Prof. Dr. Alexandre Faria (UFJF)
Fronteiras da autoria na narrativa contemporânea
(Comunicação apresentada no X encontro regional da ABRALIC, Sentidos dos Lugares, integrante do grupo
temático Literatura e cultura: identidade e locais de enunciação, no dia 09/07/2005, no Instituto de Letras da
UERJ)
Este texto pretende empreender uma reflexão sobre as implicações advindas da
relação entre a crise de identidade do sujeito pós-moderno, manifesta especificamente
através da figura do autor, e as tensões registradas no mundo contemporâneo entre
identidades culturais, especialmente as das nações, diante do processo de globalização. O
tema é um dos desdobramentos da pesquisa “Representações da identidade cultural no
Brasil contemporâneo”, que atualmente desenvolvo com incentivo da Pró-Reitoria de
Pesquisa da UFJF, e tem como ponto de partida a identificação da temática da autoria em
crise, em narrativas brasileiras contemporâneas, tais como Budapeste (2003), de Chico
Buarque ou O manuscrito (2002), de Edgard Telles Ribeiro. Deixarei, no entanto, a análise
das obras para um momento posterior, e limitar-me-ei ao levantamento de algumas
questões teóricas.
A reflexão objetivará estabelecer os pontos de contato possíveis entre duas questões
de amplitude consideravelmente diversas: a da autoria e a da identidade cultural.
Pretendemos experimentar a hipótese de que a questão do autor é potencialmente útil para
se aprofundar, a partir dela, a compreensão da crise das nações diante do processo de
globalização. Se a crise do sujeito pode ganhar conotações subjetivas, que conduzam, por
exemplo, a uma compreensão psicanalítica da questão, ou, por outro lado, conotações
1
sociológicas, que procurem relacionar a crise do sujeito à da sociedade, a autoria, por sua
vez, é um segmento híbrido, em que o subjetivo entra, mais nitidamente, em confluência
com o social. Além disso, elementos da reflexão especificamente literária, que há algum
tempo vem sendo dedicado à figura do autor, podem, neste caso, também ser úteis para
enriquecer o debate. Assim como se aproxima dos traços identitários de afirmação cultural,
tais como etnia, classe, gênero, nacionalidade, etc, o lugar do autor também deles se afasta,
na medida em que, via de regra, representa um certo apogeu do indivíduo na sociedade
moderna (ainda que uma obra seja coletiva, muito raramente os autores não são
identificados individualmente).
A autoria é o lugar em que a modernidade permitiu a projeção ampla e a afirmação do
indivíduo que, no entanto, tradicionalmente, investe-se do poder de representar a
coletividade. São freqüentes tomadas de posições em que o autor assume conscientemente
esta atribuição querendo mesmo atingir uma escala universal através do projeto humanista e
civilizador. Victor Hugo, por exemplo, assim se dirige a seus pares, em 1978, num
Congresso Literário Internacional:
Senhores, não é por interesse pessoal ou restrito que estão aqui reunidos; é por um
interesse universal. O que é a literatura? É o que faz caminhar o espírito humano. O
que é a civilização? É a perpétua descoberta que faz a cada passo o espírito humano em
marcha; daí a palavra progresso. Pode-se dizer que a literatura e a civilização são
idênticas... senhores, sua missão é grandiosa. (apud BONCOMPAIN, 2002, p. 16)1
O poder civilizador da literatura e, por contiguidade, do autor, evidenciou-se na
cultura ocidental moderna. Entre os intelectuais brasileiros pode-se identificar a assimilação
deste papel quando um autor como Castro Alves propõe o livro como um dos pilares da
1
Esta, como as demais citações das referências bibliográficas de originais em francês, são traduções minhas.
Devido ao limite de espaço para a apresentação desta comunicação, optei por não citar também as passagens
originais.
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modernidade, coadjuvante da nova civilização, sediada, pelo poeta, no Novo Mundo, que
substituiria a tradição bélica das antigas civilizações; não custa lembrar os famosos versos
de “O livro e a América”:
O livro — esse audaz guerreiro
Que conquista o mundo inteiro
Sem nunca ter Waterloo... (ALVES, 1960, p. 77)
Outro exemplo, menos ufanista no entanto, mas não menos fiel ao projeto civilizador,
são as idéias de Machado de Assis, quando propõe uma alternativa à construção da
identidade brasileira a partir da cor local, e defende que os costumes civilizados
“igualmente oferecem à imaginação boa e larga matéria de estudo” (ASSIS, 1986, p. 803).
