A Restauração e o Colégio São Luís Prof . Dr. Gilberto Lopes Teixeira Pesquisador do Cent ro de Memór ia do Colégio São Luís “Considerar-nos-íamos culpados perante Deus de um grave delito se, nos grandes perigos da República cristã, descurássemos os socorros que a especial providência de Deus nos concede e se, colocado na barca de Pedro, agitada e assaltada por tempestades constantes, recusássemos utilizar os remadores vigorosos e experimentados que se oferecem para rasgar as ondas de um mar que a cad a instante ameaça de naufrágio e morte .” Bula Sollicitudo omnium ecclesiarum Estas palavras são parte da Bula Papal que, ao final de 41 anos de expectante espera por parte dos jesuítas, restitui a eles os plenos direitos e privilé gios resultantes do c ompromisso estabelecido em 1540 entre a Sé e os homens da ordem Inaciana. No entanto, o mundo para o qual voltarão aos poucos os homens da Companhia de Jesus muito diferia do mundo que os havia feito mergulhar no exílio russo. Em verdade , são apenas 41 anos, mas, nos últimos anos do século XVIII, esse período é suficiente para enormes mudanças. Por todos os cantos da Europa, seu retorno foi visto com profunda desconfiança, especialmente naqueles em que a avassaladora onda das ideias do Iluminismo haviam sido impulsionadas pelas caudalosas correntezas da Revolução Francesa e de sua grande herança política. A Restauração da ordem jesuíta constitui uma aventura histórica da maior complexidade, tanto pela diversidade das 1 experiências nacionais por todo o mundo, quanto pela própria natureza desta Companhia de Jesus que renasce, ela mesma transformada pelos anos de exílio 1. Neste artigo, buscaremos tão somente tecer alguns comentários em relação ao retorno da Companhia ao Brasil e, em especial, su a atuação no campo da educação com a fundação dos colégios que se abrir iam no país . No processo que norteou a fundação e o funcionamento desses novos colégios, os embates políticos entre os membros da ordem e seus aliados contra os seus adversários polític os constituiram um campo de batalhas no qual é possível observar, por um ângulo privilegiado, o perfil que a Companhia de Jesus adquiriu no Brasil em seu retorno e uma visão específica do processo de adaptação da ordem aos novos tempos. Os primeiros Restauração eram jesuít as a provenientes entrar da no Brasil missão depois espanhola . da Esse segmento dos jesuítas logo faria ver ao Papa Pio VII e aos demais observadores atentos em Rom a que, diferente das palavras da Bula, a sua vocação estava longe de ser a de “remadores”, todavia muito mais para a de “timoneiros”. Entre seus sonhos de retorno , estava retomar, nas regiões das antigas missões do século XVII , e XVIII a mais impressionante experiência de evangelização jamais experimentada por uma ordem religiosa no catolicismo. Tal retomada teria dado ao retorno dos jesuítas um caráter épico e , ao mesmo tempo, propiciado um acerto de contas com o passado, já que o desenvolvimento dessa iniciativa certamente havia sido um dos motivos das suspeitas por parte dos go vernantes europeus, que resultaram, em última instância, na supressão da Companhia. O retorno dos jesuítas à América começou pela Argentina por iniciativa do caudilho Juan Manoel Rosas que , em confronto com os liberais argentinos, viu na instituição de col égios dirigidos 1 Um envolvente estudo tanto sobre o período de exílio quanto o retorno da Ordem pode ser encontrado em LACOUTURE, Jean. Os Jesuítas - vol.2 O Regresso. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. 2 por jesuítas uma chance de consolidar, nas gerações futuras , o apreço pelos valores de um catolicismo Ultramontano que seria uma ótima base para a consolidação de um poder conservador. O governante envidou esforços no sentido de conseguir junto à província espanhola que enviasse religiosos habilitados para iniciar atividades da Companhia de Jesus na Argentina. 2 Esse convite coincidiu com as expectativas dos jesuítas de retomar suas atividades na América Latina, o qu e fez com que, em 8 de agosto de 1836, aportassem em Buenos Aires os primeiros missionários jesuítas chefiados pelo Padre .Mariano Berdugo como superior e formada pelos padres Cesário Gonzales, Francisco Majesté, João de Mota Macarrón e o irmão leigo Ildefo nso Romero. A flagrante contradição entre as intensões da Companhia na Argentina e aquilo que dela se esperava logo se fez sentir, pois a intensão de Rosas não era permitir liberdade de ação aos jesuítas , mas, ao contrário, garantir a obediência cega d a Ordem a seus desígnios e contar com ela como agente de propaganda de seu regime. O diagnóstico dessa contradição se f ez rapidamente