividade na compreensão de fenômenos
complexos como a saúde e a doença.
O terceiro capítulo corresponde ao referencial epistemológico e metodológico
utilizado, a Epistemologia Qualitativa, a participante de nosso trabalho e os
instrumentos de pesquisa. Em seguida é apresentado o processo de produção de
informação, a partir de quatro eixos temáticos, a saber: impacto do diagnóstico,
significado do câncer infantil, tratamento da criança e efeitos colaterais e ser mãe de
uma criança com câncer. Contudo, dois núcleos temáticos foram incorporados na
produção de informações, devido à riqueza das informações da participante: ser mulher
e profissional e a doença e o apego a Deus.
Finalmente, o último capítulo apresenta as últimas considerações desta
pesquisa. Ressaltamos que esse trabalho não pretende esgotar o tema nem apresentar
conclusões universais e absolutas. Pretende mostrar algumas dimensões da vida de
uma mãe que acompanha seu filho durante a difícil trajetória de combate do câncer
infantil a partir dos eixos temáticos. Além disso, esse trabalho visa também a
possibilidade de motivar novas áreas de pesquisa que focalizem as vivências dos
acompanhantes das crianças com câncer, produzindo novas formas de conhecimento,
bem como sugerindo novas formas de intervenção e de auxílio direto a essas pessoas.
10
CAPÍTULO 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2. 1. BREVE HISTÓRICO SOBRE O CÂNCER
Desde a antigüidade há relatos sobre o câncer e seu tratamento. Documentos da
literatura hindu, persa, e papiros de Elbers (1500 a.C) relatam terapêuticas e
conhecimentos rudimentares sobre a doença. Na Grécia Antiga, Hipócrates (460 - 375
a.C) descreveu diferentes tipos de câncer: pele, mama, útero e órgãos internos
(KOWALSKI E SOUSA, 2002).
O termo câncer (do grego karkinos = caranguejo) foi usado por Hipócrates para
denominar qualquer proliferação ou tumoração crônica. Segundo Galeno, o nome da
doença é devido à semelhança das pernas do caranguejo com as veias intumescidas
ao redor de um tumor externo.
Nos séculos XII à XV houve um estacionamento das pesquisas médicas devido
às restrições da Igreja para realização de autópsias. Além disso, muitas literaturas
foram proibidas ou supervisionadas pelos monges católicos. Em 1740 em Rheims,
França, foi criado o primeiro hospital especializado para o tratamento oncológico. No
entanto, o objetivo foi criar um espaço nos fundos de uma Igreja para isolar os
pacientes, uma vez que a compreensão na época era que o câncer fosse contagioso
(KOWALSKI E SOUSA, 2002). Houve um avanço considerável na historiografia da
doença no séc. XVII a partir das descobertas da circulação sangüínea, quando os
cientistas não encontraram indícios da bile negra1.
1
Galeno (131 – 203) consolidou a teoria humoral que constituiu a tese dominante durante um milênio,
atribuindo ao excesso de bile negra a origem do câncer.
11
Foi a partir das publicações de Wilhelm Waledyer-Hartz (1836 - 1921) que o
moderno conceito sobre o câncer foi estabelecido. Segundo ele, o câncer surge de
células normais que sofrem modificações, crescendo desordenadamente por via
sanguínea, linfática ou fluidos intersticiais. Ele ainda considerava a cura possível, desde
que o diagnóstico fosse feito no início da doença.
No século XX a comunidade médica tornou-se mais esperançosa no tratamento
do câncer. Até então o diagnóstico da doença era tido como sentença de morte, além
dos estigmas que interpretavam o câncer como produto de pecados, punição divina,
negativismo ou “sujeira” física e moral. Infelizmente observamos nos dias atuais
resquícios dessas representações pessimistas com relação ao câncer, o que pode
acarretar diversos conflitos nos pacientes e entre aqueles que têm contato direto ou
indireto com pessoas nessas condições.
Em nossas experiências, verificamos que o diagnóstico de câncer é tido pelos
familiares como “diagnóstico de morte”, o que nos leva a crer que todas essas
representações e mitos sobre o câncer permanecem enraizadas no meio social e nas
mentes das pessoas. A tentativa de modificar essas representações é um desafio para
todos os envolvidos com essa doença: pacientes, rede social e profissionais da saúde.
Porém, é fato que o câncer representa uma realidade de doença crônica e debilitante,
com tratamentos agressivos e resultados incertos, o que, inegavelmente, incita reações
negativas e pessimistas.
12
2.2. CÂNCER E PSICO-ONCOLOGIA
Atualmente diversos cientistas compreendem o processo do adoecimento de
forma sistêmica e complexa (GONZÁLEZ REY, 2004a; LESHAN, 1992; CAPRA, 1982;
CARVALHO, 2002 e outros). Nessa perspectiva, inúmeros pesquisadores atêm-se a
estudos sobre a influência de diferentes fatores que alteram o sistema imunológico, e
sobre a relação entre estados psicológicos envolvidos nos processos de manifestação
de neoplasias (LESHAN, 1992; SIMONTON et. al., 1987 apud CARVALHO, 2002).
Podemos afirmar que a Psico-Oncologia foi impulsionada por essa nova forma
de compreensão do adoecimento, uma vez que a comunidade científica reconhecia que
o aparecimento, manutenção e remissão do câncer são intermediados por uma série de
fatores que extrapolavam os limites do modelo biomédico2.
Bayés (apud GIMENES, 1994) considera alguns fatores que determinaram o
surgimento da Psico-Oncologia: a etiologia e desenvolvimento do câncer estão
associados a fatores psicológicos, comportamentais e sociais; a importância da adesão
do paciente aos tratamentos prescritos; o fato da adesão aos tratamentos de combate
ao câncer estão associadas a fatores de natureza psicossociais, implica a necessidade
de desenvolver estratégias que assegurem a participação do paciente no tratamento; o
reconhecimento da substituição da tecnologia medicamentosa pelos recursos
psicológicos
2
na
área
da
saúde;
com
o
avanço
da
medicina
aumentou,
“O modelo biomédico pressupõe que a doença é um mal do corpo, independente de processos
psicológicos e sociais da mente. Essa concepção tornou-se amplamente aceita durante os séculos XIX
e XX, representando até hoje a visão dominante na área médica” (SARAFINO, 1991 apud GIMENES
1994, p. 37).
13
significativamente, o número de sobreviventes e a qualidade de vida de ex-pacientes
tornou-se alvo de discussões e preocupações na comunidade científica.
Nesse contexto, a psiquiatra Jimmie Holland foi motivada a pesquisar de forma
mais abrangente o câncer: funcionamento físico, psicológico, social, sexual, meio
profissional e a partir dessas pesquisas e de outros trabalhos, tornou-se possível
fundamentar e oficializar a Psico-Oncologia no meio científico:
Uma sub-especialidade da oncologia, que procura estudar as duas dimensões
psicológicas presentes no diagnóstico do câncer: (1) o impacto do câncer no
funcionamento emocional do paciente, sua família e profissionais de saúde
envolvidos em seu tratamento; (2) o papel das variáveis psicológicas e
comportamentais na incidência e na sobrevivência ao câncer (HOLLAND, 1990
p.11; apud CARVALHO, 2002).
No Brasil, a psico-oncologia foi impulsionada por profissionais que ofereciam
atendimento psicossocial grupal, em instituições públicas, privadas, universitárias e por
aqueles que desenvolviam pesquisas referentes à doença.
A Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia foi fundada em 1994 e as atribuições
dessa área foram formuladas por Maria da Glória Gimenes:
A Psico-Oncologia representa a área de interface entre a Psicologia e a
Oncologia e utiliza conhecimento educacional, profissional e metodológico
proveniente da Psicologia da Saúde para aplicá-lo: (1) Na assistência ao
paciente oncológico, sua família e profissionais de saúde envolvidos com a
prevenção, o tratamento, a reabilitação e a fase terminal da doença; (2) Na
pesquisa e no estudo de variáveis psicológicas e sociais relevantes para a
compreensão da incidência, da recuperação e do tempo de sobrevida após o
diagnóstico do câncer; (3) Na organização de serviço oncológico que visem o
atendimento integral do paciente, enfatizando de modo especial à formação e o
aprimoramento dos profissionais da saúde envolvidos nas diferentes etapas do
tratamento (GIMENES, 1994, p. 46).
14
2.3. CÂNCER INFANTIL
Criança é sinônimo de alegria, vitalidade, futuro e esperança. Contudo, essa
premissa otimista é profundamente alterada quando essa criança é acometida por uma
enfermidade grave como o câncer. Ao adoecer, sua vida e de toda sua rede social
sofrem modificações fisiológicas, sociais, psicológicas e emocionais.
No Brasil, o câncer já é a terceira causa de morte por doença entre 01 e 14 anos,
e no município e no estado de São Paulo é a primeira causa de óbito entre 05 e 14
anos de idade (RODRIGUES e CAMARGO 2003). A literatura de países desenvolvidos
mostra índices de cura superiores a 90%. Mendonça (2000) afirma que em nosso país a
realidade é outra, uma vez que o diagnóstico é tardio por motivos diversos:
precariedade do serviço público de saúde, profissionais inaptos3 para atendimento
especializado, distância entre pacientes e hospitais dentre outros.
Geralmente o câncer infantil apresenta alguns sinais como palidez, massas
palpáveis, dor óssea, febre de origem desconhecida, linfadenopatia (aumento anormal
das glândulas linfáticas) e transtornos neurológicos (VALLE, 1997). Além desses
sintomas, a percepção de que algo anormal acontece dentro do próprio corpo faz com
que a criança sinta-se insegura e ameaçada por algo perigoso.
Segundo o INCA (2005), o câncer infantil, diferentemente do câncer de adulto,
afeta, geralmente, as células do sistema sangüíneo e os tecidos de sustentação,
enquanto que o câncer em adultos afeta células do epitélio, que recobre os diferentes
órgãos (câncer de mama, câncer de pulmão). As doenças malignas da infância são,
3
A partir de nossa experiência no setor de psico-oncologia pediátrica, foi comum o relato de mães que
ao levarem os filhos aos centros de saúde foram diagnosticados com verminoses ao invés de
portadores de tumores malignos.
15
predominantemente, de natureza embrionária, constituída de células indiferenciadas e,
geralmente, respondem melhor aos métodos terapêuticos da atualidade. A seguir,
citaremos os alguns tipos de câncer infantil e seus principais sintomas:
Nas leucemias, pela invasão da medula óssea por células anormais, a criança
fica suscetível à infecção, palidez, sangramento e dor óssea.
No retinoblastoma, um sinal importante de manifestação é o chamado "reflexo do
olho do gato", embranquecimento da pupila quando exposta à luz. Pode-se apresentar
também através de fotofobia ou estrabismo. Geralmente acomete crianças antes dos
três anos de idade.
Algumas vezes os pais notam uma massa no abdômen, podendo tratar-se nesse
caso, também, de um tumor de Wilms ou neuroblastoma;
Tumores sólidos podem se manifestar pela formação de massa, podendo ser
visível e causar dor nos membros, sintoma, por exemplo, freqüente no osteossarcoma
(tumor em osso em crescimento), mais comum em adolescentes;
Tumor de sistema nervoso central tem como sintomas dor de cabeça, vômitos,
alterações motoras, alterações cognitivas e paralisia de nervos; (INCA, 2005).
A vivência das alterações fisiológicas pela criança pode se tornar mais difícil
quando somadas ao silêncio dos adultos quando estes omitem (ou mentem) sobre o
diagnóstico. Inegavelmente, o período do diagnóstico é de natureza altamente
estressante, dificultando uma comunicação honesta entre os adultos e a criança, muitas
vezes justificada como uma tentativa de “poupar” a criança de maiores sofrimentos.
Nesse caso, Valle (1997) considera que o silêncio dos adultos poderá influenciar
negativamente na emocionalidade da criança, que poderá sentir-se excluída ou
abandonada do núcleo familiar.
16
Podemos analisar que a dificuldade dos pais em falar sobre o diagnóstico, ou a
utilização de eufemismos para se referir ao câncer, seja um mecanismo de defesa que,
inconscientemente, os adultos utilizam para evitar a real presença de uma doença
crônica e suas conseqüências: onipresença da morte, a incerteza do futuro e a
interrupção do ciclo vital. Delella (2000) afirma que a morte ou doença crônica de uma
criança é tida como uma tragédia na vida dos pais, já que os filhos são extensões de
suas esperanças e sonhos de uma vida futura. Além disso, em nossa cultura a morte de
membros idosos é visto como algo “natural”, já a morte prematura é de difícil aceitação,
pois há uma cessação da perpetuidade da família.
O contar ou não-contar sobre a doença para a criança pode ter uma relação
direta com as representações sócio-históricas do câncer e sobre a infância. Como
vimos anteriormente, desde a descoberta do câncer sempre existiram conotações
pessimistas referentes à doença. Com relação à criança vemos que nossa sociedade a
considera como um ser passivo, ingênuo e incapaz, e a participação dela nas questões
referentes à própria saúde são ocultadas. A esse respeito, Valle (1997) diz que crianças
pequenas não compreendem o nome científico da doença, no entanto deve-se dar
explicações práticas sobre internações e procedimentos cirúrgicos. Já as crianças
maiores além das informações gerais, necessitam de explicações mais detalhadas
sobre o tratamento e conseqüências, bem como do nome da doença. Alby diz que
saber do nome da doença “reassegura à criança a consciência do que ela tem, pois
uma doença sem nome é como um inimigo sem rosto, mais difícil de vencer” (apud
VALLE 1997 p. 74).
17
Cabe ressaltar que em nosso país os aspectos sobre tratamento e direitos da
criança e do adolescente hospitalizados estão previstos em lei4:
Art. 8 – Direito de ter conhecimento adequado de sua enfermidade, dos
cuidados terapêuticos e diagnósticos, respeitando sua fase cognitiva, além de
receber amparo psicológico quando se fizer necessário.
