UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
"ACUMULADORES": UMA ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA
CRISE DA BRANQUITUDE NORTE-AMERICANA
Julia Wood Geld Ribeiro
São Carlos, SP
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
"Acumuladores": uma análise sociológica da crise da branquitude
norte-americana
Julia Wood Geld Ribeiro
Monografia apresentada como requisito
parcial para conclusão de curso de
graduação em Ciências Sociais, da
Universidade Federal de São Carlos, sob a
orientação do Prof. Dr. Richard Miskolci.
São Carlos, SP
2013
RIBEIRO, Julia Wood Geld.
"Acumuladores": uma análise sociológica da crise da
branquitude norte-americana/Julia Wood Geld Ribeiro. – São
Carlos: UFSCAR, 2013
Trabalho de Conclusão de Curso – Universidade Federal
de São Carlos, 2013.
1. Acumulação, 2. Patologização de comportamentos,
3.Branquitude, 4. Etnografia de tela; 5. White Trash.
JULIA WOOD GELD RIBEIRO
“ACUMULADORES”: UMA ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA
CRISE DA BRANQUITUDE NORTE-AMERICANA
Monografia apresentada à Universidade Federal de São Carlos, como parte dos
requisitos para a conclusão do curso de Ciências Sociais.
BANCA EXAMINADORA
Orientador
Prof. Dr. Richard Miskolci
Convidada
Profa. Dra. Maria Inês Mancuso
Para minha mãe, meu pai e minha irmã.
Agradecimentos
Primeiramente, ao professor doutor Richard Miskolci por ter acreditado na minha
capacidade, viabilizado a execução deste projeto e ter sido extremamente atencioso e
elucidativo.
Esta monografia é fruto de uma Iniciação Científica, pela qual sou grata à FAPESP
pelo financiamento que este projeto recebeu e pelo incentivo e motivação à pesquisa.
Agradeço à professora doutora Maria Inês Mancuso que aceitou participar da defesa
desta monografia e principalmente por ter me ensinado a importância de uma boa escrita.
Ao professor doutor Jorge Leite Júnior pela disposição e prontidão em ajudar.
Ao professor doutor Valter Silvério que me ensinou em sua disciplina, Sociologia das
Relações Raciais, um olhar crítico sobre a questão da construção das raças e como esta
produziu um processo de desumanização e inferiorização, naturalizada à certas parcelas da
sociedade.
À Leticia Pavarina, por ter me aturado ao longo da graduação (haha), pelas incontáveis
vezes que me fez companhia, jogamos conversa fora, fomos ao cinema e esteve presente
quando mais precisei, se tornando uma amiga muito mais do que especial. À Amanda
Martins, amiga para encarar ferro e fogo, estávamos lá, uma pela outra, quando achávamos
que nada tinha mais solução e que não daríamos conta hahaha. Obrigada por ter me dado a
mão sempre! Ao Rodrigo Melhado, pelas risadas, pelas descargas de estresse via whatsapp e
por ter me ajudado muito durante a graduação e na execução deste projeto. Obrigada Aninha
Sabadin pelas risadas e por ter viabilizado a entrega deste trabalho. Enfim, gostaria de
agradecer aos amigos e amigas que fiz que ao longo destes quatro anos, que me ajudaram a
crescer como pessoa, fazendo da graduação uma experiência transformadora.
À minha amiga Rosaly Petrin, por estar sempre presente, pela sinceridade e lealdade
de sempre, uma irmã para mim. Ao Victor Fré, por estar ao meu lado, pelas motivações e ter
sido tão paciente.
Em especial à minha família, sem vocês eu não teria conseguido. À minha mãe,
Christina, pelo seu carinho incondicional, ao meu pai, Fernando, por ter me ensinado a
sempre fazer o meu melhor e à minha irmã, Lizah, por me apoiar sempre. Agradeço por terem
aguentado meus surtos, meu jeito sistemático e meu nervosismo e por terem acreditado na
minha capacidade acima de tudo. Obrigada por terem feito tudo isso possível e
proporcionado esta oportunidade. Amo vocês.
me
Resumo
Esta monografia de conclusão do curso de graduação em Ciências Sociais analisa o
fenômeno social da acumulação, tal como apresentado nas duas primeiras temporadas da série
documental “Hoarders: Buried Alive” (2009), conhecida no Brasil como “Acumuladores”. A
série é um reality show de reabilitação que apresenta a acumulação como exemplo negativo
do comportamento considerado normal/aceitável, legitimando uma serie de práticas como o
rompimento da fronteira público-privado, a invasão da intimidade dessas pessoas em um
processo de “tratamento” e possível “cura” por meio da organização e limpeza de suas casas.
A análise busca apresentar as relações entre a criação do seriado e sua exibição com a crise
econômica que atingiu os Estados Unidos em 2007/2008, a qual foi marcada por um colapso
dos financiamentos de casas que levou um grande número de norte-americanos a perderem
seus lares. Em particular, o trabalho ressalta a forma como o seriado associa o declínio do
American Way of Life com a re-emergência de um fantasma social da branquitude naquele
país: o medo de se tornar white trash, termo local usado para designar brancos pobres.
Palavras-chave: acumulação; patologização de comportamentos; branquitude; etnografia de
tela; white trash.
Abstract
This thesis written for the accreditation of a bachelor's degree in Social Sciences,
analyzes the social phenomenon of hoarding, as presented in the first two seasons of the
documentary series “Hoarders: Buried Alive” (2009), known in Brazil as “Acumuladores”.
The series is a reality show rehab, which presents hoarding as a negative example of
normal/acceptable behavior, legitimizing a series of practices such as the disruption between
private and public boundaries, and the invasion of privacy of these people, in a process of
"treatment " and possible "cure" , by organizing and cleaning their homes. The analysis seeks
to present the ralationship between the creation of the series and its exhibition with the
economic crisis that hit the United States between the years of 2007 and 2008, marked by a
collapse in house financing, driving many Americans towards home loss. In particular, the
thesis points out how the serie combines the decline of the American Way of Life with the reemergence of the social specter of whiteness: the fear of becoming white trash, the local term
for poor whites .
Key-words: hoarding; behavioral pathologization; whiteness; screen ethnography; white trash.
Sumário
Introdução................................................................................................................................10
Capítulo I.................................................................................................................................17
“Acumuladores”
Capítulo II................................................................................................................................26
Lar e consumo nos Estados Unidos
2.1.
Privacidade: da “casa grande” ao lar.................................................................26
2.2.
Transição para o século XX e o American Way of Life.....................................32
2.3.
Locus de expressão do self e a dessacralização do lar.......................................36
2.4.
Século XXI: reconfiguração da sociedade de consumo....................................40
2.4.1.
Saturação material.................................................................................43
Capítulo III..............................................................................................................................52
Crise, segmentação e a emergência de um novo padrão de morar e viver
Considerações finais................................................................................................................63
Acumulador ou White Trash?
Referências bibliográficas......................................................................................................68
10
Introdução
Esta pesquisa tem como objeto de análise a série documental “Hoarders: Buried
Alive”, com o intuito de apreender o fenômeno social contemporâneo da patologização do
consumo acumulativo, comportamento conhecido em inglês como hoarding. Segundo uma
perspectiva que considera o consumo não-descartável como anormal, os hoarders, ou
acumuladores, são pessoas que consomem de forma obsessiva e não completam o ciclo do
consumo normativo contemporâneo, compreendido como um ciclo que começa com o
consumo e termina com o descarte.
O intenso processo de consumo que prevaleceu durante a segunda metade do século
XX resultou em um grande acúmulo de objetos, retratando uma saturação material na maioria
dos lares de classe média norte-americanos. Apesar de o hiperconsumismo ser uma
característica difusa da sociedade, os comportamentos e os lares dos acumuladores são vistos
por vizinhos, autoridades de saúde pública e pela mídia contemporânea como transgressores e
potenciais risco à saúde coletiva. De tal forma que a “denúncia” da acumulação permite o
rompimento de uma fronteira fundamental na cultura americana, ou seja, as separações entre a
vida pública e a privada. O fato de alguém acumular em seu lar permite às autoridades o
acesso à casa, acesso esse marcado tanto pelo controle sanitário quanto pelo envio de auxílio
psicológico, o qual – teoricamente – seria uma forma de ajudar o/a morador/a no demandado
(e obrigatório) processo de limpeza.
A estrutura do programa segue a realidade das pessoas que são denunciadas por
vizinhos ou fiscais sanitários às autoridades públicas competentes. Aqueles/as classificados
acumuladores recebem um prazo legal para limparem suas casas e modificarem os seus
comportamentos para que não sejam despejados, ou não perderem a custódia dos filhos, de
seus animais de estimação e, até mesmo, serem enviados/as para algum tratamento
compulsório. Assim, no programa objeto de pesquisa deste trabalho, é feito uma espécie de
compacto do que se passa dentro deste prazo legalmente estipulado para a limpeza e
reorganização interna dos lares, a maioria das vezes, de dois a três dias. As autoridades
designam psicólogos, organizadores profissionais e experts em limpeza, os quais “auxiliam”
os/as hoarders nesse processo retratado durante os episódios.O consumo não-descartável é
concebido pelas autoridades sanitárias atuais como anormal, resultado de um distúrbio
comportamental e problema de saúde pública. Em suma, é patologizado por elas, assim como
11
espetacularizado pelo programa em foco.
Michel Foucault foi um dos mais importantes autores a discorrer historicamente sobre
a crescente medicalização da sociedade contemporânea. Segundo o autor, com o
desenvolvimento do capitalismo no século XVIII e meados do XIX, o corpo foi o primeiro
objeto a ser socializado como força de trabalho, dessa forma que o controle da sociedade
sobre o indivíduo se iniciou no corpo e por meio dele. Assim, tanto o corpo quanto a medicina
se apresentam como realidades biopolíticas de nossa era.
Na França, a medicina social se desenvolveu junto ao desenvolvimento das estruturas
urbanas. À medida que as cidades se desenvolvem, nasce o que Foucault denomina de medo
urbano, o medo da cidade, do amontoamento populacional, dos cemitérios, dos esgotos e
epidemias e acrescenta:
Darei o exemplo do “Cemitério dos Inocentes” que existia no centro de Paris, onde eram
jogados, uns sobre os outros, os cadáveres das pessoas que não eram bastante ricas ou
notáveis para merecer ou
poder pagar um túmulo individual. O amontoamento no
interior do cemitério era tal que os cadáveres caíam do lado de fora. Em torno do claustro,
onde tinham sido construídas casas, a pressão devido ao
amontoamento de cadáveres
foi tão grande que as casas desmoronaram e os esqueletos se espalharam em suas caves
provocando pânico e talvez mesmo doenças (FOUCAULT, 1979, p.87).
Esse pânico urbano é característico da inquietude político-sanitária que se desenvolve
junto ao crescimento urbano. Nesse período, um esquema político-médico volta à cena: o da
quarentena. Dois grandes modelos vigoraram na organização médica: o da exclusão e o do
internamento. O primeiro mecanismo foi o do exílio, da purificação do espaço urbano,
enquanto no segundo vigorava a análise individualizante. Assim, o poder político da medicina
social consistia em distribuir os indivíduos, isolá-los e vigiá-los, tendo a sociedade
inspecionada debaixo de um olhar controlado. Nesse contexto, de preocupação médica com o
espaço urbano e sua organização, surge a higiene pública como uma variação aprimorada da
quarentena, desembocando daí na grande medicina urbana a partir da segunda metade do
século XVIII. Essa vertente francesa da medicina social se configurou em torno de três
objetivos centrais. Em primeiro lugar, deviam ser analisados, no espaço urbano, os lugares de
acúmulos e amontoamento de tudo que podia provocar doenças, assim como, locais de
formação e difusão de fenômenos epidêmicos ou endêmicos. O segundo objetivo era o
controle de circulação das coisas ou dos elementos. Por fim, o terceiro explicita a organização
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da água e do esgoto, para que um não interfira na distribuição do outro.
No presente, aos olhos da saúde pública norte-americana, os hoarders ameaçam esses
três objetivos. As casas dos acumuladores se apresentam como amontoados imensos de
objetos, que – segundo as autoridades - não apresentam ordem ou sequencialidade alguma. Os
amontoados atraem insetos e animais pestilentos, em especial, ratos. Além disso, uma vez que
muitos hoarders vivem sem energia elétrica ou água corrente, devido à negligência do
pagamento das contas, vivem circundados por resíduos orgânicos em decomposição. Gera-se
a preocupação, o medo da vizinhança, que ao temer pela própria saúde, contata o Estado, que
aparece desde a figura da polícia até o departamento de saúde, em busca da intervenção. Este
olhar “normalizador”, de intervenção pública no espaço privado e na vida pessoal dos
chamados de “acumuladores”, rompe a fronteira entre público e privado conferindo legal e
moralmente o acesso dos psicólogos e organizadores à suas intimidades, não apenas suas
casas, mas também aos seus problemas individuais e familiares.
A série documental norte-americana é transmitida pelo canal “A&E”, nos Estados
Unidos, e pela “Discovery Home & Health”, no Brasil. Produzido pelo “Screaming Flea
Productions”, conta com produtores executivos: Matt Chan, Dave Secerson e Mike Kelly.
Foram filmadas seis temporadas, a primeira transmitida em 2009 e a última terminou em
setembro de 2013, num total de 83 episódios. Segundo o site do programa, a acumulação é
definida como um distúrbio mental, caracterizado pela necessidade obsessiva de colecionar
objetos, mesmo que esses sejam inúteis, perigosos ou insalubres.1
A partir da etnografia desse seriado documental, “Hoarders: Buried Alive”, cuja
tradução literal seria algo como “Acumuladores: enterrados vivos”, mas que a versão
brasileira simplificou para “Acumuladores”, a investigação buscará analisar como esse
fenômeno social é tratado buscando refletir sobre como se instaura – na sociedade norteamericana atual - a fronteira entre o normal e o patológico (Foucault, 1979), no que se refere à
acumulação e ao consumo. E perceptível como o seriado em análise atrai a atenção alocando
o/a expectador/a na posição de avaliador/reprovador do comportamento, mas também conta
com sua simpatia e/ou solidariedade no acompanhamento da história. De certa maneira,
assistir ao programa é uma forma de exercício subjetivo sobre a forma correta de consumir e
organizar a própria casa, já que os episódios seguem a lógica dos experts psi e organizacionais
indicados pelas autoridades de saúde pública para acompanhar e reger a reabilitação dos/as
1
http://www.aetv.com/hoarders/
13
acumuladores/as.
Fruto de uma Iniciação Científica, esta pesquisa, a princípio, se norteava por questões
em torno da patologização comportamental, das especificidades de ser um fenômeno ligado
ao consumo e à acumulação, do apego sentimental aos objetos e da medicalização (que
também é uma forma de controle legal), que se associa a transformação do hoarding em
espetáculo televisivo. Com o decorrer da pesquisa, no contato com bibliografia específica e
por meio da orientação sobre os elementos de análise, percebi que esses levantamentos
iniciais encobriam questões mais complexas da sociedade norte-americana contemporânea.
A monografia pretende mostrar como o fenômeno social e midiatizado da acumulação
exprime, não apenas a inquietude da saúde pública ou o suposto desvio do consumo
descartável normativo, mas - principalmente - um temor social difuso que ganhou força desde
o início da crise econômica de 2007/2008. Esse temor social envolve fatos diversos, como o
empobrecimento da população fruto da crise de um modelo de consumo específico dos
Estados Unidos, a decadência do consumo de massa associado à ascensão de um consumo
mais segmentado e seletivo. As casas superlotadas que provam o resultado de anos – e até
décadas – de hiperconsumo caracterizam-se no programa, para além da acumulação que
ameaça “enterrar vivos” seus moradores, mas também o risco iminente de perda das casas.
Em outras palavras, adiante buscarei unir elementos históricos e sociológicos buscando
demonstrar como os objetos que engolfam os acumuladores, tomados enquanto lixo pelo
olhar “normal”, exprimem não apenas montantes sentimentais que contaminam o mundo
material, mas, como os próprios “acumuladores”, passam a ser apresentados como possível
escória social em meio à ascensão de uma nova economia no país
A execução do projeto articulou a leitura de bibliografia sobre construção do
imaginário em torno do lar, consumo, patologização e espetacularização de comportamentos
contemporâneos e a uma etnografia de tela do seriado documental. Uma vez que a pesquisa
envolveu a análise de um seriado e eventuais documentários, o artigo de Carmen Rial (2003),
sobre etnografia de tela, foi um de seus fundamentos. A partir do 11 de setembro, Rial analisa
como diferentes canais televisivos de diferentes países divulgam, interpretam e estruturam
suas narrativas passando mensagens contraditórias sobre os mesmos fatos. A antropóloga
afirma que as imagens divulgadas pela mídia, em especial pelasmídias televisivas, constituem
um aspecto fundamental nas sociedades contemporâneas. A mensagem linguística direciona a
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interpretação do telespectador, assim como, a câmera tem o poder de criar, gerar o
acontecimento. Com isso, a etnografia de tela deve ser feita de forma a amenizar e distanciarse dessas “manipulações” midiáticas, de maneira a remontar diversas leituras sobre um
mesmo acontecimento. Assim, parti da constatação de como a abordagem do seriado cria
inúmeras situações, patologiza algo que provém do social, focando na higiene e em seu
imperativo, visando provocar repugnância e nojo no/a expectador/a em relação ao
morador/acumulador e/ou ao seu comportamento. Isso para não me deter nas formas usadas
para alcançar um verdadeiro sensacionalismo midiático 2.