pelos jesuítas que passaram a buscar alternativas para sua atuação no continente em vista da fragilidade e do risco dessa asso ciação com o caudilho argentino. O Uruguai , o Brasil e, posteriormente, o Chile foram as alternativas vislumbradas . Ainda estava claro para os jesuítas na América a ideia de retomar a atuação junto aos índios das missões que haviam sido tão importantes par a eles antes da crise da supressão. O chefe da missão argentina viajou ao Brasil em 1841 , com o objetivo de sondar as possibilidades de que a Companhia pudesse também se estabelecer no país . Já havia um pedido anterior de 1840 do governador da Província do Rio Grande do Sul, 2 A presença dos jesuítas na Argentina é abordada de forma sucinta em: MAIA, Pedro Américo, SJ. Crônica dos Jesuítas do Brasil Centro-Leste. São Paulo: Edições Loyola, 1991. Um estudo mais aprofundado e detalhado sobre a polêmica entre jesuítas e Rosas encontra-se em: CASTAGNINO, Raul H. Rosas y los jesuítas. Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1970. 3 Saturnino de Oliveira, solicitando a vinda de padres jesuítas. Com base neste pedido, em março de 1843 em Porto Alegre, perto da Igreja Matriz, foi alugada uma res idência que se tornou a primeira que teve a nova Companhia de Jesus no Brasil 3. A segunda residência seria aberta na cidade de Desterro (atual Florianópolis) no ano seguinte. Nos primeiros anos de ação no Brasil os missionários jesuítas percorreram várias localidades, procurando realizar as funções básicas de evangelização em localidades que não tinham paróquias regulares, além de ouvir os católicos em confissão. Embora o objetivo de atuação com os índios da região ainda estivesse no horizonte e tivesse sid o iniciado neste período, outra missão urgente começou a se impor. A presença cada vez mais intensa de imigrantes alemães e italianos na província do sul do Brasil impunha a necessidade de desenvolver um trabalho pastoral junto a essas comunidades rurais que, inteiramente desenraizadas, procuravam reorganizar suas vidas numa terra nova e nem sempre hospitaleira. O trabalho dos jesuítas espanhóis era dificultado por uma dupla barreira de idioma: era necessário que dominassem o português, mas mesmo isso não garantia o sucesso na comunicação, pois a maioria dos imigrantes a quem dariam a assistência espiritual era falante do alemão. Tanto assim que, em 1849, a missão espanhola no Brasil recebe o reforço de jesuítas de origem germânica , como o padre Agostinho Lipinsk (polonês), o padre João Sedlac (tcheco) e o irmão Sonntag (silesiano) para auxiliar no trabalho dos jesuítas nas colônias de São Leopoldo e Dois irmãos. 4 Apesar dos percalços, a ação jesuíta no Brasil começou a se firmar na segunda metade da décad a de 1840 e, no retorno após a 3 Uma descrição sobre a chegada e o estabelecimento da primeira missão apostólicas dos jesuítas no sul do Brasil está presente em: GREVE, Aristides. Subsídios para a História da Restauração da Cia de Jesus no Brasil por ocasião de seu primeiro centenário 1842-1862. São Paulo: [s.n.], 1942. 4 Há um estudo do maior interesse sobre a atuação dos jesuítas no sul do Brasil que se pode encontrar em: MONTEIRO, Lorena Madruga. “Considerações sobre a atuação da Companhia de Jesus na formação dos grupos dirigentes no Rio Grande do Sul.” IN: História UNISINOS, V.15 N.1 jan./abr. 2011. Também disponível em: http://www.unisinos.br/revistas/index.php/historia/issue/view/147. 4 restauração, já não serão as missões junto às comunidades indígenas o foco da sua atuação, mas sim a fundação e administração de colégios 5. O primeiro deles se funda na cidade de Desterro em 1844 , mas ainda não era propriamente um colégio na completa acepção do termo ; era somente um curso de latim . A década de 1860 foi marcada pela ação concreta dos jesuítas de abrir, em várias províncias do país, seus novos colégios por meio dos quais passariam a estabelecer sua pr esença marcante na educação brasileira. O primeiro deles será também aberto na cidade de Desterro, mas , dessa vez, como um colégio mesmo, que vinha substituir o Liceu d a Província de Santa Catarina. Ele seria resultado da celebração de um convêni o entre a Ordem e o Governo da P rovíncia e destinava -se a fornecer formação básica nas matérias exigidas para o ingresso nos cursos superiores do Império. O terreno foi doado pelo governo, juntamente com uma verba destinada a auxiliar nas despesas e os jesuítas arcaram com as obras do prédio que abrigaria a escola e com os professores que ministrariam as aulas. Essa primeira experiência dos jesuítas junto à comunidade de Desterro antecipou os principais embates que , posteriormente, os padres veriam