Art. 9 – Direito de desfrutar de alguma forma de recreação, programas de
educação para a saúde, acompanhamento do curriculum escolar durante sua
permanência hospitalar.
Art. 10 – Direito de seus pais ou responsáveis, participarem ativamente do seu
diagnóstico, tratamento e prognóstico, recebendo informações sobre os
procedimentos a que será submetida.
Após a confirmação do diagnóstico, de um momento para o outro a rotina de vida
da criança é bruscamente alterada. Quando em idade escolar e dependendo da
gravidade da doença, a criança interrompe os estudos devido às freqüentes
internações, baixa imunidade ou restabelecimento de cirurgias. A impossibilidade de
estudar pode ter uma conotação negativa para a criança já que a escola é um dos
principais núcleos de interatividade social. É nesse contexto que o trabalho de
pedagogos no ambiente hospitalar é de extrema importância para esses pacientes,
resgatando um pouco da rotina escolar durante as internações.
Com a entrada no hospital a criança se depara com um mundo novo. Salvo
algumas exceções, muitos hospitais fazem com que a criança se torne um paciente no
sentido estrito do termo. Nessa realidade a criança irá conviver com pessoas
desconhecidas, terá horários diferentes aos de costume para acordar, dormir, deverá
tomar remédios e injeções, será submetido a exames dolorosos, será lavado e
manipulado. Valle (1997) afirma que nessas condições a criança torna-se uma
“colaboradora-passiva” ao tratamento perdendo a sua autenticidade. A partir de nossa
4
Resolução 41, de outubro de 1995 do CONANDA: Direitos da Criança e do Adolescente Hospitalizado.
18
experiência, analisamos essa perda de autenticidade como uma profunda interferência
do processo do adoecimento e do sistema hospitalar na identidade da criança.
A internação poderá restringir visitas devido à baixa imunidade, impondo um
afastamento de pessoas queridas como os pais, irmãos e amigos. Dependendo do
caso, muitas famílias mudam de cidade na busca de centros especializados para o
tratamento. Algumas crianças apresentam também mudanças de humor, no
comportamento, distúrbios do sono, ansiedade e apatia (MORAIS e VALLE, 2001).
Atualmente, para o tratamento do câncer infantil utiliza-se a quimioterapia,
isoladamente ou em associação com outros procedimentos. Sua meta é destruir as
células cancerosas e evitar danos às células saudáveis. Contudo, o problema dessas
drogas é que sua ação atinge células normais, causando vários efeitos colaterais.
Os efeitos tóxicos imediatos da quimioterapia são mal estar, febre, calafrios,
anorexia, náuseas, vômitos e diarréia. Os efeitos tardios são mucosite (processo
inflamatório e ulcerativo da mucosa oral), alopecia (perda e ausência de cabelo e
pêlos),
leucopenia
(diminuição
da
quantidade
de
leucócitos
no
sangue),
imunossupressão (baixa imunidade), neurotoxidade, podendo ocorrer a longo prazo
esterilidade e, com menor freqüência efeitos cardiotóxicos, fibrose hepática e pulmonar
(RAMOS apud VALLE, 1997). Além dos efeitos colaterais mais comuns, algumas
crianças podem apresentar reações diferentes, como descontrole dos esfíncteres com
evacuação e enurese, e/ou alterações comportamentais como gritar, debater-se, xingar
o acompanhante e a equipe (VALLE 1997).
Devido ao grande sofrimento com a doença, tratamento e alteração na rotina de
vida, algumas crianças demonstram desejo de morrer numa tentativa de acabar com o
sofrimento: “A quimioterapia mata; eu sei que vou morrer... Eu vou pular da janela e aí
19
eu morro antes. Aí é que eu não preciso de remédio e ninguém me vê mais” (F., 10
anos apud VALLE, 1997, p.103).
2.4. A FAMÍLIA DA CRIANÇA
Para González Rey a família é um elemento fundamental na promoção de saúde
humana e um cenário permanente de produção subjetiva. Para o autor, a família “é uma
via primária e primordial para a educação afetiva da criança, por se basear
fundamentalmente na valorização das relações familiares” (2004 a., p.30).
Delella (2000) considera a família como uma unidade social e um grupo de
suporte primário da criança. Nesse sentido, quando a criança adoece, ela buscará
apoio social5 e emocional de que necessita na própria rede familiar. A mesma autora
enfatiza que a natureza desse suporte dependerá de múltiplos fatores, como a estrutura
familiar, o estilo de enfrentamento dos pais e a história dessa família. Consideramos
também que esse suporte estará relacionado ao momento sócio-histórico que essa
família está inserida, bem como as crenças e mitos que pairam na sociedade.
O efeito da doença no funcionamento familiar dependerá de vários fatores, a
começar pela natureza da enfermidade. A princípio, o câncer pode ser considerado
como uma doença progressiva, quase sempre sintomático e com progressão rápida e
grave. Nesse caso, a família depara-se com um membro cuja limitação aumenta
gradativamente, exigindo contínua adaptação e mudança de papéis. Neste momento
5
Gatchel et. al. definem apoio social como “sentimento que uma pessoa tem de ser atendida e
valorizada por outros e de pertencer a um determinado grupo social” (apud GONZÁLEZ REY, 2004a, p.
98).
20
entra em jogo a flexibilidade familiar, sobretudo em relação à reorganização interna de
papéis e à disposição para a utilização de recursos externos (DELELLA, 2000).
Brown (apud DELELLA, 2000) ressalta que a morte e/ou uma doença grave de
qualquer membro rompem o equilíbrio familiar. O grau de ruptura é influenciado por
vários fatores, como o contexto social e étnico da morte, as histórias anteriores de
morte ou de doença grave, a posição e a função da pessoa doente no sistema familiar e
a abertura que esse sistema possui. Esse autor diz que esses fatores determinarão o
impacto que a doença ou morte terá na família.
O câncer infantil mobilizará toda a família e, de certa forma, todos passam a
habitar outro mundo: o mundo da doença da criança. Nesse caso, verificamos que a
família também adoece e, conviver com o câncer requer dessa família novas formas
para lidar com a ameaça de vida.
Desde o diagnóstico toda a dinâmica familiar é alterada em seu funcionamento
intra e extra-social. Vários autores afirmam que esse período é vivenciado de forma
caótica e estressante por todos os membros (BARBOSA et. al, 1991; VALLE, 1997;
MORAIS e VALLE, 2001; CARVALHO, 1994; RESENDE, 1999 apud DAUDT e SILVA,
2002 e outros). Nessas situações, surgem modificações de ordem emocional, na rotina
e na configuração familiar. Geralmente no momento da confirmação do câncer, os pais
buscam algum responsável pela doença, seja por acusações mútuas, ou atribuindo a
causa às complicações da vida intra-uterina do filho, numa tentativa de compreender o
aparecimento da enfermidade (VALLE, 1997).
Além do desgaste emocional da doença e da ameaça da morte, a família precisa
preocupar-se com a vida cotidiana e com problemas de ordem doméstica: durante a
internação os outros filhos ficam sozinhos com parentes ou vizinhos; as tarefas
21
domésticas são desenvolvidas pelo pai e pelos outros filhos, já que a mãe está
sobrecarregada com os cuidados ao filho doente; os pais precisam continuar
trabalhando, muitas vezes apresentando altos níveis de absenteísmo; os outros irmãos
podem apresentar baixo rendimento escolar e ciúmes do paciente infantil (DAUDT e
SILVA, 2002; PEDROSA e VALLE, 2000; VALLE, 1997). Outra conseqüência comum
nas famílias de crianças portadoras de câncer relaciona-se às despesas com o
tratamento que desestabiliza o orçamento familiar, podendo influenciar negativamente
nas relações entre os membros e com outras pessoas.
Na literatura pesquisada, verificamos que muitos autores consideram que o
adoecimento da criança é o responsável pelo desequilíbrio social e emocional da
família. Contrapondo-se a essa visão de causa e efeito, Oppeinheim (apud VALLE
1997) diz que elementos da fragilidade familiar, dificuldades sociais, desajustes
emocionais, crises etc, podem ser revelados com a doença, e não um produto desta.
Com isso, não podemos afirmar que exista uma linearidade do impacto do câncer sobre
a família, uma vez que todo processo de adoecimento será único em cada sistema
familiar.
No período de internação, geralmente os cuidadores da criança são do próprio
núcleo familiar, mais especificamente a mãe da criança (FLORIANI, 2004). O papel dos
pais em nossa cultura é, basicamente, de cuidadores da prole e, quando um filho
adoece, a execução desse papel é dificultado pelas circunstâncias. McDaniel (apud
DAUDT e SILVA, 2002) afirma que durante o adoecimento da criança, os pais
desenvolvem um sentimento de impotência e de incapacidade por não terem meios de
protegerem os filhos da doença, dos efeitos colaterais, do tratamento e das prováveis
22
seqüelas. As reações emocionais mais comuns entre os pais nessas condições são a
tristeza, introspecção e apego à religiosidade (PEDROSA e VALLE, 2000).
Para Valle (1994), o início do tratamento para a família propicia o surgimento de
dificuldades emocionais intensas para enfrentar o adoecimento da criança. Os modos
de enfrentamento da doença são peculiares a cada caso. Bayés (apud DELELLA, 2000)
cita como estratégias mais utilizadas pelas famílias: busca de informação, busca de
apoio, ação impulsiva, evitar confronto e enfrentamento ativo. Na busca de informação
os pais terão conhecimento sobre o câncer a partir de livros, revistas, sites, ou
perguntas aos médicos. A busca de apoio pode se dar com o próprio cônjuge, amigos,
pessoas da mesma religião ou mesmo da equipe de saúde. A ação impulsiva
caracteriza-se pela perda do auto-controle e na eclosão de emoções negativas, como
gritar e xingar. Já a estratégia de evitar confronto refere-se a uma atitude passiva, em
que os pais distanciam-se do problema, na busca de atenuar o próprio sofrimento.
Nesse caso, alguns pais evitam participar do tratamento do filho, outros abandonam as
crianças nos hospitais.
Com a nova realidade instalada na família, os outros filhos podem sentir-se
excluídos física e psicologicamente do contato com os pais e do irmão, podendo
ocasionar o aparecimento de tristeza, revolta, insegurança e ciúmes da criança doente.
Pedrosa e Valle (2000) observaram que determinados irmãos saudáveis podem
apresentar sintomas semelhantes ao da criança doente sem qualquer causa aparente.
Muitas vezes os pais evitam a participação dos outros filhos durante o processo de
diagnóstico e tratamento do câncer. Contudo, consideramos importante a compreensão
da nova realidade pelos irmãos saudáveis de acordo com a capacidade cognitiva dos
mesmos. Pedrosa e Valle (2000) afirmam que a participação mais ativa dos irmãos
23
saudáveis sobre a doença possibilita amenizar os sentimentos de exclusão e rivalidade,
proporcionando sentimentos de compaixão e solidariedade com o irmão doente.
Verificamos que atualmente vários ramos da ciência preocupam-se com a
relação doença-família. A psico-oncologia, por exemplo, tem realizado estudos que
enfocam a família dos pacientes, uma vez que a cura da doença não se limita ao
funcionamento normal do organismo, mas visa também a qualidade de vida da criança
e de sua família. Na literatura de oncologia pediátrica alguns autores enfatizam o
suporte social para o enfrentamento de doenças bem como a adaptação e
enfrentamento da criança e da família. A Organização Mundial de Saúde (OMS) orienta
que os cuidados com o paciente e sua família sejam considerados como uma unidade
de características próprias em seu funcionamento, seu sistema de crenças e sua
história particular (VALLE, 1997). Para Fernando Rey, a tendência atual é o apoio e a
intervenção psicológica com os familiares, já que esse núcleo social tem influências
emocionais e simbólicas importantes para o paciente (informação verbal).
A proposta inicial de nosso trabalho foi verificar a repercussão do câncer infantil
na família da criança doente a partir de uma análise qualitativa, baseada na teoria da
subjetividade, desenvolvida por González Rey (2003, 2004a). No entanto, atualmente a
organização familiar não corresponde a uma estrutura convencional, constituída por pai,
mãe e filhos. No Estatuto da Criança e do Adolescente6 verificamos a atual
compreensão da família natural: “Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade
formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes”. Para realizar essa
pesquisa e tendo em vista essa nova compreensão de família, escolhemos a família de
6
Vide: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069Compilado.htm
24
uma mãe solteira de 28 anos, acompanhante de seu filho de 04 anos, portador de
câncer infantil.
2.5. SUBJETIVIDADE
A subjetividade é uma nova proposta epistemológica e ontológica, com uma
nova representação da psiquê calcada em duas características essenciais: seu caráter
sócio-histórico e sua natureza complexa7. Essa noção de psiquê não está centrada
somente na psiquê individual, como afirma González Rey (2004 b):
A subjetividade permite uma reconstrução não só da psiquê individual, como
também das várias formas de produção psíquica, próprias dos cenários sociais
em que vive o homem, assim também como da própria cultura. (p. 125)
Para compreender essa nova categoria, faz-se necessária uma “libertação das
amarras” do nosso pensamento para acessar formas diferentes de representação que
repousam na compreensão moderna.
O surgimento da psicologia moderna ocorreu quando a maioria das ciências
pautava-se no positivismo e nos modelos cartesiano-newtonianos. Neubern (2004)
afirma que o império da física no conhecimento do mundo ocidental preconizou um
esquartejamento dos fenômenos, que aconteceu também na psicologia, rejeitando-se a
subjetividade, as emoções, o social, o cultural etc, para alcançar o tão sonhado status
científico.
7
Na perspectiva de Morin a complexidade refere-se a uma forma de pensamento, envolvendo as várias
relações possíveis entre o todo e as partes que o integram. Ele emerge da interação dessas partes e
possui qualidades que vão alem de suas propriedades ou do somatório delas; contudo ela não anula as
propriedades dessas partes (NEUBERN, 2004 p. 216).
