ECONOMIA SOLIDÁRIA: A AÇÃO COLETIVA SOB A ÓTICA DA
ESCOLHA RACIONAL E DA TEORIA DA DÁDIVA
Autoria: Maria Eugenia Monteiro Castanheira, Ana Carolina Guerra, José Roberto Pereira
Resumo: A economia solidária, diante do contexto de falência dos mecanismos de regulação
econômica e política da sociedade, conduz à busca por novas formas de configuração social,
unindo o princípio da posse e uso dos meios de produção e distribuição, com o princípio da
socialização desses meios. Tendo como unidade típica a cooperativa, a economia solidária
constitui-se por empreendimentos autogestionários e solidários. Em tais iniciativas acredita-se
haver uma forte afinidade entre as classes trabalhadoras e os princípios que as regem.
Contudo, não se sabe até que ponto a solidariedade baseia-se em uma escolha racional ou
resulta de uma colaboração espontânea gerada pela consciência de classe. Neste sentido, o
presente artigo propõe-se a realizar uma discussão em torno das motivações condutoras da
ação coletiva, que compõe a base de constituição da economia solidária, analisando este
fenômeno sob a ótica da escolha racional de Mancur Olson, e da teoria da dádiva, que teve em
Marcel Mauss o seu precursor.
1. Introdução
Nos últimos anos, os efeitos cada vez mais visíveis provocados pelo fenômeno da
globalização vêm gerando a reprodução de desigualdades políticas, sociais e econômicas que
vão da escala global (entre os países do Norte e do Sul) à escala local (entre classes sociais).
A enorme distância entre ricos e pobres é evidente, havendo um pequeno número de
trabalhadores empregados em condições favoráveis e um extraordinário contingente de
pessoas trabalhando de forma precária, informalmente ou desempregadas.
É fato que a economia global contemporânea atingiu níveis de crescimento jamais
imaginados, mas também é verdade que a maior parte da população mundial está excluída do
processo de acumulação global de capital. Essa grande massa de indivíduos está à margem do
sistema capitalista uma vez que, como produtores, desempenham atividades de baixa
produtividade e pouco valor agregado e, como consumidores, não possuem poder aquisitivo
para participar na sociedade de consumo.
Apesar disso, o processo de exclusão social não progride sem encontrar resistência por
parte daqueles que são excluídos. De forma singular ou coletiva, esses indivíduos se opõem
implementando ações bastante diversas, que vão desde simples estratégias de sobrevivência a
projetos elaborados para a promoção social. Dentre tais iniciativas encontra-se a proposta da
economia solidária que, nas palavras de Paul Singer, “surge como modo de produção e
distribuição alternativo ao capitalismo, criado e recriado periodicamente pelos que se
encontram (ou temem ficar) marginalizados no mercado de trabalho” (Singer, 2000:13).
A economia solidária posiciona-se em um contexto de falência dos mecanismos de
regulação econômica e política da sociedade e conduz à busca por novas formas de
configuração social. Sob esta perspectiva, une o princípio da posse e uso dos meios de
produção e distribuição, com o princípio da socialização desses meios, tendo como unidade
típica a cooperativa. Também chamada de “a nova economia”, constitui-se por
empreendimentos solidários e autogestionários. O caráter solidário deve-se ao fato de que
tanto os custos do investimento quanto os ganhos obtidos são divididos entre os membros do
grupo. O aspecto autogestionário ocorre uma vez que são os próprios trabalhadores quem
administram o empreendimento.
Singer (2000) acredita que toda empresa solidária constitui uma associação
comunitária. Quem se associa a ela faz parte de uma união em que a trajetória individual se
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funde com as trajetórias dos demais companheiros. A viabilidade dessas organizações surge
antes mesmo de começarem a funcionar, a partir da interação dos associados que, juntos,
passam por um processo de estruturação política, através da elaboração do estatuto da
empresa, e por um processo de aprendizagem conjunta que envolve cursos de cooperativismo
e de preparação profissional.
