NINOS
RESUMO
A autora relata o percurso de um período de seu trabalho analítico,
com uma paciente que chegou à análise, trazida pelos seus pais ,
então desorientados em conseqüência de sua total reclusão física e
psíquica. No intuito de alcançar seu objetivo, utiliza-se de material
clínico, descutido à luz de conceitos fundamentais da psicanálise atual.
Palavras chave: Transformação em alucinose (certezas absolutas),
relação simbiótica, identidade, homossexualidade, diferenciação,
cesura.
Elenice Maria Zecchin Pereira Giannoni
(membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo)
1
Introdução
O primeiro capítulo de Transformações (Bion, 1965) inicia-se assim:
“Suponha o pintor que contempla a trilha, em campo semeado de papoulas, e o
pinta: num extremo da cadeia de eventos, o campo de papoulas, no outro, o
pigmento disposto sobre a superfície da tela. Podemos reconhecer que a última
representa o primeiro, a modo que, não obstante as diferenças entre o campo
de papoulas e o pedaço de tela, suponho que algo permaneceu inalterado, e,
desse “algo”, vai depender o reconhecimento... (mais adiante)
Para meu
intento, convém considerar a psicanálise parte do grupo de transformações”.
Este é o meu objetivo: descrever a experiência de psicanalisar
uma “garota” de 22 anos, que vou chamar de Raia, como se estivesse
pintando um quadro, no qual o esboço inicial, tosco e inerte, é
contornado e preenchido por pinceladas coloridas que induzem à vida.
No intuito de facilitar a leitura, utilizo-me das estrofes de um dos
meus poemas (anexado no final deste relatório) como invariantes que vão
nomear os capítulos desta estória.
2
“O encontro, acontece”
Quando os pais de Raia me procuraram, pareciam muito
assustados dizendo que não sabiam o que estava acontecendo com a
sua filha mais nova, de 22 anos. “ Ela se tranca no quarto e não fala com
ninguém! Nem mesmo com a irmã que é um ano mais velha que ela, e à
qual era bastante ligada, até pouco tempo atrás!” Aliás, a mãe relaciona o
início dessa postura estranha da filha, com o rompimento entre as irmãs.
Diz que elas faziam ginástica juntas e levavam a sério um regime
alimentar rigoroso. “Raia chegou a pesar 45Kg e o médico que
consultamos, proibiu tanto o regime quanto os exageros físicos. Ela não só
voltou ao peso anterior, como adicionou mais 20 Kg. Agora se sente gorda
e diz que porisso, não sai de casa.” Na concepção dela, a família era
perfeita antes desse “episódio” e suas filhas nunca lhe deram trabalho.
Havia algo na dinâmica desse casal, por mim captado, que me
levava a pensar em uma mãe que parecia interditar, e um pai que
funcionava como uma mãe. Ela não era absolutamente masculinizada, e
nem ele efeminado! Pensando bem, era como se as funções materna e
paterna, se diluíssem entre os dois, servindo mais para confundi-los do que
para auxiliá-los na árdua tarefa da paternidade- maternidade.
“O Encontro é Turbulência!”
Raia veio com o pai e a mãe, muito pálida (com fundas olheiras)
e visivelmente contrariada! Vestia um agasalho de inverno tipo ”jocoso”
que se assemelhava mais a um macacão de bebê, disfarçando assim, a
sua ident-idade.
Convidada a entrar, olha para os pais receosa, como se tivesse
sido arrancada do meio deles e vai logo me dizendo que não queria vir;
que não sai de casa para nada, há vários meses. Perdeu todas as
amizades, depois que terminou a faculdade...e não sente vontade de
retornar às solicitações (via email) que eventualmente essas pessoas lhe
fazem. Fala também que tem pensado em morrer!... Não em se matar
propriamente , mas em arranjar um jeito de deixar alguma doença tomar
conta de seu corpo, até a morte!. Diz que seus pais ficaram mais
assustados (e ela também) quando a viram sangrando por conta dos
arranhões que ela própria havia desferido nos seus braços. Tem também a
compulsão de arrancar os cabelos...Vai me mostrando as cicatrizes dos
braços e a falha dos cabelos, enquanto fala. Olho com atenção, sentindo
profundo pesar por conferir as marcas no corpo, de um sofrimento
psíquico, tão intenso, em uma “menina” de 22 anos.
Explico-lhe o que faço, dizendo-lhe que gostaria muito de poder
ajudá-la, mas que para isso, se fazia necessária a presença dela algumas
3
vezes por semana. Ela fica desolada, inquerindo-me com o olhar não sei
se de súplica ou de ódio.
Voltou no dia seguinte e a encontro novamente com seus pais
na sala de espera. Visualizo a mãe sentada numa cadeira defronte ao
sofá onde Raia está praticamente “aninhada” no pai! Entramos e ela me
diz que ia tentar vir 3 vezes por semana, só porque os pais estavam
insistindo muito, mas que não podia garantir sua permanência no
tratamento. Fala também que já havia deixado a outra psicóloga, porque
essa estava mais para cuidar da filha pequena do que dela. “Eu ficava
“puta da vida” com ela porque abria, várias vezes, a sala para a menina
que esmurrava a porta” .
Aceito a sua proposta, e iniciamos um trabalho árduo! Ela fala
bastante, sempre tentando impor os seus (pré) conceitos, sobre o que é ,
certo ou errado, numa ansiedade crescente que não deixa brecha para
qualquer intervenção minha.
Fala do ódio que sente pela irmã, um ano mais velha que ela e
do desejo de vê-la morta: “Descobri, o ano passado, que ela é lésbica...e
não sei se meus pais sabem disso...se sabem, não falam nada!... Eles
continuam a sustentá-la, mais a “vagabunda” que mora com ela!.