25
Avançando na dimensão do quantificar, a psicologia privilegiava o estudo daquilo
que fosse passível de medição e, portanto tratava apenas dos aspectos que fossem
passíveis de quantificação. Tudo aquilo que não se enquadrasse nesses requisitos foi
desconsiderado pela psicologia científica, reduzindo sua área de estudo e,
conseqüentemente, a visão de homem também se tornou reduzida, pois a atenção
fixava-se no estudo das partes do indivíduo (comportamento, cognição, inconsciente
etc), impossibilitando uma melhor compreensão integral desse ser tão complexo
(VALLE, 1997).
Podemos afirmar que foi nesse “clima” científico que muitos estudiosos
mostraram-se insatisfeitos no que diz respeito à natureza e à direção da psicologia,
alegando que, como ciência estaria se distanciando do mundo e da vida, esquecendose do homem enquanto pessoa (VALLE, 1997; NEUBERN, 2004; GONZÁLEZ REY,
2002, 2003, 2004a, e outros).
Nesse contexto, González Rey (1997, 2002) propõe uma nova compreensão das
dicotomias antes subjugadas: individual e social, interno e externo, atual e histórico,
universal e singular etc, a partir de uma análise qualitativa.
Ao considerar essa nova categoria, abandona-se a idéia comum de que a
subjetividade é um fenômeno intrinsecamente individual. Para González Rey (2004 b) o
individual e o social são interdependentes para serem compreendidos e não são vistos
como dicotomia.
Seguindo esse raciocínio, Spink (2003) comenta:
Abandonar, portanto, a dicotomia indivíduo e sociedade retomando, em uma
nova base o debate sobre a autonomia relativa das esferas social e individual
sem cair no reducionismo sociologizante (quando o indivíduo é visto como
produto do mundo social que o cerca) ou psicologizante (quando em última
26
análise o indivíduo é visto como um ser autônomo, produto da dinâmica de suas
características individuais) (p. 41).
Nos trabalhos desenvolvidos por González Rey há uma divisão no estudo da
subjetividade individual e social. No entanto, sabemos que essa divisão enfatiza que a
compreensão das questões individuais e sociais é impossível negar a influência
inextrincável. Sobre esse aspecto o autor afirma:
A subjetividade é um sistema complexo que tem dois espaços de constituição
permanente e inter-relacionada: o individual e o social, que se constituem de
forma recíproca e, ao mesmo tempo, cada um está constituído pelo outro. (2004
b, p. 141).
A subjetividade individual indica processos e formas de organização da
subjetividade que ocorrem nas histórias diferenciadas dos sujeitos individuais. Assim, a
constituição do indivíduo não se dá a partir de um processo linear e estático: trata-se de
uma dinâmica diferenciada, única e particular, dependendo de diversos fatores e que,
dificilmente poderemos ter acesso a todos eles. Esses fatores estão também no âmbito
social, que González Rey denominou subjetividade social:
Ao falar de subjetividade social não estamos definindo uma entidade portadora
de características universais estáticas [...] estamos definindo o complexo
sistema da configuração subjetiva dos diferentes espaços da vida social que,
em sua expressão, se articulam estreitamente entre si, definindo complexas
configurações subjetivas na organização social (2003, p.203).
Particularmente, acredito que essa teoria dá lugar à idéia de uma ciência
limitada, que não pretende ser a verdade absoluta, capaz de explicar e controlar tudo a
que se propõe. Ao invés disso, a subjetividade propõe que o homem é muito mais do
que nossa vã ciência é capaz de explicar, parafraseando Shakeaspeare. A esse
respeito González Rey considera: “A subjetividade é um sistema permanentemente em
27
processo, mas com formas de organização que são difíceis de descrever e que,
portanto epistemologicamente, não são acessíveis à descrição” (2004 b, p. 126).
O homem é, inegavelmente, uma realidade objetiva no âmbito social e, também,
uma realidade subjetiva, produtor de uma história pessoal e de uma vivência única.
Negar os aspectos sociais e individuais do homem é negar o próprio ser humano e
retroceder à formulação de indivíduos abstratos e a-históricos. Sendo assim, a
subjetividade abandona os preceitos concebidos pela psicologia cartesiana-positivista,
que se pautam na idéia de causa e efeito, universalizações acerca da personalidade
humana e certezas absolutas: o ser humano está além de nossas especulações.
2.6. SUBJETIVIDADE, SAÚDE E DOENÇA: UMA NOVA COMPREENSÃO
De acordo com González Rey (2004a), a psicologia da saúde é um espaço novo
de conhecimentos psicológicos, que tem maior ênfase na atuação prática, que no
desenvolvimento teórico e metodológico. Com o surgimento dessa nova área da
psicologia,
a
orientação
concentrou-se
em
problemas
relacionados
com
o
desenvolvimento da saúde humana. No entanto, ao deparar-se com o complexo
processo de saúde, verificou-se a debilidade dos postulados empiricistas e positivistas
para o estudo desse tema, uma vez que, inicialmente a psicologia da saúde teve forte
influência dos postulados psicanalíticos. Nesse contexto, verificamos que os princípios
dominantes no pensamento psicológico analisavam esse tema a partir de dados
descritivos, o que impossibilitava transcender a noção de saúde para um entendimento
complexo, sistêmico e plurideterminado (GONZÁLEZ REY, 1997 b).
28
Portanto, um dos desafios da psicologia nesse campo é o desenvolvimento de
teorias que abarquem a complexidade da saúde, considerando-a como um processo
dinâmico, que expressa qualidade do desenvolvimento do sistema humano como um
todo, em que configuram aspectos biológicos, subjetivos e sociais. Para González Rey
“a subjetividade, como nível ontológico da constituição humana, representa um
momento essencial para a construção teórica dos processos de saúde e de doença”
(2004 a, p. 119). Em nossa opinião a subjetividade abre vieses para a compreensão
desses temas tão complexos, estabelecendo a integração de fatores sócio-históricoculturais (subjetividade social) com elementos individuais (subjetividade individual)
dentro de uma mesma construção teórica, possibilitando-nos uma análise complexa e
abrangente.
[...] outro desafio importante da psicologia no campo da saúde é incorporar esta
dimensão de constituição social e subjetiva do homem ao campo da psicologia
social [...] Saúde e doença não podem ser explicadas apenas a partir da
subjetividade individual, devendo passar a ser momentos da construção teórica
da subjetividade social (GONZÁLEZ REY, 1997b, p. 284).
Na perspectiva da subjetividade a doença será considerada, além de uma
enfermidade orgânica, como uma experiência culturalmente produzida, portadora de um
sentido subjetivo social e culturalmente produzido, influenciando e sendo influenciado
pelo sentido subjetivo individual que, de forma diferenciada, apresenta-se em cada
pessoa concreta portadora da doença.
No caso do câncer infantil, vários elementos serão integrados à subjetividade
social da família como o diagnóstico, o tratamento, internamento, seqüelas, incerteza
da cura etc. Além disso, existe uma configuração complexa da subjetividade social que
relaciona câncer à dor, morte, sofrimento e punição divina, promovendo um grande
29
impacto na subjetividade individual de cada membro da família. Vimos também que
essa doença causa um impacto em toda a rede familiar, o que alguns autores definem
como um adoecimento da família. Podemos definir esse adoecimento como um impacto
de vários agentes sociais como mitos, crenças errôneas sobre a doença, a
hospitalização e tratamento da criança, os efeitos colaterais etc., causando uma
desestruturação do funcionamento da família, com alterações que impossibilitam uma
rotina saudável entre os membros, conflitos intrafamiliares, sofrimentos, podendo
inclusive causar déficits orgânicos em algumas pessoas da família, inclusive nos
acompanhantes do paciente infantil. Compartilhamos com o posicionamento de
González Rey (2004a), ao considerar que os avanços da ciência médica são incapazes
de amenizar e/ou “curar” essa desestruturação e que as propostas sociológicas e
psicológicas são as mais viáveis para a saúde integral das pessoas envolvidas com o
adoecimento.
No que concerne à experiência da mãe, uma nova condição de vida se integrará
em sua subjetividade: a descoberta de um tumor maligno no filho. Com o entendimento
proposto da teoria da subjetividade, esse momento vivido pela mãe dependerá não
somente de sua história de vida, mas também a uma subjetividade social anterior à
subjetividade individual, que são sistemas que se entrelaçam e geram, dinamicamente,
novos sentidos e significados (GONZÁLEZ REY, 1997b, 2004a). Em nosso trabalho,
verificaremos como se dá esse sentido subjetivo da mãe ao acompanhar o processo de
adoecimento e tratamento do filho portador de câncer infantil.
30
CAPÍTULO 3. METODOLOGIA
Desde o segundo semestre de 2004 realizo pesquisas sobre Subjetividade e
Câncer com a supervisão e apoio do professor Fernando Rey. Nesse período
trabalhei com pacientes e ex-pacientes de câncer (adultos de ambos os sexos) no
Hospital Universitário de Brasília – HUB. Em março de 2005 iniciei um trabalho de
apoio psicológico às crianças com câncer e seus acompanhantes no setor de
pediatria do mesmo hospital.
A partir das minhas experiências no estágio em psico-oncologia pediátrica, decidi
realizar meu trabalho de monografia, com o objetivo de analisar os sentidos subjetivos
da mãe de uma criança portadora de câncer. Para realizá-lo, apoiei-me na teoria da
subjetividade,
numa
perspectiva
histórico-cultural
que
González
Rey
vem
desenvolvendo (1997a, 2000, 2002, 2003) a partir do conceito de sentido subjetivo8.
Cabe salientar, porém, que o objetivo desse trabalho não é chegar a uma
representação sistemática e exata sobre a realidade vivenciada pela participante, mas
abrir uma nova zona de inteligibilidade sobre essa temática. Verificamos também que o
produto dessa pesquisa é subjetivo, pois a pesquisadora analisará seu objeto a partir
de suas perspectivas e vivências particulares. É aqui que observamos o fim da falsa
idéia de neutralidade, uma vez que seja impossível ao pesquisador desfazer de si
mesmo para realizar suas pesquisas.
As configurações dos diferentes sentidos subjetivos que se expressam na
subjetivação da doença são singulares para cada indivíduo ou grupo. Analisar a forma
8
Segundo o autor, o sentido subjetivo define-se como a integração dos processos emocionais e
simbólicos que caracterizam as diferentes experiências humanas.
31
em que estas configurações se produzem, e como elas influenciam as pessoas ou a
família frente à doença, é um processo de fundamental importância para o
desenvolvimento de estratégias preventivas, de intervenção psicossocial e produções
teóricas.
3.1. EPISTEMOLOGIA QUALITATIVA
Para aprofundar nossos conhecimentos sobre a repercussão do câncer infantil,
utilizamos a epistemologia qualitativa desenvolvida por González Rey (1997a, 2002),
pois acreditamos que este referencial possibilita um acesso ao sistema de sentidos
subjetivos da mãe da criança com câncer.
Segundo González Rey (2002):
A epistemologia qualitativa é um esforço na busca de formas diferentes de
produção de conhecimento em psicologia que permitam a criação teórica
acerca da realidade plurideterminada, diferenciada, irregular, interativa e
histórica, que representa a subjetividade humana. (p.29)
A epistemologia qualitativa baseia-se em três princípios:
- O conhecimento é uma produção construtiva e interpretativa, que significa uma
valorização da subjetividade do pesquisador enquanto sujeito, e que a pesquisa não se
resume à coleta de dados como propunha o modelo positivista. Esse princípio refere-se
também ao lugar secundário da teoria no processo da construção do saber, pois o
pesquisador desenvolve seus modelos e hipóteses durante a pesquisa; a teoria será
um subsídio, não mais um guia para que as investigações validem as propostas
teóricas;
32
- O segundo princípio é a interação entre pesquisador e participante que é considerada
essencial na produção de conhecimento, desmistificando-se a neutralidade do
pesquisador. A ação do participante é valorizada, sendo fundamental para a pesquisa o
que ele pensa, fala e sente acerca do que está sendo estudado. Considero esse item
de extrema importância, pois, até então fazer ciência era desconsiderar a participação
alheia (até mesmo do próprio pesquisador com a “neutralidade”) e, na proposta de
González Rey, prima-se pela participação, pelo vínculo e interesse de ambas as partes
– pesquisador e participante – para o êxito da pesquisa. Além disso, esse princípio da
interação possibilita uma aceitação da informalidade e dos imprevistos, sendo
considerados como momentos de sentido subjetivo que possibilitam aprofundar ainda
mais o conhecimento acerca do estudado, e não mais como erros que surgem na
produção científica;
A partir da epistemologia adotada, aceitamos a natureza diferenciada do objeto
de pesquisa das ciências sociais e humanas, o qual é um sujeito interativo,
motivado e intencional [...]. A investigação sobre esse sujeito não pode ignorar
essas características gerais (GONZÁLEZ REY, 2002, p. 53).
- O terceiro princípio é a singularidade como nível legítimo na produção científica, ou
seja, o estudo de caso é válido, pois possibilita abrir novas discussões acerca da
realidade
diferenciada
e
subjetiva
do
sujeito.
A
partir
dessa
compreensão
epistemológica, a legitimidade de um trabalho não se verificará pela quantidade de
sujeitos a serem estudados, mas pela qualidade da sua expressão. É por esse motivo
que é tão importante o vínculo entre pesquisador e participante e o comprometimento
de ambos para o êxito do trabalho proposto. Nessa pesquisa utilizamos um estudo de
33
caso, para analisar a realidade única e particular de uma mulher que se defronta com
um filho de 04 anos, portador de uma doença grave e estigmatizada: o câncer infantil.
3.2. SUJEITO PARTICIPANTE
Para escolher a participante dessa pesquisa, observei os casos de oncologia
pediátrica durante os meses de março e abril de 2005 no estágio de psico-oncologia
pediátrica realizado no Hospital Universitário de Brasília (HUB). Essa observação
consistia numa aproximação profissional e afetiva das crianças e de seus
acompanhantes durante a fase de internação e tratamento de quimioterapia.