Para esta pesquisa, foram analisados 22 episódios (as duas primeiras temporadas
completas). Busquei refletir – dentro dos limites de uma pesquisa de iniciação científica –
sobre as estruturas dos episódios, dos elementos recorrentes neles, do perfil dos participantes
e daqueles que trabalham com eles (se são psicólogos, psiquiatras, organizadores
profissionais), mas refleti também como se dão as filmagens, o deslocamento das câmeras e
seus enfoques. A metodologia da etnografia de tela transfere para o estudo do texto da mídia
procedimentos próprios da pesquisa etnográfica tradicional, como a imersão da pesquisadora no
campo, a observação sistemática, o registro em caderno de campo, além de outras técnicas
específicas da crítica cinematográfica. Em outras palavras, a abordagem inspirada pela
etnografia de tela busca trabalhar a etnografia enquanto descrição científica, a fim de
transformar o olhar em linguagem.
No primeiro capítulo, apresentarei o seriado documental: a estrutura seguida nos
episódios, quem são as pessoas envolvidas e o que o programa propõe. Analisar questões de
produção e veiculação da série promovem apontamentos frente ao público espectador
(confluentes com o olhar normalizado), questões em torno da organização do espaço e da vida
privada, as quais desembocam em uma chave maior: a da emergência de uma nova
sociabilidade associada a um novo ideal de lar e a outra forma de consumo (mais seletivo e
segmentado). E com esse intuito que analiso alguns episódios, o que permitirá ao/à leitor/a
familiarizar-se com a série, mesmo se não a tenha assistido. Trata-se também de uma
aproximação guiada pela metodologia da etnografia de tela, a qual envolve a seleção de
2 A antropologia visual pauta o estudo do indivíduo em sua dimensão social e cultural. Rial busca mostrar a
necessidade de estender para além do filme etnográfico, a definição da antropologia visual, incluindo a produção
e análise de outros materiais audiovisuais. O termo “etnografia de tela”, se refere em específico a estudos de
textos da mídia em que são empregados procedimentos próprios da pesquisa etnográfica junto a ferramentas
próprias da crítica cinematográfica. Este termo provavelmente surgiu dos “estudos de tela”, que desde a década
de 1980, já se referiam ao estudo etnográfico dos artefatos midiáticos.
15
programas, a descrição pormenorizada e, por fim, mas não por menos, uma análise (no caso,
ainda preliminar) da série documental em foco.
O segundo capítulo trata da construção do lar e do consumo a partir da experiência
burguesa europeia, mas me atento com mais detalhes em sua história nos Estados Unidos.
Assim, promovo uma digressão histórica em torno da privacidade e da domesticidade,
discutindo como ocorreu a consolidação do lar enquanto locus de expressão da intimidade até
sua dessacralização no mundo midiatizado. Na mesma direção, busco reconstituir em traços
gerais a criação e a difusão do American Way of Life e dos ideais do American Dream durante
a segunda metade do século XX até chegar à crise desse modelo durante a primeira década do
século XXI. O objetivo desse capítulo é apresentar um apanhado histórico necessário para
compreender a forma como a cultura americana se desenvolveu em torno da noção do lar
como espaço seguro e privado, assim como, esse ideal tem sido ameaçado pelos eventos
econômicos recentes.
Na última década, verificou-se uma desaceleração econômica nos Estados Unidos,
dessa forma o terceiro capítulo busca explicar a multidimensionalidade da crise que atingiu o
país, a partir de 2007/2008. A crise no mercado hipotecário aparece enquanto decorrência da
crise imobiliária que atingiu o país, que, por sua vez, deu origem a uma crise mais ampla
abalando o modelo de hiperconsumo e o mercado de crédito de forma geral. Nesse cenário, o
principal segmento afetado foi o de hipotecas denominadas subprime, que embutem um alto
risco de inadimplência. Com isso exposto, busco pensar a crise a partir dos temores sociais
emergentes em torno da possível perda das casas, propriedades de uma clientela que vive em
uma sociedade sem segurança social, sob risco iminente da pobreza, tudo apontando para o
um possível fim traumático, em especial para a classe-média branca, a constatação do fracasso
de sua branquitude na classificação local de white trash (literalmente “lixo branco”, expressão
que associa a pobreza branca à condição de lixo, refugo social e econômico).
O decorrer da pesquisa fez-me constatar que o programa fez sucesso lidando, e de
forma indireta, mas simbolicamente poderosa, com o contexto de crise econômica que
reavivou o velho fantasma “racializante” da cultura americana, o do white trash. O discurso
hegemônico sobre raça, nos Estados Unidos, não restringe a branquitude fundalmentalmente à
cor da pele, mas a associa à condutas e estilos de vida que equipara o ser branco a uma
situação econômica confortável e estável. No seriado documental em foco, o fantasma da
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perda das casas equivale ao risco de ser declarado “incapaz”, um loser (perdedor), já que
todos os “protagonistas” do programa são brancos. O que sua acumulação ameaça é revelá-los
como fracassados sociais, aqueles/as cujo comportamento supostamente desregrado/anormal
transformou em lixo, mais especificamente, white trash.
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Capítulo I.
"Acumuladores”
A acumulação tem sido assunto cada vez mais explorado pelas mídias populares
atualmente. A série documental “Hoarders: Buried Alive” explora tal fenômeno enquanto
contra-modelo de consumo, expondo como doentia a relação entre acumuladores e seus
objetos. O programa retrata casos de acumuladores denunciados por vizinhos ou fiscais
sanitários, os quais estão sob a pressão de algum prazo legal para limparem suas propriedades
e modificarem seus comportamentos. Os participantes correm o risco de despejo, perda da
guarda dos filhos e dos animais de estimação, risco de serem internados de maneira
compulsória ou até irem presos. Uma vez que o programa já traça um perfil conturbado dos
participantes, ele explicitamente os patologiza – como tomados de um suposto transtorno
mental - e apresenta-os de forma sensacionalista.
Produzida nos Estados Unidos, a série é transmitida no Brasil através do "Discovery
Home & Health”, canal voltado ao estilo de vida ligado a casa, ao explorar a organização do
espaço privado. Esse canal apresenta, de forma geral, dois tipos de programas: os voltados aos
exemplos positivos, aqueles a serem seguidos, e os voltados aos exemplos negativos, que
devem ser evitados. Dentre os primeiros há “Cada coisa em seu lugar” e “Chega de bagunça”.
Já a segunda categoria abarca os “shows de reabilitação”, ou seja, programas que exibem
casos de pessoas cujo comportamento refletido em seu ambiente doméstico e relações
familiares demandam intervenção de especialistas para “os ajudar” a se “recuperarem”. Em
outras palavras, os “protagonistas” dos programas de reabilitação, ao menos no contexto da
sociedade norte-americana, são vistos como contra-modelos e concebidos como “losers”
(perdedores), tal associação é ironicamente evidente em “The Biggest Loser”, show sobre a
perda de peso em que o vencedor é o que emagrece mais. Dentre os programas dessa vertente
de exemplos negativos, destaca-se o “Hoarders: Buried Alive”.
Os quatro exemplos enumerados acima se constituem enquanto “reality shows”,
programas de orçamento baixo, focados supostamente na vida real de pessoas comuns, ou
seja, unem elementos do estilo “documentário”, com o acompanhamento do cotidiano de
indivíduos desconhecidos do grande público. Os programas “Cada coisa em seu lugar”,
“Chega de bagunça” e “Hoarders: Buried Alive” trabalham , basicamente, com o mesmo
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cenário e enredo: casas abarrotadas de objetos e a dificuldade das pessoas que vivem nelas de
organizarem e/ou se desprenderem de seus pertences. O interessante é que o mesmo cenário
de desordem é abordado, trabalhando a organização do espaço privado dentro dos homes
(lares), entretanto, é apenas no “Hoarders: Buried Alive” que ocorre a patologização da
desordem e do acúmulo de coisas sintetizada no fenômeno da acumulação. Nos dois primeiros
programas citados os participantes são tratados como pessoas que apresentam dificuldade de
organizar sua vida privada, enquanto em “Acumuladores” os participantes são expostos e
tratados como pessoas doentes - e até, de certa forma, irracionais - frente a tamanha
desordem.
O seriado “Hoarders: Buried Alive” é classificado como um “show de reabilitação”,
termo que associa os dois aspectos que deram origem a esta pesquisa: o processo simultâneo
de espetacularização e da patologização do comportamento de seus protagonistas. Mas o que
seria a ideia de reabilitação? Segundo Newton (1984), a ideia da reabilitação de vícios
comportamentais se originou a partir do movimento do abstencionismo nos Estados Unidos
no século XIX. Após um século ganhando espaço na crença da sociedade, o movimento
aprovou a “Lei da Proibição”, em 1920 , que proibia a venda, a posse ou o consumo de álcool
nos Estados Unidos. Entretanto, a Lei foi revogada em 13 anos, gerando a “necessidade” de
um refúgio dentro da sociedade: a reabilitação, um processo em que a responsabilidade do
tratamento foi realocada às mãos da medicina. O tratamento passou a ser ministrado no
ambiente clínico, e assim a reabilitação passou a ocorrer em hospitais, alas psiquiátricas e
sanatórios. Junto a este processo, houve a emergência de organizações de ajuda mútua. A
primeira experiência desse tipo surgiu em 1935 com a criação dos Alcoólicos Anônimos.
Essas organizações de ajuda mútua cresceram e passaram a abranger diversas problemáticas.
Apenas como referência, ainda que já ultrapassada, no final da década de 1970, estimava-se a
existência de 500.000 grupos de ajuda mútua nos Estados Unidos.
No seriado documental, o processo de aprendizado da reabilitação se dá por meio de
sua transformação em espetáculo, no qual concentra todo o olhar e a consciência do
espectador, de tal maneira que parece unificar seu olhar com o da “sociedade” (Debord,
1997). De um lado tem-se o olhar treinado do espectador e a produção da série voltados a esse
mesmo olhar – havendo, assim, uma confluência entre ambos – e, do outro lado, são exibidos
os acumuladores, concebidos como exemplos negativos para a observação. O espetáculo
exprime o que a sociedade pode fazer ao unificar os diferentes termos, mas os unifica
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enquanto separados. Em outras palavras, o sucesso de “Acumuladores” decorre de um
“acordo” de escrutínio pelo programa e pelo espectador frente ao acumulador, ou seja, o olhar
da reabilitação é associado ao do espectador, alocado na confortável posição de “normal” e,
por isso mesmo, avaliador/julgador do comportamento exibido na série documental. Trata-se
de um olhar não apenas normal, mas “normalizador”, de intervenção, características que
justificam o rompimento da fronteira entre público e privado e o acesso à intimidade do outro.
Essas narrativas de emergência de uma síndrome e sua repercussão na cultura
contemporânea devem ser lidas de forma crítica.
Segundo Williams (1977), narrativas
dominantes trabalham através de pontos hegemônicos, selecionando o material que será
incluso e aquele que será excluído da história em potencial. Assim, o material que foi excluído
pode contar uma história diferente. O programa acaba por trabalhar um perfil conturbado dos
participantes, visando uma leitura medicalizada e de repúdio em relação aos seus
comportamentos.
Ao desconstruir a abordagem trabalhada, pode-se imaginar uma série de histórias
diferentes, nas quais o que se denomina hoarding, não seria nem mesmo enquadrado enquanto
tal. Por exemplo, Alex é uma criança de sete anos exposta pelo programa como hoarder e, ao
apresentá-lo, aponta-se que é disléxico e tem déficit de atenção. Sua mãe, Missy (46 anos),
também é mostrada como acumuladora. Ela se sente responsável pela situação do filho, tem
medo do conselho tutelar e de ser denunciada. Assim, ao aceitar ajuda do programa, Missy diz
querer salvar Alex do mesmo fardo que ela carrega. Num dado momento, Alex exige que
quem viesse assistir sua casa tivesse mãos gentis e não duras – nesse sentido, personificando o
tratamento de seus pertences. Alex acumula brinquedos e bichos de pelúcia e, segundo Dr.
David Dia (terapeuta cognitivo comportamental), Missy associa os objetos à memória,
enquanto Alex já tem o apego sentimental a eles. Em uma cena desse episódio, em uma
tentativa de separar os bichos de pelúcia para serem doados, Alex deita sobre o monte e diz:
“eu os amo todos, porque eles me ajudam a não ser tão triste” 3. A partir desse caso, pode-se
pensar que Alex foi enquadrado como hoarder pelos “profissionais” envolvidos e pelo próprio
programa, mas é possível fazer outra leitura, não patologizante, de seu comportamento. Alex,
como qualquer criança, é simplesmente apegado aos seus brinquedos e não quer se desfazer
deles.
3 “I love them all, because they help me not be só sad”.
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Os reality shows de reabilitação tendem a seguir a mesma estrutura, ao focar na
patologização de vicios comportamentais e na intervenção a fim da reinserção no mundo
social, o qual não é problematizado, antes presumido como a esfera das relações sociais
normais. Em “Hoarders: Buried Alive” verifica-se uma série de aspectos recorrentes entre os
diferentes episódios, por exemplo, a desconexão do acumulador em relação ao mundo que o
cerca, o ritual de negociação entre hoarder e expert, as histórias de justificativa do por que
agem assim. Nas palavras de Lepselter: “os acumuladores são apresentados pelas narrativas
mediatizadas, como sujeitos imersos no espetacular caos de isolamento, e depois são
renormalizados terapeuticamente como agentes racionais de consumo que podem redescobrir
o social” (2011, pp. 919)4.
No começo de todo episódio de “Hoarders: Buried Alive” aparece um quadro escrito
que de três a seis milhões de pessoas no mundo são acumuladoras – sendo que cerca de dois
milhões vivem nos Estados Unidos da América. Visto como um fenômeno que atinge milhões
de pessoas, os meios midiáticos tratam a questão como um transtorno muito individualizado,
por exemplo, “Fulano” é acumulador por causa do relacionamento conturbado com seu pai ou
“Ciclano” é acumulador, pois passou por fases de pobreza. Não há reconhecimento de
contextos sociais, políticos, culturais e econômicos que circundam o acumulador. Os
programas retratam um mundo sem jogos de poder ou política, no qual o isolamento do
hoarder é apresentado como uma triste e solitária aberração, em relação aos grupos sociais
que frequentam e vivem em casas limpas e organizadas (LEPSELTER, 2011).
As práticas e normas de consumo ficam desconexas de estruturas históricas, políticas e
econômicas. Mais uma vez utilizando o caso de Bill, Dr. David lhe entrega uma sacola cheia
de coisas para ele separar entre o que deve ficar e o que será descartado. Bill nem olha o que
tem dentro e já fala que vai ficar com tudo. Dr. David tenta outra abordagem e pede que Bill
olhe o que tem ali e pergunta por que guardar e qual a utilidade, Bill responde que tem medo
de um dia precisar. Logo em seguida, a filha do doutor, Amelia, declara que Bill vasculha o
seu lixo, tentando se defender, Bill alega que as coisas precisam ser recicladas – utiliza os
lenços removedores de maquiagem ressecados, que foram descartados pela filha, para limpar
as mãos. O seu processo de pensamento – o de guardar e reutilizar certos objetos - mostra
uma possível ligação entre excesso e privação (medo de um dia precisar), o que é
transformado pelo programa em um “sintoma” de um problema comportamental, como
4 “Mediated narratives present hoarders in all the spectatcular chaos of their isolation, and then therapeutically
renormalize them as managed, rational agents of consumption who may rediscover the social.”
21
desculpa feita por alguém que quer – na verdade, teria o “vício” ou a “compulsão” - acumular.
No seriado documental, a acumulação é tratada como espetáculo, no qual o
acumulador justifica o porquê o/a acumulador/a é assim, como as perdas pessoais o levaram a
tentar preencher seus vazios com objetos. Além disso, ele/a está sempre participando de uma
espécie de negociação com o profissional envolvido. Ocorre um constante diálogo, onde a
prática da escolha do que guardar e o que descartar é tomada como chave do consumo
racional. Nesse processo, o/a acumulador/a é constantemente exposto a rituais de seleção,
sacrifício e valoração racional, marcados por perguntas como: o que é mais importante? Por
que guardar este? Essa negociação, em geral, aparenta ser traumática, o processo em que o
acumulador se desespera, tenta se justificar no por que não pode descartar tal objeto e tenta ao
máximo contornar a situação. Apesar do programa envolver um terceiro numa questão
privada, o especialista reforça que o descarte dos objetos é totalmente voluntário, que deve
partir do acumulador e não ocorre por uma coerção externa. Tal decisão voluntária pode ser
problematizada, uma vez que há a dessacralização do lar (em nome da higiene pública) e os
segredos dessas pessoas são tornados visíveis para os especialistas e para os/as
espectadores/as. Em suma, há fortes pressões – mesmo que indiretas – para que aquele/a
diagnosticado/midiatizado como “acumulador/a” negocie a organização e a limpeza de sua
casa e, em último nível, o descarte de tudo o que guardou durante longo tempo por razões de
ordem pessoal/individual.