Raia nasceu na véspera do primeiro aniversário de sua irmã.
Não me recordo da forma como isto me foi narrado, mas o fato é que
parecia confuso para mim, saber quem era a mais velha, ou qual delas
havia impedido a outra de festejar o seu primeiro aniversário. De qualquer
forma, me dei conta de um certo “atropelamento” logo no início da vida
das duas irmãs, que se misturaram desde pequeninas, num só colo
materno: uma do lado de fora e outra do lado de dentro, pois a mãe
engravidou dela quando sua irmã tinha três meses de idade.
Naturalmente ela invadiu o espaço da irmã mas também sentiu-se, penso
eu, sem nunca ter tido “um colo” só para ela, pois a irmã de um ano
“reinvindicava “ continuamente seus direitos.
Me conta que elas eram “grudadas” desde pequenas, e que
faziam tudo juntas: jogavam futebol, faziam ginástica e quando
alcançaram os 16 – 17 anos, percorriam as “baladas” da cidade. Ela
acompanhava essa irmã, a todos os lugares, pois apesar de ter carteira de
motorista, só a irmã dirigia o carro que era de ambas. Começou a
freqüentar baladas “gays”, para vigiar a irmã e chegou a experimentar
contato físico com mulheres, só para não “perder a irmã de vista” . A
grande decepção, aconteceu quando a irmã arranjou “essa namorada”
e foi morar com ela em São Paulo. Chora muito ao dizer: “se a minha
irmã, me abandonou por outra pessoa, em quem mais eu posso confiar?”.
No período pior de sua doença, impedia que a irmã voltasse
para sua casa, nos finais de semana, ameaçando aos pais com alusões a
suicídio; de fato conseguiu afastá-la, para grande sofrimento deles!.
Tinham medo dela e portanto não a contrariavam em nada...Aliás nem
mesmo falavam com ela, temerosos de suas reações.
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“Os meninos”
Raia fala da composição da sua “família perfeita”, composta de
cinco elementos. Pergunto-lhe se não são quatro ( o casal e 2 filhas) ao
que ela retruca: “ A família perfeita, sou eu ...meu pai, minha mãe e os
meninos...”Surpreendo-me com a novidade, pois pensei que eram só
duas filhas. Descubro então que os “meninos” são 2 cachorrinhos,
tratados como gente, e que para ela são os mais importantes nessa
constelação familiar. Assim, na sua percepção, seus pais têm que se
comportar como se fossem “avós” dos cachorros, já que ela se imagina
“a mãe” de dois bebês, chamados Bat e Hot. Na sua fantasia deliróide,
tudo gira em torno desses animaizinhos que são vestidos, alimentados e
aconhegados como bebês, na sua própria cama.
Passou a me trazer cenas incríveis do dia a dia: os pais tinham
que auxiliá-la nos cuidados dos “meninos” mantendo-se trancados com
ela, enquanto ela os alimentava. “Meu pai fez de propósito...abriu a porta
da cozinha e o Bat que estava comendo, se distraiu e saiu correndo para
fora!...briguei muito com meu pai...e sabe o que ele disse?...que cachorro
é cachorro! .
Ela não fazia idéia do absurdo da situação, sentindo-se
terrivelmente injustiçada e desconsiderada pelo pai (ou pela mãe,
quando esta tirava o cachorro do sofá para poder sentar-se), dizendo
que eles não valorizavam o seu esforço...como se os cachorros tivessem
para eles, o mesmo significado que para ela. Quando lhe aponto isso, ela
parece surpresa, dizendo que eles também gostam dos cachorros!. Digolhe que, provavelmente gostam, sim, mas que não os vêem como
“integrantes humanos” da família, ao que ela raiou: eles não são mesmo
gente...são muito melhores que gente...gente não presta...trái..engana!
Eles são fiéis!...Só posso contar com eles!...
O tempo passava e eu percebia, cada vez mais, que Raia vivia
praticamente encerrada em suas fantasias deliróides (transformadas em
“certezas absolutas”) que quando contestadas, produziam nela um ódio
profundo, que se transparecia no seu olhar, no seu falar desdenhoso e
áspero. Era assim, que provavelmente calava a todos em sua casa e que
tinha o mesmo objetivo na análise. Freqüentemente colocava
pensamentos e sentimentos nos cachorros, assim
humanizando- os.
Nessas ocasiões, dizia-lhe que ela parecia pensar que os cachorros
pensavam e sentiam como ela, ao que ela Raia-va dizendo: “Você pode
falar o que quiser a esse respeito!...nada vai mudar!...(quase aos berros).
Era óbvio que ela queria me calar, mas ao mesmo tempo, vinha
assíduamente, dizendo-me que eu era a única pessoa (além dos
cachorrinhos) com quem ela falava ultimamente, ao que eu retrucava:
E.: Então eu sou um animal que fala?
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Ao mesmo tempo que eu ia ficando assustada com essa
formação deliróide tão bem instalada, onde não havia a mínima
diferenciação entre ela e os pais (e entre ela e os animais) e para a qual
ela queria me cooptar, vinha-me à cabeça, cenas engraçadas, nas quais
via os cachorrinhos sentados nas patas traseiras, (de touca e babador),
fazendo graça e desviando a boca (focinho) do “aviãozinho” que ela
encenava para que, distraídos, se alimentassem.
Era “tragi-cômico”!...Não sabia se ria ou se chorava!...Mas pelo
menos, parece que me ajudavam a desenvolver continência para as
suas “bizarrices” e a ir devagar, procurando a melhor forma de falar com
ela.