Nesse período conheci Maria mãe do menino Pedro9 de 04 anos e 11 meses,
que teve o diagnóstico de linfoma não-Hodgkin. Desde o início eu tive uma
aproximação muito amistosa com mãe e filho, o que me motivou convidá-la para
participar da minha pesquisa. Maria é mãe solteira de 28 anos, mora sozinha com seu
filho e desde fevereiro desse ano acompanha o tratamento de Pedro. No primeiro falei
da pesquisa e apresentei-lhe a carta convite (ANEXO I), e li oralmente para ela.
Enfatizei que a participação era voluntária e da relevância que esse trabalho se propõe:
analisar as vivências pessoais e da família em que um de seus membros, no caso uma
criança, é portador de câncer. Expliquei que a partir desse estudo eu poderia motivar
reflexões de equipes de saúde sobre a importância de um trabalho de suporte e apoio
psicossocial às famílias quando uma criança é acometida por câncer. Disse também
sobre a gravação das entrevistas, do sigilo do conteúdo informado e da omissão da
9
Atendendo aos princípios éticos, a identificação de todos os participantes da pesquisa foi alterada.
34
identidade de todos os participantes. Com a aceitação de Maria, pedi que ela assinasse
duas vias de consentimento informado (ANEXO II), uma que está em seu poder e a
outra via com a pesquisadora.
Para compreendermos melhor o cenário de nossa participante, consideramos
importante citar algumas informações sobre o caso clínico da criança.
Tubino e Alves (2003) afirmam que a etiologia exata do linfoma não-Hodgkin é
desconhecida,
porém,
acredita-se
que esteja
relacionada
a um defeito no
funcionamento do sistema imunológico que permitiria a expansão de um clone maligno.
O início da doença é, geralmente agudo. Os linfomas não-Hodgkin em crianças
crescem rapidamente; em alguns casos a fração de crescimento chega a 100% com o
tempo de 12 horas ou poucos dias para que o tumor duplique seu tamanho inicial.
De acordo com Tubino e Alves (2003) o tratamento é basicamente com
quimioterapia, já que esses linfomas comportam-se como uma doença multicêntrica,
sendo necessária uma abordagem sistêmica em todas as crianças, a despeito do
estadiamento ou da histologia. Na criança há maior possibilidade para a transformação
em leucemia, que pode ser seguida ou precedida pela doença meníngea.
Os mesmos autores consideram que a operação limita-se à biópsia, a menos
que seja possível a ressecção total ou quase completa (> 90%) de um tumor abdominal
primário. Em todas as crianças com linfoma não-Hodgkin deve ser feito tratamento
quimioterápico profilático do sistema nervoso central. Em casos refratários ou
recorrentes, o transplante de medula óssea deve ser considerado.
35
3.3. INSTRUMENTOS
Nessa
pesquisa
utilizei
dois instrumentos:
sistema
de
conversação
e
complementos de frases. Esses recursos foram utilizados de forma aberta e não
impuseram restrição para a livre expressão da participante, pois acredito quem em
pesquisas qualitativas é essencial o desenvolvimento progressivo de diálogos como
fontes ricas sobre as configurações subjetivas do sujeito. Para González Rey (2002), o
instrumento só terá sentido quando se relaciona especificamente com o participante,
pois o objetivo não é criar categorias, mas preservar a singularidade dos sujeitos
pesquisados e abrir novas zonas de sentidos.
No roteiro de conversação (ANEXO III) apresentei tópicos para estabelecer um
diálogo inicial com a participante da pesquisa. Esse roteiro foi feito a partir das diversas
leituras de capítulos de livros, na tese de mestrado de Luciana Delella (2000) e artigos
sobre psico-oncologia pediátrica. Com esse instrumento a expressão da participante
seria ampla e não estaria limitada aos tópicos previamente elaborados. Minha proposta
foi sugerir temas para uma conversa livre, em que a participante poderia desdobrar em
outros temas relacionados ou não ao tópico sugerido por mim. Sobre a participação
ativa do participante na pesquisa, González Rey (2002) discorre: “A reação é impossível
de controlar, pois faz parte da condição subjetiva da pessoa; portanto, a melhor forma
de enfrentá-la é o caráter aberto dos instrumentos e sua multiplicidade” (p.81).
Com o lugar que a epistemologia outorga ao diálogo, o papel do pesquisador
será de sujeito intelectual ativo, pois produzirá idéias na medida em que indicadores
surgem no processo da pesquisa. É nessa participação do pesquisador que verificamos
36
a simultaneidade no processo de construção de indicadores que acontece durante a
pesquisa.
O complemento de frases (ANEXO IV) será o outro recurso utilizado, que
consiste na apresentação de cinqüenta e quatro frases para serem completadas com
aquilo que viesse na mente da participante na hora que lesse a frase. Esse recurso
será utilizado após o diálogo inicial baseado no roteiro de conversação.
Cabe salientar que esses instrumentos não oferecerão restrições na participação
espontânea do sujeito, pois as informações que ali surgirem serão o meio para a
produção de indicadores. Os indicadores são momentos que adquirem significação
graças à interpretação do pesquisador, tendo relevância somente nos limites do
processo de construção de informação.
Com as respostas do complemento de frases e com o conteúdo dos diálogos,
será possível uma compreensão da produção de sentidos acerca de vários fatores
envolvidos na vida particular dessa mãe. Para analisar todo esse material,
estabelecemos os seguintes núcleos temáticos para a construção de informação:
significado do câncer infantil; funcionamento familiar após a confirmação da doença;
impacto do diagnóstico; tratamento da criança e efeitos colaterais. A partir desses eixos
temáticos, será abordado o sistema de sentidos desenvolvidos pela mãe e o
desdobramento destes.
37
CAPÍTULO 4. PRODUÇÃO DE INFORMAÇÃO
Após a conversação com Maria e com o complemento de frases já feito, li todo o
material diversas vezes. Quando observava aquele material parecia-me estar à frente
de uma constelação de informações, que possibilitaria uma compreensão parcial dos
sentidos subjetivos das vivências daquela mulher. Parcial porque acredito ser
impossível acessar todos os sentidos subjetivos e compreender toda a complexidade
da experiência dessa pessoa.
No processo de conversação eu e Maria estávamos descontraídas, afinal já nos
conhecíamos há três meses e tínhamos afeição recíproca. Inicialmente começamos um
diálogo a partir dos tópicos do roteiro de conversação. Contudo, durante o diálogo
surgiram temas muito interessantes que iam se desdobrando em subitens que não
imaginei anteriormente, o que me fez abandonar o roteiro e ir conversando com ela.
Dito de outra forma, outros núcleos temáticos foram agrupados na produção de
informações devido à riqueza das informações e pelo fato desses temas estarem
relacionados ao sentido que Maria dava à sua vida frente ao adoecimento de seu filho.
Considerei o não-seguimento do roteiro como um momento de construção de novos
sentidos da pesquisadora e da participante, pois esta participava ativamente da
pesquisa e propunha itens relevantes. A esse respeito, Bechhofer (apud GONZÁLEZ
REY, 2002) salienta:
O processo de pesquisa, então, não representa uma clara seqüência de
procedimentos fragmentados que seguem um padrão, mas uma desordenada e
complexa interação entre os mundos conceitual e empírico, em que a dedução
e a indução ocorrem ao mesmo tempo (p.67).
38
Durante a produção de informação, verifiquei que pela estrutura da família de
mãe solteira, surgiram mais elementos referentes à vivência particular dessa mãe. É por
esse motivo que o objetivo desse trabalho foi de certa forma alterado, da repercussão
do câncer infantil na família para a análise do sentido subjetivo da mãe de uma criança
com câncer. Além disso, discutiremos também itens referentes às vivências da família
extensa de Maria, que também sofreu o impacto do câncer infantil.
4.1. IMPACTO DO DIAGNÓSTICO
Conversando com Maria, observei que o câncer ainda tem uma conotação
extremamente pessimista, como se o diagnóstico da doença fosse uma sentença de
morte. No complemento de frases pude analisar alguns itens sobre esse pessimismo
referentes ao câncer: 5. Meu maior medo a morte; 22. Diariamente me esforço para
aceitar as situações; e 28. A doença é miserável.
Verifiquei também, que esse momento foi de intensa conturbação emocional,
como nos dizeres dela: “E quando eu descobri, eu falei assim: ‘Meu Deus do céu!!!’ [...].
Eu fiquei abalada, triste, chorava, chorava e chorava, e quando andava na rua eu não
conseguia ver o chão... eu esbarrava nas pessoas na rua, eu pisava e tropeçava... caía
nos buracos... mas eu não via nada. Eu olhava assim pro tempo e não conseguia
enxergar, só com aquilo no meu pensamento. [...] Eu pensava assim... que ele não ia
agüentar, que ele não ia conseguir porque tantas crianças morrem com câncer, tantas
pessoas morrem...” A partir desse trecho conferi o sentido subjetivo individual sobre o
39
câncer, que está intimamente relacionado à morte, que está também muito presente na
subjetividade social.
Além disso, Maria informou sobre o impacto na família extensa. Disse que um
ponto positivo que surgiu com o adoecimento de seu filho refere-se à sua família, que
se tornou mais presente. Como sabemos, o câncer pode ser agente desestruturante no
funcionamento individual e do grupo familiar, ou tornar explícito problemas pessoais,
intra e extra-familiares que antes estavam velados. Porém, na experiência de Maria
verifiquei outra conseqüência advinda da doença da criança, que não encontrei
referência na bibliografia consultada: o câncer teve uma importância singular para uma
relação mais afetiva e sólida entre os familiares com Maria, que com certeza a auxilia
no enfrentamento da doença de seu filho. Essa interpretação está relacionada ao item
41 do complemento de frases: “Tenho ajuda moral da minha família” e no trecho da
conversa: “A minha família também mudou. O que aconteceu com a família foi uma
aproximação, devido à doença houve mais uma aproximação... Mas meu pai é mais
afastado, ele é separado da minha mãe... ele ficou sabendo da doença, mas não se
aproximou”. Mas quem aproximou? “Minha mãe, minha tia, meus primos, minha avó”.
A relação dos membros da família extensa com a criança também mudou. Maria
acredita que devido ao sofrimento de Pedro, a família tornou-se mais atenciosa e superprotetora com a criança, numa tentativa de amenizar o sofrimento: “Já tratavam ele
assim... com dengo... piorou mais... com muito mimo, demais. O que ele pede dá... por
causa da doença né?! Fazem de tudo por ele, ‘o que você quer comer, o que você quer
ganhar..’. Antes de adoecer não ligavam tanto pra ele, passava um mês... agora ligam
pra saber como que ele tá... então teve mais uma aproximação...”. Com esse trecho
podemos analisar que os familiares estreitaram as relações afetivas com Maria e Pedro
40
quando souberam da gravidade da doença. De certa forma, essa atitude dos familiares
tem uma conotação positiva que advém do câncer infantil, ou seja, nem sempre o
câncer traz somente perdas e tristezas, mas também sentimentos de solidariedade e
compaixão.
4.2. SIGNIFICADO DO CÂNCER INFANTIL
Durante a conversa, Maria fez uma relação entre câncer e aids. No primeiro
instante fiquei muito surpresa com esse relato. Acredito que tal pensamento possa estar
de acordo com as idéias de Sontag, que analisa o câncer e a aids como as doençasmetáfora do século XXI. Para a autora, as doenças-metáfora são enfermidades que
ensejam catástrofes e tomam um caráter social, como por exemplo a peste na Idade
Média; a sífilis e a tuberculose no século XIX; já no século XX e XXI, o câncer e a aids
incitam a idéia de poder maligno e descontrole exclusivo do mundo moderno (apud
KOWALSKI e SOUSA, 2002).
Essa analogia entre aids e câncer pode também estar relacionada ao
desconhecimento (ou negação) da possibilidade de cura do câncer já que, atualmente,
a aids não tem cura. Sobre esse ponto vale ressaltar que as informações sobre
diagnóstico precoce e cura do câncer são muito escassas em nossa sociedade. A
própria mãe disse que seu conhecimento sobre câncer limitava-se a morte de expacientes: “Porque a palavra câncer... todo mundo que eu conheço vem e me fala: ‘Ah,
meu pai morreu de câncer, minha tia, meu primo...’ entendeu? Quando eu falo que meu
filho tem câncer, a pessoa fala assim: ‘Meu tio morreu de câncer’. Ai outra pessoa vem
41
e fala: ‘A minha mãe, a minha tia morreu de câncer...’ só vem assim... Ninguém fala de
cura... Logo quando eu cheguei e que algumas mães tinham filhos internados e fazendo
tratamento de câncer, pegavam e falavam: ‘Nossa, aqui teve tal criança que morreu,
teve outra, outra...’ foi relatando e me contando nos dedos as crianças que morreram,
mas não falaram pra mim das crianças que salvaram. Então deixa a gente deprimida
sabe... deixa a gente assim... sem esperança na hora... mas a gente tem que acreditar
na palavra do médico, com a evolução e com o acompanhamento do tratamento você
vai vendo, vai observando como vai o andamento e vai aceitando mais a situação...”.
É nesse contexto que considero extremamente importante o desenvolvimento de
projetos que desmistifiquem o câncer como doença fatal nos meios de comunicação,
esclarecendo à sociedade que se trata de uma doença crônica com possibilidades
terapêuticas eficazes e cura. Recentemente tive a oportunidade de conhecer um belo
trabalho desenvolvido pelo Instituto Maurício de Sousa em que uma personagem é
portador de câncer infantil (ANEXO VI). Nesse cartaz há informações sobre os
principais sintomas da doença e, o mais importante, a criança doente fala que o câncer
tem cura. Medidas como essa poderão alertar a sociedade para a prevenção do câncer,
e da possibilidade do diagnóstico precoce, que aumenta as chances de cura e, no
futuro, poderão também modificar a percepção individual e social sobre o câncer,
diminuindo o sofrimento causado pelo diagnóstico dessa doença tão estigmatizada.
