Texto complementar Discussão sobre as visões deformadas do trabalho científico CIÊNCIAS 1 Ciências Assunto: Trabalho científico Discussão sobre as visões deformadas do trabalho científico No artigo “Para uma imagem não deformada do trabalho científico”, de Daniel Gil-Pérez e outros (PÉREZ et al., 2001), os autores apresentam uma pesquisa feita com professores que buscou conscientizá-los de que há deformações no modo de entendimento da construção do conhecimento científico e da própria ciência, mesmo entre nós, professores. Temos a mesma preocupação dos autores da pesquisa, por considerarmos que essas distorções podem trazer sérias consequências para a relação entre os estudantes e a ciência. Podemos exemplificar como essas distorções se refletem diretamente na aprendizagem dos alunos em episódios nos quais um professor, ao abordar determinado conteúdo, passa a ideia de que aquele conhecimento científico foi construído exclusivamente por cientistas específicos. Essa abordagem reforça a visão de que a ciência é feita por homens dotados de dons excepcionais, que, independentemente do contexto no qual viviam e exclusivamente por seus méritos, construíram teorias e explicações para os fenômenos da natureza. Aos olhos de um aluno, que se considera uma pessoa comum, a ciência passa a ser vista como algo inalcançável, digna somente de pessoas geniais. É fácil perceber que essas concepções têm consequência direta na aprendizagem e podem influenciar fortemente a relação do estudante com a ciência por toda a vida, inclusive fora da escola. A primeira distorção apontada pelos autores é a questão da concepção empírico-indutivista da ciência. Quando tratamos da questão da concepção de ciência, a pesquisa aponta o quanto ainda é forte entre nós, docentes, a visão de que a origem de toda a construção do conhecimento científico está na observação e na experimentação “neutra”, como se a visão de mundo e os conhecimentos prévios do cientista não influenciassem decisivamente a formulação de suas hipóteses e, ainda, como se esse profissional conseguisse uma espécie de “blindagem” da realidade socioeconômica e cultural em que está imerso. Temos de ter muita clareza a respeito dessa questão, pois, como afirmam os autores do artigo a respeito dela: [...] convém assinalar que esta ideia, que atribui a essência da atividade científica à experimentação, coincide com a de “descoberta” científica, transmitida, por exemplo, pelas histórias em quadrinhos, pelo cinema e, em geral, pelos meios de comunicação, imprensa, revistas, televisão [...]. Dito de outra maneira, parece que a visão dos professores – ou a que é proporcionada pelos livros de textos [...] – não é muito diferente, no que se refere ao papel atribuído à experiência, daquilo que temos denominado imagem “ingênua” da ciência, socialmente difundida e aceita. Nesse contexto, se nós, professores de Ciências, não buscarmos mostrar aos alunos “o outro lado da moeda”, ou seja, a ciência como uma construção humana, e o cientista como uma pessoa “de carne e osso”, restarão aos estudantes poucas oportunidades de considerarem criticamente todos esses estereótipos e essas distorções. A visão distorcida a respeito do método científico está bastante afinada com as questões que acabamos de analisar. Muitos professores que responderam à pesquisa ainda consideram o método científico como algo rígido – cujas etapas devem ser seguidas mecanicamente – e, mais grave ainda, como algo infalível. Apresentado assim, o aluno é privado de perceber que as conclusões científicas foram alcançadas por meio de boas doses de criatividade e dúvidas. Ligada a essa visão distorcida está o risco de eles entenderem que 1 conceitos científicos “caem do céu”, e não que surgiram de determinados problemas enfrentados, em certo momento histórico, com dificuldades e limitações. Outra deformação apontada, e muito presente na estrutura escolar, é a divisão parcelar dos estudos como campos desconectados. Essa questão tem sido bastante explorada pelos defensores da interdisciplinaridade. Os autores do artigo