Assim foi que, certo dia, após ouvir sua queixa de que não podia
mais sair de casa (quase não veio à sessão) porque o Bat e o Hot se
prostravam atrás da porta, com carinhas tristes e ali ficavam “grudados”
até ela voltar, eu me pus a falar com “vozinha de cachorro”:
Au!...au!...au!...Abre essa porta ...deixa eu rolar no barro, correr atrás
do gato...comer lagartixa ...matar o rato...au...au...au!
Para surpresa minha, ela desatou a rir e pela primeira vez me
permitiu contrariá-la nas suas “certezas absolutas” que redundavam em
humanizar os animais e converter os seres humanos (principalmente a
irmã) em animais selvagens!
Raia usou os primeiros meses de análise para denegrir a família
materna e para destilar todo o seu ódio contra a irmã, sob o pretexto de
proteger os seus pais da grande decepção, que ela lhes causava. Ela
descreveu a relação “simbiótica” que tinha com essa irmã, desde o inicio,
de tal forma que me pareceu na verdade que eram “xipófogas”, como se
dois corpos usassem o mesmo par de pernas, de forma que onde ia uma,
a outra era arrastada junto!. Me questionava, “raivosamente” quando, me
atribuindo parceria com sua irmã, dizia : “Você queria ter um filho
homossexual?”
A questão da homossexualidade dela, estava presente em toda
a sessão, convidando-me a interpretação, (que provavelmente não
levaria a lugar nenhum), pois servia para encobrir algo mais regredido que
se assentava sobre a questão da sua (não) identidade. Assim era levada
a se apossar e confundir-se com qualquer pessoa da qual se aproximava:
mãe, irmã, cachorros e agora provavelmente eu, tentando tirar-me o
direito de pensar e falar, transformando-me numa extensão dela!
Na percepção de Raia, os pais (como ela) não transavam,
eram assexuados. Ela dedicava toda a sua vida a ficar no meio deles,
reclamando o tempo todo por se sentir excluida. Acabava sendo a causa
de desentendimentos frequentes entre eles, levando a mãe a reclamar “a
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posse do marido”. Isso a deixava extremamente en-Rai-vecida, a ponto
de “berrar” até perder a voz. Assim ela se colocava no mesmo plano dos
pais, “querelando” pelos mesmas coisas e arrogando-se o direito de
“organizar hierarquicamente o ambiente”. Em primeiro lugar, os cachorros,
depois eles três (pai, Ela mãe). A irmã caia fora do esquema familiar. Essa
luta para manter a “indiferenciação” a todo o custo, se manteve durante
todo o primeiro ano de análise, no qual ela geralmente aparecia com
“fundas olheiras” por conta da “vigilância” (diurna e noturna) que
mantinha sobre os pais e os “meninos”.
“A culpa persecutória”
Certo dia, Raia me contou que havia sentido náuseas e
desmaiado no shopping, quando fazia compras na companhia de sua
mãe e de sua irmã. Na mesma sessão, narrou o seguinte:
Sonhei que estava com a minha mãe e recebemos a notícia da
morte da Sônia. ... ... não vi a cena... .... mas ela tinha levado “um tiro na
testa”. Eu fiquei preocupada com a minha mãe...ela parecia
desesperada!...E eu fiquei me sentindo culpada, no sonho. (Muitas vezes,
eu disse que era melhor ter uma irmã morta, do que uma irmã lésbica!).
Depois que ela foi para São Paulo, percebi que se acontecesse algo com
ela, eu ia sentir culpa! ... Via minha mãe chorando e gritando “histérica” :
“onde está a minha filha?” ... Tive vários pesadelos esta noite. (silencio)
E.: O que você pensou desse sonho?
A pior coisa que pode acontecer, é você “ter dito algo” para
alguém , e acontecer alguma coisa com ela... e ela não voltar
mais!....(silêncio)
E.: Você pensa que sua raiva é “tamanha”, que adquire poderes de
vida e de morte!... ...Faz desmaiar... vomitar... ... faz pesadelos ...tudo para dar
“vazão” à sua raiva!
Melanie Klein fala da possibilidade da vivência de uma culpa
persecutória, ainda na Posição Esquizo Paranóide, que é diferente da
culpa responsabilizadora da Posição Depressiva. Diz que o ego incipiente
da primeira posição, não possui ainda as defesas reparatórias, que
favorecem a aproximação do objeto primário. Assim, a experiência
precoce de culpa, faz com que o bebê se sinta perseguido, por causa do
superego arcaico, desencorajando assim, os movimentos projetivos e
introjetivos que são evolutivos nesse momento da vida. (Klein, M. notas
sobre alguns mecanismos esquizóides -1946)
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“Os Ladrões - Vampiros“
O segundo ano de análise já ia avançado, quando ela aceitou
a quarta sessão e o vínculo comigo se estreitou!. Tirou o “macacãozinho”
de bebê e começou a manifestar o desejo de vir sozinha às sessões,
questionando-se a respeito dessa possibilidade.
E : Você tem carteira de motorista ...porque você mesma não traz a
Raia até aqui?
Foi então que ela começou a desejar ter o seu próprio carro. Os
pais “maravilhados” (apesar de ainda muito preocupados) se dispuseram
a ajudá-la na realização do seu sonho e compraram-lhe um carrinho, que
ela escolheu “vermelho” .
As sessões, antes carregadas de queixas e narrativas de brigas
intermináveis com seus familiares, onde projetava toda a sua
destrutividade, agora eram preenchidas com narrativas de sonhos que a
assustavam. Todos os sonhos eram povoados de animais (gatos,
morcegos), vampiros, ladrões
etc... que se convertiam em figuras
humanas. Despertava aterrorizada, não conseguia mais dormir e passava
o resto da noite vigiando o ambiente para se proteger. Eu sabia do seu
sofrimento, quando, apesar dela me dizer que estava tudo bem, as
olheiras fundas a denunciavam e eu lhe apontava isto.