Sendo assim, quando uma nova empresa solidária surge, a sua estruturação segue um
raciocínio diferente, pois é gerada não só para permitir ganhos aos sócios, mas também como
luta contra a hegemonia do sistema capitalista. Trata-se, portanto, de uma alternativa, ao
mesmo tempo, econômica e político-ideológica, que oferece uma opção contra os valores
dominantes da competição individual e da primazia do capital sobre o trabalho (Singer, 2000).
Na concepção de França Filho (2002), as experiências de economia solidária supõem
uma articulação específica entre as esferas econômica, social e política, em razão das
diferentes formas de ação ou das diferentes lógicas que permeiam essas iniciativas. Trata-se
de uma forma de economia que, mais que um setor à parte, possui vocação para interagir com
as formas econômicas dominantes (Estado e mercado), propondo novos arranjos a fim de que
a lógica mercantil submeta-se a outros imperativos da ação coletiva ou organizacional que não
se baseiem unicamente no cálculo racional.
É indiscutível para Singer (2000) a forte afinidade entre as classes trabalhadoras e os
princípios que regem a economia solidária. Para ele, “nem todos os trabalhadores rejeitam o
capitalismo, mas a maioria deles o faz e por isso, quando se associa para produzir, comprar,
vender ou consumir, o faz sob formas solidárias” (Singer, 2000:15). Contudo, o autor deixa
em aberto a questão se tal solidariedade baseia-se em um cálculo, no qual os trabalhadores
imaginam que, através da ação coletiva, são maiores as suas chances de obter ganhos, ou
resulta da consciência de classe, adquirida através das lutas travadas ao longo da vida e
geradora do senso de colaboração mútua.
Com base neste questionamento, o presente artigo propõe-se a realizar uma discussão
em torno das motivações condutoras da ação coletiva, que compõe a base de constituição da
economia solidária, analisando este fenômeno sob a ótica da escolha racional de Mancur
Olson, e da teoria da dádiva, que teve em Marcel Mauss o seu precursor.
2. A teoria da ação coletiva de Mancur Olson
Mancur Olson (1999) considera que, quando há objetivos econômicos envolvidos, os
grupos de indivíduos com interesses comuns geralmente tentam promover esses interesses e
espera-se que tais indivíduos ajam por esses interesses coletivos com a mesma intensidade
com que agem por seus interesses pessoais. Para este autor, o comportamento racional e
centrado nos próprios interesses é considerado regra, especialmente quando está em jogo
alguma questão econômica.
De acordo com Alcântara (2003), Olson discute a promoção do bem coletivo e a
decisão do indivíduo de agir em conjunto, salientando que o ser humano é um agente racional
e maximizador de ganhos individuais. Em toda ação promovida coletivamente o indivíduo
tentará obter ganhos superiores, diminuindo seus custos para aumentar o valor real de seu
benefício, mesmo que seu esforço individual tenha sido idêntico ao dos demais membros. A
tendência é que o indivíduo se torne um free rider (ou carona), procurando usufruir do bem
coletivo sem se empenhar para sua promoção. Com isso, o free rider interfere na eficiência da
ação conjunta, desmotivando a colaboração e dispersando o grupo.
Assim, Olson (1999) afirma que “os indivíduos racionais e centrados nos próprios
interesses” somente agirão para atingir objetivos grupais se houver coerção ou incentivos
seletivos. A coerção força a ação do indivíduo sob o argumento de que não agir custa mais
que agir e os incentivos seletivos são ganhos extras, não necessariamente relacionados à ação,
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mas que estimulam o desempenho do indivíduo. Neste sentido, o autor não considera os
incentivos econômicos como os únicos possíveis, uma vez que prestígio, respeito e amizade
constituem motivações para a ação. A questão moral constitui um importante incentivo
seletivo, tanto quanto os incentivos monetários.