Com relação à etiologia da doença, a mãe disse que tentou abortar a criança e
acredita que isso pode ter desencadeado alguma alteração nas células da criança,
como ela relatou: “antes dele nascer eu tentei tirar né... as vezes eu acho que pode ter
acontecido de ter... não sei... de ter dado algum probleminha nas células dele... ter
ficado diferente...” Em nosso país o aborto é ilegal, e muitas religiões condenam esse
42
ato. Podemos analisar que o câncer revelou um conflito pessoal da mãe: a tentativa de
abortar o filho e o sentimento de culpa influenciado pela religiosidade. Analisamos esse
núcleo temático a partir dos itens 47: Meu maior medo castigo de Deus; e no item 4:
Lamento as coisas que fiz antes de meu filho nascer. Inferimos, portanto, que a causa
da doença para Maria seja um castigo/punição divino por atentar contra a vida do seu
próprio filho. É importante lembrar que a compreensão da doença como intervenção
divina é muito antiga como vimos na introdução de nosso trabalho. Essa compreensão
pode ser considerada como uma representação social, que tem uma forte influência no
sentido subjetivo individual e social sobre o câncer.
Além da tentativa de aborto, Maria acredita que outros fatores poderiam estar
relacionados à causa do adoecimento de Pedro, como abandono e doenças préexistentes. Analiso que essas prováveis causas da doença (aborto e o abandono) estão
também, ligados ao sentimento de culpa da mãe. Considero pertinente nesse caso um
acompanhamento psicoterapêutico para essa mãe, uma vez que além de toda
turbulência da doença, internação e tratamento, psicologicamente encontra-se
angustiada ao acreditar ser responsável pela enfermidade de seu filho.
4.3. TRATAMENTO DA CRIANÇA E EFEITOS COLATERAIS
Sabemos que os tratamentos para o câncer são muito agressivos para o
organismo, que é percebido muitas vezes como um paradoxo para os pais: o que pode
salvar meu filho faz muito mal à saúde dele.
43
No caso de Pedro, o principal tratamento é a quimioterapia que traz modificações
físicas, como a queda de cabelo, enjôo, feridas na boca, alterações comportamentais e
psicológicas. Durante a conversa perguntei o que Maria pensava sobre quimioterapia, e
ela respondeu: “Um tratamento muito pesado. Um tratamento violento pro corpo de uma
criança [...] a criança muda totalmente. Ele fica nervoso, agitado, ele briga comigo, luta,
chuta sabe... é uma coisa horrível. Então a gente tem que ter aquela paciência, é uma
coisa assim que eu tenho que ir adquirindo com o tempo, porque a gente nunca tá
preparada pra isso, mas a gente tem que tá tipo moldando... porque aquela situação ali
vai acontecer com mais freqüência então você tem que tá procurando ter aquela
paciência senão a tendência é piorar”.
No complemento de frases percebi que a quimioterapia não tem repercussão
somente na vida do Pedro, mas também na vida de Maria, como ela expressou no
complemento de frase: 9. Sofro com meu filho na quimioterapia;
Quando conversávamos sobre a quimioterapia, Maria começou a enfatizar sobre
a queda de cabelo. Com a dinâmica da conversação, simultaneamente me interessei
com os detalhes e desdobramentos que esse tema teve, que para a mãe tinha um
sentido muito relevante: “Aí... quando caiu o cabelo até eu me assustei... as pessoas
dizem assim: ‘Vai cair o cabelo é simples...’ mas quando você vê, quando você pega no
cabelo, o cabelo soltando assim... como se fosse uma espuma é uma coisa muito
estranha... aí eu comecei a tirar como se fosse uma espuminha... aí meu coração
acelerou, me deu vontade de chorar... eu fiquei assim... aí com essa situação do cabelo
dele cair: ‘O quê que as pessoas iriam comentar?’”. A partir desse trecho parece que a
queda do cabelo foi a reafirmação do diagnóstico, além das pessoas notarem que seu
filho era portador de câncer infantil. Para a mãe de Pedro, ele era visto pelas pessoas
44
como uma criança “normal” antes do cabelo cair. No entanto, ao ficar careca as
pessoas tornaram-se mais curiosas e se aproximaram de Maria para terem o “veredicto”
da doença. Considerei muito interessante essa reação das pessoas, que explicita o
forte estigma que envolve o câncer. “Porque quando alguém vê uma pessoa com
cabelo... normal, andando e brincando pra lá e pra cá, ninguém chega e pergunta não...
mas quando o cabelo caiu, várias pessoas chegaram lá em casa pra perguntar... aí eu
chegava e respondia... falei toda a verdade, porque as pessoas ficam curiosas,
preocupadas [...] muitos deles ficaram espantados... nunca ninguém imaginaria que
isso poderia acontecer com o Pedro [...] algumas pessoas ficaram sabendo quando o
cabelo dele caiu”.
De acordo com Maria, a quantidade de pessoas curiosas aumentou quando
Pedro perdeu o cabelo e, numa tentativa de se proteger dessa “invasão” ela evita falar
sobre o diagnóstico, respondendo simplesmente que seu filho está submetido à
quimioterapia. Em determinada circunstância que conversávamos sobre a reação das
pessoas, perguntei se ela achava ruim explicar o que estava acontecendo com seu
filho, e ela respondeu: “Vai chegando uma hora que vai incomodando... Hoje vêm
pessoas me perguntar lá embaixo [no pátio do hospital]... muitas pessoas ficam
apontando só porque ele tá carequinha sabe... as vezes vêm na minha direção,
pergunta e a gente fica conversando meia hora para explicar... Hoje eu já não tenho
aquela paciência que eu tinha antes pra explicar... é como se fosse um afronta pra mim,
como se eu fosse invadida tá entendendo? A gente vai cansando... Porque tipo assim,
algumas [pessoas] dizem: ‘Como é que ele tá?’ e a gente tem aquela resposta
automática: ‘Tá bem!’ pra evitar de entrar em detalhes... mas a gente vê que a pessoa
quer chegar, quer perguntar ... algumas pessoas vêm e pergunta ‘O que é que ele
45
tem?’ e eu só falo ‘ele faz quimioterapia’, já pra evitar...” Considerei relevante essa
passagem da conversação de Maria, que denota como o câncer ainda tem um sentido
de “tabu social”. Enquanto que no passado a referência ao câncer era feita a partir de
eufemismos como “aquela doença”, hoje ela continua sendo uma doença de forte
impacto individual e social, instigando a curiosidade alheia e, no caso da mãe, uma
vontade de esconder-se numa tentativa de restabelecer a sua privacidade e de seu
filho. No complemento de frases observei que alguns itens relacionam-se justamente à
questão da privacidade e do incômodo de falar sobre o filho: 6. Em casa me sinto
protegida; 37. Me esforço para agir como se nada estivesse acontecendo;
4.4. SER MÃE DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER
Maria não planejou ser mãe. Em outras conversas com a pesquisadora, disse ter
engravidado por não ter usado preservativo. Talvez os motivos que impulsionaram
Maria a tentar abortar relacionam-se ao despreparo financeiro e psicológico para a
maternidade.
Durante o diálogo, Maria afirmou que está aprendendo a ser mãe com o câncer.
É muito interessante esse relato, pois novamente encontramos um indicador que
descaracteriza o câncer como produtor apenas de sofrimentos psicológicos e
emocionais. Nesse estudo de caso o câncer foi uma oportunidade para desabrochar
naquela mulher os instintos maternais, que até então ela mesma desconhecia: “Eu acho
que toda essa experiência que eu tô tendo é como se fosse um amadurecimento pra
mim para o futuro... porque eu nunca me achei com cara de mãe sabe... com jeito de
46
mãe... eu me acho assim... muito nova pra ser assim: mãe... isso tudo está me
amadurecendo muito, como cuidar dele, como fazer a alimentação dele [...] então hoje
tá servindo pra mim passar a cuidar dele melhor, pra observar ele melhor... Hoje eu me
sinto
mais
responsável...
não
que
eu não
fosse responsável... mas
uma
responsabilidade que eu não tinha... na questão de cuidar dele melhor...”
No complemento de frases existem alguns indicadores sobre o ser mãe para
Maria: 21. Ser mãe estou aprendendo... 27. Minha família eu e meu filho; 30 Pedro se
ainda existo é devido a ele; 32. Farei o possível para conseguir o melhor para o meu
filho; 35. Dedico a maior parte do meu tempo com meu filho;
Outra questão muito interessante que surgiu durante a conversa foi Maria
enfatizar que não pretende ter outros filhos porque tem traumas. Novamente vemos o
significado de ser mãe para Maria, mas sob outro prisma, com o receio de gerar outro
filho doente, como vemos no trecho da conversa: “Eu tô com trauma de ter outro filho...
tô com trauma... mais [filhos] de jeito nenhum! Não tenho coragem de ter outro filho...
não quero... tô com trauma... já não queria... depois dessa, aí é que eu não quero
mais... eu já coloquei o DIU pra evitar mesmo eu não penso mesmo em ter outro filho,
imaginando como é que seria essa situação”. No complemento de frases ela também
escreveu em dois itens sobre não querer mais filhos: 38. Ter filhos não mais! 42. Os
filhos não terei, pois só quero a um: Pedro.
Em nossos estudos sobre psicologia da saúde, percebemos que a doença pode
influenciar na identidade do paciente. No nosso estudo de caso, verificamos que o
adoecimento de Pedro tem forte influência na identidade de sua mãe. Na conversação
que tivemos, ela menciona que antes do diagnóstico tinha uma vida “normal” e,
atualmente, ela vive em função do filho e está sempre no hospital, como afirma: “tava
47
tudo bem, tava tudo ótimo, dormia, amanhecia, arrumava a casa, lavava a roupa, minha
vida era normal, tranqüila, fazia o almoço [...] Hoje não! Hoje a minha vida tá assim:
hospital e olhe lá dentro de casa, por que eu fico mais aqui dentro do hospital do que
dentro de casa... eu fico no máximo uma semana em casa, não passa de sete dias...
ultimamente tá sendo assim... a não ser que venha melhorar e ficar uns vinte dias em
casa que nem o médico disse”. Além do câncer, Maria falou sobre a influência do
sistema hospitalar em sua vida: “eu não me sinto à vontade dentro de um hospital... a
gente se sente assim... tipo controlada entendeu? Tipo como se fosse um controle do
filho, porque a gente tá ali submetida ao filho e não por causa dele.. você tá ali
submissa a ele.. e ele tá submisso aos médicos e aos enfermeiros...” Nesse item
observei que o sentido da permanência de Maria no hospital não é encarada como uma
acompanhante e mãe de uma criança, mas de alguém também submissa às diretrizes
do hospital.
Outro ponto que considerei muito interessante a partir da fala de Maria refere-se
às atividades desenvolvidas no hospital para as crianças internadas. Ela diz: “tem
coisas que animam a gente né... tem os palhaços alegres, tem as psicólogas, as
pedagogas também que fazem as tarefinhas, os desenhos, as pinturas, recortes...
então eu acho assim, que isso ajuda bastante a criança, e não só a criança, mas a mãe
também, porque deixa a gente assim... é como se tirasse a gente um pouco do quarto
que a gente está, tirasse a gente do mundo que a gente se encontra”.
Outro item que Maria trouxe espontaneamente durante a conversação foi sobre o
vício de fumar: “E eu comecei a fazer um tanto de coisa errada... comecei a fumar
depois que deixei a Igreja... eu tô tentando parar de fumar... não dá pro meu filho ter
câncer e eu ter depois... Mas aqui no hospital não tem o que fazer... é como se fosse
48
assim um ‘passatempo’... eu tô ali e o tempo vai passando... e passa rápido”. Esse item
nos leva a pensar sobre a estagnação da vida do acompanhante dentro do hospital.
Mesmo conhecendo sobre os malefícios do tabagismo, Maria fuma para se distrair e
para o tempo “passar mais rápido”. É nesse sentido que reflito sobre a benéfica
repercussão que terapias laborais teriam para os acompanhantes das crianças
internadas. Não desconsidero as diversas dificuldades que o sistema público de saúde
enfrenta para atender as necessidades básicas no tratamento dos pacientes, e que não
seria fácil empreender atividades como essas. Contudo, acredito que a saúde da
criança depende da saúde integral (corpo, mente e espírito) de seu acompanhante para
ajudá-la durante a internação e tratamento. É nesse sentido que considero fundamental
a reflexão sobre as condições dos acompanhantes e, no futuro próximo, empreender
medidas que possam auxiliar e amenizar a permanência dessas pessoas no ambiente
hospitalar.
No complemento de frases Maria se referiu em vários itens sobre outras mães e
seus filhos saudáveis: 7. As crianças de fora vejo saúde, e as mães desesperadas; 39.
Penso que os outros são mais felizes, pois seus filhos são saudáveis 40. Me
incomodam as mães que por uma pequena doença reclamam! Nesse caso observo que
Maria apresenta um ressentimento por estar passando pela situação de adoecimento
de Pedro. Comenta sobre as outras mães que se desesperam com doenças “mais
simples” e que acredita que as outras pessoas são mais felizes por não terem uma
criança com câncer no seio familiar. Considero comum esse posicionamento referente
às outras mães, pois quando as pessoas enfrentam qualquer situação aversiva, a
tendência é considerar a experiência pessoal mais árdua que a das outras pessoas.
49
4.5. SER MULHER E PROFISSIONAL
Durante os diálogos e com o complemento de frases, observei que Maria
desempenhava outros papéis antes do diagnóstico e que, atualmente, sente-se
impedida para exercê-los. Segundo ela, devido às hospitalizações freqüentes e
cuidados com o filho, precisou de licença profissional e não consegue manter um bom
relacionamento afetivo com o namorado. Esses indicadores ficaram muito claros
principalmente no complemento de frases: 16 O trabalho é a minha diversão; 18 Eu
prefiro a vida que eu tinha há 02 anos atrás; 23 Sinto dificuldade em ficar só! 24 Meus
maiores desejos é constituir minha família; 25 Tenho vontade de amar e ser amada; 29.
