A escrita de uma diferença
“o discurso analítico, só progride por esse limite estreito, por esse corte de faca, que faz com que ,
alhures, isso se possa se ouspiorar.”
1
Lacan .
Sem. 20 p. 10
Daniela Goulart Pestana
Abro o texto com a seguinte provocação: Que leitura, nós analistas fazemos
da escrita de uma diferença, quais as conseqüências psíquicas disso que se
escreve?
É o encontro com a letra que produz efeitos diferenciais, são as
conseqüências psíquicas que Freud nomeia Édipo. A castração determina de fato,
na linguagem, a função sexual. Como essa letra opera? A função do falo mais do
que da falta de significante, deve ser aquilo que faz obstáculo a uma relação
sexual, a completude como impossível.
Observamos que em Freud esse amor primeiro é o efeito de uma letra,
amor ao significante que não participa da equivalência imaginária. O complexo de
Édipo articula a função lógica da castração. Alterações no campo da satisfação
são marcadas por essa letra, onde o campo pulsional já, não é o mesmo.
Tomamos como provocação inicial, a possibilidade de pensar a castração
pelo viés da lógica, tal como Lacan formula no Seminário 18 em “De um discurso
que não fosse semblante”, mesmo sabendo, como bem sinaliza, que os próprios
analistas esquecem de aplicá-la.
Segundo ele: “A função lógica de que me servi é esquecida com demasiada
freqüência, e só posso lhes dar a equivalência à margem e muito rapidamente.”2
Trata-se de um dever ético conduzir o paciente ao caminho da lógica da
castração. A subversão do desejo pelo significante é o resultado da lógica fálica.
Pensar o Édipo funcionando como a escrita de uma diferença, e então, buscar
conduzir a direção da cura para o caminho dessa escrita é o que se encontra em
1
2
LACAN, J. Seminário 20, p.10. “Mais, Ainda”.
LACAN, J. Seminário 18 “De um discurso que não fosse do semblante”, p. 164.
1
pauta. De uma lógica que escreve dois lugares: um sexo e outro, e, ao mesmo
tempo a impossibilidade da relação sexual.
Tomo a fala de uma paciente, única menina numa série de irmãos: ”Quando
ganhei minha primeira boneca, logo a cabeça da boneca vira bola e jogávamos
futebol com ela, sinto que isso tudo me atrapalhou muito.”
No direcionamento dessa análise evidenciam-se, as vicissitudes do Édipo,
entraves na assunção do sexo pelo sujeito. O que lhe permite mais adiante
formular: “Sei que preciso construir minha feminilidade”. O que vemos em jogo é
uma falha na operação da castração e de sua posição na partilha sexual, que J.
confessa ter se “atrapalhado”.
A possibilidade de uma escrita da diferença está dada, localizada no infantil,
ficou no todos tem, a dedução da castração passa ao largo, o nem todos tem,
escrita da diferença, marca a
escrita deste tempo, marcando uma escansão,
trazendo para a cena, atual um outro tempo.
Freud no artigo “A Organização Genital Infantil” coloca o falo como
organizador dessa lógica. Tempo em que a fase fálica não é perturbada, trata-se
de ser ou não ser o falo da mãe. No caso citado, o fato da mãe, não ter feito
menção ao pai tem suas conseqüências.
Parece que nesse caso, a intervenção do significante fálico manca,
obstacularizando a construção de um caminho no desenvolvimento da
sexualidade feminina, faltam palavras para nomear o pai, carece de palavras para
construir um referente. Diz: “Quando sonho com o meu pai ele aparece sem
cabeça”.
Cito Lacan:
“Esse falo como significante não cai do céu. É preciso que haja em sua
origem, que é uma origem imaginária, uma certa propriedade em exercer sua
função significante”. 3
A questão que o texto persegue é: Diante desse pai ausente na palavra da
mãe, como pensar a operação do significante?
3
LACAN, J. Seminário 5 - As formações do inconsciente, p. 299.
2
Segundo Geneviéve Morel, em “A Lei da mãe – Ensaio sobre o sinthome
sexual”,4 o que cunha sob, “lei da mãe”, diz respeito a existência de uma lei
primordial ligada ao banho de linguagem que recebemos, deste primeiro
assujeitamento o inconsciente guarda traços por toda vida portanto, desvencilhar
não é tarefa fácil.
