1 Os Pedagogos da Primeira Infância: Pestalozzi e Froebel – uma análise de suas obras educacionais Alessandra Arce (UNICAMP/CNPq) Este trabalho tem como objetivo apresentar os resultados a que chegamos ao realizarmos nossa pesquisa de doutoramento, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Unesp-Araraquara. Nesta pesquisa dedicamo-nos ao estudo do pensamento de Johann Pestalozzi (1746-1827) e Friedrich Froebel (1782-1852) através de suas obras educacionais e filosóficas. Para tanto, procuramos não só as obras dos autores mas também obras de historiadores que se dedicaram a investigar o período histórico que suas vidas abrange. Abrimos, portanto, três frentes de trabalho: a primeira dedicada à leitura das obras dos autores, a segunda a investigação do período histórico e a terceira dedicada à busca na literatura da época o enriquecimento necessário para o delinear do quadro histórico da produção de Pestalozzi e Froebel. Ao iniciarmos nosso trabalho de pesquisa, tínhamos como questões centrais as seguintes: Em Pestalozzi e Froebel não estaria presente também esse caráter duplo da sociedade burguesa, isto é, por um lado o ideal da formação plena e livre do ser humano e por outro lado à profunda alienação presente na lógica da reprodução das relações entre capital e trabalho? As idéias centrais do pensamento educacional desses autores não apontariam para uma determinada visão de ser humano e de sociedade, visão essa que foi sendo cada vez mais difundida na segunda metade do século XIX e todo o século XX, a qual, através da defesa do respeito à individualidade, escamoteia a impotência do capitalismo em realizar o ideal humanista do Iluminismo, bem como escamoteia o caráter cada vez mais esvaziado, fetichista e alienante das relações sociais capitalistas? Num período histórico no qual o escolanovismo ainda não existia enquanto movimento internacional na educação, no qual a contra-revolução burguesa ainda era algo bastante recente e os ecos da Revolução ainda não tinham se extinguido totalmente, não teriam Pestalozzi e Froebel antecipado em sua pedagogia o caráter fortemente alienado que boa parte do pensamento pedagógico teria no século XIX, em consonância com o caráter cada vez mais reacionário da visão de mundo burguesa? 2 Estas questões nos levaram a uma hipótese central em nossa pesquisa, a de que tendo sido produzidas durante o período de consolidação do regime burguês e do modo de produção capitalista, as obras de Pestalozzi e Froebel se constituiriam, desde sua origem, em um reflexo no campo educacional, daquele lado ideológico reacionário do pensamento liberal burguês, constituindo-se no celeiro de pedagogias irracionalistas e alienadoras, tornando-se assim um importante braço ideológico das estratégias de esvaziamento da escola através da defesa de uma pedagogia antiescolar. Esta hipótese central levou-nos a eleger os seguintes objetivos para nossa investigação: ♦desvelar e analisar as razões históricas, de natureza política, cultural e epistemológica, que poderiam levar Pestalozzi e Froebel a se tornarem pioneiros nos processos de descaracterização do papel do professor e secundarização do ensino;♦analisar nas obras de Pestalozzi e Froebel suas concepções de homem, educação e sociedade procurando contextualizá-las no universo liberal e burguês do final do século XVIII e início do século XIX, apontando os reflexos desse universo nas obras desses educadores, bem como as conseqüências disso em termos de alienação do trabalho educativo. Ao final do trabalho após termos estudado não só os princípios educacionais de nossos autores mas também a visão que possuíam dos acontecimentos de sua época, juntamente com suas idéias sobre o homem, a criança, a mulher, a família, Deus e a Natureza, afirmamos que nossa hipótese se confirmou. Pestalozzi e Froebel produziram suas obras a partir da face reacionária da ideologia burguesa de sua época; sua pedagogia procurava adequar os indivíduos ao novo modo de produção que começava a se consolidar: o modo de produção capitalista. Com o auxílio da religião protestante que professavam, ambos, individualizaram não só as questões de ordem moral mas a própria educação. Partindo de ideais abstratos e a-históricos de homem, mulher e criança centraram os processos educativos no desenvolvimento individual de cada educando, atrelando-os ao mesmo. A sociedade, a historicidade humana, as questões econômicas foram totalmente retiradas, o homem passou a ser fruto do que seu interior produzia em contato com o ambiente no qual estava inserido, tendo como mediadores os cinco sentidos humanos. Não vendo a necessidade de identificação de elementos culturais necessários ao processo de humanização do indivíduo, o