se repetir em outras latitudes do país. Os ex professores do antigo Liceu extinto e setores liberais da sociedade catarinense fizeram questão de manifestar pela i mprensa local sua insatisfação com a deferência do governo da província para com os jesuítas, bem como seus receios em relação ao tipo de educação que os jesuítas pretendiam oferecer à queles que lhes 5 Embora em muitos momentos no período colonial os colégios tenham funcionado como atividades complementares que subsidiavam em alguns casos os custos das missões, a contradição entre a vocação missionária e a tarefa de administração das escolas já estava presente antes mesmo da supressão da ordem, durante o período colonial como mostra o interessante artigo: SANTOS, Breno Machado dos. Fora das Missões: Os colégios jesuíticos no Brasil do final do século XVI. Publicação eletrônica da Associação Brasileira de História da Religião disponível em: www.abhr.org.br/wpcontent/uploads/2008/12/santos-breno.pdf 5 confiassem seus filhos. 6 De sua parte, os padres jesuíta s em meio a essa polêmica, publicam na edição de 20 de novembro de 1864 no jornal O Mercantil da cidade de Desterro a íntegra dos Regimentos do Colégio Santíssimo Salvador , como forma de tornar público os termos do acordo entre a Província de Santa Catarina e eles. O Colégio Santíssimo Salvador de Desterro foi apenas o primeiro de vários colégios. Sua fundação esteve ligada aos esforços do Pe. Jacques Razzini . Vindo da Província Romana, atuou como padre Visitador da Companhia de Jesus no Brasil e , nesta função, estava determinado a abrir no país uma nova frente para a ação educacional dos jesuítas na América. Ainda durante as negociações com a Província de Santa Catarina, est e personagem mostrava verdadeiro empenho em diversificar as possibilidades de atuação da Companhia. Aparentemente, percebendo o clima hostil dos setores liberais no sul do Brasil à presença de colégios administrad os pela Companhia de Jesus, o Padre Razzini interesse encontrou em este procurou fundar um ambiente outra localidade colégio na dessa Província em que mesma de São houvesse natureza Paulo, e mais especialmente na cidade de Itu. Segundo as informações fornecidas pelo P adre Aristides Greve em sua ob ra 7, foi em um contato do padre visitador com o Padre Antelmo Goud - diretor espiritual das irmãs de São José Chambery 8, que possuíam uma escola para meninas na cidade de 6 O cerne da questão foi o debate em torno do caráter laico ou confessional da educação pública. Sobre esse debate e sua manifestação através da imprensa local veja-se a esclarecedora reflexão que se encontra em: DIAS, Thiago Cancelier e DALLABRIDA, Norberto. “O Liceu da Província de Santa Catarina no jogo do poder.” IN: Atos de Pesquisa em Educação. PPGE/ME FURB v.4 n°1 jan./abr. 2009 p.18-35. Disponível em: http://proxy.furb.br/ojs/index.php/atosdepesquisa/article/view/1445. 7 GREVE, Aristides. Subsídios para História da Restauração da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo, [s.n.], 1942. 8 Ordem religiosa de irmãs fundada em 1650 na cidade de Le Puy-en-Velay, França com a finalidade de manter casas de caridade com para atender aos mais necessitados. Elas se instalam em São Paulo na cidade de Itu em 1859 e fundam um colégio feminino na cidade. 6 Itu que este cogitou na ideia de que os jesuítas pudessem abrir também um colégio para os meninos na mesma cidade. A sugestão foi aceita , e o Padre Razzini viajou a Itu com o objetivo de viabilizar a proposta. Esse é o germe do surgimento do colégio jesuíta que iria ser o modelo de todos os demais colégios do país: o Colégio São Luis. Nos vários relatos produzidos por membros da Companhia de Jesus ou por seus admiradores sobre a história da fundação do colégio na cidade de Itu, surge sempre um elemento sobrenatural que parece servir admiravelmente à finalidade de estabelecer uma ligação transcendente entre os dois momentos da presença dos jesuítas no Brasil. Segundo os relatos sobre a fundação do Colégio, tudo começa com um personagem que representa a ligação entre as duas fases de atuação: o Padre José de Campos Lara 9. Quando da publicação do decreto do Marques de Pombal que determinou a expulsão dos jesuítas dos territórios de Portugal, o padre Campos Lara era aluno no noviciado jesuíta e contava com apenas 26 anos. Juntamente com seus irmãos de ordem deixou o Brasil com destino a Roma e lá permaneceu até o ano de 1785. As circunstâncias de seu retorno estão descritas em várias obras apologéticas dos jesuítas no Brasil, mas aqui fazemos referência a um documento, uma “Breve Notícia Histórica do Colégio São Luis” , produzida pelo eminente maestro ituano Tristão Mariano da Costa que foi professor de música do Colégio durante seu per íodo em Itu, além de mestre -capela na Igreja da Matriz. Deixemos que o próprio maestro, com sua linguagem tão característica do século XIX , nos informe sobre as circunstâncias sobrenaturais do retorno: “Os nossos velhos contavam que mais ou menos pelo ano de 1785, estando o Pe. Campos numa cidade marítima da Itália ou da Espanha, onde também residiu 9 Atualmente, o teatro do Colégio São Luis, localizado no primeiro andar, leva o nome deste padre. 