Jennifer (27 anos) e Ron (39 anos),de Louisville, Kentucky, são casados há dez anos,
enquanto Jennifer é viciada em compras, seu companheiro Ron não consegue se desfazer das
coisas, ou seja, o casamento é apresentado como uma relação “explosiva” entre uma
consumista e um acumulador. Jennifer relata que sua casa é uma bagunça, que não parece um
lar, na varanda há pertences que não couberam dentro da casa (quando aparecem cenas de
uma banheira enferrujada, com um banco de jardim jogado sobre ela), dentro da casa há muita
sujeira, balcões ocupados, a pia da cozinha empilhada de louça e panelas sujas. Jennifer
assume que se algo é derramado no chão não conseguirá limpar devido ao acúmulo de objetos
sobre ele. O corredor é o “cesto” de roupa suja, fazendo uma trilha até o porão e, por fim,
considera o quarto dos dois filhos o ambiente mais bagunçado da casa (constatação ilustrada
por cenas do quarto com pilhas de roupas, brinquedos e resquícios de cereal matinal pelo
chão).
O casal foi denunciado por vizinhos e está sob risco de perder a guarda das crianças.
22
Quando a família aceita a ajuda oferecida pelo programa e o processo de limpeza começa,
Ron fica muito incomodado e observa: “você não lava suas roupas sujas em público,
entretanto cá estamos, lavando”5. Essa colocação ilustra bem como o poder de devassar a vida
das pessoas, numa sociedade em que a individualidade e o espaço privado são centrais, é
legitimado quando elas fogem do considerado “normal”, passando a representar – segundo o
imaginário dominante – um “risco” à comunidade que as cerca. Aparentemente, em especial
na sociedade norte-americana, a casa é o lugar onde a intimidade deveria ser resguardada,
mas, nesses casos, exibi-la se tornou quase uma obrigatoriedade de forma que a
espetacularização aqui beira seu rechaço e, em alguns aspectos, até mesmo sua
“primitivização”, já que o termo inglês hoarder evoca uma forma primitiva de organização,
assim como, o plano de câmera que adentra o espaço doméstico tende a retratá-lo como uma
fusão aterrorizante entre o acúmulo contemporâneo de coisas e o espaço de uma caverna.
O caso da acumuladora Betty (68 anos, Ohio) ilustra vários dos aspectos trabalhados
nesta pesquisa. Logo no início, Betty diz ser filha de lixeiro e que sua casa se assemelha
completamente com a de seus pais, mesmo contra a sua vontade, pois não tem espaço para
guardar suas coisas. Ela é casada há 46 anos com um ex-alcoólatra com indícios de
esquizofrenia. Foram despejados de quatro propriedades alugadas em dez anos, mas - com a
ajuda dos filhos - compraram uma casa própria que fora declarada inabitável pelas
autoridades. Seu filho concebe o comportamento de sua mãe como uma tentativa de escapar
da realidade de cuidar de um velho doente, ao invés de aproveitar a sua aposentadoria. Betty
compartilha da opinião do filho ao culpar o marido (é sua justificativa do por que do
comportamento transgressor), acha que se o marido fosse embora ou desaparecesse ela teria o
necessário para seguir sua vida. Dessa forma, além de alegar que o marido é o motivo de sua
acumulação, ele, fora do cenário, seria o caminho para uma vida “normal”.
Betty afirma que 99% das coisas acumuladas advém de yard sales, Good Will e
lixeiras – os primeiros dois são ambientes muito comuns nos Estados Unidos, onde se pode
arrematar uma gama de coisas por preços baixíssimos, e o terceiro elemento reafirma o
discurso dela de reproduzir o que aprendeu com o seu pai. Em depoimento, sua filha, Michele,
alega que a casa se assemelha a uma área de desastre, pois não é seguro e nem limpo – o que
conflui com o discurso dominante da sociedade e autoridades de saúde. Em seguida, surge
Trieste, a outra filha de Betty, que mora com ela e o pai na casa. Trieste é esquizofrênica e
5 “You don't air your dirty laundry and here we are airing”.
23
acumuladora, alegava que colecionava e acumulava, pois aquilo trazia satisfação. “Sou como
a minha mãe. Tenho a doença”6, afirmação que mostra bem como a acumulação é
patologizada e como esse discurso é o que prevalece no senso comum norte-americano. A
casa pegou fogo e quando as autoridades adentraram viram a situação e os denunciaram por
violar city ordenance7. Betty, seu marido e Trieste estavam há dois meses morando num
motel, o dinheiro acabando e a casa continuava inabitável. O programa enfatiza que ou eles
limpam a casa ou passam a morar nas ruas. O fantasma da perda do teto, de tornar-se
homeless, é evocado como mais um elemento que reforçar a expectativa das autoridades e do
programa – e mesmo dos espectadores – para que a família se reconstitua de forma
organizada.
Dorothy é apresentada enquanto organizadora profissional, especialista em
acumulação. Logo de início, indaga se uma sala de estar bem decorada interessa a Betty, ou se
isso (apontando para os amontoados) aparenta ser mais confortável. Betty responde que se
fosse como ela gostaria seria muito mais normal, tem muitos planos e ideias, mas diz que é
resistente a essa ideia de ter uma organizadora “auxiliando”. De qualquer forma, está disposta
a ouvir conselhos e aceitar sugestões. Dorothy trabalha a partir de um ideal hegemônico da
casa limpa, organizada e socializante, Betty se exime da responsabilidade da situação e se
aproxima do olhar higienizante, mas, ao mesmo tempo, resguarda-se e mantém-se resistente
frente à exposição de sua intimidade, do envolvimento de pessoas alheias em suas questões
particulares. Dorothy alega que Betty quer sempre assumir o controle (como se isso fosse algo
negativo) e diz que não pode forçá-la a desfazer-se de nada. Enquanto os acumuladores são
concebidos como desconexos da realidade, a interferência do olhar público e a agência desse
sobre o espaço privado, faz-se legítimo e o acumulador perde a soberania sobre o espaço que
o pertence. Seu marido diz que a maioria das coisas é “porcaria”, como jornais, roupas,
eletrodomésticos quebrados. Nesse momento, Betty se revolta e diz que a solução do marido é
jogar tudo fora, e não guardar nada que tenha valor, sentimental ou utilitário. Mais uma vez a
série apresenta/culpa o acumulador por contaminar a fronteira econômica com o aspecto
sentimental. Com isso, Betty justifica que os objetos a ocupam e estão sempre ali, já sua
família não. Sendo assim, os pertences supostamente preenchem o espaço das relações
familiares de Betty, reforçando a ideia que os objetos são preferidos ou substituem as relações
sociais, o que ajuda a compreender o isolamento da acumuladora.
6 “I'm like my mom, I've got the bug”.
7 Lei municipal
24
Vários desses discursos de justificativa também apresentam lacunas que não são
questionadas pelo programa. Richie mora na casa que pertencia à sua falecida mãe. A dor da
perda de sua mãe se materializa nos amontoados de objeto, prendendo-o dentro de casa, o
isolando do mundo exterior. Ele não consegue lidar com o quarto de sua mãe, então ele o
“entulhou” de forma que ninguém conseguisse entrar nele. Fez a mesma coisa no corredor que
levava ao quarto. Fotos da falecida estão por toda parte, seus documentos estão pendurados na
parede, recibos, contas, tudo que leva o nome da mãe está exposto de alguma forma. Toda vez
que ele sai e retorna a casa, ele beija a foto da mãe e cumprimenta-a. A justificativa de porque
ele acumula é a perda de sua mãe, a dor da perda, entretanto, no decorrer do episódio, relata
que sempre acumulou e que, inclusive, aprendeu isso de sua mãe quando ela ainda estava
viva. O cerne do episódio é a dor da perda da mãe como motivo da acumulação, como forma
de lidar, ou não, como luto– ignorando os elementos presentes que apontam para outro
caminho de compreensão do que se passa. Narrativas de acumulação ativamente policiam
uma linha entre objetos e pessoas, mais explicitamente durante as justificativas do motivo de
acumulação, cujos erros reforçam a fronteira: enquanto coisas devem ser trocadas e
substituídas umas pelas outras, objetos não devem ser confundidos ou intercambiados por
emoções e relações sociais (LEPSELTER, 2011).
Durante o episódio, o hoarder é encorajado a se afastar do seu “envolvimento” com os
objetos acumulados e olhar toda a bagunça e a si como um espetáculo bizarro (LEPSELTER,
2011). Dessa maneira, o acumulador tem a possibilidade de apreender o ponto de vista
normativo, marcando o processo de reconexão com a sociedade.
Linda (51 anos, de Everett-WA), revelou que sua infância foi cluttery8 e seus pais
foram filhos da Grande Depressão, por isso defende que guarda tudo por tem medo de um dia
precisar, alegando seguir o pensamento da crise: comprar agora, pois amanhã posso não
conseguir. “Sou muito sociável... obviamente morando assim você não quer que ninguém
saiba que você vive desta forma. E como um segredo obscuro”. 9 Reitera-se o fato do
acumulador isolar-se do ambiente externo mantendo seu segredo sombrio protegido no íntimo
da casa. “Quem quer mostrar isso para os outros? E humilhante. E lamentável. Acumular é
8 Clutter: desordem; declutter: organização; termo usado pelo programa para se referir ao processo de
organização da casa.
9 “I'm a very social person...obviously living this way you don't want anybody to see that you live like this. It's
like this deep dark secret”.
25
muito feio”10 - nessa declaração Linda assume um olhar externalizado sobre sua situação. No
processo de redenção/reabilitação, o acumulador desloca seu olhar para aquele que se assimila
ao do observador, nesse caso, dos profissionais envolvidos e dos espectadores, dissociando-se
da experiência transgressora e alinhando-se a perspectiva da “normalidade”.
O seriado “Hoarders: Buried Alive”, enquanto documentário, é tomado como
expressão da realidade, alegando representar vidas privadas, íntimas, essas histórias
midiatizadas sobre acumuladores moldam e produzem experiências. O final do programa
parece apenas aproximar, sem realmente identificar, o "antigo acumulador" ao espectador,
espectador esse presumido como alguém que mora em um ambiente mais organizado,
racionalmente planejado e que tem uma forma de relação com o lar mais socializada e
socializante. E possível levantar a hipótese de que a produção do programa e os canais que o
exibem têm em mente que seu espectador ideal é contemporâneo, vivendo em uma casa ou
apartamento em estilo loft, com poucos e precisos objetos e móveis selecionados. Avento essa
possibilidade, porque é no contraste entre o que é exibido como anormal e patológico e quem
assiste que emerge a recusa, assim como o medo dos acumuladores como fracassados sociais.
Afim de um maior entendimento da origem do contraste entre as formas sociais que
promoveram o consumo acumulativo durante a segunda metade do século XX até as atuais
que rechaçam este modelo de consumo não-descartável em favor de um mais seletivo,
desenvolvi uma breve pesquisa que parte de uma historicização analítica, para entender a
construção do ideário em torno do lar e do consumo, nos Estados Unidos. A análise
sociológica do programa aqui encetada exige reconstituir questões sociopolítcas e
econômicas, as quais serão exploradas no próximo capítulo como o off-screen, sem o qual o
que é apresentado na tela é menos compreensível – ou ainda pior – passível de ser reduzido ao
retrato da disseminação de uma suposta patologia comportamental herdeira da era do
consumo de massa..
10 “Who wants to show this to anyone? It's humiliating, it's wretched. Hoarding is so ugly”.
26
Capítulo II.
Lar e do consumo nos Estados Unidos
A discussão deste capítulo se volta a dados históricos e sociológicos que permitiram
acompanhar a relação entre lar e consumo, em especial, a forma como hoje em dia, nos
Estados Unidos em particular, as casas estão adquirindo novas configurações e funções em
uma sociabilidade mais aberta ao exterior do que as que prevaleceram no modelo de moradia
que se consolidou depois da II Guerra mundial. Nesse Contexto, as grandes casas de subúrbio
eram marcadas por uma divisão maior entre local de moradia, sociabilidade e trabalho, em
outras palavras, naquele modelo as pessoas moravam em espaços maiores, mas também mais
cheios de móveis, eletrodomésticos e pertences pessoais; tinham sua sociabilidade fora de
casa e até do bairro ou cidade de moradia e trabalhavam no centro da cidade ou em algum de
seus distritos industriais ou de negócios.
Atualmente, há uma clara transformação, já que as novas gerações têm preferido
morar na cidade, nos bairros recentemente gentrificados para a sua sociabilidade, mas isso os
tem levado a morar em espaços menores, os quais precisam ser mais “limpos” e preparados
para a exposição a visitas mais frequentes, uma vez que sua vida social inclui a circulação de
amigos e conhecidos por sua casa e não mais a manutenção dela como “lar”, espaço exclusivo
ou predominantemente familiar. A reflexão a seguir perpassa a construção da privacidade e da
domesticidade, a partir de uma digressão histórica da realidade européia dos séculos XVII e
XVIII, para então chegar no foco da pesquisa, os Estados Unidos.
2.1. Privacidade: da “casa grande” ao lar
A privacidade e a domesticidade foram duas grandes criações da Era Burguesa,
surgidas nos Países Baixos. Segundo Rybczynski (1996), não se conhecia a privacidade, antes
do século XVII, a casa de cidade típica do burguês servia como moradia e como local de
trabalho. Os cômodos apresentavam múltiplas funções, todas públicas. Eram construções
longas e estreitas, geralmente de dois andares: o andar principal, ou pelo menos a fachada,
servia como o espaço comercial/de trabalho; a parte destinado à moradia era constituída por
27
um único grande cômodo. Ali, as pessoas cozinhavam, entretinham-se e dormiam. Esses
grandes cômodos continham poucos móveis, devido ao modo de se usar as casas. Assim, esse
minimalismo não é uma artificialidade moderna:
Na Idade Média, as pessoas mais acampavam do que viviam em suas casas. Os nobres tinham
várias residências e viajavam com frequência. Quando o faziam, enrolavam as tapeçarias,
enchiam os baús, desmontavam as camas e levavam os pertences consigo (RYBCZYNSKI,
1996, p.40).
Isso explica o motivo de tantos móveis medievais serem portáteis e desmontáveis: as
palavras francesa e italiana para mobília: mobiliers e mobília, significam - como a palavra
em português: “o que pode ser movido”, sentido esse que não existe na palavra inglesa
“furniture”. Entretanto, os burgueses da cidade não se locomoviam tanto, mas uma vez que a
casa medieval era um lugar público, os móveis eram movidos conforme a necessidade,
conciliando seu local às funções da casa.
Além da família direta, moravam empregados, criados, aprendizes, afilhados, amigos,
ou seja, “famílias” de até 25 pessoas não eram incomuns e as casas em si não eram
necessariamente grandes. Como todas estas pessoas viviam em um ou no máximo dois
cômodos, não se conhecia a privacidade.
Entre o fim da Idade Média e o século XVIII, as condições da vida doméstica
começaram a mudar. As Províncias Unidas dos Países Baixos constituíam um estado
novíssimo, formado em 1609, esse país demonstrou ser uma potência. Da primeira década do
XVII, até aproximadamente a década de 1660, os holandeses consideraram essa uma “era de
ouro”. Tornou-se a nação mais avançada na construção naval, promoveram inovações
financeiras (transformando-os em uma grande potência econômica) e Amsterdã, centro
mundial das finanças internacionais. 11
Esses aspectos repercutiram também no tecido social holandês, muito diferente do
resto da Europa. Ao contrário da Inglaterra, não tinham um campesinato sem terras (a maioria
dos fazendeiros holandeses era proprietária de suas terras); ao contrário da França, não tinham
uma aristocracia poderosa (a nobreza dizimada pelas guerras de independência era pequena e
inexpressiva); diferente da Espanha, não tinham um rei (o chefe de estado era um símbolo
nacional, entretanto, tinha poderes limitados). Os holandeses eram, primordialmente,
11 Na metade do século, os Países Baixos ultrapassaram a França e tornaram-se a principal nação industrial do
mundo, com o impressionante crescimento das cidades manufatureiras.
28
mercadores e donos de terra (RYVCZYNSKI, 1996).
Os holandeses tinham uma propensão a serem burgueses. Entretanto, essa “essência”
burguesa da sociedade holandesa não quer dizer que ela era composta apenas por uma classe
média, havia fazendeiros, marinheiros e trabalhadores de fábricas. Esses não compartilhavam
da prosperidade da época e suas condições de vida eram tão miseráveis quanto nos outros
países. Como todas as cidades europeias, também havia uma camada inferior, composta por
pobres, pedintes itinerantes e mendigos. No entanto, a classe média predominava e era ampla
o bastante para conter desde financistas internacionais a donos de loja .
Eram os burgueses que compunham a elite patrícia, que nomeava os magistrados e os
mestres dos burgos que governavam as cidades. Sendo a primeira república da Europa,
consistia em uma confederação livre governada por um Estado Geral, composta por
representantes escolhidos dentre a classe média alta. A sociedade holandesa não era estática e
definia a posição social pela renda do indivíduo. Quase um terço dos holandeses era
calvinista, e essa religião foi a exerceu a maior influência sobre a vida cotidiana dos
indivíduos. As circunstâncias criaram um povo que gostava de poupar e que desaprovava
grandes gastos (RYBCZYNSKI, 1996).