Ela lembrou-se de outro sonho que começava com os vampiros
perseguindo-a e ela correndo deles, com medo. Depois parava de correr
e os esperava pensando que se “fosse mordida” por eles, se transformaria
em uma “morta-viva” que não teria “mais nada a temer!”.
Nesse momento de sua análise, aconteceu um incidente: três
homens tentaram entrar em sua residência, junto com a empregada que
chegava para iniciar seu dia de trabalho, mas não obtiveram sucesso,
graças à tranca automática de um portão interno que separava o quintal
do corpo da casa. Esse acontecimento levou Raia novamente para
dentro, trancando-se com os cachorros na parte mais isolada da casa: um
corredor que dava acesso somente aos quartos e banheiros privativos.
Parecia que todo trabalho havia ido por “água abaixo”, pois a
ameaça em relação à própria vida (bem como dos “meninos” e de seus
pais) tomou conta do cenário que começara a “florir”. Nada podia
apaziguá-la. Parou de vir sozinha à análise. Ficava trancada em casa
esperando seus pais chegarem para poder tomar banho, já que o vitrô do
banheiro dava para uma área externa e ela temia ser vista pelos “ladrões”
(chegava a tomar banho “agachada” para não ser vista por ninguém).
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Então, em concordância com seus
psiquiatra para que, auxiliada por medicação,
ansiedade psicótica, que ameaçava o processo
trabalhar seu medo
em confrontar-se com
possibilidade de medicação desconhecida.
pais, indiquei-lhe um
pudesse administrar a
analítico. Tivemos que
o novo médico e a
Os sonhos (frequentes) com os ladrões que ela conseguia
empurrar para fora do portão , repetiam-se agora noite após noite,
garantindo algumas horas de sono.
“O Gatão”
De outra feita, narrou um sonho, no qual aparecia um gato
enorme, que perigosamente queria arranhá-la e ela gritava: Meu pai
...meu pai...me socorra mas o pai, indiferente lhe dizia: é só um gato ...não
tem perigo. (silêncio longo)
E.: Ah! Então você sonhou com um “gatão”?... Seu pai, parece não se
preocupar com um gatão” ronronando” ao seu redor..né? Não vê perigo algum.
Surpreendo-me com a sua risadinha “racionalizada” que me
aponta que ela percebeu a minha alusão ao seu desejo inconsciente,
mas que parece não fazer nenhum sentido para ela, ou seja, não
desperta a sua sensualidade.
Assim nos aproximamos das festas Natalinas. Após breve
interrupção , retomamos nosso trabalho. Raia, nesse início de ano está
novamente “ensaiando” sair de casa na companhia de alguém; de seus
pais ou de sua irmã.
“O despertar da culpa reparatória”
Certo dia, Raia veio me contando que havia feito algo que não
queria fazer. Só o fez, para não ser responsabilizada pelos seus pais, pela
ausência de sua irmã, que ela havia expulsado de casa.
Mandei um email dizendo que me excedi!...que não retirava
nada do que havia dito para ela...mas que me desculpasse pela forma
como eu falei!... (coloca ênfase na palavra forma)... ... Disse que não me
importava nada com ela...que queria que ela se implodisse ... (silêncio)
...mas não é verdade ... eu me importo sim!
E.: Você está surpresa consigo mesma!... percebe que se importa com
com sua irmã!
É !...... ...mas não é a mesma coisa que antes, quando ela era
“tudo” para mim... agora ela é só minha irmã!
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E: Ela sempre foi só sua irmã. Você é que pensou que ela poderia
ser você mesma.
Disse para ela que me desculpasse ... que não queria dizer tudo
o que disse ...ou pelo menos, não do jeito “raivoso”, que disse! Ela disse
que me desculpava e que ficava muito feliz! ...(silêncio longo...) ...quando
“grudei” nela, foi para controlar ... ... “fiquei” com uma menina e ela
brigou comigo., dizendo que minha mãe ia culpá-la se eu ficasse
“homossexual” ... (silêncio).
Eu tava “enfeitiçada” ... “não era eu”!... Fico pensando ...”gente”
... como fui ficar nesses lugares? ... e fazer isso?
E.: Você estava enfeitiçada sim, Raia. O feitiço era pensar que duas
pessoas podiam ser uma só!...Um só pensamento ... um só
desejo...movimentando-se as duas com o mesmo par de pernas. A idéia de viver
essa unidade que não existe neste mundo, tomou conta de você, como um feitiço.
(Raia faz um longo silêncio)
Me disseram que eu não fui planejada... ... mas que fui
“desejada”... ... ... .
“Desmamei” a Sônia . ... “Coitada”
(Aparece pela primeira vez, um “vislumbre” de compaixão pela
irmã, que ela pensa que tirou “do peito e do colo” da mãe).
E.: A Sônia. , era pequenininha e ficou sem colo!... mas acho que você
também não pode ter o colo da mãe, só para você e mamar sossegada, porque a
sua irmã bebê, “ requisitava” a( sua) mãe, (dela).
Acho que sim ...(triste) ...Têm uma foto nossa, dessa idade ... eu
tô no colo da minha mãe, e ela no colo da babá, chorando e “puxando”
a minha mãe.
E.: Pois é!... O colo ficou pela metade! Nem pra você e nem para ela!
...não tiveram o tempo suficiente, para “deitar e rolar “ no colo da mãe, até se
fartarem.