7 algum tempo, comendo o pão amargo do exílio sem meios para navegar de volta a sua pátria, foi um dia visitado por um mancebo desconhecido, o qual trazia consigo uma pintura em tela de Nossa Senhora do Bom Conselho. Recebido cortezmente(sic) pelo Pe. Campos, ficou este cheio de maravilha quando ouviu da boca do moço estas palavras: _ Aceite, meu padre esta imagem como um presente; leve -a para a sua terra, e lembre -se que no logar em que será venerada irão um dias os padres da Companhia e edificarão aí um grande Colégio . - Como é possível, replicou o Pe. Campos, que eu possa empreender viagem tão dispendiosa sem recursos pecuniários como me acho? – Isto pouco importa respondeu o moço, porque vossa Reverência fará a viagem de graça. Olhe Padre, ali vem um navio, que entra agora no porto. Procure falar ao Capitão do barco, e êste o levará para o Brasil gratuitamente. Dito isso o moço desapareceu, deixando o Pe. Campos na certeza de que êle fosse algum espí rito celestial debaixo daquela aparência.” 10 O relato do maestro, cercado de uma atmosfera sobrenatural, parece ter sido construído como uma forma de justificar a necessidade de que o Colégio fosse instalado precisamente no prédio que havia servido de sede para o seminário do padre Campos Lara. A tela de Nossa Senhora do Bom Conselho , a que o relato do maestro faz alusão, transladou -se com o Colégio para São Paulo em 1918 e faz parte de nosso acervo no centro de memória. Mesmo tendo uma sede e a disposição dos jesuítas em abrir o colégio, o processo que leva à sua fundação em maio de 1867 ainda passaria por várias fases e revelaria alguns aspectos da problemática do caráter religioso ou laico do ensino no Brasil durante o Segundo Reinado. O processo de abertura do Colégio São Luís em Itu aconteceu na década de 1860, quando estavam em vigor as 10 Costa, Tristão Mariano da. Breve notícia histórica do Colégio São Luis. p.3 Versão manuscrita. Acervo do Centro de Memória do Colégio São Luis, 1906. 8 proposições do Ato Adicional de 1834 que cri ou as Assembleias Provinciais e transferiu aos governos provinciais a responsabilidade de arcar com as despesas e fiscalizar o sistema educacional nas províncias. Este momento do Segundo Reinado é marcado pelo aumento do prestígio das ideias liberais, mesmo entre os representantes do Partido Cons ervador. Essa tendência abarcava todo o espectro político, incluindo o próprio Imperador, com sua conhecida simpatia à maçonaria . Sobre essa característica do Imperador dá convincente testemunho a frase dita por ele no encontro que teve com o visitador da Companhia, o padre Razzini, a propósito de divergências relativas ao contrato assinado com a Assembleia provincial de Santa Catarina: “Sei perfeitamente formarem os jesuítas uma poderosa Companhia, lutando por toda a parte para dominar, experimentados no confession ário, forcejando por se intrometerem nos negócios do Estado. Os governos nunca os vigiam o bastante, mas hei de dar um jeito para não os perder de vista”. 11 A posição dura de D. Pedro II parece apenas expressar uma sensação disseminada em uma parte importante da classe política do período com relação à ordem no Br asil. Neste mesmo período, o governo imperial instituiu no Instituto Histórico Geográfico um concurso destinado a premiar um texto que fosse escrito sobre a história dos jesuítas no Brasil. Concorrendo a esse prêmio, em 1854, apresentou um texto o cônego Dr. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro denominado “Ensaio sobre os Jesuítas”. Na parte das conclusões desse ensaio, há elementos para compreender o sentido dessa resist ência à presença dos jesuítas que estava disseminada em certa camada da intelectualidade do império: 11 GREVE, Aristides. Op.cit. p.38. Uma referência a mesma frase aparece também em CALMON, Pedro. História de D. Pedro II. Tomo III- No país e no Estrangeiro (1870-1887) p.1012. 