Essa simplicidade e “ponderação” podia ser observada nas casas holandesas, feitas de
tijolo e madeira, sem a pretensão arquitetônica das casas urbanas de Paris ou Londres. As
casas eram enfileiradas e geralmente tinham paredes em comum. Até então, as casas seguiam
os padrões já descritos anteriormente, o andar de baixo reservado as atividades comerciais e o
de cima para cozinhar e dormir. Contudo, em meados do século XVII, uma subdivisão da casa
em usos diurnos e noturnos e em áreas formais e informais havia começado. Os andares
superiores se tornaram salas formais; o segundo andar, de frente para a rua, passara a ser uma
sala de visitas; a antiga sala da frente tornou-se uma espécie de sala de estar e outros cômodos
começaram a ser usados apenas para dormir. As pinturas posteriormente analisadas das casas
holandesas retratavam cômodos claros, iluminados pelo sol, contrastando os interiores escuros
típicos dos outros países.
Essas novas construções eram de casas pequenas: abrigavam poucas pessoas, a média
por casa, na maioria das cidades holandesas, girava em torno de quatro ou cinco pessoas, em
comparação com a média de 25 em uma cidade como Paris. Os burgueses holandeses não
tinham inquilinos, preferiam ser proprietários de suas casas, por menores que fossem. Outro
29
ponto inovador era o fato das casas não serem mais um local de trabalho, já que
estabelecimentos separados para os negócios passaram a ser edificadas. Uma vez que as casas
estreitas eram construídas diretamente na rua, com paredes comuns aos vizinhos, o jardim
holandês era outro indício da transição entre a casa grande comunal e a casa de família
individual. O jardim isolado nos fundos era privado, diferente da cidade europeia típica, na
qual a casa era construída em torno de um pátio/jardim essencialmente público. Assim,
valorizava-se mais a independência do indivíduo do que em outros lugares (RYBCZYNSKI,
1996). O caráter público da “casa grande” fora substituído por uma vida caseira mais
sossegada e mais privada – processo que ocorreu na Holanda, quase cem anos antes dos que
em qualquer outro lugar.
Os móveis e a decoração de uma casa do século XVII tinham a intenção de mostrar a
prosperidade do seu proprietário, o tipo de móvel da casa holandesa parecia com o da casa
burguesa francesa, a divergência estava no efeito. O interior francês era lotado e frenético, os
diversos móveis esbarravam uns aos outros em cômodos cujos papéis de parede ilustravam
paisagens cênicas e onde todas as superfícies eram enfeitadas, douradas ou decoradas.
Comparativamente, a decoração holandesa era escassa. Buscava-se a funcionalidade dos
móveis, não só a beleza, e não se enchia um cômodo a ponto de diminuir a sensação de
espaço - o efeito estava longe de ser austero, o que também não era a intenção.
Quanto menos móveis houvesse em um cômodo, mais fácil era de mantê-lo limpo, e
isso teve ligação com a relativa escassez de mobília no interior das casas holandesas, que
relatos históricos descrevem como imaculadas e perfeitamente limpas . A importância que
12
davam à limpeza doméstica é ainda mais surpreendente, pois não acompanhava os hábitos
pessoais – os holandeses eram considerados sujos até pelos padrões insalubres do século
XVII. Apesar dos holandeses terem iniciado a medicina moderna, eles não conseguiram
controlar as diversas doenças infecciosas que assolaram a maioria de suas cidades.
“Quando se pedia que os visitantes tirassem os sapatos ou calçassem chinelos, isto não
era considerado parte da rua pública – mas quando se ia para o andar de cima. Era ali que se
encerrava a esfera pública e começava o lar” (RYBCZYNSKI, 1996, p. 77). Essa passagem
ilustra como o limite entre público e privado era novo, assim como, a ordem e a limpeza da
casa não era fruto de algum capricho ou da limpeza especial, mas sim de um desejo de definir
12 A palavra holandesa para limpo, schoon, também exprime beleza e pureza.
30
a casa como um lugar separado. O desejo de se ter mais privacidade atravessou o século
XVIII, presente tanto na casa burguesa quanto no palácio. A partir dessa breve digressão,
pode-se concluir que, em relação ao mundo exterior, a casa se tornou um lugar mais privado e
junto com essa privacidade, surgiu um maior senso de intimidade, que identificava a casa
exclusivamente com a vida familiar.
A casa do século XVIII, não incorporou grandes inovações na tecnologia doméstica.
Entre as camadas mais altas da sociedade europeia, a arquitetura não era praticada como um
negócio, mas era considerada uma arte, não por artífices assalariados, mas sim por amadores,
habilidosos, contudo sem treinamento. Desenvolveu-se um conhecimento teórico a partir de
estudos históricos, e, assim, os arquitetos estavam mais interessados na aparência dos prédios
do que seu funcionamento. Dava-se mais atenção ao exterior do que ao interior, edessa forma,
a arrumação detalhada do interior geralmente ficava a cargo do dono da casa. Espantados com
a quantidade de objetos que eram necessários para se mobiliar um cômodo com o que era
considerado adequado, cada vez mais europeus recorriam a ajuda externa, fornecida pelo
estofador. Inicialmente, o estofador se preocupava com os tecidos e com as coberturas dos
estofamentos, mas como comerciante enxergou a oportunidade de mercado e ampliou seus
negócios, organizou-se e passou a oferecer orientação especializada aos donos das casas. Os
estofadores, e mais tarde os decoradores de interiores, como começaram a ser chamados,
passaram a dominar o conforto doméstico.
A partir da segunda metade do século XIX, os decoradores de interiores passaram a ter
responsabilidade total por tudo o que se referia ao interior da casa. Partia-se do princípio que
as casas deveriam ser decoradas em estilos de época. Contraditoriamente, isso não
demonstrava necessariamente qualquer interesse pela história. O rococó foi o primeiro estilo
desenvolvido exclusivamente para o interior em oposição ao exterior. Com o passar das
décadas, o rococó fora substituído por outros estilos, entretanto, permanecendo a convicção da
independência entre as partes internas e externas . Esta distinção não era tão evidente, uma
13
vez que a arquitetura dos cômodos era a arquitetura das fachadas virada para dentro. A partir
disto, pode-se pensar que essa busca por maior privacidade penetrou inclusive a arquitetura,
onde o interno, o espaço privado, deveria ser distinto do externo, do público.
13 Depois da segunda década do XIX, os cômodos passaram a ser decorados em neo-grego, neo-rococó, ou
qualquer outro estilo, abrindo o a liberdade para moldar e combinar diferentes estilos. No século XIX,
coexistiram reconstituições criativas e históricas. As reconstituições criativas não se preocupavam com a
precisão histórica, apenas usavam motivos e formas tradicionais. Já as reconstituições históricas buscavam imitar
a aparência de um estilo histórico específico.
31
Como a maioria dos estilos de época haviam sido desenvolvidos para casas grandes
das elites, nem sempre era fácil adaptá-los às casas menores que estavam sendo construídas
pela classe média no final do XIX. Assim, houve uma tentativa de decorar casas modestas de
maneira grandiosa, mas geralmente o resultado era longe do desejado, muitas vezes, beirando
o que era considerado ridículo para aquele período.
A exposição feita acima foi eurocentrada e, em especial, na Holanda, país em que –
historicamente – o lar burguês e a noção de conforto mais se desenvolveu. Agora proponho
promover uma transição para os Estados Unidos, o foco dessa pesquisa, a partir da arquitetura
georgiana, surgida no Reino Unido.
A arquitetura georgiana se refere àquela produzida ao longo dos reinados de George I,
George II, George III e George IV, entre as décadas de 1720 e 1840, aproximadamente. Não
era um estilo fortemente unificado, pois perpassava desde o final do barroco ao ecletismo
romântico do início do século XIX, compreendendo traços da arquitetura palladiana, do
neoclassicismo, do rococó e influências do neogótico. Os móveis tinham um aspecto mais
sóbrio, eram mais estruturais do que decorativos. Esse estilo foi amplamente difundido nas
colônias inglesas, com destaque, nos Estados Unidos. Esse ecletismo estilístico serviu tanto a
nobreza quanto a classe média.
O estilo inglês não se restringiu à sua terra natal. A expansão das ideias inglesas se
deu após as Guerras Napoleônicas e a ascensão da Inglaterra como nação comercial, o que foi
ainda mais forte nas colônias, principalmente nos Estados Unidos. A classe média
estadunidense, que crescia mais rápido do que na Inglaterra, reagiu ao conforto prático dos
móveis georgianos. Os móveis americanos, apesar de feitos localmente, não podiam ser
distinguidos dos georgianos, essa arquitetura está entre os estilos populares mais difundidos
nos Estados Unidos. Admirado pelo seu desenho simétrico, proporções clássicas e elementos
decorativos, esse estilo predominou nas colônias inglesas entre 1700 e a Guerra da
Independência dos Estados Unidos e, a partir daí, houve um declínio com o surgimento do
“American Federal Style”, que associou traços da arquitetura georgiana com traços da neopaladiana14.
14 Exemplos notáveis da arquitetura georgiana são os prédios da Universidade de Harvard e da Universidade de
Brown.
32
2.2. Transição para o século XX e o American Way of Life
As mudanças nas casas se deram à moda e ao gosto popular, entretanto, inovações
tecnológicas também tiveram importantes contribuições. A falta de energia limitava
fortemente a tecnologia doméstica. A eletricidade foi usada primeiro na iluminação e, em
1900, a luz elétrica já era um fato consumado da vida urbana nos Estados Unidos. Com isso, a
passagem do século XIX para o XX é marcada pela entrada da eletricidade nas casas,
introduzindo, de tal forma, novas utilidades domésticas. Processo que primeiro se deu em
cidades como Cleveland, São Francisco e Nova Iorque, e depois se espalhou para outras
cidades, segundo o U.S. Energy Information Administration.
Com o advento da eletricidade, a noção conforto-eficiência no trabalho de casa nasceu
nos Estados Unidos - que agora volta a ser foco na discussão deste trabalho. A partir da
primeira década do século XX, quando houve um avanço nos resistores de longa duração, os
aparelhos elétricos eficientes e duráveis se proliferaram. Os eletrodomésticos agradaram
muito ao público devido ao baixo custo da eletricidade. Em 1927, mais de 17 milhões de
casas americanas, ou seja, mais de 60%, tinham eletricidade, O impressionante era que a
quantidade de casas americanas com eletricidade era igual à de todo o resto do mundo.
Sem contar a iluminação, o aparelho elétrico mais amplamente usado foi o ferro
elétrico: em 1927 mais de três quartos das casas americanas (que eram eletrificadas) tinham
esse produto. Mais da metade destas casas, que já tinham acesso à energia elétrica, tinham um
aspirador de pó. À medida que se tornavam mais populares, os preços caíam. Outro ponto
interessante, é que com o advento da iluminação, a sujeira dentro das casas se tornou mais
aparente e o aspirador de pó permitia que os tapetes, por exemplo, fossem limpos no lugar ao
invés de serem retirados e batidos do lado de fora da casa. Assim, a maior economia dos
aparelhos elétricos não era só economia de tempo, mas de esforço – cunhando uma nova
expressão para descrevê-los: labor-saving-appliances15.
Um dos motivos frente ao interesse de diminuir o trabalho de casa estava no fato dos
americanos terem poucos/as empregados/as domésticos/as. Em 1860, 60% de todas as
mulheres que realizavam serviços remunerados no país eram empregadas domésticas. Em
1900, mais de 90% das famílias americanas não contratavam esses serviços. A menor
15 Aparelhos de redução de trabalho
33
quantidade de empregadas domésticas era uma questão de oferta, e não de demanda. A
maioria das empregadas domésticas eram mulheres e, antes do advento dos eletrodomésticos,
era um trabalho extremamente árduo. Se tivessem a possibilidade de outros empregos, as
mulheres preferiam quase qualquer coisa, inclusive o trabalho nas fábricas, do que fazer o
serviço doméstico, segundo Rybczynski (1996). A guerra incentivou a entrada das mulheres
na força de trabalho e também acabou por desacelerar a imigração e, assim, após a I Guerra
Mundial, a quantidade de empregadas domésticas caiu drasticamente nos Estados Unidos 16.
Esse movimento também provocou o aumento do salário das empregadas em um terço a
metade, a consequência dos salários mais altos e da menor oferta de mulheres que quisessem
trabalhar como domésticas fez com que as casas americanas, se é que tinham empregadas,
tivessem poucas, mas o mais comum era a ajuda em tempo parcial.
Não foram só os fatores econômicos que levaram a mulher americana a depender de
menos empregadas, mas também os diversos livros sobre administração do lar, surgidos a
partir do século XX17. Os livros variavam desde argumentos de que o serviço doméstico era
uma convenção social cara e desnecessária, ou argumentos que o serviço doméstico se
equiparava a um estado bárbaro da vassalagem, até argumentos preconceituosos que diziam
que os principais obstáculos à administração eficiente do lar eram as empregadas, que
normalmente eram meninas do campo ou imigrantes com pouca instrução e que,
frequentemente, eram resistentes às novas ideias (RYBCZYNSKI, 1996).
Durante a guerra, as mulheres participaram ativamente da economia, ocupando postos
de trabalho nas mais variadas indústrias. Com o fim da guerra e o retorno dos soldados,
buscou-se recolocar as mulheres ao ambiente doméstico, com o objetivo de dar lugar aos
homens nas fábricas e indústrias. De tal forma, a mulher se voltou a casa, ao zelo do espaço
privado, enquanto o homem era encumbido do “sustento” e fazia a mediação entre espaço
privado (da casa) e o público (do mercado de trabalho/mundo externo). Produtos elétricos
passaram a ser publicizados, prometendo tornar a vida da dona de casa mais confortável. O
estilo de vida considerado ideal era difundido em revistas, no cinema, no rádio e, a partir da
década de 1950, na televisão – meios de comunicação de massa.
Por diversos motivos, a mulher estadunidense fazia toda, ou a maior parte, do serviço
16 As mulheres imigrantes eram, e continuam sendo, a principal fonte para contratação dos serviços de
domésticas. No início do século XX, elas vinham da Irlanda e da Europa oriental, e na década de 1980,
imigraram de países da América Central e do Caribe. Entretanto, o número total de empregadas domésticas
continua em queda
17 Por exemplo: “The Cost of Shelter”, de Ellen H. Richards; “Principles of Domestic Engineering, de Mary
Pattinson.
34
doméstico. Junto com a entrada da eletricidade e da mecanização nas casas, muitas mulheres
da classe-média se mostravam em posição de apreciar os benefícios dos aparelhos que
reduziam o trabalho e tinham uma renda à disposição para comprá-los. A coincidência desses
fatores explica a velocidade com que a casa estadunidense mudou no início do século XX.
O American way of life surgiu no contexto da Guerra Fria, em termos básicos, a partir
da valorização do capitalismo e a depreciação do modelo socialista, esse modelo foi
consolidação do American dream, ideal de vida difundido nos Estados Unidos na década de
1920. O American way of life foi defendido fortemente entre a metade da década de 1940 até
a metade da década de 1960. A cultura popular abraçava a ideia de que qualquer indivíduo
poderia aumentar significativamente a qualidade de vida no futuro, através de trabalho duro,
determinação e habilidade. Politicamente, havia a crença na superioridade da democracia livre
e, economicamente, a valoração do mercado competitivo. Em meio a esse cenário altamente
otimista, propiciou-se um aumento do consumo, principalmente dos produtos destinados às
massas e que caracterizam o estilo de vida estadunidense: os eletrodomésticos em geral, com
destaque para a televisão; as casas nos subúrbios, com seus quintais idílicos; e o automóvel,
marca do século XX.
Entre as décadas de 1940 e 1960, foram produzidos milhões de automóveis, que
simbolizavam os ideais da época, sendo sinônimos do American way of life e a personificação
do American dream. O automóvel se popularizou, contemplando desde o fazendeiro do
interior ao empresário do grande centro urbano. Já na década de 1930, o New Deal gerou
incentivos para o emprego, para a construção de estradas, criou-se, dessa forma, uma
complexa rede rodoviária no país. Mais tarde, com o combustível barato, o carro se
popularizou e tornou-se sonho de consumo do imaginário ocidental.
A casa estadunidense era projetada para ser mantida com facilidade por uma única
pessoa, talvez com um auxílio externo em tempo parcial. Isso resultou em cômodos menores e
no uso extensivo de móveis embutidos (prateleiras, armários de cozinha, estantes). A principal
vantagem dos móveis embutidos era que facilitavam a limpeza, uma vez que nunca
precisavam ser movidos. A cozinha também adquiriu características úteis – escorredores de
ambos os lados da pia; armários de diversos tamanhos; uma pia, geladeira e área de trabalho
próximos. Na virada do século, o banheiro compacto de três peças, com banheira no final do
cômodo e a pia e o vaso sanitário lado a lado, era comum 18. Ocorreu, dessse modo, uma
18 A ideia de se colocar o vaso sanitário e a banheira no mesmo cômodo para o uso comum de toda a família, foi
americana.
35
mudança nas casas que visava o valor estético para uma casa funcional e utilitária.