Tustin, F. (1981- pág. 122) “Quando a “dureza” penetra a “maciez”,
produz-se a excitação. O protótipo disso é quando o mamilo duro entra na boca
macia. Se a excitação pode ser tolerada, é prazeroso e o sublime estado de
“unidade” é mantido.
O êxtase pode originar-se do estado de unidade experimentado pela
mãe e bebê ... ... ... Se a mãe não pode segurar seu bebê junto de si nesses
estados intensos de excitação, o bebê experimenta um senso precoce de
“dualidade”, que parece fadado ao desastre. Ao invés de experimentar o êxtase
como o auge da “sublime unidade” que o ajuda a sentir-se “enraizado” em uma
situação criadora, o bebê se sente eliminado dela. Sente-se desorientado e
sozinho. A insegurança desse senso precoce de “dualidade” conduz a manobras
patológicas para restabelecer o senso de unidade.”
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O relacionamento de Raia com a irmã começa a melhorar,
depois que ela pôde aceitar um “mínimo” de diferenciação entre elas,
obtido às custas de árduo trabalho analítico que foi sentido por ela como
se uma faca fosse introduzida entre ambas, separando-as
“dolorosamente” (cesura). Na sua percepção, produziu um “rombo” na
pele, no lugar onde estavam coladas anteriormente, e parece que,
tamponado, na sua fantasia, pelos cachorros. Assim ela faz uma
denegação da separação primitiva vivenciada com a mãe e agora com
a irmã.
Conjeturo que, provavelmente “as meninas”, ainda pequeninas,
se juntaram para suprir uma mãe precária, exercendo “a função
materna” uma para a outra. De forma que esse modelo de relação, vai
muito alem da questão da “hetero ou homo” sexualidade. Isto nos remete
para uma fase onde , provavelmente , houve ausência de “reverie” e da
função alfa (preconizadas por Bion) e que servem para “metabolizar” a
angústia no início da vida de um ser que não pode ainda exercer sozinho
esta função.
Assim o que Raia chama de “homossexualidade” (da irmã) e
aparenta nela mesma, pode nos remeter aquilo que Bion chamou de
gêmeo imaginário. “ Proponho que o gêmeo imaginário remonta à
relação mais primitiva do paciente, sendo expressão de sua
incapacidade de tolerar um objeto que não esteja inteiramente sob seu
controle. A função do gêmeo imaginário é, portanto, negar uma
realidade distinta da pessoa do próprio paciente”. (Bion, W. – Second
Thoughts – capítulo 2. )
Raia sempre precisou de alguém que vivesse com ela a
“gemelaridade”, pois o corte (cesura) estabelecido pelo nascimento
psicológico, mal conduzido, foi de uma precocidade traumatizante.
Então, “duas meninas” se separam e “dois meninos” (cachorros) vêm
para suprir a “gemeralidade”, que paulatinamente vai se transferindo
para a minha pessoa. Podemos pensar que a angústia gerada pela
separação precoce (do corpo) da mãe, mobilizou as duas meninas para
a busca de “mulheres” como objetos de amor: uma através da procura
de meninas pobres para cuidar e a outra através da fantasia deliróide de
ter incorporado a própria mãe (a sua função), tornando-se “mãe” dos
“cachorros”. Nenhuma das duas, no entanto, pôde se identificar, até
agora, com uma figura feminina adulta, que gera bebês de verdade.
Em “Diferenciação entre a Personalidade Psicótica” e a Personalidade
não Psicótica” (cap. 5 – Second Thoughts) Bion cita Freud (1924) “Freud definiu
um dos aspectos que distingue as neuroses das psicoses: nas primeiras , o ego,
em virtude do seu compromisso com a realidade, suprime uma parte do id (a vida
do instinto), enquanto que nas psicoses o mesmo ego, a serviço do id, retira-se de
uma parte da realidade ... ... ... Eu diria que o contato do ego com a realidade é
mascarado pelo predomínio, na mente e no comportamento do paciente, de uma
fantasia onipotente cujo propósito é o de destruir não só a realidade mas a
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percepção dela, e assim atingir um estado que não é nem de vida nem de morte.
... ... ... Do fato de que o ego conserva contato com a realidade depende a
existência de uma personalidade não psicótica paralela à personalidade psicótica,
embora obscurecida por esta”.
Passamos a considerar que a formação “deliróide” de Raia
podia ser vista, não como um “delírio fechado”, mas como um
“tamponamento” criativo de uma dor que ia se desenredando; assim, a
fantasia de ser mãe dos “meninos” pode ser considerada uma
transformação em alucinose processual, portanto reativa e transitória.
“É preciso paciência, pra pescar peixe pesado”
O tempo vai passando e um dos cachorros de Raia começa a
apresentar sinais de senilidade, pois está próximo de completar 14 anos de
idade. Aos sintomas físicos (artrose, alergias, oscilação de pressão arterial,
etc.) junta-se, ultimamente, uma “inquietação” motora, que leva o cão a
se coçar, produzindo um barulho e um movimento, que desperta Raia
durante a noite.
Começa a temer pelo “inevitável” ! Um dia ele vai... ... ... ele vai
... ... vai... .(não consegue falar a palavra, deixando para eu finalizar o seu
pensamento).
Quando falo: “vai morrer” ela se altera, quase gritando: Não fale
isso...não vou agüentar!... ... ...Eu morro antes!
E.: Você sabe que tudo o que vive, vai morrer um dia.... não só os
animais... mas as pessoas também... seus país, por exemplo.
Eu posso pensar na morte dos meus pais ... mas não dos
cachorros!
E.: Parece que os cachorros são, para você mais importantes do que os
seus pais...