9 “O instituto de Loyola no Brazil, bem como em toda parte, passou por differentes phases : corrompeu-se depois com o andar dos tempos; mas em sua degeneração foi menos fatal a nossa terra do que ao velho continente, porque o nosso theatro era mesquinho e por isso menos destro os a ctores, que n´elle representam. Como brasileiro não deixaremos jamais de tributar o testemunho da nossa gratidão pelos serviços que ao paiz prestaram; nós tudo lhes devemos; foram a antiguidade de nossa história e foram os architetos da presente prosperidade, e de nossa futura grandeza. Hoje porém não desejamos a sua volta: ser-nos-hia ela damnosa, uma vez que se não despissem pisando nossas fronteiras do manto de políticos, que seria talvez exigir d´elles o impossível. Conscios de sua superioridade intelectual querem dominar por ella: esquecem muitas vezes o lugar de modestos operários do Evengelho para se emaranharem no intrincado labyrintho da politica, e então tornam -se prejudiciais, deixam de ser uma congregação religiosa para se converterem e m seita política, em carbonários da Igreja.” 12 Essa desconfiança persis tente também se manifestou entre os funcionários públicos da província de São Paulo , aos quais cabia conceder a autorização para que os jesuítas abriss em seu colégio em Itu. Isso dependia basicamente de uma licença que deveria ser concedida, em primeira in stância, pelo Inspetor de Instrução Pública da província, o senhor Diogo de Mendonça Pinto. 12 PINHEIRO, Dr. Joaquim Caetano Fernandes. “Ensaio sobre os Jesuítas”. Revista do Instituto Histórico Geographico Brasileiro, XVIII 3 série (17) Primeiro Trimestre, 1855. p.156-157. Para as citações de fontes primárias do século XIX, optamos pela manutenção da grafia de época não só por que isso preserva a forma do documento, mas também porque as diferenças em relação à grafia atual não são suficientes para comprometer o entendimento do texto. 10 Esse processo de concessão de licença foi muito mais trabalhoso do que poderia supor o visitador da Companhia no Brasil, que, no caso da Província de Santa Catarina , teve maiores facilidades. O fato é que a descentralização resultante do Ato Adicional fazia com que cada província ti vesse autonomia no que se referisse a questões educacionais e, como a prática mostrou aos jesuítas, as províncias exerciam intensamente essa autonomia. No caso de São Paulo, província à qual pertencia o município de Itu, as resistências à abertura do colégio foram grandes, não pelo fato de se tratar de uma escola confessional, já que elas eram bastante comuns nesse momento, mas muito mais p elo fato de se tratar de um colégio dirigido pelos jesuítas. Sobre os embates em torno da abertura do colégio, obviamente constituíram -se duas visões: a dos envolvidos na abertura do colégio e a das autoridades públicas responsáveis por conceder a licença. Para os jesuítas, não restava a menor dúvida de que a resistência das autoridades devia -se à vocação maçônica dos funcionários públicos que nutriam um ódio irracional e injustificado à ordem dos jesuítas e faziam tudo a seu alcance para impedir que viceja ssem os colégios controlados por eles: “Ao requerimento do padre Miguel, vigário de Itu, respondeu o inspetor geral da instrução, Dr. Diogo Mendonça Pinto, que era incompatível o ofício de pároco com a direção de um colégio. Ao requerimento do padre Razzi ni que se seguiu, respondeu o inspetor que apresentasse provas de suas aptidões e idoneidade moral. Depois, as cartas e recomendações vindas de Itu não foram aceitas, por serem la os padres pouco conhecidos. Apresentaram -se então atestados do snr. Melo e Alvim, deputado geral de Santa Catarina, e vários outros, mas transcorriam os dias sem que se alcançasse solução.(...) O Dr. Diogo, todavia, não queria de modo algum conceder a licença. Declarou, para esquivar -se, que punha tudo nas mãos do presidente da pr ovíncia, Dr. João da Silva Carrão; depois que os professores haviam de 11 passar po r exames de suficiência pronúncia da língua portuguesa...” 13 quanto à Esta versão é bastante diferente daquelas que as autoridades citadas construíram em seus documentos ofici ais. A leitura do relatório preparado pelo Inspetor Geral de Instrução Pública mostra uma versão bastante diferente: “Alguns jesuítas pretenderão no presente anno abrir na cidade de Ytú um collegio de instrucção secundaria, sendo o Director em chefe o Pad re Jacques Razzini, que parece proposto à taes fundações no Imperio; visto que installou um na Provincia de Santa Catharina, e acaba de installar outro em Pernambuco. Exigi -lhes, de accordo com o governo, que provassem reunir os requisito s prescriptos pela lei numero 34 de 1846. Entendendo talvez que em beneficio d’elles o Inspetor Geral devia suspender sob sua reponsabilidade a execução da Lei, tomarão o despacho como recusa da licença, e interpuzerão recurso ao Governo, entre o qual não forão felizes.