O primeiro impacto, nesse modelo de morar e viver, foi a Crise do Petróleo de 1973,
mas suas consequências se estenderam e aprofundaram-se por meio da crescente visibilidade
dos problemas ecológicos causados pelo consumo em massa, assim como, transformações
estruturais na economia e na organização do trabalho, especialmente a partir da década de
1980, com a profunda reorganização produtiva e a incorporação das invenções como
computadores e celulares.
A indústria de reforma e remodelação de casas, nos Estados Unidos, teve drástica
transformação na década de 1990. Dezenas de programas de televisão, revistas e páginas na
internet traziam novidades de arquitetura e decoração, despertando nas pessoas o desejo de
reformarem suas moradias e lançando o popular ethos do do-it-yourself. Durante os primeiros
anos da década de 2000, os consumidores estadunidenses dispenderam cerca de $100,4
bilhões a cada ano em reformas, na qual $58,7 bilhões (equivalente a 58% do total) foram
gastos em casas construídas antes de 1980.
Outro ponto interessante de mudança é que as garagens tornaram-se típicas das casas a
partir do início do século XX. Segundo Tristan Bridges (2013), dois fenômenos
provavelmente impulsionaram o número crescente de garagens nos Estados Unidos: o
aumento do número de famílias proprietárias de carros e o processo de suburbanização,
acompanhado pelo estilo de vida denominado “faça você mesmo” (do it yourself). A
industrialização e o processo de suburbanização trouxeram transformações na vida familiar e
nas relações de gênero. De tal forma, a divisão entre trabalho e lazer se tornou mais marcante
para os homens e menos para as mulheres, como já exposto.
Garagens e porões serviam, historicamente, como espaços nos quais os homens se
refugiavam para trabalhar em projetos da casa ou praticavam seus hobbies, em geral,
passavam o tempo – muitas vezes denominados: man caves (caverna dos homens). Os lares
do final do XIX não continham esses espaços, assim, se alguém queria fazer algo, estaria o
fazendo dentro de suas casas. Gradativamente, espaços estavam sendo construídos para que as
pessoas realizar esses projetos do do it yourself. O que chamou a atenção de Bridges (2013)
foi que ao questionar as pessoas sobre essas “cavernas", tanto os homens quanto as mulheres
argumentam que os homens precisam desses espaços, uma vez que a casa é concebida
culturalmente como espaço de expressão feminina.
Contraditoriamente, a maioria das garagens americanas é abarrotada demais para
36
conter carros e, muito menos, servir como um refúgio doméstico dos homens. Isso não mudou
o imaginário por trás da garagem, local onde os homens trabalham nas suas casas e carros não
por necessidade, mas porque “querem”.
De certa maneira, em torno do imaginário da casa como lar, enfatizava-se a
importância da saúde, da conveniência e do conforto no projeto das casas, dando menos foco
ao “bom gosto” - considerado algo desejável, apesar de menos importante. O projeto de uma
casa não só aloca os pertences dentro do lar, mas estrutura também a forma pela qual as
pessoas interagem e frente à interação com comunidade que se habita.
2.3. Locus de expressão do self e a dessacralização do lar
A passagem do século XIX para o XX produziu reações em torno da arquitetura e
projeção das casas, em especial, crítico ao interior abarrotado e repleto de adereços burgueses.
Segundo Paula Sibilia, “o lar foi se transformando no território da autenticidade e da verdade:
um refúgio onde o eu se sentia resguardado, um abrigo onde era permitido ser si mesmo”
(2008, pp.62). A partir dessa afirmação, pode-se pensar o lar como um espaço privado 19,
sacralizado, na qual o eu pode ser realizado.
A primeira vez em que o interior doméstico foi o assunto de uma exposição
internacional de grandes proporções foi a Exposition Internationale des Arts Décoratifs et
Industriels Modernes, que ocorreu em Paris em 1925. Vale a pena frisar dois estilos que se
mostraram totalmente contraditórios: o Art Déco, que chamou a atenção do público em geral,
e o Esprit Nouveau20, que não despertou grandes interesses. O Art Déco se mostrou como um
estilo urbano, incorporando influências africanas, como peles de zebra e de leopardo e
madeiras tropicais, enfatizava que tudo deveria ser “novo e moderno”. Os elementos do
passado estavam presentes, mas eram retrabalhados com uma estética diferente 21. Já o Esprit
Nouveau, projetada por Charles-Edouard Jeanneret seguia formas geométricas, semelhante à
uma caixa, como o exterior liso e branco. Apesar de não ter despertado interesse do público,
esse estilo se tornou o mais influente no desenvolvimento da casa.
19 A noção de “espaço privado” é trabalhado neste projeto de IC como uma questão central no fenômeno da
acumulação tal como socialmente abordado na sociedade americana e retratado no programa é como a
“denúncia” do acúmulo permite o rompimento de uma fronteira fundamental na cultura americana, que é a entre
a vida pública e a privada.
20 Esprit Noveau era o nome da revista francesa, concebida e editada por Le Corbusier e Amédée Ozenfant.
21 Mais do que qualquer estilo daquela época, o Art Déco mostrava um apreço estético pelos materiais e
equipamentos modernos; assim, para estes projetistas, a tecnologia era divertida.
37
Quem visitasse esse pavilhão na Exposição Internacional, teria achado o interior tão
vazio e sem acabamento quanto o exterior. Não havia ornamentação, sem cortinas e nem
papel de parede. O esquema cromático era chocante: paredes geralmente brancas, que
contrastavam um teto azul, os armários que serviam como divisórias foram pintados de
amarelo vivo. O efeito parecia pouco aconchegante e a atmosfera industrial refletia-se nas
molduras das janelas, que não eram de madeira, mas sim de aço. Havia poucos móveis e,
diferente dos outros estilos, tinha um ar simplório. Assim, o Esprit Nouveau consistia em uma
rejeição total da arte decorativa, rejeição à ornamentação. O estilo concebia o hábito burguês
de colecionar móveis como deplorável, defendia que as casas do Esprit Nouveau não mais
teriam móveis, mas seriam mobiliadas com equipamento 22.
Entre as décadas de 1980 e o início de 1990, épocas de abundância no consumo
desenfrado e desejos de distinção blasé, nascia o minimalismo. A decoração minimalista foi
descrita jocosamente como “austeridade manifesta” - esse estilo gera ambientes vazios, claros
e muito limpos. Nesses ambientes, não há e nem pode haver vestígio algum, não se despem
apenas os elementos arquitetônicos decorativos, mas também todas as posses pessoais ficam
invisíveis23. Esse design minimalista tinha como alvo, uma parcela da população, os Yuppies,
ouseja, os novos ricos, que a partir do despojamento formal de seus objetos, pretendiam
exprimir seu poderio financeiro e distinguir-se dos ricos mais velhos, com seu novo estilo de
vida e forma de morar.
A casa estava sendo refeita segundo uma nova imagem, despida de suas tradições
burguesas e destituída do bem estar íntimo. Os típicos ambientes burgueses de finais do
século XIX eram espaços saturados do “eu” do morador, repletos de marcas de sua história.
22 Com os movimentos modernistas dos anos 1930, Walter Benjamin pensa as casas de vidro, que surge como
resposta crítica àquela sociedade burguesa do século XIX carregadas de mobília, tapetes e bibelôs. Segundo
Benjamin, o vidro é um material duro e liso, onde nada se fixa, sendo, em geral, inimigo do mistério e da
propriedade – uma vez que a distinção entre vida privada e pública se esvaiu. Esta crítica já aponta a mudança de
eixo da casa voltada à intimidade burguesa, para à casa “para fora”. O discurso benjaminiano se opõe fortemente
à casa burguesa, pois não há nesse espaço um único ponto em que seu habitante não tenha deixado vestígios.
Estes vestígios são bibelôs sobre as prateleiras, as franjas das poltronas, as cortinas.... “O 'interior' obriga o
habitante a adquirir o máximo possível de hábitos, que se ajustem melhor a esse interior que a ele próprio”
(BENJAMIN, 1994: p.117), assim defende que a cultura (Kultur) malogrou diante do adestramento das massas e
a perda da experiência, as massas são impostas hábitos permeados de vestígios para preencher o vazio do sentido
da existência. A reação do habitante desde ambiente de pelúcia, quando algo se quebrava, era de indignação
grotesca, segundo Benjamin, é a reação de um homem cujos vestígios sobre a terra estavam sendo abolidos . O
lar burguês alimenta a opacidade, pois exigia o homem a máxima aquisição de objetos, a densidade dos infinitos
ornamentos, e com isso, o sujeito era ofuscado pela imensa bagagem de coisas que carregava consigo (SIBILIA,
2008).
23 As luminárias são escondidas no teto, os livros e os brinquedos das crianças são escondidos dentro de
armários, e até os armários são escondidos atrás de portas lisas.
38
Os novos movimentos objetivavam eliminar a opacidade do ambiente burguês e, assim,
verificou-se a imbricação e interpenetração dos espaços públicos e privados, tornando
obsoleta a distinção entre eles.
Paula Sibilia (2008) exemplifica esse processo através do sucesso dos reality shows de
transformação na atualidade. A autora toma como exemplo o programa “Queer eye for the
straight guy”, que acompanha cinco especialistas em suas tarefas de transformação de uma
casa e seu proprietário24. Se alguma das residências possuísse bibelôs ou cortinas aveludadas,
seriam descartadas com uma oportuna indignação dos profissionais. Os participantes não se
abalavam ao ver seus objetos sendo jogados fora com tamanho desdém, inclusive até se
mostravam contentes. Segundo Sibilia, esses programas de TV mostram um final feliz, na
qual se propõe um esquecimento do passado e um recomeço do zero. Os participantes
emergem libertados das “aflições infringidas por aqueles ambientes nos quais até então
moravam, cujas paredes os pressionavam, obrigando-os a adquirir o máximo possível de
objetos” (SIBILIA, 2008: p. 83).
Em contraste, o seriado documental “Hoarders: Buried Alive” segue a realidade das
pessoas que são denunciadas por vizinhos ou fiscais sanitários à autoridade pública como
tendo um comportamento e um lar que seria um perigo para a saúde pública 25. Como
explicitado anteriormente, é realizada uma espécie de compacto do que se passa dentro do
prazo legalmente estipulado para a limpeza e reorganização interna dos lares, a maioria das
vezes, de dois a três dias. Diferente da abordagem do programa “Queer eye for the straight
guy”, há um olhar mais medicalizado sobre os hoarders, assim, os especialistas envolvidos
são psicólogos, organizadores profissionais e experts em limpeza.
Diferente do programa descrito por Sibilia, os participantes de “Hoarders: Buried
Alive” não são receptivos à ajuda e fazem-se extremamente resistentes ao descarte de seus
objetos. Além disso, no que se refere à acumulação em si, os casos variam desde casas
totalmente abarrotadas a casas em que a acumulação não é tão radical. Da mesma forma, varia
muito o grau de limpeza e organização atingido no final do processo acompanhado pelo
programa, alguns atingem a casa toda e, em outros, apenas alguma área bem restringida. Essas
pessoas e seus lares são expostos como contra-modelos à sociedade, assim como, o programa
24Cada especialista, ou “reformadores”como são chamados, é responsável por um segmento da vida do sujeito a
ser transformado: aparência, cultura, moda, gastronomia e vinhos, decoração de interiores.
25Os classificados acumuladores recebem um prazo legal para limparem suas casas e modificarem seu
comportamento para não serem despejados, perderem a custódia dos filhos, animais de estimação ou até mesmo
serem enviados para algum tratamento compulsório.
39
em si se enquadra como um reality show de reabilitação.
Por se tratar de um reality show de reabilitação, pode-se observar que o processo de
aprendizado dá-se através de sua espetacularização. O sucesso de “Hoarders: Buried Alive”
decorre de um “acordo” de escrutínio pelo programa e pelo espectador frente ao acumulador,
ou seja, o olhar da reabilitação é associado ao do espectador, alocado na confortável posição
de “normal”. Trata-se de um olhar não apenas normal, mas “normalizador”, de intervenção
que justifica o rompimento da fronteira entre público e privado e o acesso à intimidade do
outro. Esse olhar parece indicar que o programa é produzido a partir da perspectiva da nova
classe média americana, a qual tem outro padrão de consumo e de moradia. Assim, é sob o
olhar de alguém que não vive como os "retratados" no programa que ele encontra eficiência e
empatia em seu roteiro que patologiza aquele outro que vive de forma distinta do espectador.
A espetacularização da intimidade cotidiana tornou-se habitual: o foco foi desviado
das personalidades “famosas” e voltaram-se às pessoas comuns. Junto a esse processo,
alargam-se os limites do que pode ser dito e exibido, exacerbando a esfera da intimidade,
diluindo as fronteiras que separavam os espaços públicos e privados. Segundo autores da
Escola Frankfurt, a visualização das mídias de massa tende à exteriorização 26: “o planeta não
se converteu em uma aldeia, mas em uma gigantesca alcova global, com cada um de nós
assistindo pela televisão, confortavelmente instalados em nossos quartos próprios, a um show
de intimidades alheias” (SIBILIA, 2008: p.73)..
Se ambiente privado constituía um quesito básico para o desenvolvimento do eu e
também era cenário onde se transcorria a intimidade, agora o espaço íntimo da casa, o famoso
home, tornou-se um “palco” para o escrutínio das autoridades sanitárias e mesmo para os
telespectadores, os quais são alocados na posição do olhar sadio e limpo. A preocupação com
a higiene pública permite dessacralizar o lar e torná-lo visível pelos olhos de especialistas
com os quais o programa imagina se encontrarem os olhares dos espectadores. Assim, a
intimidade se evadiu do espaço privado e passou a tomar a esfera considerada pública ou,
mais provavelmente, essa divisão público-privado tem se embaralhado em um contexto social
e histórico em que a nova classe média americana passa a viver de novo nas cidades, nos
bairros gentrificados, e transforma cada vez mais o que antes foi o lar em um espaço de
socialização mais afeito à intensa sociabilidade das novas gerações norte-americanas.
26 “O consumo de TV se impõe como atividade preponderante para a maioria da população mundial” (SIBILIA,
2008: p.35).
40
2.4. Século XXI: reconfiguração da sociedade de consumo
As casas nas quais as pessoas vivem e os objetos que a elas pertencem revelam muito
sobre suas identidades sociais, histórias de família, preferências estéticas, padrões
comportamentais, laços estabelecidos e suas situações econômicas. Muitas pesquisas abordam
os padrões de consumo das pessoas27, mas pouco se explora do que acontece com estes
objetos uma vez que adentra o espaço particular, a casa – como os espaços domésticos são
utilizados, onde situam seus pertences e quantos objetos as pessoas acumulam atrás de portas
fechadas no passar dos anos.
As últimas décadas estudos sobre como as pessoas gastam seu dinheiro e tempo no
mundo que objetiva a sociedade do work-and-spend e shop-til-you-drop28 expõe o
consumismo extremo presente nos Estados Unidos, incitando a curiosidade em torno da
quantidade de coisas que acabam dentro dos lares americanos; ainda mais adiante, pensar o
que as pessoas fazem com seus pertences.
A história de sociedades ocidentais pós-renascentistas (Europa e Estados Unidos),
indica um forte enraizamento em torno dos lares e pertences como centrais nas identidades
pessoais. A história em torno da habitação e tendências de consumo retrata mudanças nos
últimos dois séculos das casas como depósitos de memórias e objetos valiosos. Períodos do
ciclo de exibição doméstica competitivo apontam divergências no que diz respeito a essa
ideia, entretanto, nada no passado se equipara a intensidade de consumo e significância
material do início dos anos 2000, nos Estados Unidos. Sociedades orientadas pelo consumo
tendem a colecionar uma vasta gama de objetos (desde latas de cerveja, selos postais a obras
de arte).
“Life at Home in the Twenty-First Century” foi uma obra essencial para pensar o
espaço doméstico nessa pesquisa. O livro foi um conjunto de esforços de quatro autores 29, que
advêm de uma colaboração interdisciplinar de pesquisadores do CELF (Center on Everyday
Lives of Families), da Universidade da Califórnia. O livro investiga à multidimensionalidade
do mundo material de famílias americanas, guiada por questões antropológicas específicas.
Entre elas, examinam como objetos concentrados em locais específicos da casa têm funções
organizacionais ou mnemônicas; quais artifícios domésticos famílias usam com maior
27 Por exemplo, “Consumerism in World History”, de Peter Stearns; e “Luxury Fever”, de Robert Frank.
28 Trabalhar e gastar e consuma até não puder mais.
29 Anthony P. Graesh, Elinor Ochs, Enzo Ragazzini, Jeanne E. Arnold.
41
frequência para construir ou expressar identidades pessoais ou familiares e como são
expostos? Como opções de reforma e de investimento familiar em partes específicas da casa
se amarram à ideias culturais?
O estudo promove uma etnoarqueologia da cultura material moderna; essa
etnoarqueologia constrói uma ênfase comportamental sobre a arqueologia, afim de um melhor
entendimento das ligações entre comportamento e cultura material 30, sendo que, milhares de
objetos compõe a casa americana moderna. Assim, o foco na cultura material pode gerar
importantes insights em torno de preferências de consumo, gosto, intensidade do
consumismo, hábitos de limpeza, organização e tolerância frente à desordem 31.