Não é isso!...(silêncio)... quando eu era pequena, tinha medo que
meus pais morressem!... e falava isso para eles. Uma vez , minha mãe
disse: a gente vai morrer sim, um dia; mas vai demorar bastante... primeiro
vamos cuidar de vocês, até crescerem e terem seus filhos ... (silêncio).
E.: Então a mãe tranqüilizou você...
Acho que é porque os cachorros não falam!...(silêncio).
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E.: É!...Seus pais falam que é normal morrer um dia!...que todo ser
humano morre e que eles não têm medo disso.... Quer dizer que eles se colocam
no lugar deles: “seres humanos , limitados”
Como os cachorros não falam, você pensa que eles não têm limites...
que podem ser tudo: podem ser gente (sentir como gente)...podem ser bebês,
que são vestidos e que dormem no colo... podem adivinhar o que você pensa...
podem gratificar o seu desejo!....Então, na sua fantasia são perfeitos e portanto
“imortais”...não pertencem ao mundo dos mortais!...
“O objeto transicional”
Junto com os sonhos que pareciam repetir sempre o mesmo
conteúdo, vinham para as sessões os filmes que ela assistia, geralmente na
companhia do pai, e que me contava com detalhes, apresentando
agora, uma capacidade associativa interessante.
Certo dia me conta a estória de Lars, o personagem de um filme
que viu na televisão. Era um cara “limitado afetivamente” por conta de
“distúrbios psicológicos”, que impossibilitavam o seu relacionamento com
as pessoas, e a sua aproximação das mulheres.
Ele compra uma boneca de cera, via Internet, e a transforma
em sua namorada, levando-a para todos os lugares que vai, colocando
palavras em sua boca e lhe atribuindo sentimentos que ele mesmo traduz
para as pessoas. Seus parentes (bem como a pequena comunidade,
onde vive) são aconselhados por uma médica –psicóloga, a “entrar na
sua fantasia”, ajudando-o a vivenciar esse espaço “deliróide”, tratando a
boneca como se fosse uma pessoa de verdade .
Ouço com atenção a estória, e penso que ela está me dando
“uma dica” : que ela também precisa dos cachorros, como objetos
transicionais, para se exercitar no convívio social, que já ha algum tempo
está bloqueado e que talvez, nunca tenha sido satisfatório, em tempo
algum de sua vida. E mais ainda, que era preciso que eu “encenasse” os
personagens que, no filme, “fingiam que a garota era real”.
Você precisa ver esse filme ... chama-se A mulher ideal.
Chamou-me a atenção, o fato de que ela não me contou o
final da estória: Não vou contar mais, senão vai perder a graça, quando
você for ver o filme.
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“As defesas esmorecem”
Sempre tenho esse sonho!...Alguém quer entrar e eu fico
tentando fechar o portão... empurro para fora e fecho!...
Desta vez foi diferente: tinha um homem estranho, empurrando o
portão de fora!...eu tentava fechar! Consegui passar a chave... mas
quando entrei em casa, ele estava sentado na sala... como se fosse
visita... e meu pai estava lá! ... ... Conversando com ele! ... Levei um
susto...não era ladrão?. (Ficou em silêncio longo tempo).
(Parece que o sonho deu o que pensar...)
E.: Não parece um ladrão né?... que está querendo roubar algo ou
matar alguém!...Parece visita... ... e ainda amigo do pai !...
Não era amigo!... ... era ... era....
E.: (rindo) Era genro do pai? ... Aquele que você recebe no portão e se
senta na sala com ele? ... Não é assim que fazemos com os namorados?...
Ela hesita em concordar. De qualquer forma, sua reação já não
é mais tão “inamistosa” como antes, quando essas imagens lhe pareciam
“absurdas”
A atração pelas leituras e filmes de vampiros, vão sendo
substituídas paulatinamente por outras curiosidades que vêem
movimentando as nossas sessões:
Eu li “O perigo mora ao lado” ... (silêncio)...
é um alerta a
respeito dos “psicopatas”. (e ainda nesta sessão) Você já leu os
“Cinqüenta tons de cinza”?
E.: Já vi alguma coisa, sobre o livro.
Parece que é um cara tão romântico!... ... mas meio esquisito
né?... mas quem não queria um assim?
E.: Um assim, como?
Assim como ele que só tem olhos para ela... que se dedica
inteiramente!... que não abandona e nem trai a confiança dela!...(pensa
um pouco) Afinal ele explica tudo o que vai fazer para ela. Ela aceita,
porque quer!... Bom ... eu só li o comecinho!
(Penso que Raia precisa da minha permissão para tomar
contato com esse lado da vida, que nunca lhe tinha passado pela
cabeça anteriormente).
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E os sonhos acompanham essa metamorfose. Parece que,
sucedendo-se, um completa o outro: Sonhei com uma casa de dois
andares... a parte de cima era de vidro e eu podia olhar tudo lá
embaixo!... Tinha muitas janelas! ( mais adiante) Sonhei com um gatinho ...
era pequenininho! ... Entrava pela janela ... eu o pegava e jogava de volta
para fora! Interessante... se fosse na realidade, eu jamais faria isso, com
um animalzinho!
E.: Será que está querendo jogar o “Bat” para fora do quarto, para
poder dormir?
Eu jogava o gatinho por uma janela e ele voltava por outra... ... e
cada vez maior! ... Eu repetia e acontecia de novo!... Eu gritava, e toda a
família vinha me ajudar! ... Mais de nada adiantava!... O gato entrava de
novo, cada vez maior... até ficar grande... bem grande! ... (silêncio)
De repente ela começa a rir. Pergunto-lhe porque ri.
Ah! ... me lembrei do sonho do gatão ... que você me disse que
eu queria que um gatão entrasse em minha casa, para me namorar!