(...) A Assembléa Legislativa Provincial discutio a recusa; uma fracção d’ella deo ao negocio o caracter de questão de partido; e um dos jornaes da Capital deixou-se impellir até o excesso de acoimar o Governo de protestante, e aconselhar a população á insurgir-se, abrindo o Collegio e cotisando -se para o pagamento da multa! Não me pronunciarei acerca das duas questões principaes agitadas; - se ainda vigora a Lei que proscreveo os Jesuitas, e si há perigo para a sociedade na sua reintroducção . A discussão levarme-ia muito longe; sem necessidade de justifica -la. Por enquato tracta-se apenas da aplicação a estes pretendentes das mesmas Leis a que estão subjeitos os outros; visto ignorar eu que haja alguém com o direito de pedir a sua transgressão, e auctoridade com a faculdade de ordenal -a. 13 CASTRO, Fernando Pedreira de S.J. Histórico do Colégio São Luis. Separata do livro: A Companhia de Jesus Restaurada no Brasil. Mimeo,1953. p.7 e 8. 12 Averiguado que gozão dos requisitos legaes, então abordarei essas questões de direito e de facto. Nem sera impecilio á fraqueza o desagrado, em que por ventura possa eu incorrer, de que fala com tanto conhecimento do assum pto, que pensa: quer não ser catholico aquelle que não é jesuíta; - e quer que é possível pagar -se a multa e abrir -se o Collegio; ignorando que a legislação não só impõem semilhante pena, mas tambem manda fechal-o desde que não se ache munido da respectiva licença.” 14 Como se vê, embora se possa identificar o mesmo evento, os pontos de vista são bastante distintos e nos revelam diferentes percepções de um a mesma situação . Este embate reproduz, com algumas particularidades, os confrontos que já haviam tido lugar na Província de Santa Catarina entre os defensores da Co mpanhia e de sua ação educativa e os profissionais do Liceu . Como já aludimos, o Liceu foi extinto em favor da abertura do Colégio Santíssimo Salvador por força da Lei n° 540 de 5 de abril de 1864, e o novo colégio seria mantido e dirigido pelos jesuítas auxiliados por verba pública . É verdade que, no caso de Santa Catarina , havia um agravante neste confronto: o s profissionais que haviam sido contratados para tr abalhar no Liceu eram, em número considerável, imigrantes alemães naturalizados brasileiros, mas de confissão protestante 15. Esse era um ponto sensível para o governo imperial, uma vez que o catolicismo ain da era a religião oficial do Estado brasileiro . A substituição do Liceu pelo Colégio dos jesu ítas na cidade de Desterro foi, por tanto, uma questão que envolvia um embate religioso entre católicos e protestantes e também um embate de concepções de educação entre uma escola confessional e uma escola laica. Nada disso aconteceu no caso da Província de São Paulo. Aqui as resistências parecem ter se concentrado no fato de ser a 14 BASTOS, José Tavares. Relatorio da Instrucção Pública da Provincia de São Paulo. São Paulo: Typographia Imparcial de J.R. de Azevedo Marques, 1867. Disponível em: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/upload/revistas/RIP1866.pdf. Embora a citação tenha ficado um tanto maior do que o desejável, ela trás os elementos que são indispensáveis a discussão. 15 DIAS, Thiago Cancelier e DALLABRIDA, Norberto. Op.cit. p.22. 13 escola que se tentava abrir em Itu dirigida por padres jesuítas. O Inspetor de instrução pública faz referência em seu documento aos debates havido s na Assemble ia Provincial sobre a conveniência de autorizar a abertura do colégio dos jesuítas. De fato, uma pesquis a nos Anais da Assembleia Provincial mostra que esse debate foi acirrado e mobilizou um conjunto de argumentos de natureza muito diversa. Um exemplo desse debate pode ser extraído da 25 a Sessão Ordinária realizada no dia 13 de março de 1866, um ano antes da inauguração do Colégio em Itu. O deputado Antônio da Silva Prado sai em defesa dos padres jesuítas e de sua demanda, denunciando um complô orquestrado pelo Inspetor de Instrução pública e o próprio presidente da província: “Porventura os jezuítas(sic) sã o excluídos do nosso paiz? Não têem eles uma garantia de existência na França na Suissa, nos Estados Unidos e em outros paizes civilisados? (...) Mas hoje eles encontram -se nos paizes mais livres do mundo; e entretanto, no Brazil, que possue instituições t ão liberaes, onde a liberdade do ensino deve ser plena, assim como a liberdade religiosa, quer -se por pêas ao seus estabelecimentos de educação que em outros paizes têem sido tão profícuos a civilisação dos povos. (...) Há um grande mal entre nós é querermo-nos guiar por opiniões de escriptores francezes e outros inteiramente aferrados à ideias ultra-liberaes, que não podem ser aceita por nós. Pela propagação de certos livros, que menos deviam merecer nossa atenção, ve -se que as ideias mais exageradas sobre tudo, são justamente aquellas que mais aceitação teem. O espirito da moralidade vae -se inoculando na população este sentimento de scepticismo hoje tão vulgar.” 