O que essa autora busca sustentar é que o sintoma tem relação com essa
primeira lei, no sentido de portar palavras legiferantes, oraculares, com força de
lei, traços memorizados de todo o poder da mãe sobre a criança e de seu gozo,
traços que guardam um estatuto real, pois não são simbolizadas.
Ponto em que nos encontramos diante da separação da lei da mãe,
processo custoso, constatamos na clínica que o sujeito fabrica sintomas
separadores. Pensamos que
essa separação é necessária, para a sobrevida
psíquica.
Aqui fazemos uma pequena distinção entre afastamento e separação. Por
afastamento entendemos, uma distância que a filha toma em relação à mãe. Já a
separação é mais complexa,
implica uma das operações de constituição do
sujeito.
Portanto, afastamento e separação, é o que se pretende, ou seja, fazer o
percurso em direção à lógica fálica, em cada paciente mulher que atendemos,
significa traçar com cada uma a genealogia da feminilidade? A ressituação do
sujeito em relação ao falo permite uma aproximação ao enigma da feminilidade?
Portanto, fazer a escrita de uma diferença é o trabalho que se coloca que
pensamos estar estritamente relacionado a construção da feminilidade.
Em Geeviéve Morel, o sinthoma é enraizado dentro da linguagem maternal.
Esta “lei da mãe” herda propriedades do gozo feminino que tudo pode, sendo uma
lei ilimitada. Se separar de um Outro, é um processo que implica em,
primeiramente, fazer parte de seu próprio gozo, de seu próprio desejo, enraizado,
dentro do Outro.
Cito Lacan:
4
Morel, Geneviéve , “ La loi de la mère – Essai sur la sinthome sexuel”.
3
“Que tudo gira ao redor do gozo fálico, é precisamente o que dá
testemunho à experiência analítica, e testemunho de que a mulher se define por
uma posição que apontei com o não todo no que se refere ao gozo fálico.” 5
Lacan ao cunhar que o desejo é o desejo do Outro, localiza o ponto
primário da estrutura, pois, esse desejo não sabe o que fazer com o sujeito como
objeto, nem sabe como desejar como objeto. O enigma do desejo está posto. O
que o Outro quer de mim? Que deveres tenho, para com o desejo do Outro? O
que é isso que o Outro me pede? Sabemos que muitas vezes, o desejo de uma
mãe, não é o que o Outro pede. Existe um ponto obscuro no desejo do Outro ao
qual estou atrelado desde sempre.
Diante do desejo obscuro do Outro, o sujeito se encontra no desamparo,
essa é a angústia primordial que Lacan nomeia Hilflosigkeit, onde no desamparo
trata-se da angústia mais radical enquanto reação frente o peso que o desejo do
Outro vem representar.
J. pode formular num outro tempo de análise:
“Só agora, me dou conta, que eu poderia ter perguntado do meu pai para a
minha mãe”.
Nesse sentido, pensamos que ser analista é suportar ser agente de
condução do sujeito à ordem do desejo. Apostando que na experiência do
desamparo, a “conversão radical” se dê, lugar de objeto, no real.
Referências Bibliográficas
Freud, S. “Organização Genital Infantil”. In Obras Completas,
Rio de Janeiro: Imago Ed.
Freud, S. “Sexualidade Feminina, (1931). In Obras Completas,
Rio de Janeiro: Imago Ed.
Freud S. “Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção Anatômica”,
(1924 ). In Obras Completas, Rio de Janeiro: Imago Ed.
Lacan, J. Seminário, 5 – As formações do Inconsciente .
5
LACAN, J. Seminário 20 – Mais ainda, p. 15.
4
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Lacan, J. Seminário 18 – De um Discurso que não fosse do semblante.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Lacan, J Seminário Inédito – O Desejo e sua Interpretação.
Lacan, J. Seminário 20 – Mais, ainda. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed.
Morel, Geneviéve. La loi de la mére – Essai sur lê sinthome sexual.
Ed. Econômica Anthropos , ano 2008.
5
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