Nosso intuito não é, porém, averiguar propriamente o projeto civilizador assimilado e
empreendido pela literatura brasileira, mas destacar o fato de que o autor assume para si
este dever, inclusive refletindo crítica e teoricamente sobre a produção literária de seu
tempo, como é o caso do texto de Machado mencionado, “Instinto de nacionalidade”, ou do
projeto literário de Alencar2.
Confunde-se, ainda, em alguns momentos, o papel do autor com o do intelectual.
Revestido da autoridade que sua prática ordinária lhe fez merecedor na sociedade moderna,
o autor pode lançar mão de seu poder de influência político-ideológica em questões
urgentes (vide o paradigmático papel de Zola no caso Dreyfus), ou mesmo considerar sua
obra uma demanda do seu tempo, engajando-a em causas sociais ou políticas.3 Os romances
da primeira fase de Jorge Amado, por exemplo, a despeito de qualquer discussão sobre o
2
A esse respeito, inclusive avaliando o destino contemporâneo do projeto de civilização, sugerimos o artigo
PEREIRA, Terezinha Maria Scher: “Imagens de nação e povo na literatura brasileira”. In: NASCIMENTO,
Evando et alii (org). Literatura em perspectiva. Juiz de Fora: UFJF, 2003.
3
Fazemos a distinção entre o intelectual e o autor engajado a partir de DENIS, Benoît. Littérature et
engajament: de pascal à Sartre. Paris: Seuil, 2004.
3
valor literário do texto, são modelares para esta situação em que a obra é produzida a
serviço de uma ideologia.
Não restam dúvidas, no entanto, de que, quer nas sociedades democráticas, quer nas
submetidas ao autoritarismo político, um importante papel do autor foi o de coadjuvante na
escritura da História dos estados-nação, seja em sua consolidação ou em sua contestação.
Walter Benjamim, em artigo de 1934, explicita esta noção quando concebe que o autor, ao
atuar como produtor, estaria contribuindo para a consolidação do estado socialista, em
contraposição ao regime fascista:
Aragon tem razão quando afirma (...): “ o intelectual revolucionário aparece, antes de
mais nada como um traidor à sua classe de origem”. No escritor, essa traição consiste
num comportamento que o transforma de fornecedor do aparelho de produção
intelectual em engenheiro que vê sua tarefa na adaptação desse aparelho aos fins da
revolução proletária. (BENJAMIM, 1994, p. 136).
Levando-se em conta, dessa forma, o papel do autor na modernidade, a crise da
autoria não precisa ser lida, necessariamente, como a crise do autor enquanto sujeito, mas a
crise de um lugar de extrema subjetividade que se projeta, desde a ascensão da sociedade
burguesa, a um papel social bem demarcado, através do qual, inclusive, torna-se possível
contribuir para a fundamentação de um sistema imaginário, responsável pela fixação de
identidades coletivas.
O lugar do autor, pois então, é como estamos nomeando esta condição de projeção do
indivíduo na sociedade burguesa, ainda que ele se projete manifestamente crítico e conteste
os valores desta mesma sociedade. Este lugar pode ser compreendido como um híbrido
entre o individual e o social, que em certo sentido contribuiu para a própria instituição da
morte do autor, conforme a defendeu Roland Barthes, conforme abordaremos mais adiante.