Alcântara (2003) afirma que, para Olson, a promoção da ação coletiva é possível
quando existe um acordo entre os membros do grupo, onde artifícios institucionais são
utilizados não necessariamente para estimular a cooperação, mas principalmente para coibir
as deserções. Tais artifícios, não precisam ser formais ou legais para se institucionalizarem,
mas precisam do reconhecimento e da aceitação do grupo. Na perspectiva de Olson cada ação
conjunta pode adotar diferentes formas em sua composição, exigindo assim diferentes
artifícios. O autor distingue três grupos de ação coletiva: grupos privilegiados, grupos latentes
e grupos intermediários. Essa distinção toma como elemento principal o número de indivíduos
que compõem cada grupo. Segundo o autor, quanto menor o grupo, maior a possibilidade de
que a ação conjunta seja bem sucedida. Por outro lado, quanto maior o grupo, menor a
possibilidade de que seus membros se empenhem na promoção da ação coletiva.
Olson explica tal hipótese da seguinte forma: num grupo menor, ou seja, num grupo
privilegiado, as pessoas se conhecem e se auto-regulam. Contudo, nos grupos maiores, ou
latentes, os integrantes não têm condições de se auto-regular, precisando utilizar a coerção
e/ou incentivos seletivos para tanto. Além disso, quanto maior o grupo, menor a parcela
individual do benefício coletivo. Os grupos intermediários são assim chamados por situaremse entre os grupos privilegiados e os grupos latentes. Não são compostos por um grande
número de indivíduos para serem considerados latentes, mas também não são tão pequenos a
ponto de se tornarem um grupo privilegiado. Mas assemelham-se a este último por não
necessitarem plenamente da coerção e/ou de incentivos seletivos para efetivar a ação coletiva
(Alcântara, 2003).
Para Olson (1999), os grupos menores (privilegiados e intermediários) são duplamente
“abençoados”, pois têm ao seu dispor incentivos econômicos e incentivos sociais, que são
uma forma de pressionar os indivíduos a agirem conforme o que foi acordado pelo grupo. Por
outro lado, os grupos grandes ou latentes dirigem-se para um comportamento egoísta e
racional, que na concepção do autor significa utilizar meios eficientes e adequados para a
consecução de objetivos. Com isso, demonstra que o consenso sobre o objetivo coletivo e os
meios para alcançá-lo são fundamentais para a coesão de um grupo, mas não são suficientes
para garantir a promoção da ação coletiva.
3. A teoria da dádiva
A questão levantada por Mauss (1974) a respeito da dádiva está relacionada à
obrigatoriedade de retribuição do presente recebido nas sociedades chamadas por ele de
arcaicas. Ele procura revelar o que há por trás disso, enquanto forma de contrato e denomina
de “Sistema de Prestações Totais” as instituições que praticam as relações de trocas, ou
melhor, de prestações e contraprestações, de forma voluntária, à base de presentes ou regalos.
Contudo, ele considera que tais trocas, no fundo, “são rigorosamente obrigatórias, sob pena de
guerra privada ou pública” (Mauss, 1974: 45).
Ao analisar o direito e a religião maori, Mauss (1974) nos revela que “o espírito da
coisa dada” nas relações de troca entre os membros do grupo significa que o presente recebido
e trocado cria uma obrigação porque “a coisa recebida não é inerte”. Portanto, mesmo que o
presente seja abandonado pelo doador, ainda faz parte de sua pessoa. Por meio da coisa
recebida, o doador tem uma ascendência sobre o beneficiário. Assim, “aceitar alguma coisa de
alguém é aceitar alguma coisa de sua essência espiritual, de sua alma” (Mauss, 1974: 56). No
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sistema de organização social dos maori a recusa de dar ou receber equivale a declarar guerra.
Significa a recusa à aliança e à comunhão (Mauss, 1974: 58).
Mauss (1974) descreve as regras de generosidades nas sociedades “arcaicas”,
focalizando o aspecto moral da relação que se estabelece, onde misturam-se sentimentos e
pessoas: “Misturam-se as almas nas coisas; misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as
vidas, e é assim que as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e se
misturam: o que é precisamente o contrato e a troca.” (Mauss, 1974: 71).