Estadunidenses se acostumaram a uma alta privacidade de suas vidas particulares, dos
seus entornos familiares. Revistas de decoração e arquitetura retratam casas ostentosas,
decoradas profissionalmente, de celebridades e pessoas ricas, entretanto, os fotógrafos e
proprietários dessas casas escolhem cuidadosamente o que vão mostrar. Osespaços são
encenados e arrumados, ou seja, não estão na sua disposição cotidiana. Em paralelo, há
pesquisas em torno de aterros e dos lixos proveniente das casas 32 - entretanto, os objetos tem
uma complexa história “de vida”, que incluem quando e aonde foram feitos, a sua aquisição,
aonde foram postos dentro da casa, seu uso e sua eventual remoção, que pode ser o
deslocamento para a garagem, sua doação, ou seu descarte para o lixo. Certos objetos têm
uma significância distinta que ativam certas formas de pensar, agir, sentir e de organização
como uma unidade social, e de tal forma, é interessante pensar aonde as pessoas colocam seus
objetos.
30 Os dados advêm de uma observação conduzida em 32 casas na Califórnia. O trabalho de campo teve uma
duração de quatro anos: as famílias abrirarm suas casas por uma semana para filmagens e coleta de fotografias
das casas e dos pertences. Um aspecto a ser frisado é o fato das fotografias terem sido tiradas não por fotógrados
profissionais, mas sim por cientistas sociais. As famílias estudadas se auto-situam na classe média, todos são
proprietários de suas casas, ambos os pais produzem renda, e tem de dois a três filhos (entre 1 e 17 anos).
31 De uma forma geral, a pesquisa catalogou os objetos visíveis em todos os cômodos das 32 casas,
documentando seus usos, contando os objetos e considerando a diversidade de pertences, aonde estes objetos
estão expostos, o que acontece quando as casas acumulam objetos demais, quais cômodos são utilizados e
quanto tempo se passa dentro do lar. Para uma maior riqueza do material, coletaram também entrevistas dos
moradores, expressando quais os pensamentos sobre o que as suas casas significam para eles, e como é
estressante lidar com uma casa desorganizada. A partir de plantas das casas, a pesquisa detectou a intensidade
das atividades em cada cômodo, e como estas plantas revelam como as configurações dos espaços domésticos
organizam o cotidiano dos comportamentos e interações das pessoas.
32 Um dos projetos mais conhecidos foi iniciado em 1972, como um treinamento dos alunos de arqueologia do
professor William L. Rathje, da Universidade do Arizona. Denominado The Garbage Project, arqueólogos de
Tuscon tinham como objetivo apreender a relação dos americanos com os objetos descartados como lixo.
Buscavam conceber o que poderia ser entendido sobre os hábitos de consumo através dos objetos depositados na
lixeira. Os estudantes coletavam lixo de diferentes áreas de Tucson e faziam uma correação com dados
censitários.
42
Os lares e pertences organizam e definem e, em alguns casos, engolfam as pessoas. O
hiperconsumismo dos Estados Unidos está em destaque – esse intenso processo de consumo
atinge diversos países, assim, aparece como questão global, mas tem maior expressão na
sociedade americana. Assim, esse é um fenômeno americano difuso, e não regional.
Conjuntos distintos de objetos, que materializam memórias de família, conquistas e aflições,
ocupam um espaço significativo nos lares americanos.
Assim como observado anteriormente, o intenso processo de consumismo que
prevaleceu durante o final do século XX resultou, simultaneamente, em um grande acúmulo
de objetos, que invade os lares da classe média americana e transborda para as garagens e
jardins – retratando uma saturação material. Em meio à desordem expressiva, famílias
dispõem objetos que transmitem seus interesses, suas histórias: bonecas e brinquedos, CDs e
DVDs, fotos de famílias, souvenirs de viagens, troféus, bandeiras, e assim por diante. Uma
vez que a pesquisa tratou de casas com renda dual (da classe média),com crianças, verificouse uma onipresença da cultura popular infantil, onde brinquedos e artigos infantis foram
encontrados em todos cantos das casas. Outro aspecto interessante foi a transformação da
natureza da típica garagem da classe média, como espaço de armazenamento; e também, os
painéis das geladeiras como um lugar emblemático que contém informações sobre os objetos
do resto da casa.
Famílias de classe-média consomem uma quantidade significativa de comidas
enlatadas, congeladas e instantâneas. Com isso, há uma propensão a estocar estes artigos de
tal modo que as casas passam a ter uma segunda (ou até terceira) geladeira e as dispensas e
garagens se encontram estocadas ao seus limites. Quanto aos quintais, o ideal dos anos 1950,
marcava os jardins dos fundos como locais de recreação ao ar livre. Segundo os pesquisadores
do CELF, adultos não encontram tempo para recreação ao ar livre e a maioria das crianças não
passam tempo algum na parte exterior da casa, mas mesmo assim são adquiridos artigos como
piscinas, balanços, trampolins, banheiras de hidromassagens, churrasqueiras. O lazer se voltou
para dentro da casa. Outro aspecto importante é a bagunça nos escritórios domésticos e
escrivaninhas que, segundo a pesquisa, são indutores de estresse e invadem o tempo de lazer
dentro da casa, uma vez que funcionam como um memorando de seus comprometimentos do
ambiente de trabalho.
O lar americano é como uma pintura tridimensional da expressão de sua própria
sociedade. Lares de diferentes culturas em torno do mundo contém um acúmulo de vida de
43
objetos e pertences que detém uma significância pessoal, entretanto, os estadunidenses
levaram esse aspecto de personalização dos espaços domésticos a um nível totalmente
diferente. Objetos herdados ou adquiridos de viagens, e coisas que representam conquistas e
realizações são expostos, como expressão identitária de quem são aquelas pessoas e do que
elas gostam. Paredes e prateleiras são repletas de fotos, relíquias familiares, prêmios,
mementos, expressões de afiliação com várias nações, religiões, ícones da cultura pop e heróis
do esporte são onipresentes.
A disposição do espaço doméstico influi na organização do cotidiano comportamental
e interacional dos moradores. O grau que o ambiente doméstico – a configuração interna das
casas, a forma que é mobiliada e os objetos em torno delas - afeta as pessoas é frequentemente
subestimado. As residências moldam o comportamento das pessoas. Indivíduos vivem em
lares com formas e conteúdos distintos e internalizam um espectro de regras sociais e
espaciais em torno de atividades apropriadas para aquele local. As pessoas se tornam
socializadas através de normas culturais, mas também por meio de interações com seus
móveis e ambientes construídos. Apreendem o que comprar e os tipos de comportamentos
adequados para os diferentes cômodos. Comportamentos refletem diferentes identidades e
destacam diferentes montantes materiais.
2.4.1. Saturação material
Segundo Arnold, Graesch, Ochs e Ragazzini (2012), se o início do século XXI, nos
Estados Unidos, tivesse que ser caracterizado por algum aspecto, seria a vontade dos
americanos de trabalhar e consumir mais ainda , comprando um produto novo após o outro,
produzindo uma dívida em prol do consumismo. A capacidade de adquirir um mundo de
objetos se expandiu das camadas superiores e da classe média-alta para, basicamente, todas as
classes socioeconômicas. Vale sublinhar algo não aventado pelos pesquisadores, mas
compreensível nessa pesquisa, que essa “popularização” e exacerbação do consumismo têm o
efeito social de o desqualificar como modelar para as classes mais altas, as quais têm
procurado se distinguir por meio do consumo “consciente” ecologicamente e seletivo.
A manutenção de um elevado padrão de consumo esgota os salários da maior parte das
pessoas e tem custos subjacentes significativos. Após alguns anos, há mais objetos do que a
casa pode comportar: armários e garagens transbordam e a bagunça invade os principais
44
cômodos do lar. Pesquisas, como a do próprio “Life at Home in the Twenty-First Century”,
apontam que a saturação material e a desorganização associada a uma ansiedade financeira
(fruto do endividamento nas empresas de cartão de crédito) são elementos produtores de
estresse.
Em uma matéria para o The New York Times, publicada em agosto de 2012, Gretchen
Rubin descreve o início de um novo ano escolar de sua filha, no qual um monte de novas
coisas entrará no apartamento, enquanto ela nem lidou ou sabe o que fazer com as coisas do
ano anterior. Relata que recentemente tirou uma grande caixa de madeira da prateleira, que
continha os trabalhos de arte de sua filha de sete anos. Por um lado, não conseguia conceber a
possibilidade de jogar fora estas preciosas relíquias que marcavam a infância de sua filha,
entretanto, mora em Manhattan, e precisava do espaço para as novas criações. Paralisada com
a indecisão, empurrou a caixa de volta na prateleira.
A partir desse breve relato, pode-se pensar três linhas. Primeiro, essa saturação
material é concebida como um dilema cultural que alimenta uma indústria multibilionária de
armazenamento, debaixo da questão de que os americanos amam seus objetos, mas sonham
em estar livres deles. Segundo a Self Storage Association, um em cada dez lares americanos
aluga uma unidade de armazenamento. Essa indústria movimenta mais de 22 bilhões de
dólares anualmente, sendo o segmento comercial imobiliário que mais cresceu nos últimos 35
anos; sendo considerado por Wall Street, como a resistência à crise, baseado no seu
desempenho desde a recessão de setembro de 2008. De tal modo, pode-se pensar que o
hiperconsumismo mobiliza também esta outra mega-indústria33. A partir dos dados de junho
de 2012, do US Census Bureau, os Estados Unidos contém 49.940 instalações de
armazenamento (levando em consideração que mundialmente, há cerca de 58.500). As
instalações estão distribuídas em 52% estão presentes nos subúrbios, 32% nas áreas urbanas e
16% nas áreas rurais (dados de 2011).34
Um segundo aspecto a ser problematizado, seguindo essa mesma linha, é o fato de que
além da indústria de armazenamento, os armários, os sótãos, os porões e as garagens das casas
também se encontram abarrotados de objetos. O Department of Energy estima que 25% das
pessoas que têm garagens e que não estacionam seus carros dentro delas, 32% utilizaram a
garagem apenas uma vez. Os dados são estatísticas brutas, que não tem um escopo
33 Há, aproximadamente, 210 milhões de metros quadrados de instalações de armazenamento nos Estados
Unidos.
34 Estatísticas retiradas do US Census Bureau http://www.census.gov/#
45
aprofundado, mas se pode fazer uma leitura simples e pensar a saturação material como um
aspecto presente na sociedade estadunidense – desde o consumismo em si, a noção de
atribuição de significâncias (como o do caso relatado acima) a alguns objetos.
Os carros desocupam as garagens para dar espaço a móveis rejeitados e montantes de
caixas repletas de objetos esquecidos pelos moradores. Análises arqueológicas, promovidas
por um vasto panorama de contextos culturais, indicam que a contagem de objetos tem um
aspecto quantitativo, mas contagens combinadas com considerações em torno da variedade de
objetos trazem uma maior riqueza qualitativa. Uma alta diversidade nas garagens indica que
os objetos advêm de vários ambientes e de diversos moradores.
Americanos têm dificuldade em se livrar de seus pertences, até os que encaixotam e
movem para os espaços mais liminares, como garagens e porões. Por incapacidade de romper
ligações sentimentais com certos objetos, ou por falta de tempo para organizá-los e decidir o
que fazer com eles, ou acreditarem que os objetos tem valor (monetário) e podem ser
vendidos no eBay, por exemplo, uma grande quantidade de pessoas não consegue lidar com a
bagunça que armazenam (ARNOLD, GRAESH, OCHS, RAGAZZINI; 2012).
Com isso exposto, pode-se pensar que esse é um processo retroalimentado, entre o
hiperconsumismo e a mobilização bilionária da indústria de armazenamento? E consenso
entre o cotidiano que a saturação material é um problema entre os americanos, mas por que
esse tipo de consumo não é considerado patológico como no caso dos hoarders
(acumuladores)?
Por fim, uma terceira questão é referente à dimensão sentimental, diretamente
associada à questão dos hoarders. Como Gretchen Rubin, que vê os trabalhos de arte de sua
filha como representação de sua infância, as pessoas cunham memórias e experiências nos
objetos. Não são coisas inanimadas; diferente de comodidades “normais”, que tem seu valor
estabelecido como valor de troca, estas comodidades diferem, pois tem seu valor privado,
íntimo, como talismãs particulares da memória e desejo. Por terem essa significância muito
particularizada, estes objetos não tem valor para as pessoas que não compartilham desse
imaginário privado; por isso muitas vezes o olhar externo concebe tais pertences como lixo,
elementos passíveis de descarte, e não como bens.
Segundo a pesquisa do CELF, o cenário de saturação é concebido como exaustivo para
contemplar, organizar e limpar. O impacto visual da desordem do acúmulo de objetos causa
um prejuízo na própria satisfação do lar. Saturação material e seus agravantes mobilizaram
46
uma grande indústria de organização domiciliar: focadas nos armários e garagens das casas.
Um fato impressionante é que os Estados Unidos contém 3,1% da população infantil
mundial, e é responsável pelo consumo de mais 40% dos brinquedos vendidos em todo
mundo. Com essa quantia significativa de brinquedos, não é surpresa que os pertences das
crianças estejam espalhados pela maioria, se não todos, os cômodos domésticos. Além disso,
não é incomum encontrar os trabalhos de arte das crianças (pinturas, recortes, desenhos) e
imagens temáticas da Disney nos ambientes públicos das casas, dando um ar muito mais
centrado na criança, que era raro nas décadas centrais do século XX, onde havia uma forte
preocupação com a apresentação e formalidade das salas de estar, na copa e na cozinha.
Os dados expostos no “Life ate Home in the Twenty-First Century” mostram que a
cada criança nascida, acresce-se 30% no inventário de objetos da casa, considerando só os
anos da pré-escola. A classe média tende a adquirir montanhas de brinquedos, roupas e outros
objetos voltados ao público infantil – muito do que acaba acumulando em quartos
abarrotados. Em um relato anônimo presente no livro, esta situação fica expressamente bem
ilustrada: “o quarto das crianças é bem ocupado. Instalamos beliches porque temos problemas
com espaço e o armário é totalmente inútil, pois não conseguimos chegar nele” (ARNOLD,
GRAESH, OCHS, RAGAZZINI; 2012, p.39).
A cozinha é outro lugar visualmente ocupado, os painéis das geladeiras contém imãs,
fotos da família e dos animais de estimação, números de telefones, lembretes, calendários,
projetos de arte das crianças, contas e cardápios de diferentes restaurantes. E comum que as
geladeiras sejam recobertas de objetos, produzindo um aspecto denso e repleto de camadas de
coisas efêmeras. Imãs decorativos são os objetos mais comuns nas geladeiras, muitos deles
servem como souvenirs de passeios e viagens.
As cozinhas de casas com crianças em idade escolar funcionam como centros de
comando, o que não ocorre nas casas de pessoas sem filhos e de idosos. As cozinhas aparecem
como um ambiente crucial para a organização logística de atividades diárias para as famílias.
Em geral, no país, as cozinhas construídas antes da década de 1970 refletem a perspectiva dos
anos 50 de família, pensando a divisão do trabalho doméstico, do homem como o provedor e
a mulher como dona de casa. As cozinhas eram concebidas como um espaço doméstico
voltado para o uso da mulher, compartimentado e seu acesso se dava a portas fechadas – tal
arquitetura exclui tanto a cozinha, quanto as próprias mulheres, do fluxo da própria casa.
As superfícies encontradas nas cozinhas – como mesas e balcões – acumulam objetos
47
e equipamentos essenciais das operações cotidianas familiares. A maioria das cozinhas
apresenta uma disposição similar de objetos, ou no balcão ou em alguma mesinha de canto,
onde se encontra calendário, telefone, e uma superfície vertical para postar lembretes,
números de telefone, contas a serem pagas e outras papeladas importantes. Esses objetos são
tão consistentes nas cozinhas, que mostram a centralidade desse ambiente no cotidiano
americano. Uma pesquisa feita em 500 casas em oito diferentes cidades mostra que famílias
ficam mais tempo na cozinha do que em qualquer outro ambiente.
Os pesquisadores do “Life ate Home in the Twenty-First Century”, encontraram uma
correlação entre a tendência de um alto número de objetos nos painéis das geladeiras, com o
alto número de objetos por metro quadrado das casas em si. Dessa forma, a tolerância das
pessoas frente à uma geladeira bagunçada pode ser associada à uma postura mais “relaxada”
frente a saturação material e/ou desordem nos ambientes comuns das casas. De tal forma,
propõem a ideia de que a geladeira pode ilustrar tendências de consumismo e organização
doméstica dos moradores da casa.
A comida desempenha múltiplos e conflitantes papéis na vida americana. Mais do que
em outras culturas, os americanos tendem a organizar suas refeições em meio às caóticas
atividades diárias. Entretanto, abraçam em excesso suas comidas preferidas, milhões de
americanos se enquadram como obesos. De acordo com o Departamento de Agricultura dos
Estados Unidos (USDA), a publicidade do comércio de alimentos é a segunda maior do país,
atrás apenas da indústria automobilística. Empresas introduzem 10.000 novas comidas
processados a cada ano, nos EUA. Apesar de terem consciência, muitos americanos mantêm
ideias não saudáveis frente ao quanto comem e o que comem. Famílias que cozinham com
alimentos frescos regularmente são uma minoria.