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Jacques Boncompain fixa entre 1773 e 1815 o nascimento da propriedade intelectual,
ou seja, fato simultâneo à ascensão da burguesia, de onde propaga a idéia de autor como um
elemento produtivo na sociedade de mercado. Porém, a intensificação industrial, ou a
passagem da industria têxtil à metalúrgica, em certo sentido o nascimento do capitalismo
moderno, relativiza o papel do autor que, segundo Barthes, fica “repartido entre sua
condição social e sua vocação intelectual” (BARTHES, 2000, p. 54). Obriga-se, então, o
autor a construir a autoria através de um, “artesanato do estilo”. Dessa forma, o bem
coletivo e social, no caso a língua, reveste-se das marcas subjetivas de seu uso, numa
multiplicidade de escritas:
É então que as escritas começam a se multiplicar. Cada uma, de ora em diante, a
trabalhada, a populista, a neutra, a falada, reivindica para si o ato inicial pelo qual o
escritor assume ou detesta sua condição burguesa. (...) Cada vez que o escritor traça
um complexo de palavras, é a própria existência da literatura que está sendo
questionada; o que a modernidade dá a ler na pluralidade de suas escritas é o impasse
de sua própria história.” (BARTHES, 2000, p.54)
Barthes não deixa de atribuir ao autor o papel de “antena da raça”, para usarmos
expressão de Pound, quando conclui seu ensaio O grau zero da escrita com a constatação
de que o paradoxo modernista, construir/destruir, é a condição utópica de que a literatura
reveste a linguagem. Ora, o autor modernista, longe de ter experimentado uma crise de
identidade sem saída, fica sendo o autor da utopia, condição através da qual ele pode se
inserir no seu tempo e, paradoxalmente, romper com ele.
Dessa forma, se o momento contemporâneo permite a identificação de uma crise do
autor, este fato pode relacionar-se com uma certa instabilidade da utopia que também marca
a atualidade. Por isso, identificar a crise da autoria é não estar mais apenas na dimensão
subjetiva, como a do indivíduo que transita entre grupos identitários distintos, abandonando
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a rigidez dos sistemas ideológicos fechados, e lançando mão da provisoriedade das
relações, mas também reconhecer a autoria como potente mecanismo de centramento da e
na sociedade ocidental. Não só o indivíduo se (con)centra no lugar do autor como também
instâncias coletivas afirmam-se ideologicamente pela autoria de suas leis e de suas
construções políticas. O princípio democrático, por exemplo, pode ser compreendido como
a criação de um estado, cujo autor é o povo (e fiquemos, por enquanto, só pelo princípio,
pois sabemos que a prática nem sempre o confirma); a luta sindical, para darmos outro
exemplo, seria o mecanismo de autoria coletiva das conquistas dos trabalhadores.
Pensemos autor, então, como esse lugar social que do lado das elites (as artes, a ciência)
tendeu, desde a modernidade, a se assumir pelo indivíduo, e do lado do povo (o folclore, a
cultura popular) é passível de identificação com a coletividade; isso permite, na dimensão
política, usa-lo como uma metáfora produtiva para compreender o mecanismo de
(con)centração de atos criadores e/ou transformadores da sociedade. Dessa maneira,
fazemos eco à concepção de Homi Bhabha de que nação é narração, mas admitimos, que
como tal, requer uma autoria, sobretudo quando esta narração se aproxima das formações
nacionais modernas. Por mais que seja recorrente a mitologia que remete a origem de
algumas nações a uma autoria perdida, a modernidade das nações, em geral, não prescinde
de um herói capaz de ações políticas e históricas. A autoria das nações, no entanto, nunca
se afirma individualmente, é um lugar tenso cuja identificação, para continuarmos na
proposta de Bhabha, pode, a partir de estruturantes saussurianos, ser compreendida como o
entrelugar entre a “langue da lei” e a “parole do povo” (BHABHA, 1998, p. 52):
A nação como forma de elaboração cultural (no sentido gramsciano) é um agente de
narração ambivalente que detém as culturas em sua posição mais produtiva, como uma
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força para “subordinar, fraturar, difundir, reproduzir – tanto quanto para produzir,
criar, forçar guiar” (BHABHA, 1998, p. 55)4
Ideal para compreender a autoria de e em nações de histórico colonial ou neocolonial,
este entrelugar discursivo, seria o nosso lugar híbrido de (con)centração autoral. É curioso
notar como na própria formulação da idéia de entrelugar do discurso latino americano,
Silviano Santiago tenha proposto a leitura de um conto que justamente relativiza o lugar da
autoria, “Pièrre Menard, autor do Quixote”, de Borges. Guardadas as proporções e o
contexto em que Bhabha e Santiago forjam o conceito de entrelugar, não se pode deixar de
admitir que, se nação é narração, o entrelugar é mesmo discursivo, como postulara o crítico
brasileiro ao fazer uma reflexão mais específica sobre questões relativas ao
comparativismo, sem no entanto deixar de pensar a condição de dependência cultural.