Nesse sentido, Mauss (1974) relaciona os aspectos da dádiva, analisados nas
sociedades ditas “arcaicas”, com os aspectos correspondentes na sociedade ocidental. Para
ele, vários aspectos são correspondentes, seja em certas épocas do ano ou em determinadas
ocasiões, tais como: a troca de presentes; a caridade; a troca de “gentileza”; festas oferecidas
por ocasião de casamento; comunhão ou enterro; e outros costumes.
O autor considera que “podemos e devemos voltar ao arcaico, aos motivos de vida e
de ação que são conhecidos ainda por numerosas sociedades e classes” (Mauss, 1974: 168).
Acrescenta, ainda, que devemos adotar como princípio de nossa vida, “aquilo que sempre foi
um princípio e o será sempre: sair de si, dar, livre e obrigatoriamente” (Mauss, 1974: 170). E,
para concluir, faz uma consideração para sua época que ainda vale para o início deste século
XXI:
“As sociedades progrediram na medida em que elas mesmas, seus subgrupos e, enfim, seus indivíduos
aprenderam a estabilizar suas relações, a dar, receber e, enfim, retribuir. Para comerciar, foi preciso
primeiro saber depor as lanças. Foi então que se conseguiu trocar os bens e as pessoas, não mais
apenas de clã a clã, mas de tribo a tribo e de nação a nação e, sobretudo, de indivíduo a indivíduo. Foi
somente depois que as pessoas aprenderam a criar e a satisfazer interesses mutuamente, e, enfim, a
defendê-los sem ter que recorrer às armas. Foi assim que o clã, a tribo, os povos, aprenderam – e é
assim que, amanhã, em nosso mundo dito civilizado, as classes e as nações, bem como os indivíduos,
devem aprender a opor-se sem massacrar-se e a dar-se sem sacrificarem-se uns aos outros. Este é um
dos segredos permanentes de sua sabedoria e solidariedade.” (Mauss, 1974: 183).
A teoria da dádiva tem inspirado o trabalho de muitos pesquisadores com destaque
para o grupo francês da Revue do MAUSS (Movimento Anti-Utilitarista das Ciências Sociais).
Este construto não constitui um paradigma mas, como defende Caillé (1998), cumpre todos os
requisitos para sê-lo.
O ato de negar a existência da dádiva no pensamento do homem comum expressa e
reforça a rejeição do estabelecimento de vínculos sociais na modernidade. É a rejeição da
obrigação de retribuição, da dependência que a dádiva traz em relação ao outro. O homem
moderno crê que é auto-suficiente ou deseja ser assim. Godbout (1999) relata que,
espontaneamente, negava-se a existência da dádiva, apesar dela estar sempre presente, porém
descaracterizada na forma de interesses egoístas. A dádiva, identificada como coisa do
passado, não tem reclamada a sua aparente ausência por não haver espaço para ela nos tempos
atuais, ou por não haver espaço para relações sociais que desconstruam fundamentos da
modernidade. Assim, a dádiva é traduzida atualmente, apenas como interesse e equivalência.
A dádiva não é nem meramente gratuita, nem utilitarista e seu objetivo é estabelecer
vínculos sociais, que não se dão sem que haja uma troca. A descaracterização da dádiva pelo
pensamento moderno segue duas vias: considera-se que ela deveria ser gratuita, porém, como
não se percebe esta gratuidade, ela não existe; não há dádiva porque, o que há, é o interesse
calculista de obter vantagem e equivalência e os gestos não são totalmente desinteressados.
Desse modo, se for questionado por que o pensamento moderno, especialmente a teoria da
ação coletiva de Olson, nega a existência da dádiva, a resposta obtida será que a dádiva é
traduzida como a “imagem invertida do interesse material egoísta”. Ela só poderia ser
verdadeira se fosse gratuita, como não há gratuidade ela não existe mais. O interesse egoísta
por trás das ações, o “tirar proveito”, desvirtua a dádiva. Isto consiste num engano, segundo
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Godbout (1999), porque a dádiva estabelece relações sociais e estas não existem num sentido
único, elas pressupõem a troca, o retorno:
“Mais ainda que o capital segundo Marx, a dádiva não é uma coisa, mas uma relação social. Ela é
mesmo a relação social por excelência, relação mais temível do que seria desejável. A idéia de que a
dádiva seria sempre interessada e a idéia de que ela deveria ser sempre gratuita tem em comum o fato
de dar uma visão asséptica da dádiva, bem como de impedir a compreensão de que ela é a tal ponto
conjurada e negada pelos modernos, porque ela é perigosa.” (Godbout, 1999: 16).