E.: Ah!... É porisso que ele veio disfarçadinho? ... de gatinho? ... mas
que vai crescendo ... crescendo!....(Ela riu à vontade!)
E.: Parece que você está percebendo que não adianta mais fechar o
portão, nem a janela... que o desejo de que alguém entre, já está instalado em
você.
“É preciso confiar no método e abstrair do concreto”
O ideal de alguém perfeito que possa substituir os objetos
primários, ainda mobiliza o interêsse de Raia que agora começa a
questionar suas fantasias. Como a persecutoriedade é a consequência
inevitável da idealização, o medo de ser aprisionada novamente, agora
num modelo sado-masoquista, a coloca numa posição de “olhar para os
lados” com cuidado; sem sair de casa ainda, porém denotando um
movimento de confrontação com as antigas “certezas absolutas” , que
apontavam a sua casa (e seus familiares) como a única solução para a
sua vida.
A esta evolução, (vínculo do conhecimento) adiciona-se o
vínculo de amor x ódio, mobilizando, em Raia, a percepção de que ama
e odeia os cachorros, (assim como a mãe, a irmã) e provavelmente eu
também. Isso a conduz para uma aproximação mais integrada e realista
do mundo externo, que cobra o seu preço, mas que abre as portas (e
janelas) do cárcere onde se mantinha aprisionada.
Como ela havia se interditado de ter desejos, sofria o castigo de
ter um “corpo fechado”, confinado em casa, temendo qualquer
aproximação estranha, que não a de seus familiares! Funções egóicas
(de pensamento, ponderação, seleção) começam a substituir a “raiva
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incontida, grosseira” que escondia sentimentos mais variados e mais “bem
humorados” .
No início deste ano, Raia me presenteou com o DVD “A garota
ideal” . Percebo então a angústia que ela vivencia em relação à
senilidade do cachorrinho mais velho, que parece estar “finalizando” seus
dias.
O filme me emociona pela forma singela de comunicar o
sofrimento de um rapaz (Lars) que sentindo-se alijado da sociedade, por
conta de seus distúrbios psicológicos, tem que arranjar meios para tentar
se reintegrar novamente. Percebo também, o motivo dela não ter me
contado a estória toda. No final, o personagem recolhe a namorada
afogada (ou a afoga?) em um lago. A cena é feita a distância,
possibilitando várias interpretações. O fato é que a “mulher de cera”
morre, é velada e enterrada com cerimonial que inclui a participação dos
integrantes da comunidade e de seus familiares, presidida pelo pastor
religioso. Lars chora, se despede da “garota ideal” e se dispõe a
acompanhar a “garota real” que havia se interessado por ele desde o
inicio mas que ele não havia percebido antes.
“Talvez um objeto ou um cobertor macio (uma boneca de cera ou um
cachorrinho?) tenha sido encontrado e usado pelo bebê (pelo Lars, pela Raia?)
tornando-se então, aquilo que estou chamando de objeto transicional ... ... ... A
necessidade de um objeto especifico ou de um padrão específico de
comportamento que começou em data muito primitiva, pode reaparecer em idade
posterior quando a privação ameaça” (Winnicott, D. pág. 393 – Textos
selecionados).
Recordo-me, neste momento das qualidades especiais de uma
relação com o objeto transicional.
“E no compasso desse bailado”...
No início deste semestre, a casa de Raia foi realmente invadida
por três ladrões, que abordaram seus pais, numa segunda feira à noite,
quando chegavam do trabalho. Raia estava dentro de casa sozinha e foi
surpreendida pela mãe que, com a desculpa de “fechar os cachorros” ,
ludibriou os ladrões. Entrou correndo, empurrando-a para dentro do
corredor, pedindo-lhe que chamasse a polícia. Raia ficou em apuros, pois
apressada em pegar os cachorrinhos, esqueceu o celular na sala. Mesmo
assim, depois de ter trancado a porta, fingiu que chamava a polícia.
Os ladrões, que felizmente não eram violentos, se dispuseram a
carregar o que estava à mão e fugiram apressadamente.
Esse episódio ocorreu durante as minhas férias de julho, e Raia
relatou-o de uma forma que me surpreendeu.
Aconteceu justo quando você estava de férias. ... Queria contar
para você no dia seguinte, mas sabia que você não estava aqui.
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Fiquei em casa, pensando em me trancar novamente no
corredor, com os cachorros... ... ... Depois pensei: Não vou permitir que três
F.D.P. estraguem a minha vida!... Saí e fui trabalhar na loja, com meus pais.
Sabe? ... Parece que desta vez, foi diferente! (silêncio)
Da primeira vez, os ladrões nem entraram em casa, e eu fiquei
três meses trancada, com medo deles ... ... pensando no que poderia ter
acontecido ... Agora, eles entraram de verdade, e meu medo passou logo!
Não entendo ... (silêncio) ... acho que quando a gente fica
imaginando uma coisa... é pior!
E: Você está percebendo que na fantasia, os bichos todos sempre têm
sete cabeças ... parece surpresa de ter podido lidar com essa situação de uma
forma mais realística... não perdendo a capacidade de pensar ... acho que porisso
sentiu-se mais corajosa!.
A capacidade de generalização simbólica que Raia vem demonstrando
ultimamente, (manifestada através do seu interêsse em novos filmes e leituras e
que também transparece em seus sonhos) leva-me a concluir que a evolução
para uma relação simbiótica (no entender de Bion) tem sido possível entre nós.
A experiência
viva do “lucro compartilhado”, nos motiva a cada dia,
transformando esse trabalho, de início tão árduo, em encontros “bem humorados”,
onde “coisas sérias” são tratadas com respeito, mas com “flexibilidade” (relativo
abrandamento do Superego Maligno).