Proponhamos, agora, situações nas quais há uma tendência de se externalizar a
autoria das suas narrativas. As identidades religiosas, por exemplo, (con)sagram suas
escrituras. Por mais que autores possam ser identificados, como os evangelistas ou os
profetas, eles acabam limitando-se a mediadores de um texto de autoria divina. “No
princípio era o verbo”, afirma João, “e Deus era o verbo.” Esta condição de divindade da
palavra põe em cheque o lugar do autor que deixa de ser agente e passa a ser medium do
discurso. Outro exemplo de deslocamento da (con)centração autoral para o exterior do
grupo ou do sujeito está nas ações criminosas. A atribuição ou a confirmação da autoria de
um crime (seja um homicídio ou um genocídio) compete, via de regra, a um tribunal
superior. O genocídio empreendido pelo ideal ariano, sabe-se muito bem, não foi um ato
coletivo do povo alemão, mas dos responsáveis julgados e condenados no tribunal de
4
A citação entre aspas refere-se a SAID, E. The world, the text, and the critic. Cambridge: Havard University
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Nuremberg. Assim, também é freqüente que os povos de forte tradição colonial,
submetidos a constantes regimes autoritários, atribuam ao “governo” (aos “homens”, como
se costumava usar no Brasil do regime militar) a autoria do Estado, e eximam-se de
reconhecer sua participação (mesmo que por omissão) no processo de (con)centração
autoral da nação.
Voltemos à reflexão literária e admitamos, então, duas categorias de autor enquanto
(con)centração, ou seja, enquanto origem densa da ação, da obra: a externa, atribuída ou
dissociável e a interna, requerida ou associável. A primeira é homóloga ao princípio da
divindade. Deus é autor mor, a quem se pode tudo imputar; a segunda compreende o
conceito moderno, burguês, de autor, que assina/registra a obra, seja pelo estilo ou pelos
órgãos de registro de obras intelectuais, e sobre elas exercem (ou não) seus direitos morais
e patrimoniais. Cito os nomes de Fernando Pessoa e Chico Buarque para exemplificar a
autoria moderna como lugar de (con)centração a despeito de mecanismos de homonímia ou
pseudonímia. O nome de Fernando Pessoa é associável aos de Ricardo Reis ou de Álvaro
de Campos, assim como o de Chico Buarque é associável ao de Julinho de Adelaide e
Leonel Paiva. Dissociá-los, sobretudo os do primeiro, demandaria hipóteses espíritas ou
parapsicológicas pouco caras à teoria literária. Ainda, Homero ou Shakespeare são
(con)centrações autorais dissociáveis, tornaram-se autores hipotéticos, ou em tese. Um
último exemplo: pode-se contestar a autoria das Cartas chilenas, pois é atribuída através de
uma tese; contestar, no entanto, a autoria de “Pelo telefone”, demandaria, mais do que uma
tese, um processo judicial. Tomás Antônio Gonzaga é, em outros termos, com relação às
Press, 1983, p. 171.
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Cartas chilenas uma (con)centração menos densado que a de Donga/João da Bahiana,
ainda que se admita que “Pelo telefone” circulava nos terreiros de samba antes do primeiro
registro.
Da mesma forma, com relação ao conceito de nação, pode-se identificar maior ou
menor densidade na (con)centração autoral. Por exemplo, considerar nação um princípio
espiritual, como conclui Renan em 1882: “uma nação é um princípio espiritual, que resulta
das profundas complicações da história, uma família espiritual, não um grupo determinado
pela configuração do solo” (RENAN, 1998, p. 38) é uma (con)centração autoral mais
dissociável (ou menos densa) do que a noção de uma comunidade imaginada através do
mecanismo de memória e esquecimento, como quer Anderson, que, ainda é menos densa do
que a idéia de um entrelugar na confluência de discursos e contradiscursos, artísticos e
históricos, que fundam um imaginário coletivo nacional. Houve um tempo em que a autoria
das nações encontrava fortes alicerces na vontade divina. Lembra-nos Camões que a
expansão do império era concomitante à da fé.