Para Godbout (1999) o problema está em entender a recusa da dádiva e suas formas na
modernidade, pelo recurso do mercado, com a “contradádiva monetária imediata”. Pagar
pelos favores feitos ou presentear com um objeto de valor monetário alto e impessoal são
recursos quando não se deseja estabelecer relações, o que poderia ser feito com algo sem
valor financeiro, mas afetivo e pessoal: “Diante dos riscos inerentes a qualquer dádiva, o
dinheiro e o recurso a uma lógica mercantilista são os antídotos – ao mesmo tempo
contradádivas e contra-venenos – por excelência.” (Godbout, 1999:18)
Godbout (1999) acredita ser possível completar a tarefa que Mauss teria deixado pelo
caminho e construir uma teoria, alternativa ao utilitarismo, centrada no que seria a “moral
eterna” nos termos de Mauss, presente em qualquer tipo de sociedade e determinando a ação
dos homens. A dádiva seria esta moral, que perpassa o tempo, sendo mais determinante que o
mercado e estando também nele presente. A hipótese de Godbout (1999) é que o pensamento
utilitarista não permite pensar na dádiva enquanto norteadora da ação coletiva porque procura
explicá-la centrando-se unicamente na motivação e interesse do recebimento. A hipótese que
desenvolve é que o “desejo de dar é tão importante na compreensão da ação humana quanto o
de receber” (Godbout, 1999:28).
Em síntese, o que Godbout (1999) propõe desenvolver é que a dádiva é um sistema,
assim como o mercado e o Estado. Está presente na modernidade quanto nas sociedades
primitivas. É relação social a priori. Compõe-se de dar, receber e retribuir desde palavras a
bens materiais. É troca. O pensamento sociológico e o senso comum negam sua existência por
analisá-la através da gratuidade associada ao pensamento religioso, ao egoísmo do
pensamento utilitarista e ao próprio desenvolvimento do mercado e do Estado moderno
burocrático que destrói a forma tradicional de sociedade. A dádiva se constitui num sistema
de relações entre pessoas. Não há como haver uma sociedade sem dádiva. Ela garante a
sociabilidade, uma vez que “a sedução da dádiva tem tanto ou mais poder do que a sedução
do ganho, e é, portanto, tão essencial elucidar as suas regras quanto conhecer as leis do
mercado ou da burocracia para compreender a sociedade moderna” (Godbout, 1999:28).
Godbout propõe cumprir a tarefa de dar seqüência ao trabalho de Marcel Mauss,
analisando o tema a partir de onde ele teria parado: “às portas da modernidade”. Para isto, ele
adota a divisão dos lugares de sociabilidade em três esferas, ou nas três formas de estabelecer
vínculos: o Estado, o mercado e o grupo doméstico. Identifica neste último o lugar “natural da
dádiva”, aquele que “mais se aproxima da dádiva tradicional” como já descrita por outros
autores. A pergunta que procura responder é: “o que acontece com a dádiva nas outras
esferas?” É possível que esteja presente, e de que forma?
Para responder esta pergunta o autor adota a perspectiva de compreensão da dádiva
não a partir do que circula, o que segundo ele é o equívoco do pensamento utilitarista que não
permite enxergar a dádiva na modernidade, mas a partir dos vínculos por onde as coisas
circulam.