Em paralelo a essa tendência, americanos exibem uma forte propensão a estocar
comida. Os megapacotes e mega-embalagens de bebidas, sopas, enlatados, carnes, sorvetes,
outros produtos (como papel toalha, guardanapos, ração dos animais de estimação),
adquiridos em mercados de atacado, abarrotam segundas geladeiras, congeladores extras e
garagens. Com um estendido prazo de validade e seus preços que incentivam a compra em
grandes quantidades, esses bens fornecem flexibilidade e conveniência para as pessoas.
Frutas, legumes e verduras frescas não estocam bem e apodrecem se não consumidos dentro
de um prazo menor de tempo (comparando uma semana de algum bem fresco, com um ou
dois anos de algum enlatado, por exemplo), uma vez que não há tempo para a preparação de
48
uma refeição fresca na correria diária das famílias.
Durante a década de 1950, os empreendimentos de fast-food, liderados pelo
McDonald's, introduziram porções de tamanhos padronizados, ingredientes invariáveis e
processos universais de preparo, diminuindo o custo através da produção em massa de comida
de qualidade moderada. Este conceito de alimentação adentrou as casas entre as décadas de
1960 e 1970, e ali se mantiveram. Esse processo, de fortalecimento da indústria de comidas
congeladas e processadas, tirou a “responsabilidade/dedicação” do preparo de uma refeição, e
a tornou mais uma tarefa do multi-tasking vivido hoje. Assim, hoje, compradores de comida
cresceram com está conveniência das comidas congeladas, compartilhando a opinião de que
poupam tempo e esforço.
Outro fenômeno desencadeado é que cada vez menos as pessoas sentam-se juntas à
mesa para a refeição: a flexibilidade oferecida por estes alimentos industrializados fragmentou
os horários das refeições. Uma pesquisa realizada pelo USA Today Survey, relata que metade
das famílias americanas declara sentar-se a mesa juntos durante o jantar todo dia; outros 34%
dizem que sentam a maioria das vezes, e 16% relatam que nunca acontece. Entretanto, a
pesquisa realizada pelo CELF através de filmagens, retrata uma realidade bem diferente entre
as famílias de Los Angeles daquela declarada do país como um todo: apenas 17% das famílias
efetivamente jantam juntos, 60% a maioria das vezes e 23% nunca. Assim, pode-se questionar
se Los Angeles é um caso particular em si, ou se realmente não confere o que as próprias
pessoas declaram, do que efetivamente fazem, nos Estados Unidos como um todo.
Algo que se percebe na série Hoarders é como a mesa da sala de jantar e/ou da
cozinha costuma ser o primeiro ou o principal móvel encoberto pela acumulação. O processo
de limpeza também prioriza essa parte da casa e o apresenta como exemplo de "avanço" na
superação da supostamente acumulação compulsiva. A abertura da mesa é apresentada como
um convite à reunião familiar, a uma retomada da sociabilidade, o que faz pensar se também
não é uma forma de aproximação dos espectadores atuais que vivem em casas e apartamentos
concebidos para socialização justamente nesses cômodos e envolvendo jantares e outras
refeições.
Americanos gastam consideráveis quantias para criar refúgios de lazer. Entretanto, o
lazer em casa é um fenômeno recente nos Estados Unidos, seu desenvolvimento se deu pela
crescente distinção entre o tempo gasto no trabalho e o tempo gasto em casa, longe do
emprego – durante a primeira metade do século XX. O carro e a explosão das mídias
49
eletrônicas contribuíram para o declínio do lazer coletivo e interativo e um aumento nas
formas mais passivas, privadas, individuais e isoladas de lazer. Dados da década de 1960 a
1990 relatam que houve um aumento na audiência da televisão e um declínio na interação
com outras pessoas fora do ambiente domiciliar. Cada vez mais, os ambientes externos das
casas são menos utilizados.
O quintal se tornou um espaço de socialização e de expressão pessoal. Até o meio da
década de 1940, o quintal dos fundos era refúgio, uma sala de estar ao ar livre e um local para
ser exibido para amigos e familiares. Casas nos subúrbios emergentes tinham a clássica
cerquinha branca e quintal dos fundos como área de entretenimento, fazia parte do American
dream. Nos anos 50, o papel do quintal como essencial para o locus de divertimento,
exercício, recreação, já estava consolidado no imaginário americano.
Apesar desse movimento, o ideal de serenidade e descanso nos ambientes externos
depois do trabalho ou nos finais de semana não é atingido. O CELF defende que as pessoas
tendem a admirar seus quintais de dentro de suas casas, e querem acreditar que utilizam estes
espaços seguindo o ideal cultural americano que data meio século. Lazer ao ar livre se
mantém como um forte ideal do estilo de vida americano, entretanto, é uma comodidade em
decadência na prática, uma vez que as pessoas se voltam mais para o trabalho, escola,
atividades extracurriculares e o entretenimento indoor.
Segundo o CELF, por todo o Estados Unidos, nos últimos anos, cresce a disparidade
entre os usos de espaços internos e externos das casas, rumo a uma tendência mais sedentária
de indoor living – por exemplo, a pesquisa no “Life at Home in the Twenty-First Century”,
relata que 90% das crianças preferem atividades de lazer dentro de casa, como televisão,
videogames, brinquedos e quebra-cabeças, e a maioria destas atividades são sedentárias e
solitárias. Em longo prazo, a piora da saúde na população jovem e adulta do país reflete esse
padrão (associado com as variáveis alimentares e de exercício físico).
Vale refletir se essas pesquisas também não participam e corroboram um novo padrão
esperado de sociabilidade e lazer como o encontrado na classe média jovem que voltou a
viver nas cidades e despende boa parte do tempo em atividades físicas e esportivas, além de
terem uma sociabilidade maior nas áreas de comércio de seus bairros próximos de suas casas,
condomínios ou apartamentos. Trata-se de um estilo de vida mais visível em cidades como
Nova Iorque, Washington, São Francisco e, em menor escala, em Los Angeles. Essa última
cidade parece ser o último refúgio do agora envelhecido American way of life marcado pela
50
vida nos subúrbios, os grandes deslocamentos de carro e a forte separação entre lar, trabalho e
sociabilidade.
Nunca antes uma sociedade acumulou tantos objetos pessoais como nos Estados
Unidos que gastam cerca dezenas de milhares de dólares todo ano em novas aquisições. Uma
parte quantitativa deste dispêndio financeiro é voltada para a reposição de pertences
“ultrapassados”, na compra de eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos modernos, fora a
compra dos últimos lançamentos de automóveis. A maioria desses objetos substituem
anteriores em perfeito estado. Isso resulta em um processo de saturação nos “bastidores” de
armazenamento - garagens, armários, sótãos e porões – que gradativamente se estendem para
o cerne do “palco” dos espaços de convivência e socialização das casas.
A partir dessa exposição, em torno do consumo e da saturação material acumulada, por
que então os hoarders são patologizados? Em um primeiro momento, pode-se pensar que os
hoarders não completam o ciclo de consumo e descarte e, por isso, são problematizados, mas
a questão pode ir mais além. A saturação está presente no cotidiano da sociedade, ou seja,
essas pessoas também não se desfazem de tudo aquilo que não utilizam, entretanto, os objetos
estão escondidos dentro de armários, dentro das garagens e outros locais para armazenamento
(como os próprios storage containers), e não ficam expostos, como ocorre nos lares dos
hoarders.
Há a aspiração de espaços ordenados surgidos após décadas de desenvolvimento dos
subúrbios, enquanto os jardins das frentes tendem a impecáveis, o interior e as garagens cada
vez mais revelam “falhas”, devido aos bens de consumo acumulados. Assim como, os
acumuladores enfrentam a saturação material, a desorganização, que gera uma
“incompatibilidade” entre os objetos e o espaço disponível, pautando um desequilíbrio
inclusive para as casas “normais” (ARNOLD, LANG; 2006).
Os objetos acumulados pelos hoarders não são vistos como bens – como das casas
“normais”, são concebidos como tranqueiras, lixo. Esses problemas dos acumuladores são
concebidos como irracionais e antissociais: “o hoarder não é bárbaro, egoísta ou não
civilizado: ele é doente” (LEPSELTER; 2011, p.942). Julgamento apresentado, claro, de
forma crítica e que problematiza tanto a visão do espectador médio do programa quanto de
seus produtores. A patologização do hoarder é um processo que sanitariza e torna padrão o
atual morador das áreas gentrificadas das principais cidades norte-americanas, as que ditam as
tendências do que deve ou pode ser considerada a forma correta de consumir, morar e
51
socializar.
As famílias americanas já construíam dívidas ao longo dos anos 90, a partir da
segunda metade da década, o mercado imobiliário aqueceu e, juntamente, cresceu o
endividamento (crédito ao consumidor e hipotecas). Com a crise acionária do início dos anos
2000, o mercado imobiliário cresceu, as famílias já endividadas elevaram a contratação de
empréstimos adquirindo novas linhas crediárias. E a partir de 2003, com a intensificação da
valorização imobiliária e o esgotamento dos clientes “tradicionais”, o crédito se abrir para
indivíduos sem histórico de crédito ou com histórico ruim, caracterizando a clientela
subprime (DYNAN; KOHN, 2008). Em outras palavras, o mercado estendia o crédito para
pessoas que não tinham garantias de que conseguiriam pagar suas dívidas no médio e longo
prazo. Isso levou a uma “bolha” econômica que começaria a estourar entre 2007 e 2008, a
qual – para além da crise financeira e dos mercados – teve consequências mais assustadoras e
cruéis para aqueles e aquelas que perderam suas casas financiadas.
52
Capítulo III
Crise, segmentação e a emergência de um novo padrão de morar e viver
De forma geral, Estados Unidos passou por duas diferentes tendências de urbanização.
A primeira marcada no final do século XIX até início do XX, que prevaleceu o crescimento
urbano acelerado, o adensamento urbano fruto da Revolução Industrial e a concentração de
mão de obra em cidades despreparadas para atenderem esta crescente população. A segunda
onda acontece no decorrer do século XX com os novos meios de transporte, com as
repercussões da Grande Depressão do final da década de 1930, e a recuperação econômica
geraram o processo de espraiamento das cidades. (HALL, 2002).
O sistema capitalista e o empreendedorismo americano foram testados durante a crise
de 1929. Durante o processo de recuperação, recursos federais foram destinados a vários
programas de subsídio e incentivo econômicos. Com isso, diversos Atos Habitacionais foram
aprovados, juntamente com a criação de sistemas de financiamento, que acabaram por
favorecer a indústria da construção, criando a oportunidade de adquirir a casa própria, para
toda e qualquer família. Hall (2002) propõe que o programa que mais influenciou o processo
de urbanização foi a criação do sistema de autoestradas. Desenvolvido pelo presidente
General Dwight Eisenhower como plano nacional de rotas de evacuação caso estourasse uma
nova guerra mundial35. Mesmo não sendo necessário cumprir seu propósito original, o sistema
de autoestradas possibilitou o esvaziamento das cidades para as periferias, favorecendo o
processo de suburbanização e descentralização:
O crescimento populacional, o aumento da densidade urbana, a falta de saneamento, o
desaparecimento de espaços livres, a qualidade precária de habitação e o adensamento
excessivo, bem como o congestionamento e a poluição, tornavam as cidades ambientes
insalubres e desagradáveis36 (MACEDO, 2011, p. 280).
As condições precárias nos centros das cidades, poluídos pela industrialização e
35 Ato Federal de Financiamento de Autoestradas de 1956 criou o maior projeto de engenharia da história do
país, mais de 40 mil quilômetros de rota de evacuação, reformando os padrões de desenvolvimento em todo o
Estados Unidos.
36 Em 1850, ocorreu a Reforma Sanitária, cujo alvo era instaurar saneamento básico nas cidades em grande
escala, incluindo sistemas de esgoto. Neste mesmo momento, percebeu-se o valor de espaços livres e áreas
verdes nas cidades (como exemplo, o Central Park em Nova Iorque – projeto efetivado em 1873, que até hoje
é exemplo da importância de vegetação em áreas urbanas.
53
congestionados pelo acelerado processo de urbanização, favoreceram a periferização, uma
manifestação do desejo das pessoas de terem uma vida mais salubre. Os subúrbios se
proliferaram ao redor de quase todas as cidades americanas, e um grande motivo foi graças a
evolução dos meios de transporte e de infraestrutura adequada (MACEDO, 2011).
O modelo de moradia consolidado pós-II Guerra Mundial era a das grandes casas de
subúrbio, marcadas por uma divisão maior entre local de moradia, sociabilidade e trabalho.
Em outras palavras, naquele modelo as pessoas moravam em espaços maiores, mas também
mais cheios de móveis, eletrodomésticos e pertences pessoais; tinham sua sociabilidade fora
da casa e até do bairro ou cidade de moradia e trabalhavam na cidade. Uma estrutura urbana
que exige o uso do automóvel para ir da casa à qualquer lugar.
O American way of life foi difundido e alcançou seu auge entre a metade da década de
1940 até a metade da de 1960. Propiciou-se um aumento do consumo, principalmente dos
produtos destinados às massas e que caracterizam o estilo de vida estadunidense: os
eletrodomésticos em geral, com destaque para a televisão; as casas nos subúrbios, com seus
quintais idílicos; e o automóvel, marca do século XX. Entre os séculos XX e XXI,
consolidou-se um modelo de consumo característico no país, assim como, práticas
econômicas que alimentavam esse padrão.
Já no século XXI, na última década, verificou-se uma desaceleração econômica nos
Estados Unidos. A crise do subprime foi desencadeada em 2006, com a quebra de instituições
de crédito que concediam empréstimos hipotecários de alto risco (subprime mortgage),
levando a inadimplência de vários bancos, refletindo sobre as bolsas de valores de todo o
mundo. As perdas de crédito das holdings bancárias de maior dimensão foram ainda
influenciadas por menores taxas de crescimento do produto interno bruto, maiores pesos de
empréstimos ao estrangeiro e maiores proporções de empréstimos reestruturados. A crise veio
à tona publicamente a partir de fevereiro de 2007, culminando na crise econômica de 2008
(FRANÇA, 2010).
Os subprimes são créditos bancários de alto risco que englobam desde empréstimos
hipotecários até cartões de créditos, esses concedidos a clientes sem comprovação de renda ou
análise de histórico crédito. A crise de 2008 revelou falhas do sistema vigente, a partir da falta
de regulação das autoridades financeiras, das agências de créditos que não avaliaram os riscos
inerentes, na sobreconfiança nos agentes econômicos e nos sistemas de empréstimos dos
54
bancos. Nesse processo, a crise imobiliária provocada pelo furo da bolha imobiliária nos
Estados Unidos, no qual em volta das hipotecas, “se erguera uma monumental engrenagem
financeira, com títulos sobre títulos que funcionavam numa dinâmica especulativa
desvinculada do valor real dos bens a que se referiam na origem” (DULCI, 2009, p.1).
“Lares americanos se tornaram mais expostos a choques nos preços ativos através de
uma maior alavancagem no balanço patrimonial; mudanças nos preços das ações ou no
mercado imobiliário têm grandes repercussões sobre o patrimônio líquido e sobre o consumo”
(DYNAN, KOHN, 2007, pp.4)37. Quase 29% dos proprietários de imóveis hipotecados em
todo país tem mais dívidas sobre suas casas do que as propriedades realmente valem –
definindo o processo que os Estados Unidos trataram como underwater38. São
aproximadamente 14.7 milhões de mutuários que coletivamente devem cerca de 700 bilhões
de dólares.
O economista Robert C. Pozen (2013), refletindo sobre o futuro hipotecário dos
Estados Unidos, aponta que cerca de seis milhões de proprietários já perderam suas casas por
foreclosure39, outros 3,5 milhões estão no mesmo processo e milhões estão à beira de
seguirem o mesmo caminho. O refinanciamento é praticamente impossível devido ao
profundo endividamento. Mesmo aqueles que estão fazendo os pagamentos são um peso para
a economia dos Estados Unidos, pois eles não podem gastar muito de sua renda em bens de
consumo ou mudarem-se para outro lugar em busca de novos empregos. Com milhões de
proprietários querendo vender e muito menos pessoas querendo comprar, a contínua
depreciação imobiliária aparece como questão de oferta e demanda. A economia acaba por
impedir a construção de novas casas: o mercado imobiliário fora de crise tem um inventário
que equivale a seis meses de imóveis não vendidos, quando a crise estoura, o inventário fica
em torno de 14 meses. Houve uma queda de 75% na construção de casas e, mesmo assim, a
quantidade de casas disponíveis continua extremamente alta. Jovens adultos estão voltando a
morar com os pais, ou vivendo em casas coletivas ou apartamentos.
Instaurou-se uma mudança significativa tanto na economia quanto na vida pessoal;
mudança marcada pelas falências de empresas, dificuldades financeiras das pessoas, aumento
dos índices de desemprego, queda no consumo, aumento dos índices de inadimplência e,
37 “U.S. households have become more exposed to shocks to asset prices through the greater leverage in their
balance sheets; a given change in stock prices or home prices will have a larger effect on net wealth and so on
spending”.
38 Underwater: no sentido de submerso em dívidas.
39 Foreclosure é um processo judicial de tomada do imóvel pelo agente financeiro devido a quebra dos termos
do contrato de financiamento.