Com freqüência sinto solidão; 33. Com freqüência reflito na minha vida; 51. Meus
amigos afastaram-se um pouco.
Com tantos itens do complemento de frases referindo a aspectos profissionais e
pessoais, pude observar que atualmente Maria sente-se muito só e que, mesmo
enfrentando uma doença grave, tem necessidades afetivas como de outra mulher,
como a presença do companheiro, dos amigos e de trabalhar. É nesse contexto que
assimilo o complexo sentido que a hospitalização de Pedro pode assumir na vida de
Maria: ao mesmo tempo que esse local pode salvar seu filho, é também um empecilho
para sua vida amorosa e profissional. Acredito que essas dificuldades tenham um
sentido negativo na vida de Maria, pois emocionalmente não está satisfeita por vários
motivos: a solidão, o afastamento do trabalho e, principalmente, o adoecimento do filho.
Nesse caso, um grupo de apoio emocional dentro do hospital, para atender aos
acompanhantes
de
crianças
internadas,
poderia
ter
um
resultado
positivo.
50
Considerando que todos os acompanhantes estão enfrentando problemas parecidos,
num trabalho de grupo as pessoas poderiam participar desse processo de auto-ajuda.
4.6. A DOENÇA E O “APEGO A DEUS”
Um tema recorrente no discurso de Maria, e que não delimitei anteriormente,
refere-se à religiosidade. Considerando os sentidos que surgiram a partir dessa
temática, abri uma nova zona de inteligibilidade sobre nosso estudo de caso: a
religiosidade na vida de Maria.
O interessante é que esse tema aparece no cenário da participante como um
fator conflitante: Deus é conforto para o sofrimento e é também punitivo. Pode-se
compreender essa ambigüidade considerando a presença permanente da religião na
cultura brasileira e os atributos divinos. Um dos significados mais presentes na
subjetividade social acerca da religião é de consolo para os momentos difíceis. Já o
caráter punitivo relaciona-se com a proibição do aborto, já que a crença religiosa indica
que somente a Deus é permitido tirar a vida. Verificamos esse conflito a partir da fala de
nossa participante: No momento do diagnóstico: “Ah meu Deus, o quê que eu vou ter
que enfrentar...”; No início do tratamento: “Eu tenho que aceitar essa situação e que
Deus me dê força [...] Ultimamente Deus tem me dado força [...]”; No momento da
quimioterapia: “Ai meu Deus, vai começar de novo, sofrimento de novo”; Como fonte de
esperança: “você se apega mais a Deus... a melhor coisa mesmo pra te ajudar só Deus
pra te dar força...”. Já no complemento de frases vemos dois itens que demonstram a
51
conotação punitiva e do poder absoluto de Deus, que está muito presente na
subjetividade social: 11. Meu futuro só Deus! 47. Meu maior medo castigo de Deus;
Portanto, com essas informações ponderei a ambigüidade da religião na vida de
Maria. Contudo, parece-me que a religião tem mais importância para a saúde psíquica e
emocional na vida dessa mãe, uma vez que em várias circunstâncias ela menciona
Deus como suporte para os momentos de angústia e desespero. Corroborando com
esse fato, Pedrosa e Valle (2000) falam que uma das reações mais comum dos pais de
crianças com câncer é justamente o apego à religião.
Nesse sentido, considero fundamental a reflexão da equipe de saúde, inclusive
dos psicólogos, referente à crença das pessoas, pois na Academia esse tema é tido
muitas vezes como tabu ou visto com desdém. Acredito que em determinadas
circunstâncias, uma conversa com um padre ou pastor será mais terapêutico que uma
intervenção psicoterápica e nós, psicólogos, precisamos de uma certa “humildade” para
aceitar que a psicologia não é a solução dos problemas das pessoas, como crê a
maioria das abordagens psicológicas. Compartilho com o pensamento do professor
Walter Ribeiro (gestaltista), ao afirmar que as relações terapêuticas podem acontecer
em diversas circunstâncias, não necessariamente com um psicólogo.
52
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho com crianças com câncer não é uma tarefa fácil. Participei
semanalmente de suas vidas e acompanhei durante meses várias sessões de
quimioterapia, os efeitos agressivos do tratamento, e esperei ansiosamente com os pais
e mães os resultados do hemograma e das radiografias.
Tive que confrontar também a sombra da morte que ronda os corredores da
pediatria, além de acolher os acompanhantes angustiados com a realidade da incerteza
referente à cura de suas crianças.
Muitas vezes deparei-me com o desespero de pais e mães que, com os olhos
marejados questionavam-me “Por que isso está acontecendo com o meu filho?”. Porém
vivenciei momentos alegres, desde os resultados de regressão de tumores, e com o
carinho verbalizado e demonstrado pelas crianças e pelos pais ao visitá-los.
O principal objetivo desse trabalho foi analisar o sentido subjetivo que tem o
câncer infantil a partir da perspectiva singular da mãe de uma criança acometida por tal
doença. Em outras palavras, o sentido subjetivo do câncer infantil foi considerado a
partir da subjetividade configurada na vida de Maria.
Ao longo da pesquisa observamos claramente que a vivência da mãe é
complexa: com medos, receios, traumas e, também de aprendizado. A experiência de
conviver com um filho doente teve momentos positivos e negativos. Maria está
“aprendendo” a ser mãe, mais responsável e cuidadosa com seu filho, além dos outros
familiares aproximarem-se mais dela para confortá-la nesses momentos difíceis.
Mesmo com esse caráter positivo, o câncer também significa um obstáculo na vida
53
dessa mãe, que a impossibilita de ter experiências como mulher e profissional, além da
doença ser uma ameaça constante à vida do seu filho.
Em outras circunstâncias observamos que a doença tem também um caráter de
punição divina para Maria. Sabemos que essa compreensão do câncer como
intervenção sobrenatural é muito antiga e, nesse trabalho foi possível verificar que
muitas Representações Sociais sobre o câncer, como a punição divina, ainda estão
muito presentes na subjetividade individual e social.
Além disso, verificamos que Maria compreendia o câncer como sentença de
morte. Podemos afirmar que nesse caso há vários fatores que impossibilitaram uma
compreensão real dos avanços médicos na área de oncologia e das possibilidades
terapêuticas e cura. Infelizmente em nosso país as informações sobre essa doença são
muitos escassas. Acreditamos que a veiculação na televisão e no rádio sobre
prevenção e diagnóstico precoce auxiliaria as pessoas no enfrentamento dessa doença.
Durante o estágio em psico-oncologia pediátrica, observamos diversas
dificuldades dos acompanhantes, desde as acomodações nos quartos, precariedade do
serviço público de saúde que inviabiliza a agilidade nos procedimentos cirúrgicos e de
tratamento, até à impossibilidade desses pais e mães para expressarem suas angústias
acerca do tratamento e da doença. É nesse sentido que se torna imprescindível maior
atenciosidade de nosso governo ao sistema público de saúde, uma vez que os direitos
humanos são desconsiderados nos bastidores dos hospitais. Além disso, salientamos a
importância de trabalhos de apoio e suporte emocional realizado por psicólogos, com
acompanhamento individual e trabalhos de grupo. Consideramos também que a terapia
laboral teria grande valia, pois seu auxiliará aos acompanhantes durante o processo de
internação de seus filhos. Nesse caso, trabalhos manuais e o incentivo à leitura
54
poderiam amenizar a solidão e a angústia que os acompanhantes sofrem durante o
tratamento das crianças. Com certeza essas medidas teriam influência direta na saúde
da criança, uma vez que o restabelecimento dela depende da integridade física, mental
e espiritual de seu acompanhante. Sugerimos também o acesso de grupos religiosos
nas dependências do hospital, a fim de auxiliar religiosamente os acompanhantes e as
crianças internadas.
Nesse trabalho foi fundamental a participação ativa da participante e da
pesquisadora, pois as informações e outros temas que surgiram durante diálogo
propiciaram a construção de diferentes eixos para a inteligibilidade do nosso tema.
Novamente verificamos o fim da neutralidade e a importância do envolvimento da
pesquisadora no desenvolvimento eficaz de seus trabalhos.
Consideramos que a metodologia utilizada, a Epistemologia Qualitativa, foi
adequada para atender nossos objetivos para compreender os sentidos subjetivos da
mãe da criança com câncer. Como observamos no desenvolvimento dos núcleos
temáticos, o sistema de conversação e o complemento de frases foram recursos que
possibilitaram informações ricas sobre a repercussão do câncer na vida da mãe, bem
como outros desdobramentos que surgiram.
Finalizando, acredito que as experiências vividas dentro da pediatria oncológica
foram muito importantes, tanto para a minha profissão quanto para o meu
amadurecimento pessoal. Após a conclusão desse trabalho tenho mais entusiasmo
para continuar pesquisando, investigando e, principalmente, propondo novas medidas
que possibilitem uma melhor qualidade de vida para as crianças e de seus
acompanhantes, além de sugerir estratégias psicológicas que auxiliem as equipes de
saúde que combatem, diariamente, o câncer infantil.
55
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PEDROSA, Cláudia Mara e VALLE, Elizabeth Ranier Martins. Ser irmão de criança com
câncer: um estudo compreensivo. Pediatria, São Paulo v.22, nº2, p.185-194. 2000.
RODRIGUES, Karla Emília e CAMARGO, Beatriz. Diagnóstico precoce do câncer
infantil: responsabilidade de todos. Rev. Assoc. Med. Bras. v.49, nº.1, p.29-34, jan/mar
2003.
SIOP Sociedade Internacional de Oncologia Pediátrica: orientações psicossociais
em oncologia pediátrica. Tradução: Luciana Pagano Castilho Françoso e Elizabeth
Ranier Martins do Valle. Brasil. 2000.
SPINK, Mary Jane. Psicologia social e saúde: práticas, saberes e sentidos.
Petrópolis: Vozes, 2003.
TUBINO, Paulo e ALVES, Elaine Pediatria Cirúrgica: diagnóstico e tratamento.
Brasília: UNB, 2003.
VALLE, Elizabeth Ranier Martins. Câncer Infantil: compreender e agir. Campinas:
Editorial Psy, 1997.
_____ Vivência da família da criança com câncer. In Carvalho, Maria Margarida Moreira
Jorge (org), Introdução à Psico-oncologia. Campinas: Editorial Psy II. p.219 – 242,
1994.
VALLE, Elizabeth Ranier Morais; FRANÇOSO, Luciana Pagano Castilho. Quimioterapia
em crianças. Clínica Pediátrica. v.16 nº4 p.40-52, 1992.
58
ANEXOS
59
ANEXO I – CARTA CONVITE
CARTA CONVITE
Prezada Participante,
Gostaria de convidá-la para participar de um estudo conduzido como parte da monografia
de conclusão do curso de Psicologia do UniCeub, pela estudante Giselle de Fátima Silva,
orientada pelo Prof. Dr. Fernando Rey e pelo Psicólogo Alexandre Lima.
Nesse estudo, estarei estudando os aspectos psicossociais da família quando uma
criança adoece e com esta finalidade gravarei nossas conversas. Ao final desse trabalho todas
as fitas serão desgravadas.
Sua participação será totalmente voluntária. Caso aceite participar desse estudo, será
pedido a você que fale sobre suas experiências, sobre família, medos, alegrias etc. Você não
precisará dar informações que não queira e poderá interromper sua participação a qualquer
momento.
Sua experiência pessoal será de extrema importância para esse estudo. Com o material
de nossas conversas e entrevistas publicarei meu trabalho de monografia, sendo que todas as
informações que possam identificá-la serão omitidas. A partir desse trabalho terei meios para
analisar e enfatizar a relevância do apoio psicológico e de toda equipe de saúde não somente à
criança, mas a toda à sua família.
Desde já agradeço sua valorosa atenção e colaboração.
_______________________________________
Giselle de Fátima Silva
Brasília, _____de __________ em 2005
60
ANEXO II – CONSENTIMENTO
CONSENTIMENTO
Brasília, ____ de ________________ em 2005.
Compreendo o objetivo desse trabalho desenvolvido pela estudante de psicologia
Giselle de Fátima Silva, bem como o que é esperado por mim como participante.
Entendo que as informações por mim fornecidas serão totalmente confidenciais, e
que as fitas utilizadas serão desgravadas ao final dessa pesquisa. Entendo também que a
qualquer momento posso interromper a minha participação.
Tendo em vista as declarações acima, concordo participar desse estudo.
Nome....................................................................................
Assinatura............................................................................
Brasília, ____ de __________ em 2005
61
ANEXO III - ROTEIRO DE ENTREVISTA
FASE DO DIAGNÓSTICO
1. Qual idade tinha Pedro quando descobriram a doença? Como foi essa
descoberta?
2. Como foi o momento em que você souberam o diagnóstico? O que vocês
pensaram e sentiram?
3. Quais as principais lembranças deste período?
4. Mudou alguma coisa na sua vida depois que Pedro adoeceu? E na vida familiar?
5. Você e os outros familiares mudaram a forma de tratar Pedro?
FASE DO TRATAMENTO
6. O que você sentiu quando entrou pela primeira vez no Hospital para o início do
tratamento?
7. Há quanto tempo ele está fazendo tratamento? Já fez alguma cirurgia?
8. O que você pensa sobre a Quimioterapia?
9. Como vocês se sente durante o tratamento dele?
ORGANIZAÇÃO FAMILIAR
10. Quais as pessoas que cuidam do Pedro? De que maneira?
11. Como ficaram os cuidados da casa e dos outros filhos?
12. Como a família se organizou para cuidar dele enquanto ele estava internado?
13. Como ficou a rotina da família? Foi alterada de alguma forma?
14. O comportamento dos membros da família mudou?
15. Como as outras crianças da família (filhos, sobrinhos, primos etc) reagiram
quando Pedro foi internado?
16. Como ficou o trabalho dos pais e das outras pessoas que moram aqui desde o
início do tratamento dele?