As características dos vínculos estabelecidos na esfera do mercado seriam baseadas no
principio do exit, o desligamento livre do vínculo quando há insatisfação de um dos lados (um
consumidor não retorna a uma loja se não ficou satisfeito). Enquanto o Estado é o lugar
próprio de debate, a esfera familiar é regida pelo princípio da lealdade. Ele encontra na esfera
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doméstica a dádiva como reciprocidade. O mercado e o Estado têm formas próprias de
dádiva, pois surgem e procuram quebrar o mundo tradicional e conseqüentemente o sistema
de dádiva, mas, por outro, estão relacionados a ela. Godbout (1999) adota estes conceitos de
Albert Hisrchman.
Godbout (1999) considera como a expressão própria da dádiva na modernidade, “a
dádiva entre estranhos”. Ao contrário de Mauss, que se quer reconhece a dádiva nas
dimensões que seriam comuns entre a modernidade e a sociedade primitiva, ele chega a
afirmar ela está tão presente nos tempos atuais que assume uma forma própria: a dádiva entre
estranhos que se configura nos grupos de ajuda mútua e dos organismos voluntários, cuja
importância é tanta, que é possível traçar um paralelo com o mercado, o Estado, e com os
grupos primários (parentesco, família, vizinhança e amigos).
Godbout (1999) localiza a dádiva na modernidade na forma como foi descrita por
Mauss nos grupos primários onde, apesar da magia não ter a mesma importância como na
vida primitiva, ela está presente nos objetos dados e ainda tem o poder de estabelecer vínculos
entre pessoas próximas. Mas ele vai além ao identificar um sistema de dádiva que assume
formas próprias, novas, a partir de valores que são propriamente modernos. Ele revela que no
voluntarismo e nos grupos de ajuda mútua há uma articulação entre modernidade e tradição,
expresso nos valores de liberdade ou de gratuidade e de vínculo.
A dádiva entre desconhecidos, como nos grupos de ajuda mútua, tem em si a própria
dimensão da modernidade: a quebra da hierarquia entre os indivíduos, própria da tradição. Por
outro lado, revela que há outros valores, que o homem moderno não é tão moderno assim,
como se houvesse na modernidade uma espécie de contradição, de negação dela mesma.
A dádiva entre estranhos constitui-se numa quarta esfera do sistema de circulação de
coisas. Segundo Polanyi (2000) eles seriam três: o mercado, a redistribuição (o Estado), a
reciprocidade (esfera doméstica). Godbout (1999) acrescenta a elas o sistema de dádiva,
próprio da modernidade, que se constitui por uma diversidade de organismos comunitários,
grupos que se associam livremente para prestar serviços, entre aqueles executados pelo Estado
e pelos grupos primários. Seriam as igrejas, os sindicatos e diferentes associações não
totalmente autônomas podendo ter ligações com o Estado e com o mercado e ser por eles,
financiados. Porém, distinguem-se deles por ter a dádiva “no centro do sistema de circulação
das coisas e serviços” (Godbout, 1999: p.81).
Esses organismos têm o caráter de dádiva por serem criados livremente, sem que haja
uma obrigação, e por definirem suas próprias regras internas e as áreas de atuação.
Distanciam da dádiva quando o grupo torna-se uma instituição, aproximando-se do Estado ou
do mercado. Na história de uma organização ela pode assumir diversas formas, passando do
caráter beneficente ao mercantil ou Estatal. Isto se dá quando se especializam,
profissionalizam-se, e os membros envolvidos que realizam o trabalho, são remunerados.
Perde-se, então, o caráter do voluntarismo que lhes são próprios. Parece ser difícil distinguir
essa mudança, pois há cargos administrativos que não necessariamente modificam o caráter
da organização quando emprega pessoas, ou ainda, quando o salário não é um fim em si
mesmo.
Godbout (1999) adota o seguinte critério para definir as organizações que tem em si o
caráter de dádiva: o trabalho não remunerado e o caráter aberto. Estas organizações podem ser
agrupadas em duas categorias: organizações beneficentes ou organismos voluntários e os
grupos de ajuda mútua. No primeiro caso, os serviços prestados são livres, gratuitos,
voluntários sem que haja reciprocidade. No segundo, as ações são baseadas na reciprocidade,
estabelecendo a cadeia da dádiva de receber e retribuir, havendo uma responsabilidade de
transmitir o que se recebe. Inclui, neste último caso, as cooperativas populares.