16 O principal argumento do deputado parece ser o de que os jesuítas atuavam livremente, e vários países considerados civilizados contavam com a presença e os préstimos educacionais da ordem. Mas o curioso é que os que atuavam contra os 16 Anais da Assembleia Provincial de São Paulo, p.169. 14 interesses dos jesuítas o faziam em nome da ortodoxia da religião e não da crítica à Igreja, como se pode perceber na intervenção seguinte do deputado João Guilherme de Aguiar W itaker : “ O sr. W itaker: - Mas, sr. Presidente, entendo que pela constituição politica do império, sendo como é, exclusiva a religião do Estado, não podem ser admittidos entre nós os jesuítas, depois de terem sido banidos de todo orbe catholico por bullas pontificiais, como a de Clemente XIV, da qual não posso deixar de citar uma parte, por que ella diz muito mais do que eu poderia dizer em meia dúzia de discursos, por isso passo a lel-a e com isto finalisarei meu discurso.” 17 Como se pode ver, no embate que teve lugar no parlamento de São Paulo todo tipo de informação e mesmo de desinformação era válido, inclusive demostrar conhecimento da bula papal que suprimiu a Companhia de Jesus de 1773 sem citar aquela que restituiu os direitos da ordem, muito mais recente. Em verdade, o debate entre os deputados paulista em torno da abertura do colégio jesuíta em Itu por vezes tomou caminhos inusitados. É importante lembrar que esse debate aconteceu em meio aos anos tumultuados da guerra em que o Brasil, como uma das partes da Tríplice Aliança, combateu o Paraguai . Embora as questões nem remotamente se relacionassem, os detratores dos jesuítas em São Paulo acharam forma de tornar o assunto da abertura do colégio algo diretamente relacionado com o conflito que mobilizava o país , contando, certamente, com o espírito ufanista e antiparaguaio que tomava conta do país: “ O sr. W itaker: - Mas, senhor presi dente, se isto é verdade, se sou o primeiro a reconhecer estas vantagens que tiveram os jesuítas naquel las épocas de trevas... em que s ubjulgaram os índios, em que estabeleceram essa politica paraguaya que hoje constitue a grandeza de Lopez; porque o nobre deputado conhece os 7 povos da missões (sic) no Rio Grande do Sul sabe quanto os jesuítas fizeram no Paraguay para apparecer o resultado q`hoje vemos: porque os princípios do 17 Anais, p.179. 15 Paraguay são aquelles mesmos que os jesuítas admittem e sustentam. Os jesuítas absolutamente exclusivistas de princípios e costumes; as máximas de Loyola se baseiam nisto; e se eu reconheço digo os serviços que nessas épocas, também é verdade que estamos em uma província de futuro, em uma província de progresso, em que todos os home ns, mesmo no partido Conservador os enxergo, à cada passo, são de progresso, e por isso é de admirar que em vez de lembrar-se v. exc. de chamar à nós instrumentos (...) de chamar raças vigorosas que possam açoberbar essas florestas gigantescas, onde se ergue altivo o jeqi tibá e a perobeira o nobre deputado se lembrasse de exigir que nossos filhos sejam educados pelos jesuítas!” 18 Parece que trazer ao centro do debate a presença dos jesuítas no passado colonial do Para guai representava uma vantagem argumentativa contra a intensão dos padres de abrir seu colégio na província de São Paulo . No contexto da guerra, essa linha argumentativa deve ter tido sua força a despeito do que a lógica indica. Sem entrar no mérito da pertinência do debate havido no parlamento paulista , o fato é que os jesuítas finalmente conseguem quebrar as resistências da autoridade constitu ída e, no início de 1867, é concedida a licença para abertura do colégio que se fez oficialmente em maio deste mesmo ano. O visitador P adre Razzini não permanece na cidade para presenciar a abertura do colégio, pois o dever o chama ao Recife, onde se apresenta outra oportunidade de inauguração de mais um colégio naquela província. A ação de conjunto dos jesuí tas em todo território nacional ainda durante os anos de Império demonstra uma intenção firme de retornar ao Brasil, numa atividade que será a principal marca da atuação dos jesuítas restaurados no Brasil: a formação das elites políticas do país nas mais diferentes regiões. O Colégio São Luis, estabelecido em Itu, não tardou a se tornar o mais importante colégio neste aspecto. Uma parte muito expressiva das lideranças do país de diferentes regiões foi formada integralmente ou esteve por alguns anos aos cuidados dos padres jesuítas deste colégio 19. 