REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 131 proprietário e ter renda mínima). No entanto, o grande objetivo da Declaração Universal dos Direitos Humanos na atualidade, é que se preserve a idéia de igualdade humana, isto é, um mínimo denominador comum para um universo cultural variado, um parâmetro bem preciso para o comportamento de todos, um critério de progresso para as contingências desiguais de um modo reconhecidamente injusto, um instrumento para a consecução dos demais objetivos societários sem que estes desconsiderem a dimensão humana. Para tanto, uma série de pactos, convenções e acordos internacionais se fazem necessários: de Viena (sobre direitos humanos), Cairo (sobre população), Copenhague (sobre desenvolvimento social), Beijing (sobre a mulher) e Istambul (sobre assentamentos humanos), por exemplo. Sob outra perspectiva, pode-se constatar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos é uma narrativa, cujo intuito parece distar da mudança efetiva, ou, ao que se propõe, no que se refere às instituições prisionais, uma vez que não reeducam, nem ressocializam o indivíduo. Além do mais as instituições e também a sociedade contemporânea constituem agências de controle social muito lucrativa, produzindo acumulação de mais-valia com a exploração dos pobres. O capitalismo tem uma lógica intrinsecamente excludente e é capaz de lucrar intensamente com as instituições de “socialização” e de “ressocialização”. A Justiça e o Direito vêm sofrendo transformações, no decorrer dos anos, consideradas significativas diante do que é tido como digno de punição, ou seja, com a entronização do discurso dos “Direitos Humanos”, a Justiça teve que remodelar sua forma de castigar o infrator. Antes, através do suplício em praça pública; agora dentro das prisões. Além do mais, esses castigos disseminaram-se na sociedade contemporânea como forma de controle e punição da população, lançando mão de recursos, ora complexos – com recursos tecnológicos (como é o caso das empresas de vigilância através de circuito fechado de monitoramento, chip de localização implantados em veículos e celulares, rastreamento via satélite etc.), ora sutis (como a criação de discursos que propiciam a vigilância, o enquadramento através de cadastros em postos de saúde, o censo demográfico, controle de natalidade e mortalidade, enfim). Diante de tais fatos, os Direitos Humanos são vistos como uma receita preventiva, contra males que atingem a dignidade da pessoa humana. Será verdadeiro mesmo, este discurso? Sabe-se que existe certa manipulação dos Direitos Humanos SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 132 intra-instituições ressocializadoras, muitas vezes usados como argumento para reafirmar os interesses particulares, ora da parte dos administradores e funcionários das instituições prisionais e representantes da lei, por exemplo, sobretudo no que diz respeito às questões burocráticas, ora da parte dos sujeitos “infratores” de tais leis. A transformação da Justiça e dos modos de punir Com o passar do tempo, a justiça penal foi reestruturando-se de tal forma que acarretou no desaparecimento dos suplícios2 que aconteciam em praça pública diante da presença e com a participação tão importante do povo – uma vez que suplício secreto não fazia sentido. A punição, até a primeira metade do século XVIII, era dirigida diretamente ao corpo enquanto objeto que, além de uma descoberta, era alvo do poder, manipulável, modelado e treinado, ou seja, era um corpo que obedecia e respondia, era constituído por processos empíricos (também pensados para controlá-lo ou corrigir suas ações), tido como o alvo principal da representação penal. Para que o suplício fosse longo e verdadeiro, o interrogatório se fazia em paralelo com as torturas, justamente empregada como reparação à soberania, à afronta dirigida ao rei. Este era o recurso utilizado pela justiça, que considerava necessário provocar o medo nas pessoas como uma forma de acabar com os atos infracionais (recurso este, que na maioria das vezes reforçava ainda mais o sentimento de solidariedade entre o povo e o infrator). O alvo direto da punição, entretanto, muda de foco quando a partir de meados do século XVIII, incide um aumento significativo das riquezas e da população, fazendo mudar da punição do corpo para a punição da alma, sobretudo porque o alvo principal das ilegalidades tende a não ser mais os direitos, mas, outrora, os bens; e a punição deixa de ser por vingança do rei e passa a tomar o lugar de defesa da sociedade. O suplício, então, sai das praças públicas e se confina entre quatro paredes: nasce a prisão, com o intuito ideológico de corrigir o indivíduo infrator e reintegrá-lo à sociedade enquanto sujeito obediente, através da punição na medida certa. Foucault (1999) diz que por trás do desaparecimento do suplício existe uma excessiva ênfase SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 133 como discurso humanizador. As práticas judiciárias e sua evolução no campo do direito penal definiam as funções da prisão como local de penitência, sofrimento e expiação. Entretanto, qual seria a importância do suplício nos dias atuais, uma vez que a sociedade, bem como as instituições, sofreram grandes e significativas transformações, com “códigos mais explícitos e gerais, com regras unificadas de procedimentos”? Qual seria a sua função na sociedade contemporânea, uma vez que as punições se tornam cada vez “[...] menos diretamente físicas, certa discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação” (FOUCAULT, 1999, p.12)? A punição se tornou sutil O fato é que as punições e todo esse conjunto de aparatos da arte do fazer sofrer fazem parte da realidade contemporânea como forma econômica, discreta e até humanizadora de punir. “Desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal”. (FOUCAULT, 1999, p.12). Contudo, a punição ainda existe da maneira mais despercebida. A punição vai transformando-se sutilmente; vai deixando para trás o teatro e a visão de que sua eficácia encontra-se no campo da percepção, para assumir um caráter de consciência abstrata, de desviar o homem do caminho da criminalidade. “A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena”. (FOUCAULT, 1999, p.12). A punição, agora, incentiva e faz produzir, em vez de esmagar e confiscar. Desse modo não é mais o carrasco o designado a marcar o homem, o condenado, mas a própria condenação – toda “publicidade dos debates e da sentença [...] é como uma vergonha suplementar que a justiça tem vergonha de impor ao condenado”. (FOUCAULT, 1999, p.13). A execução da pena se torna um departamento autônomo, de forma a desonerar a justiça – através dos mecanismos administrativos e burocráticos da pena – do mal-estar que ela provoca. Isto é, a justiça não ocupa o lugar do carrasco diante do condenado e da sociedade, pelo contrário, ela cria um discurso benfazejo (ou de negação teórica), recheado de promessas de reestruturação do ser, seja com uma possível “cura”, seja com a reeducação e ressocialização do sujeito infrator: SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 134 O essencial da pena que nós juízes, infringimos, não creiais que consista em punir; o essencial é procurar corrigir, reeducar, ‘curar’ [...]. Naturalmente damos o veredicto, mas ainda que reclamado por um crime, vocês bem podem ver que para nós funciona como uma maneira de tratar o criminoso; punimos, mas é um modo de dizer que queremos obter a cura. (FOUCAULT, 1999, p.13-23). Esse discurso nada mais é do que uma técnica de aperfeiçoamento da repressão, acrescido de um diferencial: mascarar a real intenção e limpar a imagem dos castigadores. Entrementes, na atualidade, a justiça e seus funcionários, são portadores de uma vergonha de punir, que, como diz Foucault, “nem sempre exclui o zelo”. Como aparelho corretivo-penal, a prisão tem por objetivo moldar os gestos e as atividades dos sujeitos infratores. Ela volta-se não para o sujeito de direito, mas para o sujeito obediente, submetendo-o, diuturnamente, às ordens, às regras e às autoridades. O que de fato se constata é que este intuito ressocializador, fracassa, uma vez que as prisões não cumprem o que prometem, ao contrário, produzem o que era para ser banido: a criminalidade; podendo aumentá-la, multiplicá-la ou transformá-la. Portando, a prisão nada mais é do que o prolongamento do poder. Toda sua estrutura converge para a manutenção de uma rede de poder instituída para manter o controle, a vigilância e a disciplina, o que a transforma em um arquipélago de confinamento. Notase, entretanto, que o poder não é uma propriedade restrita, exclusivamente do Estado, mas sim um conjunto de estratégias de ação. Não é atributo, mas sim relação de forças que perpassam o campo dos dominados e dos dominadores, ambos constituindo singularidades. Portanto, com essa transformação da punição, o corpo passa a ser considerado um instrumento, um intermediário, sobre o qual, quaisquer intervenções visam à privação da liberdade do indivíduo considerada ao mesmo tempo como direito e como bem. Se a justiça tiver que manipular e tocar o corpo dos justificáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado”. Por efeito dessa nova retenção, um exército inteiro de técnicas veio substituir o carrasco, anatomistas imediatos do sofrimento: os guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua simples presença ao lado do condenado, eles cantam à justiça o louvor de que ela precisa. (FOUCAULT, 1999, p.14). SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 135 Um corpo, quando submetido a alguém sem oferecer resistência, pode ser utilizado, ser transformado e aperfeiçoado, ou seja, manipulado; quando está muito amarrado a poderes rígidos, submetido a limitações, proibições e até obrigações, há, de certa forma, um controle sobre ele. Este controle não se trata de cuidar do corpo físico, mas sim, trabalhá-lo detalhadamente, exercer sobre ele uma repressão sem folga, ter poder sobre o corpo ativo. Esta imposição da relação docilidade-utilidade é denominada de disciplina. As disciplinas, portanto, se tornaram fórmulas de dominação, diferentes da escravidão, pois não se apropriam dos corpos. São diferentes também da domesticidade, da submissão codificada, e das disciplinas do tipo monástico, nas quais exigem renúncias em obediência a outro e que tem como fim último o domínio sobre seu próprio corpo. A disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, aumentando e diminuindo as forças do corpo, podendo ser encontrada mais tarde nas escolas, colégios etc. Considerações Finais É perceptível aos olhos que, diante dessa transformação, e a partir dela – da punição do corpo para a punição por intermédio do corpo (na alma) – surge o apelo junto à humanização. Daí as adaptações punitivas em castigar lançando mão do suplício. Eis a entronização do discurso dos Direitos Humanos. A guilhotina, a máquina das mortes rápidas e discretas, marcou, na