processo educacional centra-se no descobrir a natureza e deixar-se por ela, ou seja, pelo desenvolvimento natural através do qual toda a 3 criança se torna um adulto algum dia. Educa-se para objetivos que neste processo surjam da vida de cada indivíduo, afinal o conhecimento esta dentro de nós, devemos apenas torná-lo mais claro e perceptível. Vemos Pestalozzi e Froebel acentuarem a contradição presente no modo de produção capitalista: se por um lado temos um avanço significativo nas forças produtivas, por outro vemos o homem esvaziar-se e não ser capaz de tomar este desenvolvimento como conseqüência de seu trabalho de sua ação. Nossos autores, ao retirarem o conhecimento da educação, ao abandonarem o ideal de formação do homem pleno defendido pelos Iluministas, aprofundam o processo de alienação que permeia toda a sociedade capitalista. A educação passa então a exercer para as classes mais pobres nada mais do que um mero papel ideológico, diz-se que ela pode garantir uma vida melhor, mas ao mesmo tempo com ela impede-se o individuo de se apropriar dos conhecimentos produzidos pela humanidade, sendo estes reduzidos ao que realmente pode ser útil a este indivíduo em sua vida cotidiana, sem se questionar o caráter profundamente alienado e alienante da cotidianidade capitalista. Não podemos deixar de ressaltar que esta pedagogia preconizada por nossos autores acaba por referendar as desigualdades sociais presentes na época. Encontramos nas obras de Pestalozzi e Froebel explícitos os germens dos ideais que mais tarde viriam a nortear o movimento escolanovista, expressos nos seguintes princípios educacionais anteriormente descritos: a- A criança e seu desenvolvimento passam a ser o centro do processo educacional, a espontaneidade infantil deve ser preservada a todo custo através do simples guiar pelo educador das forças espirituais imanentes da criança; b- A atividade como ponto central de toda a metodologia de trabalho, atividade esta, que deve sempre se centrar nos interesses e necessidades da criança respeitando seu ritmo natural de desenvolvimento. A educação escolar deve ser, portanto, ativa. Não por acaso os métodos escolanovistas foram chamados de métodos ativos. Juntamente com isto vemos a apologia das atividades manuais e práticas imprescindíveis tanto para o desenvolvimento intelectual quanto para o desenvolvimento moral; c- A substituição do uso da disciplina exterior pelo cultivo da disciplina interior tão cara à moral protestante; d- Um mínimo de matéria escolar em troca do máximo de possibilidades de desenvolvimento das habilidades e capacidades de cada criança com a ajuda do trabalho, amor e alegria. Podemos afirmar que nossos autores são pioneiros do movimento escolanovista, a essência de suas obras transpira a 4 revolução de Copérnico que mais tarde ocorreria com toda a sua força. Não desconsideramos que Pestalozzi e Froebel, através da observação de seus alunos, realizaram descobertas importantes para a época, como por exemplo à importância da brincadeira no desenvolvimento infantil, a inutilidade dos castigos físicos, a necessidade de discussão entre os professores sobre o trabalho que esteja sendo realizado, a importância do desenvolvimento infantil que torna a criança um ser diferente do adulto. Todavia essas descobertas e os princípios defendidos a partir delas, acabaram não contribuindo para que o trabalho educativo realmente levasse à humanização, ao contrário sob a capa de inovações, esses princípios trazem em seu seio nada mais do que a ideologia liberal aplicada ao discurso educacional. O conservadorismo e a perpetuação da sociedade de classes são apresentados envoltos nas palavras que sintetizavam ideais tão perseguidos pelo povo durante as Revoluções: liberdade, igualdade e fraternidade. Já que não se iria levar às últimas conseqüências estes ideais, passá-los para a educação através de sua transformação numa concepção que os reduzia aos limites impostos pelo cotidiano alienado, os transformava num recurso ideológico de manutenção das relações de exploração. Pestalozzi e Froebel criticaram as definições vazias ensinadas pela escola de sua época e não perceberam que a liberdade pregada por sua pedagogia também havia se transformado numa definição vazia de conteúdo social real. Pestalozzi e Froebel acabaram por representarem, no plano educacional, a face reacionária e alienante da ideologia liberal-burguesa. Eles não deixam de incorporar à sua pedagogia elementos da face progressista dessa ideologia, isto é, elementos da luta contra a ideologia medieval. Mas assim como a burguesia acabou por trair os ideais iluministas, acabou por trair a luta pela razão e pela ciência, adotando irracionalismos e misticismos que se mostrassem adequados à manutenção da ordem social burguesa, da mesma forma a pedagogia de Pestalozzi e Froebel, ainda que apresente elementos progressistas, como a valorização do saber originário da observação das leis da natureza em oposição ao saber medieval, fruto da revelação mediata pelas autoridades eclesiásticas, esses elementos não frutificam, nessa pedagogia, numa concepção verdadeiramente imanentista da história e da sociedade mas, ao contrário, acabam reforçando o pragmatismo alienado e alienante da cotidianidade capitalista, retirando desse pragmatismo qualquer possibilidade de evolução para uma concepção materialista da história e tornando-o aliado do moralismo cristão. 