Simbiose (M. Mahler, Bion)
Na descrição de M. Mahler, simbiose designa uma fase evolutiva que
antecede à da diferenciação, ou seja, a criança (ou no caso de patologia, um
sujeito adulto) ainda não atingiu a capacidade de fazer descriminações entre o eu
e o outro, e tampouco adquiriu as capacidades de uma exitosa separação e
individuação.
Entretanto, o termo simbiose na obra de Bion, adquire um significado
diferente; mais precisamente refere-se ao vínculo continente-conteúdo, que ele
descreveu com três modalidades: a parasitária, a comensal e a simbiótica. Esta
última provém do vocábulo “ simbiose” que se origina dos étimos gregos “sym”
(junto de) mais “bios” (vida) e designa, da mesma forma como na biologia, um
convívio harmônico e produtivo entre dois seres que estão em convívio.”
( Zimmermann, D. E. (2001) “Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise”).
Atualmente Raia vem cogitando a possibilidade de sair da casa
de seus pais. Naturalmente ainda precisa de um motivo que lhe pareça
justificável: vai tentar o vestibular para medicina veterinária.
Considero essa escolha, uma transformação de seus impulsos
destrutivos originários, que a paralisavam numa desvitalização mortífera,
mas que agora, parece que podem visar metas mais construtivas.
Alguns objetos primitivos, utilizados anteriormente como “seres
idealizados”, parece que estão podendo ser encarados como objetos
reais que necessitam de cuidados adequados aos seus limites. “A
medicina veterinária, cuida dos limites físicos dos animais”.
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Citando ainda Bion:
“A aprendizagem depende da introjeção da função de continência para
permanecer integrado e sem dúvida perder a rigidez. Esta é a base do estado
mental do indivíduo que pode reter seus conhecimentos e experiências e sem
dúvida estar preparado para reconstruir experiências passadas de um modo que
lhe permita ser receptivo para uma nova idéia”. (Bion, W. 1980 – Aprendendo com
a experiência - pág. 149).
Termino aqui o meu relato, mas o quadro de forma alguma está
terminado! Várias vivências afetivas, estão ainda, apenas esboçadas,
clamando por muitos encontros que, aos poucos, vão definindo o
contorno e o matiz das cores, agora desempenhado por nós, a quatro
mãos como numa partitura de piano que é executada por duas pessoas
simultaneamente.
“O Encontro”
O encontro acontece, às vezes com hora marcada!
E transcorre prazeroso, sem precisar de mais nada!
Às vezes ele é sonhado...às vezes, vira trombada!
Quando o outro é “abocanhado”, não realiza mais nada.
O Encontro é Turbulência...melhor do que não fazer nada!
É preciso persistência pra mover água parada.
Pra transformar “ a coisa” em pensamento pensado!
Pra tirar da morte muda a vida aprisionada,
Já que elas nascem juntas, desde o início fusionadas!
É preciso paciência, pra pescar “peixe pesado!”
Pra confiar no método e abstrair do concreto.
E no compasso desse bailado, fisgar “fato selecionado”.
(Momentos reflexivos da autora, oriundos de aproximações com o pensamento
bioniano, no início deste século )
Elenice Maria Zecchin Pereira Giannoni – (membro filiado à S.B.P.S.P)
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BIBLIOGRAFIA
Bion, W.R. (1962) “Aprendiendo De La Experiencia“. Traducción de Haydeé B.
Fernández – Ediciones Paidós Ibérica S. A. Barcelona – España, 1980
Bion, W.R.(1965) “As Transformações – A Mudança do Aprender para o
Crescer”. Tradução de Paulo Dias Corrêa . Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991
Bion, W. R. (1967) “Estudos Psicanalíticos Revisados – Second Thoughts” 2ª
edição. Tradução de Wellington Marcos de Melo Dantas. Rio de Janeiro:
Imago Ed., 1988
Bléandonu, G. (1990) “Wilfred R. Bion - A vida e a Obra – 1897-1979”
Tradução de Laurice Levy Hoory e Marcella Mortara. Rio de Janeiro:
Imago Ed., 1993
Klein, M. “Inveja e Gratidão e Outros Trabalhos - 1946-1963” –
Tradução da 4ª Edição Inglesa – Elias Mallet da Rocha, Liana Pinto Chaves
(coordenadores) e colaboradores. Imago Ed. Ltda.,1991
Livro Anual de Psicanálise – Tomo XX. “O Sétimo Servo: Implicações de uma
pulsão para a verdade na Teoria de “O” de Bion”. Publicado no Brasil pelo
Comitê Editorial da América Latina do International Journal of Psycho-Analysis.
Escuta Ed. Ltda. São Paulo – Brasil, 2006
McDougall, J. (1987) “Conferências Brasileiras – corpo físico, corpo psíquico,
corpo sexuado”. Coordenação, Tradução e Revisão Técnica de Fernando
Rocha. Rio de Janeiro: Xenon Ed., 1987
Pessoa, F. (1976) “Nota Preliminar sobre o livro Mensagem” (pág. 69)
Biblioteca Luso-Brasileira, Série Portuguesa: “Obra Poética em um volume”.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar Ed., 1976
Tustin, F. (1981) “Estados Autísticos em Crianças” Tradução de Joseti Marques
Xisto. Rio de Janeiro: Imago Ed. Ltda., 1984
Winnicott, D. W. (1958) “Textos Selecionados: Da Pediatria À Psicanálise” 4ª
edição. Tradução de Jane Russo. Rio de Janeiro: Francisco Alves Ed., 1993
Zimerman, D. E. (2001) “Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise”
Porto Alegre: Artméd Editora, 2001
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1 RESUMO A autora relata o percurso de um período de