França, nova ética da morte legal. Mas a Revolução logo a revestiu de um grandioso rito teatral. Durante anos, deu espetáculos. Foi necessário deslocá-la para a barreira de Saint-Jacques; substituir a carroça por uma carruagem fechada, empurrar rapidamente o condenado do furgão para o estrado; organizar execuções apressadas e em horas tardias; finalmente, colocá-la no interior das prisões e tornálas inacessível ao público [...], bloquear as ruas que davam acesso à prisão onde estava oculto um cadafalso e onde a execução deixasse de ser um espetáculo e permanecesse um estranho segredo entre a justiça e o condenado. (FOUCAULT, 1999, p.17-18). SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 136 Pode-se observar claramente os mecanismos de punição sendo manipulados, articulados e sofrendo adaptações com vistas em camuflar, em tornar o menos público possível a condenação, bem como se vê a França lançar mão a essas adaptações devido, sobretudo, pela ocorrência da Revolução (1789), período em que surge também a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, afirmando que todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. “Essa necessidade de um castigo sem suplício é formulada primeiro como um grito do coração ou da natureza indignada: no pior dos assassinos uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos: sua ‘humanidade’”. (FOUCAULT, 1999, p.63). O convívio social partilhado na prisão faz com que ela seja um locus não só de exercício da violência, como de sua produção e reprodução. É importante a crítica analítica e descritiva dessas instâncias punitivas para a desmistificação da eficácia das instituições penais e para que se possam vislumbrar novas formas de organização social. Neste sentido, inúmeros pensadores têm dado sua contribuição em analisar as práticas e o discurso punitivo moderno. Por que seria então necessário manter as prisões diante do seu fracasso? Segundo Michel Foucault – e essa idéia é importante para que se entenda o questionamento deste artigo: possibilidade dos direitos humanos? – a prisão e a punição estão inseridas no sistema carcerário geral da sociedade, de maneira que elas cumprem a função de classificar as ilegalidades e fazer sua economia, ou seja, o efeito final deste conjunto de estratégias – que transforma o indivíduo em “dócil” e “útil”, adequado aos moldes do sistema, anteriormente previstos pelos fatores condicionantes – fez com que Foucault voltasse o seu olhar também ao macrocosmo, percebendo que isso não se aplica apenas ao sistema carcerário, mas que é algo disseminado na sociedade moderna – ao que ele denominou de sociedade disciplinar. [...] Para que serve o fracasso da prisão; qual é a utilidade desses diversos fenômenos que a crítica, continuamente, denuncia: manipulação da delinqüência, indução em reincidência, transformação do infrator ocasional em delinqüência. [...] A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tomar útil outra, de neutralizar este, de tirar proveito daqueles. Em resumo, a penalidade não ‘reprimiria’ pura e simplesmente as ilegalidades; ela as ‘diferenciaria’, faria sua ‘economia’ geral. E se pode falar de uma justiça não é só porque a SABER ACADÊMICO - n º 05 - jun. 2008/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 137 própria lei ou a maneira de aplicá-la servem aos interesses de uma classe, porque toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte desses mecanismos de dominação. Os castigos legais devem ser recolocados numa estratégia global das ilegalidades. O ‘fracasso’ da prisão pode sem dúvida ser compreendido a partir daí. (FOUCAULT, 2002, p.227). Foucault contrapõe o modelo estratégico (de correlação de forças) ao modelo de direito (pensamento clássico bipolar: dominador-dominado). Segundo ele, a finitude do homem se anuncia, uma vez que ele nasce num ambiente onde os saberes a seu respeito, antecipam o seu próprio nascimento “[...] como se ele não fosse nada mais do que um objeto da natureza ou um rosto que deve desvanecer na história”, (FOUCAULT, 1987, p.329), e porque o homem da contemporaneidade nada mais é do que um produto de toda essa cadeia de estratégias e sutilezas disciplinar. Isto se dá porque o homem é tido como sujeito e objeto do conhecimento, porque encontramos no seu pensamento evidências que supõe possíveis alterações nos arranjos históricos que estruturam a episteme moderna, que seria capaz de reinventar também o homem. Ou seja, quando a “história natural, a análise das riquezas e a reflexão da linguagem” deixam seu habitat natural e torna-se objeto de estudo, quando se torna objeto da Ciência, então o homem passa a ter uma posição dupla: de objeto e sujeito. “Se estas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram, [...] então se pode apostar que o homem se desvaneceria como na orla do mar, um rosto na areia. (FOUCAULT, 1987, p. 330). Ora, desta forma, como pode não abalar as estruturas e os ideais propostos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos? Como falar de Direitos Humanos se toda experiência que concretiza o homem, envolve modos historicamente peculiares de se fazer a experiência do si mesmo? Entretanto, o perfil contingente do homem é traçado sob aspectos paradoxais do que é indefinido, uma vez que não se pode afirmar a conclusão final da evolução humana. Referências Bibliográficas BENELLI, S. J. O internato escolar como instituição total: violência e subjetividade. 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