Se relacionarmos esta questão com as obras de fundação obtemos uma hipótese
segundo a qual quanto maior a possibilidade de uma obra enraizar sentidos, maior será a
possibilidade de fixação coletiva dos valores que ela aporta. No caso do Brasil, o
romantismo representa não só o momento de consolidação do autor como também da dos
nossos mitos nacionais (em outro aspecto, o clímax de nossa formação literária, segundo
Candido), que serão rearticulados no modernismo, outro momento de profundo
enraizamento de sentidos para a nação. A melhor forma de se processar este enraizamento
talvez seja através de alguma substituição da ação do autor, por aquela do intérprete ou do
descobridor. São desse período, o século que se conta entre 1850 e 1950, os principais
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intérpretes do Brasil (para nos referirmos a tais autores através de título da seleção
organizada por Silviano Santiago). Cabe aqui, no entanto, entender o papel do intérprete
não apenas como o do hermeneuta que vai buscar um sentido profundo e enraizado na
cultura nacional, mas também como um autor desse sentido, e ressaltar seu papel político
na sociedade. Iracema, por exemplo, a despeito de ser um clássico de Alencar, nunca
deixará de ser uma “lenda do Ceará”; Macunaíma tem na rapsódia e na “traição da
memória” seu melhor processo constitutivo; as Raízes do Brasil talvez ainda sejam lidas
como mais do Brasil do que de Sérgio Buarque. É quando a invenção se confunde com
interpretação ou com descoberta que mais (con)centração o lugar do autor apresenta.
Este fato talvez encontre eco na teoria literária se tentarmos interpretar a noção
Barthesiana de “morte do autor”, como limite máximo a que a modernidade levou este
lugar de (con)centração. Ao consolidar a morte de Deus (para tomarmos a lição
Nietzschiana), a modernidade promove a ascensão de artistas que, muitas vezes a soldo da
imprensa burguesa, tomam para si a tarefa da autoria das nações. Por outro lado, a morte do
autor, decretada por Barthes em 1968, combate este sujeito político, consolidado na
sociedade burguesa, e o reduz a sujeito do discurso. Paradoxalmente, esta questão expõe o
limite máximo a que chegou o lugar do autor enquanto (con)centração. Nada mas passível
de reverência ou entronização que um autor morto. Não é à toa que a crítica literária, há até
bem o pouco tempo, temia formular juízos sobre autores vivos. A morte do autor, então,
através da autonomia que pretende dar à obra, revela como a teoria literária ratifica a crença
na intenção, ainda que tente tomá-la como uma falácia. Paradoxalmente, então, o que mais
parece ser autônomo, sem autor, mais estreita os vínculos associativos de autoria. Sean
Burke, após relacionar a noção de autoria à de Deus, afirma:
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“A morte do autor”, de Roland Barthes visa menos a destruir o Deus-autor do que
participar de sua construção. Ela procura criar um rei digno de ser morto. O autor deve
ser comparado não somente a uma divindade tirana, mas ao burguês em pessoa. (apud
COUTURIER, 1995, p. 12)
Maurice Couturier defende que o assassinato barthesiano representa uma reação a um
modelo da crítica, predominante na França dos anos 60, que ainda era profundamente
biográfica, do tipo “o autor e sua obra”, o que de certa forma justificaria o manifesto de
Barthes e lembra, ainda, que em O prazer do texto seria recuperada a figura do autor:
Como instituição o autor está morto: sua pessoa civil, passional, biográfica,
desapareceu; desapossada, já não exerce sobre sua obra a formidável paternidade que a
história literária, o ensino, a opinião tinham o encargo de estabelecer e de renovar a
narrativa: mas no texto, de uma outra maneira eu desejo o autor: tenho necessidade de
sua figura (que não é nem sua representação nem sua projeção) tal como ele tem
necessidade da minha (salvo no tagarelar) (BARTHES, 1996, p.38)
Como não pretendemos, aqui, retomar a discussão sobre o autor na perspectiva
apenas da teoria literária, resta-nos pensá-lo como função social, o que nos leva a escolher
o caminho que compreende a literatura sob a perspectiva da comunicação. Couturier, dando
continuidade à identificação da “figura do autor”, como a menciona Barthes, chega
exatamente à idéia de que
A leitura não é uma apropriação do texto, mas uma troca entre dois sujeitos separados
no tempo e no espaço. Toda arte supõe um modo específico de comunicação, nem
tanto no nível do conteúdo quantificável mas no da relação intersubjetiva. E não é
porque a crítica ainda não inventou uma maneira de estruturar seu discurso em termos
de comunicação que essa dimensão deva ser considerada ausente ou desprovida de
interesse. (Couturier, 1995, p. 19)
Couturier argumenta ainda que duas tendências fortes no âmbito dos estudos
literários contemporâneos reafirmam uma certa ressurreição do autor: a análise genética e o
ensino de criação literária. De nossa parte, queremos crer que, além dessas constatações, o
lugar do autor passa a ser objeto de reflexão e reivindicação no âmbito da crítica tanto
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quanto no das próprias criações literárias, sobretudo por duas causas que, diferentemente da
“morte-exaltação” requerida pela teoria literária, realmente o desestabilizaram.