18 Op.cit. p.182. Para ficarmos apenas em exemplos fornecidos por um catálogo de ex-alunos produzido pelo Colégio em 1917 e alusivo aos 50 anos do colégio temos: Dr. Altino Arantes Marques: Presidente do Estado de São Paulo, Dr. Jeronimo Monteiro: Presidente do Estado do Espírito Santo, Dr. Caetano Munhoz da Rocha: Vice-presidente do Estado do Paraná. No campo eclesiástico o número de ex-alunos célebres 19 16 Essa característica da vocação dos colégios jesuítas talvez estivesse na origem daqueles temores que já aventamos e que inspiraram a resistência à abertura dos colégios nas diferentes regiões do país em que eles se instalaram. Formar as elites do país é, sem dúvida, uma forma de mergulhar de corpo inteiro na arena que os jesuítas tanto prezam: a política. Novamente, como nos primeiros dias da ordem, os jesuítas no Brasil viam-se às voltas com o dilema de sua dupla vocação: a atividade missionária e a adm inistração dos colégios. Antes da supressão, essa dualidade de atuação da ordem já havia sido causa de dificuldades na atuação dos religiosos no país No entanto, se no século XVI e XVII em grande parte da América Colonial as missões de evangelização dos in dígenas prevaleceram como a grande obra da Companhia, nos tempos da ordem restaurada será a fundação e administração de seus colégios que se tornará o centro das atenções dos filhos de Santo Inácio. Especialmente no caso do Brasil, esse mister distinguirá a ação dos jesuítas em seu retorno. Dentro desses colégios foi possível rever em profundidade o sentido da Ratio Studiorum e acolher e por em prática a nova versão do documento que foi produzida pela ordem em 1832, no contexto de sua restauração, durante o governo do superior geral padre João Roothaan. O prosseguimento das atividades do Colégio São Luis em Itu, especialmente sua longevidade comparada a dos primeiros colégios fundados no sul do país - bem como seu prestígio e reconhecimento junto às elites das diferentes regiões do país - fez com que este colégio se tornasse uma verdadeira referência na atuação dos jesuítas na área da educação. Nem mesmo a queda dramática no número de alunos que atingiu o colégio no fim da década de 1910, culminando com a interrupção de suas atividades na cidade em 1917, em razão de uma dramática epidemia de febre amarela, foi suficiente para qu e o colégio decaísse. Ao contrário. As atividades foram retomadas no ano seguinte, agora na cidade de São Paulo. Seu novo endereço não foi escolhido aleatoriamente. Passou a localizar -se na Avenida Paulista, a vizinhança que, desde as últimas décadas do sé culo XIX as elites cafeicultoras do Oeste Paulista j á haviam escolhido para ser o seu espaço privilegiado na cidade. Neste novo espaço o Colégio São Luis iniciou uma nova fase de sua atuação. Com muito mais eficiência do que podia fazer em Itu, em São Paulo o colégio teve condições de atrair os filhos das mais distintas famílias de todo o Estado e tornar -se, rapidamente, uma referência na formação das elites políticas. Aos poucos se torna evidente que o foco central da atuação dos jesuítas havia se deslocado para a atividade de educação desses segmentos da também confirma a vocação. No século XX um número igualmente considerável, tanto de políticos quanto de prelados se somou a esses que foram alunos no século XIX. 17 sociedade. As missões, que tanto havia distinguido a presença dos jesuítas no continente antes da supressão, tiveram que esperar até o século XX para novamente começar a atuar, especialmente na região amazônica, retomando essa grande tradição. Mas então, a atuação em colégios já havia se tornado a atividade principal da Ordem no país. Neste momento em que estamos às vésperas de vivenciar a efeméride do bicentenário da restauração dos jesuítas, os colégios da Companhia de Jesus no país continuam cumprindo sua missão educativa, enfrentando contexto histórico inteiramente diverso daquele existente no país no momento da inauguração dos primeiros colégios, criando novas práticas educativas. Ao longo desses anos muitas mudanças foram adotadas nesses colégios, entre elas, a conversão deles em colégios mistos para receber indistintamente meninos e meninas, com todas as implicações sociais e comportamentais que isso implicou. Cada tempo tem trazido os seus d esafios que têm sido enfrentados por esses colégios em todo o país. Como membro de uma comunidade educativa jesuíta, meu esforço neste artigo foi apenas colaborar no enfrentamento desses desafios de nosso tempo à luz de um olhar crítico e perscrutador em direção ao passado. 18