destacam, porém, que seria adequado que os alunos tivessem a oportunidade de perceber em quantos momentos a História mostra que determinadas questões, denominadas “problemas-ponte”, unificaram áreas de conhecimento. Criticam a forma pela qual têm sido tratadas determinadas ações interdisciplinares, quando consideram, como ponto de partida dessa prática, questões já unificadas, sem levar em conta que essa unidade foi conquistada a duras penas. Dão como exemplo, em Biologia, a teoria da evolução e, em Química, a síntese orgânica. Afirmam os autores (2001): [...] em todo caso, a desvalorização e mesmo o esquecimento dos processos de unificação como característica fundamental da evolução dos conhecimentos científicos constitui um verdadeiro obstáculo na educação científica habitual. De fato, temos podido constatar [...] que mais de 80% dos professores e dos livros de textos incorrem, implicitamente, nessa visão deformada, esquecendo-se de destacar, por exemplo, a unificação que supõe a síntese newtoniana das mecânicas celeste e terrestre, recusada durante mais de um século com a condenação das obras de Copérnico e de Galileu. Uma distorção que surgiu também na pesquisa é a compreensão de que a ciência “evolui linearmente”, como a imagem dos degraus de uma escada que são alcançados a cada nova contribuição, fazendo o conhecimento científico sempre “evoluir” e entendendo que cada descoberta aumenta o conhecimento acumulado, sempre de forma crescente. Essa visão desconsidera as crises, as teorias rivais, as controvérsias e as profundas reformulações ocorridas ao longo da história da ciência. Já comentada no início deste texto, cabe ressaltar o risco de tratar a ciência como construção individualista e elitista, obra de gênios “separados” do mundo. A ciência sempre foi obra de trabalho coletivo e da troca entre pares. No campo do gênero, por exemplo, a visão de que “ciência é coisa masculina” contribui para o afastamento de tantas mentes femininas interessadas nela. É comum e igualmente equivocada também a visão de que “aprender Ciências é difícil e para poucos mais bem-dotados”. Por fim, vale ressaltar o descompromisso – constatado na pesquisa – de se contextualizar em sala de aula as relações entre ciência, tecnologia e sociedade, destacando que tanto a ciência influencia a sociedade, como é influenciada por ela. No Projeto Apoema Ciências, procuramos evitar as concepções distorcidas às quais nos referimos. A seguir, citamos dois exemplos. No livro Ciências 7, Capítulo 4 da Unidade 1, ao discutir como trabalham os cientistas, depois do quadro descritivo do método científico, afirmamos: Ao observar esse quadro, com as etapas previstas de forma linear, parece fácil pesquisar. Mas há pesquisas que consomem anos e até décadas de trabalho dos cientistas, nem sempre chegando às respostas procuradas. Na introdução do Capítulo 1 da Unidade 1 do livro Ciências 9, afirmamos: O conhecimento científico é uma das formas de explicar os fenômenos que ocorrem na natureza, e não deve ser considerado verdade absoluta e inquestionável. Isso significa que os conhecimentos científicos podem e devem ser colocados à prova o tempo todo e, em muitas situações, são alterados ou substituídos por outras ideias bem diferentes. Essa possibilidade de contestação e revisão dos conhecimentos produzidos em determinado contexto histórico é uma das características mais importantes da ciência. 2 Ainda nesse mesmo capítulo, na introdução: O fato é que a ciência é uma construção humana que busca explicar o mundo que nos cerca. Não é a verdade, não é neutra, não é a realidade propriamente dita. O cientista sofre influência do contexto sociopolítico que o cerca. A ciência, portanto, representa um conjunto de conhecimentos que busca explicar a realidade e é corrigida e modificada com frequência ao longo do tempo. Referências bibliográficas GIL-PÉREZ, D. et al. Para uma imagem não deformada no ensino de Ciências. Revista Ciência e Educação, Bauru, v. 7, n. 2, p. 125-153, 2001. Ana Paula Bemfeito. Discussão sobre as visões deformadas do trabalho científico. 3