17. A família recebeu algum tipo de ajuda? De quem?
18. Como a família pode ajudar nessa fase?
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COMPREENSÃO DO CÂNCER
19. Por que você acha que sua criança adoeceu?
20. O que é câncer para você?
21. Como você se sente falando sobre essa experiência?
22. Quais as sugestões você daria aos pais que souberam do diagnóstico de câncer
em seu filho?
23. Teve ou tem alguma experiência positiva durante essa fase da vida de Pedro?
63
ANEXO IV - COMPLEMENTO DE FRASES
1. Eu gosto de fazer amizades
2. O tempo mais feliz os meus 10 anos de idade
3. Gostaria de saber se meu filho vai vencer e crescer
4. Lamento as coisas que fiz antes de meu filho nascer
5. Meu maior medo a morte
6. Em casa me sinto protegida
7. As crianças de fora vejo saúde, e as mães desesperadas
8. Não posso me desesperar
9. Sofro com meu filho na quimioterapia
10. A vida é preciosa
11. Meu futuro só Deus!
12. Minha preocupação principal saúde do Pedro
13. Desejo ver todos nós felizes
14. Secretamente eu creio na cura
15. O maior problema da minha família a distância
16. O trabalho é a minha diversão
17. Amo minha vida
18. Eu prefiro a vida que eu tinha há 02 anos atrás
19. Acredito que minhas melhores atitudes será manter a calma e paciência
20. A felicidade conquisto a cada dia!
21. Ser mãe estou aprendendo...
22. Diariamente me esforço para aceitar as situações
23. Sinto dificuldade em ficar só!
24. Meus maiores desejos é constituir minha família
25. Tenho vontade de amar e ser amada
26. Hoje eu quero ser feliz
27. Minha família eu e meu filho
28. A doença é miserável
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29. Com freqüência sinto solidão
30. Pedro se ainda existo é devido a ele
31. Minha vida futura será sem doenças
32. Farei o possível para conseguir o melhor para o meu filho
33. Com freqüência reflito na minha vida
34. Esperam que eu vença
35. Dedico a maior parte do meu tempo com meu filho
36. Sempre que posso saio com ele para passear
37. Me esforço para agir como se nada estivesse acontecendo
38. Ter filhos não mais!
39. Penso que os outros são mais felizes, pois seus filhos são saudáveis
40. Me incomodam as mães que por uma pequena doença reclamam!
41. Tenho ajuda moral da minha família
42. Os filhos não terei, pois só quero a um: Pedro
43. Quando tenho dúvidas pergunto aos médicos ou pessoas
44. No futuro espero que tudo seja diferente, “mais alegre”
45. O Hospital tratamento que auxilia Deus
46. Detesto inveja, egoísmo e falsidade
47. Meu maior medo castigo de Deus
48. Os psicólogos trabalham a nossa mente
49. Estou melhor por estar vendo o meu filho bem!
50. Me deprimo quando ele está muito mal e fraco
51. Meus amigos afastaram-se um pouco
52. Se eu pudesse ser “Deus” nunca deixaria as crianças sofrerem
53. Internação casualidade
54. Os médicos mãos que auxiliam a Deus
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ANEXO V - DEGRAVAÇÃO
Participante: Maria mãe do paciente Pedro
Idade: 28 anos
1. Quando você ficou sabendo do diagnóstico?
Do diagnóstico mesmo, ele tinha 3 anos...
2. Como foi quando o médico disse o diagnóstico?
Foi um choque né, porque eu não esperava que isso poderia acontecer com ele...
igual tinha nesse programa agora, que tá passando agora na Globo né.. Laços de
Família. Na época que eu assisti, eu nem imaginava e sempre dizia assim: “Isso
nunca vai acontecer com o meu filho, graças a Deus!”. Eu nem assistia direito, nem
queria ver, eu não tava me importando... E quando eu descobri eu falei assim: “Meu
Deus do céu!!!” pensei que a gente nunca pode dizer “Dessa água não beberei”
porque isso pode acontecer com você depois. Eu fiquei abalada, triste, chorava,
chorava e chorava, e quando andava na rua eu não conseguia ver o chão.... assim...
eu esbarrava nas pessoas na rua, eu pisava assim e tropeçava... caía nos buracos...
mas eu não via nada. Eu olhava assim pro tempo e não conseguia enxergar, só com
aquilo no meu pensamento.
3. O que você pensava nessa hora?
Eu pensava assim... que ele não ia agüentar, que ele não ia conseguir porque tantas
crianças morrem com câncer, tantas pessoas morrem, porque o câncer é uma
doença tão pesada como a AIDS né? Ai eu pensava assim: “Poxa, meu filho não vai
conseguir?!”. Ai quando o médico explicou direitinho o tratamento e tudo e como que
seria...
4. Foi aqui no HUB o diagnóstico?
Foi, foi aqui que foi diagnosticado como câncer maligno. A doutora do HMIB ela
tinha dito que poderia ser um tumor, mas quando eu liguei pra ela e disse que em
menos de 15 dias o tumor tava crescendo mais ou menos uns 10 cm a mais do que
66
ela tinha visto, ela me encaminhou pra cá. Ai os médicos daqui me explicaram que
se tratava de um câncer maligno mas que tinha tratamento. Mas até ali eu não tava
confortada porque eu comecei a pensa, “Ah meu Deus, o que eu vou ter que
enfrentar...” tem remédio, as doenças que poderiam vir, os efeitos também amidalite,
estomatite, mucosite na boca, que ficou super ferida , e tem um monte de coisa que
eu posso tá durante um ano enfrentando porque eles (os médicos) falaram que seria
um ano de tratamento, esperando qualquer coisa pela frente.
5. E como você sente sabendo que vai ter que enfrentar a doença por um
ano?
Olha, é difícil a gente ficar aqui dentro de hospital. Porque assim... as normas... Eu
to com trauma de ter outro filho.... to com trauma... mais de jeito nenhum! Não tenho
coragem de ter outro filho ... não quero.... to com trauma... já não queria... depois
dessa, aí é que eu não quero mais... eu já coloquei o DIU pra evitar mesmo eu não
penso mesmo em ter outro filho, imaginando como é que seria essa situação.
6. Você acha que se tivesse outro filho aconteceria a mesma coisa?
Acho que poderia ter ou não ter, mas se não tivesse, como é que eu poderia cuidar
do meu filho porque eu sou só. Aí tipo assim, eu moro só com meu filho, e quem iria
cuidar dele? Ia ser uma situação difícil, e eu não quero de jeito nenhum.
7. O que mudou na sua vida depois que ele adoeceu?
Eu trabalhava... parei de trabalhar. Pedi licença... A minha família também mudou. O
que aconteceu com a família foi uma aproximação, devido a doença houve mais
uma aproximação... Mas meu pai é mais afastado, ele é separado da minha mãe...
ele ficou sabendo da doença mas não se aproximou.
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8. Como é que era a relação com a família antes do adoecimento?
A família sempre foi afastada... eu comecei a morar sozinha desde os 22 anos. Eu
saí de casa com 18 anos com a minha mãe. Ai quando eu tinha 22 anos ela voltou
pra casa e eu continuei a morar sozinha. Ai nunca mais voltei... eu casei, separei....
9. Mas quem aproximou?
Minha mãe, minha tia, meus primos, minha avó.
10. Você e as pessoas de sua família mudaram a forma de tratar ele depois do
diagnóstico?
Já tratavam ele assim... com dengo... piorou mais... com muito mimo, demais. O que
ele pede dá... por causa da doença né?! Fazem de tudo por ele, “o que você quer
comer, o que você quer ganhar...”. Antes de adoecer não ligavam tanto pra ele,
passava um mês... agora ligam pra saber como que ele ta... então teve mais uma
aproximação....
11. E o que você sentiu quando entrou pela primeira vez aqui no hospital para
iniciar o tratamento?
Eu pensei “Ai meu Deus, eu não acredito que vou ter que ficar aqui”, porque o
médico disse que ele teria que fazer um exame, estudo né... pra poder descobrir
realmente que tipo de tumor era. Ai eu ficava pensando que ia ter que ficar dentro
do hospital direto... Mas ai eu pensei: “Bem, se for preciso para a saúde do meu
filho, eu tenho que aceitar essa situação...” porque eu nunca fiquei tanto tempo
dentro de um hospital... Eu tenho que aceitar essa situação e que Deus me dê força.
Ultimamente Deus tem me dado força porque eu não gostava de ficar em lugar
fechado. Porque eu também tinha um namorado, e como ficaria minha situação?
12. Já tem quanto tempo que ele ta fazendo tratamento? Quatro meses.
Ele já fez cirurgia ou tem previsão? Não, o médico me explicou que não seria
necessário e começaríamos com a quimioterapia. Com a quimioterapia diminuiu
90%... 95%, quase totalmente agora né... A partir da primeira (do primeiro ciclo de
68
QT) diminuiu 90%, e depois sumiria, e a partir de agora ele ta naquela fase de
manutenção como se estivesse enfraquecendo o câncer né, pra não voltar...
13. Como você se sente quando ele está fazendo quimioterapia?
Ai... eu penso assim... “Ai meu Deus, vai começar de novo, sofrimento de novo”
porque ele sofre muito... igual agora ele disse: “Mamãe, eu to tonto.” Ai ele sente
tonteira, vontade de vomitar... Aí agora eu fico com medo dele vomitar, dele não
comer direito... porque quando tem quimioterapia ele emagrece mesmo.... e o medo
de voltar um outro problema... aquelas feridas na boca e ele ficar mais 10 dias sem
comer.
14. O que você pensa sobre Quimioterapia?
Um tratamento muito pesado. Um tratamento... eu acho assim, é violento pro corpo
de uma criança, porque... da forma como ela age... Nossa, eu acho ela muito forte,
muito forte, só sabe quem ta perto pra observar, porque a criança muda totalmente.
Ele fica nervoso, agitado, ele briga comigo, luta, chuta sabe... é uma coisa horrível.
Então a gente tem que ter aquela paciência , é uma coisa assim que eu tenho que ir
adquirindo com o tempo, porque a gente nunca tá preparada pra isso, mas a gente
tem que tá tipo moldando... porque aquela situação ali vai acontecer com mais
freqüência então você tem que ta procurando ter aquela paciência senão a
tendência é piorar.
15. E da onde você tira forças para ter essa paciência?
Eu penso que é só aquele período que ele ta tendo, seis dias de quimioterapia e que
naquele período tem que ter paciência, falar manso com ele né... e que depois
daqueles seis dias vai passar e que eu vou poder voltar ao normal (risos). Tem que
ter paciência com ele nesse período... Quando a gente ta em casa.... o que eu não
relevava hoje eu relevo 40... 50 % Primeiro porque ele ta sofrendo com essa doença
fica mais nervoso e agitado por causa dessa doença... então é isso, tem que ter
paciência.
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16. Eu me lembro que no dia que a K. (07 anos) faleceu você estava muito
nervosa... O que você sente quando você vê outras crianças fazendo
tratamento para a mesma doença?
Eu tava arrasada... Quando a menina da Carmem faleceu, é como se o meu filho
tivesse morrido... Assim, porque eu vi o meu filho no lugar da K.... eu me senti no
lugar da Carmem. Porque a gente nunca ta preparada para a morte... a gente fala
assim: “ah, eu não to preocupada não”... e quando a gente vê aquela criança
prostrada na cama, sem se mexer, a gente nunca imagina... a gente vê ela sofrendo
aos poucos né.. mas a gente nunca pensa que ela vai morrer da forma como ela
(K.) morreu. Então quando eu vi eu fiquei super chateada, super assim... triste
porque... eu pensava “Ai meu Deus do Céu, será que meu filho vai passar pela
mesma situação? Será que ele vai conseguir?” Porque essa menina fez um
tratamento de sete anos... no dia antes dela morrer a mãe dela tava assim... parece
que ela sentia... e eu também sentia entendeu... então eu fico pensando, “Meu Deus
do céu, meu filho vai conseguir, vai vencer essa doença, porque a mãe dela lutou
durante sete anos né.. o câncer da filha dela... e ela foi derrotada, perdeu a batalha.
Mas você sabe que o caso da K. era diferente, ela teve câncer no rim...
17. Quem te ajudou no tratamento dele?
Eu... (risos).. eu moro só né... lá em casa eu trabalho... quando eu não sabia do
problema dele eu trabalhava e tinha uma vizinha que cuidava dele, eu pagava ela e
ela olhava ele pra mim, e era assim todo dia... eu trabalhava e não dependia de
ninguém. Hoje não porque eu to sem trabalhar, eu vivo mais pra ele do que pra
mim...
18. E como é que você ta fazendo para se sustentar?
Eu tô recebendo normalmente né... eu trabalhava numa escola e eu entrei com
atestado e pedi licença durante um ano... e eu vou me sustentando...
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19. E como você sente sem o trabalho?
Eu sinto falta porque a minha vida era mais tranqüila, sem preocupação, eu ia
trabalhar, era só meio período, só trabalhava cinco horas né... eu ia trabalhar e
voltava pra casa... pra mim era mais como uma diversão... porque lá eu trabalhava
na secretaria da escola, então trabalhava diretamente com o publico e me distraía,
conversava, fazia amizades e o tempo passava muito rápido ... aí eu voltava para
casa, tava tudo bem, tava tudo ótimo, dormia, amanhecia, arrumava a casa, lavava
a roupa, minha vida era normal, tranqüila, fazia o almoço. Na época ele tava na
escolinha e teve que deixar por causa do tratamento. Hoje não, hoje a minha vida ta
assim: hospital e olhe lá dentro de casa, por que eu fico mais aqui dentro do hospital
do que dentro de casa... eu fico no máximo uma semana em casa, não passa de
sete dias... ultimamente ta sendo assim... a não ser que venha melhorar e ficar uns
vinte dias em casa que nem o médico disse.