A primeira delas se relaciona com a vertiginosa ascensão dos aparatos maquínicos e
da tecnocultura que desde as últimas décadas do século passado vem desestabilizando a
noção de autoria naquilo que mais solidamente a constituiu na sociedade moderna: o
princípio da propriedade intelectual. Um romance como Budapeste (2003), de Chico
Buarque, ou um conto como “Artes e ofícios” (1995), de Rubem Fonseca, ensejam esta
reflexão, na medida em que relativizam e desdobram a noção de autoria em dois
segmentos: criação e titularidade (o autor de um livro é o que cria ou o apresenta o nome na
capa?). A alienação ou a renúncia da paternidade de obra intelectual, segundo Raymond
Lindon, seria um “não exercício imoral do direito moral” (apud MANSO, 1987, p 54).
Cumpriria, dessa forma, investigar de que maneira os novos mecanismos de recorte e
colagem passam a exigir ou uma reformulação das fronteiras entre obra e autor, citação e
plágio, original e cópia, propriedade privada ou patrimônio público, ou o que talvez seja
mais desejável, uma ampla e profunda reflexão sobre ética e comunicação.
A segunda causa - a que mais especificamente interessa a este trabalho, pois permite
refletir em paralelo a questão do autor e a das identidades culturais – apresenta, em certa
medida, o mesmo contexto da primeira, ou seja, a ascensão da tecnocultura, mas traz outras
implicações. A tecnocultura promove profundas mudanças paradigmáticas nos mecanismos
das trocas sociais e culturas. A velocidade e a vertiginosidade com que a informação e o
homem atual podem deslocar-se no tempo e no espaço cria uma territorialidade suspeita.
Conceitos como o de não-lugar, de Marc Augé (1992), ou de Meio-técnico-científicoinformacional, de Milton Santos (1997), buscam dar conta desta nova espacialidade, cujo
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efeito mais evidente no homem é o de atenuar as noções de pertencimento e de
enraizamento. Em estudo anterior, dedicado à narrativa contemporânea, já destacávamos
este fato no que nomeamos uma “literatura de subtração” (FARIA, 1999), que furta ao
leitor, as certezas, os valores e, sobretudo, a utopia, a própria crença no discurso e na
História. Esta crise da autoria também pode ser lida como uma das faces da subtração e está
em contemporâneos como Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna, Carlos Sussekind, ou
Edgard Telles Ribeiro.
Como vimos, foi o autor moderno uma dos principais fontes a engendrar nações e
utopias. Agora, apesar de ainda mal adaptado ao modelo capitalista e industrial, já
experimenta a crise diante do tempo voraz da tecnocultura e diante do desenraizamento do
não-lugar. Em função disso, propomos uma inversão de ponto de vista: a crise das nações
pode ser lida não apenas como conseqüência de circunstâncias econômicas e políticas ou de
conjunturas sociais. Autores desenraizados não podem narrar as nações; as nações entram
em crise porque estão sem autores. Refletir sobre a autoria na contemporaneidade pode ser,
finalmente, uma forma de compreender um privilegiado papel do sujeito moderno e, talvez,
mais uma alternativa para se encontrar caminhos para o homem neste, cada vez mais difícil,
mundo das máquinas.
Referência bibliográfica
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