5 Poderia-se questionar o fato de não mencionarmos que o discurso educacional de nossos autores aparece como uma evolução, um progresso em relação ao ensino escolástico antes utilizado. Consideramos como um avanço e um retrocesso, da seguinte maneira: avanço porque se abre a possibilidade de busca de um conhecimento que não esteja preso às revelações, à verdade absoluta, aos livros ditados pelos que receberão a revelação divina; retrocede-se porque ao invés de serem utilizados os conhecimentos científicos que estavam sendo produzidos, calcando-se o ensino na razão e na ciência, opera-se um esvaziamento completo deste, cria-se uma espécie de ojeriza a toda forma de cultura mais elevada, agora não é mais Deus que revela o conhecimento a seus escolhidos (a hierarquia eclesiástica) mas sim cada indivíduo que deve procurar em seu interior e no seu exterior o que realmente lhe é útil e viável conhecer. Não podemos nos esquecer que o papel divinizante e eterno permanece, bem como o forte discurso moralizante, sendo que não basta o indivíduo repetir orações memorizadas ou penitenciar-se nas igrejas, mas deve viver a santidade em seu dia a dia, deve obedecer aos desígnios divinos que não vêm mais de fora, mas estão implantados na essência de sua individualidade, deve se constituir em exemplo de virtude assim como o fez Jesus Cristo, filho de Deus. Por sua vez encontramos nos trabalhos dos autores o início do processo de descaracterização da profissão de professor, se o mestre-escola daquela que veio a ser chamada por “escola tradicional” pelos escolanovistas, possuía um status social de intelectual quase que apenas por não ser seu trabalho um trabalho manual, com as propostas educacionais de Pestalozzi e Froebel vemos a transmissão de conhecimento ser cada vez menos aquilo que define a identidade profissional do professor, vemos sua tarefa apresentar-se cada vez menos como uma tarefa intelectual e cada vez mais se aproximar da maternidade mistificada. A atividade do professor, ou melhor, da professora, aproxima-se da idéia de acompanhamento dos processos naturais que a escola para criança menor de seis anos torna-se um jardim de crianças e a professora vira uma jardineira de crianças. Claro que diante desta perspectiva o conhecimento científico perde seu valor podendo este indivíduo ter o mesmo nível de conhecimentos que seus alunos ou até inferior, já que é deles que deverá se originar o material para ser trabalhado em sala. Não por acaso, como já afirmamos anteriormente, teremos o casamento, na teoria de nossos autores, entre mulher e educação, criadas para viver no âmbito privado, para lidar com o cotidiano doméstico e 6 prover os cuidados necessários para com as crianças. Não poderíamos encontrar melhor personagem para esta educação. Assim a profissão de professor começa a distanciar-se cada vez mais do ambiente acadêmico, da ciência e da razão, passando a ser povoada pelo irracionalismo e os sentimentos, sentimentos estes idealizados e alienados. Portanto, a educação começa em nossos autores, apesar de ocorrer no âmbito público, a ser regida pelas regras e conhecimentos que povoam o âmbito privado/doméstico; ao invés da razão e da ciência a dominarem vemos o sentimento, o subjetivismo e o irracionalismo se desenvolverem. A “revolução de Copérnico” que aqui se inicia destrói o sonho de Goethe, Marx, Engels, Schiller e outros de formar o homem pleno, de humanizar a infância, buscando-se o que existe de mais elevado nas produções humanas de seu tempo, libertando-se os seres humanos dos grilhões do misticismo, da religião e do obscurantismo. Esperamos que este trabalho fomente muitas discussões e continuações, pois a obra destes importantes pensadores da educação ainda possui muitos aspectos a serem explorados e suscitam muitas outras questões que aqui não pudemos desenvolver. Referências Bibliográficas ABBAGNANO, N. & VISALBERGHI, A.(1995) – Historia de la Pedagogia.- 15a ediçãoMéxico, Fondo de Cultura Econômica. 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