O tratamento dado à dádiva por outros estudos tem sugerido sempre a questão da
obrigação da retribuição, “donde se conclui que a essência da dádiva não é ser uma dádiva”
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(Godbout, 1999:113). Os seguintes argumentos são apresentados para desconstruir a idéia de
dádiva enquanto retribuição unicamente: o retorno existe, mas ele não é semelhante ao do
mercado, equivalente e simétrico. Nem sempre está presente, como acontece com a dádiva
unilateral, não-recíproca nos casos de beneficência. O retorno pode ser maior que a dádiva,
quando se busca um certo desequilíbrio da relação. Ele está presente mesmo sem ser desejado.
Trata-se do reconhecimento da ação realizada, que não é reduzida à dimensão material como
comumente descrito na esfera mercantil. Além disso, a retribuição está no próprio ato de dar:
“Existe um imediato retorno de energia para aquele que dá; ele se engrandece” (Godbout,
1999:115). Cria-se uma energia com poder de transformação em quem doa e em quem recebe
que só pode ser comparado aos ritos de iniciação nas sociedades primitivas, efeito tal que não
encontra paralelo na modernidade. Portanto, “[...] a reciprocidade dos objetos não é central à
dádiva [...]”. Nem a reciprocidade nem a obrigação traduzem o espírito da dádiva, mas sim a
liberdade, a ausência de cálculo quantitativo e temporal do que se doa. Ela desafia a
racionalidade moderna, por ser um meio que, de repente, torna-se um fim em si mesmo.
O paradoxo que inicialmente estava ligado somente ao mercado, parece estar presente
em todas as esferas da dádiva: não se dá para receber, mas através de um gesto sincero e
espontâneo, se perde para ganhar. Assim, todos os fundamentos da ação coletiva,
desenvolvidos pela teoria da escolha racional, caem por terra. A dádiva segue outra lógica não
significando, porém, que ela seja irracional. O conteúdo da dádiva que a racionalidade
moderna não percebe, ou distorce, é o que Godbout (1999) se propõe a tratar.
A ação coletiva relacionada à teoria da dádiva apresenta contornos bastante
particulares. Verifica-se, inicialmente, que a liberdade dos atores é ampla pois a doação tem
como pressuposto a espontaneidade. Nota-se, portanto, um componente de incerteza nas
relações. Trata-se da dívida que tende a ser menosprezada por quem doa. Diante de um
“obrigado” – que expressa a necessidade do favorecido em retribuir – responde-se
irrefletidamente “por nada”. Mais do que uma praxe social, este ato busca desonerar o outro
da contraprestação do favor, ampliando sua liberdade de ação. O comportamento de quem
doa, contudo, não é absolutamente altruísta. Espera-se, ou melhor, aposta-se na reciprocidade.
Respostas aos dilemas da ação coletiva, conforme salienta Putnam (2002), podem ser
encontradas no conceito de reciprocidade. Indivíduos racionais, porém incapazes de
colaborar, tendem a produzir resultados irracionais do ponto de vista coletivo. A cooperação
demanda a confiança no outro e a crença de que se goza do crédito alheio.
Assim, a manutenção de relações estáveis – capazes de dispensar a coerção de uma
terceira instância (independente e onerosa) – depende da confiança social e de suas fontes: os
sistemas de participação cívica e as regras de reciprocidade.
A reciprocidade admite duas formas: balanceada (ou específica) e generalizada (ou
difusa). A primeira refere-se à permuta simultânea de itens de igual valor. A segunda, que se
aproxima da dádiva, vincula-se a uma contínua relação de troca que, num momento
específico, apresenta desequilíbrio ou falta de correspondência. Supõe, contudo, expectativas
mútuas de que um favor concedido venha a ser retribuído no futuro. Assim:
Num sistema de reciprocidade, todo ato individual geralmente se caracteriza por uma combinação do
que se poderia chamar de altruísmo a curto prazo e interesse próprio a longo prazo: eu te ajudo agora
na expectativa (possivelmente vaga, incerta e impremeditada) de que me ajudarás futuramente. A
reciprocidade é feita de uma série de atos que isoladamente são altruísticos a curto prazo (beneficiam
outrem à custa do altruísta), mas que tomados em conjunto normalmente beneficiam todos os
participantes. (Taylor apud Putnam, 2002: 182).