20. Como que é dormir no hospital?
Olha, é uma coisa assim... muito desconfortável... ninguém gosta de ficar num
hospital, eu não me sinto a vontade dentro de um hospital... a gente se sente
assim... tipo controlada entendeu? Tipo como se fosse um controle do filho, porque
a gente ta ali submetida ao filho e não por causa dele.. você ta ali submissa a ele.. e
ele ta submisso aos médicos e aos enfermeiros... mas fora isso tem as pessoas que
a gente me distrai, porque eu gosto de fazer amizade e isso ajuda muito aqui dentro
do hospital... adoro fazer amizade.
21. E como que é o clima aqui dentro do hospital, assim, médicos, enfermeiros,
psicólogos... como é que você sente com eles?
Ah, eu me sinto assim... com eles eu me sinto a vontade porque o que eles passam
pra gente é não deixar a gente ficar preocupada... os médicos estão sempre
conversando com a gente... a gente faz uma pergunta e eles vêm pra conversar...
tem coisas que animam a gente né... tem os palhaços alegres, tem as psicólogas, as
pedagogas também que fazem as tarefinhas, os desenhos, as pinturas, recortes..
então eu acho assim, que isso ajuda bastante a criança, e não só a criança, mas a
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mãe também, porque deixa a gente assim... é como se tirasse a gente um pouco do
quarto que a gente está, tirasse a gente do mundo que a gente se encontra.
22. Tem crianças na sua família? Como elas ficaram quando o Pedro precisou
internar?
Teve as minhas sobrinhas né... elas moram perto lá de casa... elas tinham 06 anos
e a outra tinha 11 anos.. foi um choque pra elas... elas choraram, ficaram tristes né...
acho que elas pensaram né ... elas ficaram sabendo que o Pedro tinha uma doença
muito grave né... e elas começaram a chorar e a ficar desesperadas.. ai a mãe delas
conversou sobre o tratamento né... ai quando viram que ele voltou pra casa ai elas
devem ter pensado “Não deve ser tão grave assim”...
23. E como foi quando caiu o cabelo?
(Pausa) Ai... quando caiu o cabelo ate eu me assustei... as pessoas dizem assim:
“Vai cair o cabelo” é simples... mas quando você vê, quando você pega no cabelo, o
cabelo soltando assim... como se fosse uma espuma é uma coisa muito estranha...
ai eu comecei tirar como se fosse uma espuminha... aí meu coração acelerou, me
deu vontade de chorar... eu fiquei assim... aí com essa situação do cabelo dele cair:
“O quê que as pessoas iriam comentar?” *Pedro interrompe e diz: “Ai as pessoas me
chamava de careca”. Ninguém ficou com medo de chamar ele de careca. Porque
quando alguém vê uma pessoa com cabelo, normal, andando e brincando pra lá e
pra cá, ninguém chega e pergunta não... Mas quando o cabelo caiu, várias pessoas
chegaram lá em casa pra perguntar.. ai eu chegava e respondia... falei toda a
verdade, porque as pessoas ficam curiosas, preocupadas...
24. E como foi a reação deles?
Ah...
muitos deles ficaram espantados... nunca ninguém imaginaria que isso
poderia acontecer com o PEDRO Mas você não contou o diagnóstico pra eles?
Não, algumas pessoas ficaram sabendo ne... e só descobriram quando o cabelo
dele caiu algumas dessas pessoas eu não tinha contato com eles.. quando eles
viram ele careca e assim se aproximou a mim e perguntava “Nossa, fiquei sabendo
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que o seu filho tá fazendo tratamento de quimioterapia... nossa, até o cabelinho dele
caiu” ai eu expliquei toda a situação, ai elas dão aquelas palavras de conforto ne...
ai a gente bola pra frente de novo, e assim vai...
25. Você achou ruim ter que explicar para as pessoas?
Vai chegando uma hora que vai incomodando... quando eu cheguei aqui tinha umas
mães que não tinha paciência pra falar das meninas delas... a Carmem é um
exemplo. Eu perguntava e ela ficava com a cara fechada, mudava de assunto e saia
de perto. E eu não conhecia ela e eu não entendia... ai eu pensava que ela era
muito mal humorada, que ela era chata... Mas não. Hoje eu entendo a situação,
porque eu to passando pela mesma coisa que a Carmem tava passando. Hoje vem
pessoas me perguntar lá embaixo... muitas pessoas ficam apontando só porque ele
tá carequinha sabe... “Olha lá, olha lá...” as vezes vêm na minha direção, pergunta e
a gente fica conversando meia hora para explicar... Hoje eu já não tenho aquela
paciência que eu tinha antes pra explicar... é como se fosse um afronta pra mim,
como se eu fosse invadida ta entendendo? A gente vai cansando... Porque tipo
assim, algumas assim e dizem “Como é que ele ta?” e a gente tem aquela resposta
automática “Tá bem!” pra evitar de entrar em detalhes... mas a gente vê que a
pessoa quer chegar, quer perguntar ... algumas pessoas vêm e pergunta “O que é
que ele tem?” e eu só falo “ele faz quimioterapia”, já pra evitar...
26. E como é a reação das pessoas quando elas realmente sabem do
diagnóstico?
Nossa, eles ficam assim: “Nossa, coitadinho! Tadinho dele! Como é que pode isso
acontecer com criança...” Elas ficam assustadas, como se fosse uma AIDS... uma
doença que não tem cura. Ai já teve ate uma senhora que disse “Ah, mina filha, ele
não vai escapar”. Ai eu fiquei calada e depois dei a resposta pra ela... porque ela
teve um filho que teve câncer, e ela acha que da mesma forma que o filho dela
morreu, o meu vai morrer também. Ela acha que todo o câncer é igual, sendo que o
câncer não é igual, cada câncer é diferente.
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27. Por que você acha que ele adoeceu?
Ai... vem tanta coisa na minha cabeça... antes dele nascer eu tentei tirar ne... as
vezes eu acho que pode ter acontecido
de ter... não sei... de ter dado algum
probleminha nas células dele... ter ficado diferente... Eu penso também que pode
ter sido porque eu coloquei ele na creche, durante dois anos na creche direto... eu
trabalhava... ele ia pra creche durante o dia e eu ficava em casa... sendo que eu
poderia ficar com ele... só que eu queria que ele fizesse alguma coisa. Ele não
poderia ir pra creche só a tarde? Eu coloquei ele pra ficar o dia todo. Eu poderia
ter colocado ele só em meio período... então eu tenho essa culpa na cabeça, eu
acho que poderia ter colocado só em meio período não em dois. E quando ele
chegava eu dava pra menina que olhava ele e corria pra escola. Era uma troca no
portão. Eu só via ele durante vinte minutos todos os dias, durante dois anos. Então
ele chorava, e pedia, “Mamãe, mamãe...” gritava, não queria que eu fosse
trabalhar... é como se eu tivesse largado, abandonado ele.. mas assim, era só por
causa de questão do trabalho, mas assim, eu nunca sai final de semana pra deixar
ele em casa ou deixar ele com alguém. Eu nunca sai assim, pra festa... a minha vida
sempre foi assim, pra ele. Porque eu era sozinha, como é que toda vez eu iria ficar
pagando alguém pra ficar olhando ele? Era a minha consciência que ia pesar
também... eu ficava pensando que poderiam bater dele, não cuidar bem dele... são
essas situações. Outra situação também é que ele sempre foi muito doentinho. Já
nasceu doentinho. Quando ele nasceu, com 9 meses ele deu infecção intestinal,
teve também um problema no ouvido, e ficou 1 ano e uns 9 meses, quase 2 anos
com o ouvido purgando... ai eu ficava procurando otorrino, fazia drenagem no
ouvido e saia muito pus... minha vida sempre foi hospital e nada resolvia, até que
graças a Deus que uma vizinha pingou um “óleo de pau” e curou ele. Porque senão
eu tinha que ficar numa lista de espera pra conseguir otorrino ou ir pra emergência,
e ele só ficava tomando amoxilina, nassin e outros antibióticos... ai ela colocou uma
gota desse óleo de pau em cada ouvido a cada dois dias e ele melhorou, nunca
mais.. então você vê, uma coisa simples curou ele. Então eu penso que pode ser
essas coisas: o abandono, essa coisa que eu fiz de querer tirar, e essas doenças
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que vieram.. eu acho que pode ser uma dessas três coisas, mas não sei te dizer
qual... eu sinto isso.
28. O que é câncer pra você? Como você define essa doença?
Câncer... câncer... eu acho que é uma doença muito triste. Porque ela vai
definhando a criança aos poucos, a pessoa... ela vai acabando com a pessoa aos
poucos, vai destruindo aos poucos até a morte. É como se não tivesse bom pra
ela... é como se para o câncer nada tivesse bom e ele quisesse tomar conta de
todos os órgãos até a morte. Ela pára os rins, pára o pulmão, pára várias partes do
corpo até a criança não ter mais força... então eu acho assim, uma doença muito
triste... (pausa) Mas eu também acho que é uma doença curável também ...
porque... as vezes, sabia, é bom ver crianças aqui que curaram, porque a gente tem
mais força, mais esperança... porque as vezes aparece criança aqui que já foi pra
UTI, que foi pro quarto de isolação, que já passou por várias situações difíceis e
você vê a mãe relatando ai eu pensei: “Poxa, então tem cura!” O menino cresceu, ta
cabeludinho, gordinho, saudável, só vem aqui só pra fazer exame de rotina, pra ver
se ta tudo bem, se não ta voltando... então eu acho que tinha que ter isso... acho
que os hospitais tinham que colocar fotos de crianças que começaram o tratamento,
durante e depois... porque se tivesse isso aqui eu seria uma das voluntárias,
colocaria a foto dele, se no caso meu filho conseguir a cura, porque eu acredito que
ele vai ter a foto dele lá... eu acho que ele vai conseguir... uma foto lá, cabeludinho e
sem quimioterapia. Então quando as pessoas falam assim: “Queria fazer uma
entrevista, só que eu não vou colocar o seu nome... igual tirou as fotos dele na
odontologia voluntária pra mostrar a situação da boca.. ai eu falo que não tem
problema colocar a foto dele, não tem problema nenhum”.
29. Qual sugestão você daria para uma mãe e para um pai que soubesse agora
do diagnóstico do filho?
(Pausa) Eu acho que a sugestão que eu daria, é que eles tivessem paciência... e
que aguardasse o tratamento, que ela acompanhasse direitinho, e que ela tivesse
certeza que o filho dela poderia curar. Porque quando eu cheguei aqui eu estava
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sem esperança... com o tempo que a gente vai adquirindo, que a gente vai vendo a
evolução.
30. Por que você não tinha esperança?
Porque a palavra câncer... todo mundo que eu conheço vem me fala: “Ah, meu pai
morreu de câncer, minha tia, meu primo...” entendeu? Quando eu falo que meu filho
tem câncer a pessoa fala assim: “Meu tio morreu de câncer”. Ai outra pessoa vem e
fala: “A minha mãe, a minha tia morreu de câncer...” só vem assim... Ninguém fala
de cura... Logo quando eu cheguei e que algumas mães tinham filhos internados e
fazendo tratamento de câncer, pegavam e falavam: “Nossa, aqui teve tal criança
que morreu, teve outra, outra...” foi relatando e me contando nos dedos as crianças
que morreram mas não falaram pra mim das crianças que salvaram. Então deixa a
gente deprimida sabe... deixa a gente assim... sem esperança na hora... mas a
gente tem que acreditar na palavra do médico, com a evolução e com o
acompanhamento do tratamento você vai vendo, vai observando como vai o
andamento e vai aceitando mais a situação... hoje eu aceito. Antes não aceitava, me
revoltava: “Por que isso ta acontecendo comigo?” O meu filho já nasceu dentro do
hospital, e eu vinha acompanhando meu filho até essa idade dentro do hospital e
agora vem um câncer?! Pra me deixar mais tempo dentro do hospital? Então isso
me revoltou... então o que acontece... você se apega mais a Deus... a melhor coisa
mesmo pra te ajudar só Deus ... pra te dar força...
31. Como é que foi esse apego a Deus?
Eu era evangélica, ai eu sai da Igreja... ai veio essa situação dele e eu voltei para a
Igreja... por causa dele. Tem um culto evangélico aqui no hospital e eu vou, levo
ele... e eu tinha me afastado de Deus. E eu comecei a fazer um tanto de coisa
errada... comecei a fumar depois que deixei a Igreja... eu to tentando parar de
fumar... não dá pro meu filho ter câncer e eu ter depois... Mas aqui no hospital não
tem o que fazer... é como se fosse assim um “passatempo”... eu to ali.. e o tempo
vai passando... e passa rápido.
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32. Como é que você se sente falando sobre as suas experiências?
Eu acho assim... que toda essa experiência que eu to tendo é como se fosse um
amadurecimento pra mim para o futuro... porque eu assim... eu nunca me achei
com cara de mãe sabe... com jeito de mãe.. eu me acho assim... muito nova pra ser
assim... mãe... isso tudo ta me amadurecendo muito, como cuidar dele, como fazer
a alimentação dele.... Coisas que na verdade... antes eu não fazia jantar, não fazia
almoço... pegava e comprava lanche... Fazia compra só de besteiras: comprava
biscoitos, danone, fazia sanduíche, misto quente... eu não comia nem ele. A gente
vivia de guaraná, suco... então depois disso eu comecei a fazer uma alimentação
certa, então hoje ta servindo pra mim passar a cuidar dele melhor, pra observar ele
melhor... Hoje eu me sinto mais responsável... não que eu não fosse responsável...
mas uma responsabilidade que eu não tinha... na questão de cuidar dele melhor...
33. Você acha que teve algum lado positivo com o adoecimento dele?
Acho. Na questão dele está mais próximo da Igreja... antes eu não fazia questão
ne... hoje eu levo ele pra igreja... não assim, aquela coisa certinha de estar dentro
da Igreja.. mas eu levo ele... assim, eu acho que melhorou mais nessa questão: no
meu amadurecimento e como encarar a vida... Porque essa fase está sendo tão
difícil na minha vida que eu acho que o que vier pela frente eu vou tirar de fichinha...
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ANEXO VI - CARTAZ SOBRE CÂNCER INFANTO-JUVENIL
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ser mãe de uma criança com câncer: um estudo