4. Considerações finais
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A construção da economia solidária é, sem dúvida, uma das principais formas de
oposição ao sistema capitalista. Contudo, não se pode supô-la como opção única de
sobrevivência dos setores mais pobres e excluídos da sociedade. Igualmente, não se pode
considerar que esses dois aspectos, pobreza e exclusão, são suficientes para despertar nos
indivíduos, e entre eles, o sentimento de solidariedade.
É evidente a existência de solidariedade entre os que se sentem marginalizados, e
inegável o fato de que a ajuda mútua é um meio garantidor de sobrevivência. Todavia, é
bastante comum que isso se limite aos mais próximos, com quem há mais afinidades, não
sendo raro que o indivíduo, solidário aos seus semelhantes, aja de forma totalmente oposta
com aqueles que considera estranhos. Isso demonstra a forte aceitação e internalização dos
valores individualistas que fundamentam o capitalismo enquanto instituição hegemônica.
Por outro lado, não se pode negar o fato de que muitos indivíduos se associam a
estranhos conduzidos por outras motivações, que não somente as de atender a interesses
instrumentais, e por razões que vão além de interesses econômicos em comum. É fato,
também, que sentimentos altruístas e valores como os da colaboração espontânea são
internalizados por determinados grupos, a despeito da lógica capitalista hegemônica. A posse
coletiva dos meios de produção e distribuição de bens e serviços, bem como a autogestão, não
só constituem um instrumento de promoção social dos indivíduos, como transformam o modo
como vêem o mundo e a forma como atuam nele.
Sob a ótica capitalista, encontra-se a lógica da ação coletiva proposta por Mancur
Olson, na qual, os grupos de indivíduos com interesses comuns geralmente tentam promovelos esperando-se que todos ajam por ele com a mesma intensidade com que agem por seus
interesses pessoais. Partindo dessa premissa, especialmente quando está em jogo alguma
questão econômica, o comportamento racional e centrado nos próprios interesses é
considerado regra.
Porém, contrários a esta perspectiva são os fundamentos da teoria da dádiva,
inicialmente estudada por Marcel Mauss, em cujos pressupostos, a dádiva deve ser tratada
como um sistema – tal como o mercado e o Estado – tão presente na modernidade quanto era
nas eras primitivas. Essa relação de troca, que compõe-se de dar, receber e retribuir, constitui,
na realidade, um sistema de relação entre pessoas essencial para a vida em sociedade.
A dádiva revela que no voluntarismo e nos grupos de ajuda mútua há uma articulação
entre modernidade e tradição expresso nos valores de liberdade ou de gratuidade e de vínculo.
Entre desconhecidos, ela guarda em si a própria dimensão da modernidade, a quebra da
hierarquia entre os indivíduos e, conseqüentemente, da tradição. Por outro lado, revela que há
outros valores, que vão além do individualismo, mostrando que o homem moderno não é tão
moderno assim.
Assim, a motivação que leva à ação coletiva, presente nos empreendimentos que
constituem a economia solidária, encontra na teoria da dádiva uma explicação para os
comportamentos fundados nos princípios de ajuda mútua e de colaboração espontânea, tão
desacreditados pela teoria da escolha racional.
5. Referências bibliográficas
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solidariedade em cooperativas populares”. In: Heckert, Sônia Maria Rocha (Org.).
Cooperativismo popular: reflexões e perspectivas. Juiz de Fora, Editora UFJF, 2003.
222p.
CAILLE, A. Nem holismo nem individualismo metodológicos. Marcel Mauss e o
paradigma da dádiva. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 13, n. 38. 1998.
8
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1 ECONOMIA SOLIDÁRIA: A AÇÃO COLETIVA SOB A