55
principalmente, pela perda das casas. Verifica-se o declínio do modelo do American Dream:
das grandes casas do subúrbio, sua maior simbologia. Segundo Barry Bosworth (2011),
economista da Brookings Institution, os proprietários underwater compõe a população mais
desesperada no país atualmente – ilustrando o temor do risco da perda das casas.
A acumulação fala sobre e para o século XXI nos Estados Unidos. O seriado
documental “Hoarders: Buried Alive” parece surgir como parte desse contexto instável de
falências e recessão, que opõe aos seguros anos do neoliberalismo e globalização, do fantasma
da perda das casas, trabalhando o discurso em torno do vício (patologia) e a forma pela qual
se lida com o hiperconsumo não-descartável, esse como prática assombrosa frente ao
consumo normativo (LEPSELTER, 2011). O imaginário do consumo de massa aparece muito
permeado pelo discurso do medo da falta. Por exemplo, em um dos episódios, Jill relata que é
muito atrativo juntar coisas que um dia se possa precisar quando não tiver dinheiro para
comprá-los. Jill relatou ter vivido por períodos de pobreza, nos quais ela não tinha opção do
que comer e isso a afetou tanto que ela sente necessidade de ter opções, assim matem a
dispensa cheia de diferentes alternativas. Afirmando que sente dificuldade em resistir ofertas e
compra tudo que está em promoção, em sua casa há miríades de pilhas de comida (desde
embalagens de comidas instantâneas, até refrigeradores abarrotados com comidas congeladas
e, a grande maioria, com os prazos de validade expirados ou já em decomposição). O que se
pode ligar ao trabalhado acima, é que Jill, (branca, 60 anos), é retratada como desempregada e
falida, assim ela faz parte da clientela subprime.
Fica evidente uma crise na sociedade que se amparava nas linhas de crédito e nas
hipotecas, no padrão do consumo desenfreado, que agora se depara com o fantasma do
empobrecimento da população e a perda das casas pelos foreclosures. Assim, a partir das
análises realizadas dos episódios do seriado documental e das referências bibliográficas,
chego a uma primeira hipótese interpretativa: a da emergência de uma nova forma de morar –
associado ao processo de gentrificação e um novo modelo de interação com o mercado - na
valorização do consumo segmentado sobre o consumo em massa.
A gentrificação é caracterizada por um conjunto de processos de transformação do
espaço urbano que objetiva o aburguesamento de áreas das grandes metrópoles, que eram
ocupadas por camadas sociais de menor poder aquisitivo, através de estratégias do mercado
imobiliários, muitas vezes associado a uma política pública de revitalização dos centros
urbanos. Busca deslocar a população original e atrair residentes de mais alta renda, assim,
56
recuperar a atividade econômica no local. Em uma comunidade sendo gentrificada, a renda
média tende a aumentar, enquanto o tamanho das famílias diminui.
A socióloga britânica Ruth Glass cunhou o termo gentrification, em 1963, para
descrever o fluxo da população da classe média (gentry), deslocando trabalhadores de classes
inferiores, residentes de bairros urbanos. Assim, o conceito se refere a um processo de
“recuperação” de habitações deterioradas da classe trabalhadora e a sua consequente
transformação em área de classe média ou alta, ou seja, refere-se ao desenvolvimento de áreas
urbanas. Desenvolvimento esse que comanda um aumento dos prédios habitacionais,
tornando-os inacessíveis a pessoas dos estratos inferiores,
é um processo de caráter
excludente.
A gentrificação não pode ser concebida apenas como um processo de substituição de
habitação de baixo custo por habitação de classe média e alta nas áreas centrais da cidade,
mas como um processo de segregação social, fruto de um processo permanente de
reestruturação urbana (FURTADO, 2003). O conceito de gentrificação se relaciona com um
amplo processo de reorganização urbana, associado, não só ao mercado imobiliário, mas à
uma questão de fundo mais complexa. Verifica-se uma forma de higienismo social, ao tirar os
pobres dos centros e empurrá-los a outras áreas mais afastadas, ocorrendo uma valorização da
área gentrificada, que implica no aumento de custos de bens e serviços que, de forma
retroalimentada, dificulta a permanência dos antigos moradores pois suas rendas são
insuficientes para a sua manutenção no local cuja realidade fora alterada:
A gentrificação ocorre em ondas periódicas: desde esforços de renovação urbana patrocinado
pelo Governo Federal nos anos 50 e 60, até o movimento “de volta a cidade” do final dos anos
70, início da década de 1980. Uma série de cidades dos Estados Unidos, cujas populações e
economias parecem ter chegado ao fundo do poço, e estão tentando se recuperar estão
experimentando uma nova onde de gentrificação atualmente40 (KENNEDY; LEONARD,
2001, pp.11).
A globalização e a força recente do discurso sobre sustentabilidade, características do
início do século XXI, tem levado a uma conscientização das populações urbanas letradas
sobre a necessidade de abandonar os modelos insustentáveis de consumo e moradia do
período pós-guerra. Dentre as ações empreendidas é perceptível o retorno aos centros das
40 “Gentrification occurs in periodic waves: from the federally sponsored urban renewal efforts in the ‘50s and
‘60s, to the so-called “back-to-the-city” movement of the late ‘70s and early 1980s. A number of U.S. cities,
whose populations and economies appear to have bottomed out and are on the rebound, are experiencing another
wave of gentrification today”.
57
cidades, onde o acesso à serviços e ao comércio é proporcionado pela proximidade e
densidade, o que torna o uso do automóvel desnecessário e/ou obsoleto (MACEDO, 2011).
Esse modelo favorece o processo de gentrificação, “restaurando” os bairros deteriorados dos
centros, empurrando a população mais pobre dessas áreas para fora, “enobrecendo” os bairros,
reativando a economia local e aumentando os impostos sobre a propriedade.
As novas gerações têm preferido morar na cidade, nos bairros recém gentrificados
para sua sociabilidade, mas isso os têm levado a morar em espaços menores, os quais
precisam ser mais "limpos" e preparados para a exposição a visitas mais frequentes, já que sua
vida social inclui a circulação de amigos e conhecidos por sua casa e não mais a manutenção
dela como "lar", espaço exclusivo ou predominantemente familiar, como era nos subúrbios.
O seriado documental “Hoarders: Buried Alive” geralmente se volta às casas nos
subúrbios, pertencentes à classe média, a antiga representação do American Dream, portanto
retratam a decadência da casa da era do consumo de massa e da sociedade fordista de
produção.
Valorizam a aspiração de espaços ordenados surgidos após décadas de
desenvolvimento dos subúrbios, enquanto os jardins das frentes tendem a ser impecáveis, o
interior e as garagens cada vez mais revelam “falhas”, devido aos bens de consumo
acumulados. Assim como essas pessoas, os acumuladores enfrentam a saturação material, a
desorganização, que gera uma “incompatibilidade” entre os objetos e o espaço disponível,
pautando um desequilíbrio inclusive para as casas que, nesse momento histórico, passam a ser
o que se classifica como “normais” (ARNOLD, LANG; 2006).
As casas de subúrbio são muito fechadas em si (como já exposto), recebendo menos
pessoas da sociabilidade externa em comparação às casas da nova classe média americana que
vive nos bairros gentrificados das cidades. São essas as casas que servem de modelo para
patologizar os hoarders. Trata-se de um novo padrão de moradia associado a um novo modelo
de consumo, mais segmentado e reflexivo do que o da geração anterior e, sobretudo, de uma
nova forma de sociabilidade vivenciada próxima da moradia, dentro do perímetro urbano, nas
áreas recentemente gentrificadas. No fundo, algo que se passa em alguns centros
metropolitanos que ditam moda ou estabelecem os padrões disseminados mediaticamente
como as formas esperadas de se viver, consumir e socializar.
A partir desse retrato do modelo americano de consumo desenfreado de massa, os
hoarders são concebidos conforme essa mesma lógica de hiperconsumo, mas furam o
processo ao não seguirem o repertório do descarte. O seriado documental trabalha os
58
hipermercados, atacados, lojas
de departamento, garage sales, como locais onde o
acumulador se realiza, meio a imensidão de produtos, promoções e pechinchas.
Os
programas de televisão, nesse caso o seriado documental “Hoarders: Buried Alive”, acabam
por retratar o modelo de consumo de massa como prática negativa, ultrapassada, eco de uma
era a ser superada.
O consumo de massa acaba sendo associado às camadas mais baixas uma vez que o
consumo segmentado exige maior alfabetização, uma situação econômica mais favorável, já
que tem como pressuposto o conhecimento necessário para ter opção de “escolha”. Os
Estados Unidos, nos últimos anos, tem visto uma onda de propagandas valorizando os
mercados de bairro, o estímulo frente ao consumo de produtos frescos produzidos localmente,
dos produtos orgânicos ou com menos conservantes. Dessa forma, incentiva-se um consumo
em menor escala. Em comparação às 50 latas de molho de tomate por causa do preço atrativo
no atacado, propõe-se levar o melhor e apenas suficiente para o consumo da semana, por
exemplo. As novas e sofisticadas grocery stores frequentadas pelas novas classes urbanas
“conscientes” contrasta com as redes de hipermercados de compras massivas. Assim como, no
processo de gentrificação, no qual ocorre o processo de higienismo social (de substituição de
moradores de baixa renda por moradores com rendimentos mais elevados), nesse mesmo
sentido, há um deslocamento no modelo de consumo, do viés pejorativo do consumo de
massa à ascensão de um consumo mais seletivo, segmentado e distintivo, já que consumir em
lojas de produtos naturais, importados e/ou com produção local também confere uma aura de
contemporaneidade à forma de consumir.
Nota-se um contraste de classe-social, já que a instabilidade financeira das pessoas
acaba por incentivar o consumo para o estoque ao mesmo tempo em que as classes menos
afetadas pela crise volta-se para o consumo segmentado. De 2007 a 2010, a dívida média de
domicílios chefiados por um adulto com menos de 35 anos caiu 29%, em comparação com
um declínio de apenas 8% entre as famílias chefiadas por adultos com mais de 35 anos de
idade.41 Pode-se pensar que esses dados são indícios da “nova geração” estar se afastando dos
antigos hábitos de crédito, financiamento, assim como, distanciam-se desse modelo citado do
consumo massificado. A redução da dívida entre os jovens adultos nos momentos conturbados
da economia se deve pelo fato de que cada vez menos são proprietários de carros e casas
próprias, refletindo uma queda significativa dos que tem dívidas com cartões de crédito (de
41 Pew Research Center tabulations of Survey of Consumer Finances data
59
48% em 2007, para 39% em 2010).
De 2001 a 2010, casas chefiadas por jovens adultos reduziram seu endividamento em
geral, em contraste aos adultos com mais de 35 anos, que tiveram suas dívidas alargadas. As
famílias dos Estados Unidos perderam 28% de sua riqueza durante a crise econômica, sendo
que um terço delas tiveram suas economias totalmente extinguidas. O levantamento do PEW
Research Center aponta para o empobrecimento geral de todos os setores da população, ao
considerar as estimativas entre 2005 e 2009. O programa “Hoarders: Buried Alive” foi
primeiro exibido em 2009, no momento pós-crise, explorando como pano de fundo, uma
sociedade sem segurança social, sob risco inerente a pobreza e expondo um grande temor: o
do fracasso da branquitude das classes médias historicamente associadas com o American
Way of Life, as quais, agora, são vistas como envelhecidas, alocadas no “passado” e – pior –
patologizadas por sua suposta ânsia incontrolável de consumir.
Assim, a segunda hipótese analítica se pauta na ideia de que o programa une dois
grandes temores da sociedade americana: a perda do lar e o fantasma de virar white trash.
White trash é uma identidade retórica num discurso de diferença e o termo que, de uma
maneira sútil, difunde fortemente uma ideologia, no qual brancos de classe média e
trabalhadora avaliam o comportamento e opiniões de outros brancos de classe social similar
ou inferior. Expressões de white trash na cultura popular mostram como fronteiras raciais e de
classe são estabelecidos de forma retórica e mantidos ideologicamente. Segundo Richard
Miskolci (2012, p.51), a branquitude reúne vários ideais, como a do sucesso econômico, pela
capacidade de comando e influência sobre o outro, ideais de elites que buscam se diferenciar,
ao mesmo tempo, das massas não-brancas e dos brancos pobres.
No contexto norte-americano, White trash deriva de uma estratégia de construção de
fronteiras, nas quais brancos demarcaram uma forma de resíduo racial, composto por outros
brancos, que devido à pobreza, não se enquadram no escopo branco enquanto ordem
hegemônica de poder político e privilégio social. Assim, a branquitude se mantém numa
disputa intrarracial, no qual as marcas ativas do “outro” são concebidos em corpos brancos
mal ajustados (HARTIGAN, 1997, pp. 319).
Segundo David Roediger (1999), a principal divisão entre as raças ocorreu com a
Guerra da Independência dos Estados Unidos, pois a herança da Revolução tornou a
independência um ideal masculino poderoso. Lá, como em outros contextos nacionais, “o
60
homem – e apenas ele – era visto como o verdadeiro portador da branquitude e do progresso”
(MISKOLCI, 2012, pp. 54). A independência americana se fundou sobre a valorização dos
“Whig qualities”: integridade pessoal, capacidade de julgamento próprio e a participação
inteligente nas questões públicas – sempre baseados na propriedade. Desse aspecto, os
brancos tinham vantagens políticas sobre os negros e isso fez com que fosse concebido, quase
como necessária, a degradação e exclusão dos negros da nova ordem instaurada, pois sem
propriedade, o escravo negro não poderia participar da República. Com o decorrer do século
XIX, a classe trabalhadora branca, com o processo de industrialização, começou a construir a
imagem da população negra como “outro” - que corporificavam o pré-industrial, o erótico e o
estilo de vida desregrado.
Entre outras categorias que assombram e ratificam a corrente predominante da
identidade branca americana, white trash aparece como o mais perturbador. Em um momento
político no qual rótulos depreciativos e insinuações a grupos étnicos estão sendo
rigorosamente policiados em trocas sociais e institucionais, o termo white trash ainda circula
com pouca hesitação por parte dos usuários. Dessa forma, white trash continua se mantendo
socialmente de maneira quase que naturalizada.
O status de lixo branco passa de um rótulo pejorativo a um sinal de transgressão, no
qual alguns brancos identificam espaços de falas públicos; por exemplo, o rapper americano
Eminem em entrevista se declarou “the real, stereotypical, trailer park, white trash” (“o
verdadeiro, estereotipado lixo branco que mora em parques para trailers”). Na cultura
americana, os trailer parks são estereotipados como lugar de moradia de baixa renda, cujos
moradores vivem abaixo da linha da pobreza, têm baixo status social e seguem estilos de vida
tomados como inconstantes e deletérios. Nesse contexto, os imaginários em torno dos trailer
parks também se ligam as noções de instabilidade e insegurança socioeconômica do white
trash. Assim, white trash, na cultura popular , proliferou e passou a ser tomado como
identidade e objeto cultural (HARTIGAN, 1997)42.
O reconhecimento cultural de trash/lixo pode ser apreendido a partir de Mary Douglas
(1966), a qual detalha o papel da “impureza” no estabelecimento e manutenção de normas
sociais. Sujeira, lixo e refugo são coisas que devem ser excluídos do sistema cultural para que
42 O white trash se contrapõe ao status hegemônico da branquitude enquanto normativo na ordem social.
Segundo Johm Hartigan (1997), o termo designava uma condição vergonhosa e singular estabelecida em relação
a comunidade local, e também era reconhecido através de uma série de características reconhecidas na região do
Apalache, mas no Sul em geral. No final da década de 1980, houve uma emergência de produções populares
culturais que tratavam sobre o white trash: deixando de ser um termo local para um de alcance nacional.
61
os modos de identidade se mantenham como condições naturalizadas. De tal maneira, assim
como a impureza dos objetos, os hoarders também aparecem dentro dessa mesma lógica, uma
vez que configuram “poluição racial”. O white trash e os hoarders (que fazem parte do white
trash) são vistos como uma impureza racial, pois violam e comprometem o decoro da ordem
racial branca, a qual, diga-se de passagem, está em franca decadência nos Estados Unidos.
Certas identidades normativas culturais, nesse caso a da branquitude enquanto
hegemônica, mantém-se através de exclusões que são efetivadas através da consolidação de
impureza enquanto estigma e ameaça. Assim, o refugo é uma categoria que abrange tudo que
está fora do lugar (HARTIGAN, 1997). Os hoarders aparecem como furo à ordem
hegemônica, seus comportamentos são patologizados, vivem em situações críticas beirando o
despejo, a perda da guarda dos filhos ou o risco de serem presos e produzem perigo à saúde
pública. No momento em que o programa intervém, com os “especialistas”, ocorre uma forma
de higienização desses brancos, a tentativa de transformar sua “brancura” (cor da pele) em
“branquitude” (compreendida como atributos morais qualificadores). Os acumuladores
aparecem enquanto corpos contaminados, desconexos da vida social, que precisam ser
reintroduzidos e realocados em seu lugar no imaginário branco norte-americano.
Tomando white trash como manifestação de uma ideologia de impureza e a
mobilização de uma identidade num discurso de diferenças intrarraciais, fornece-se uma
perspectiva sobre a estratégia de manutenção do status naturalizado da branquitude. As
produções midiáticas, como o próprio seriado documental em questão, reforçam
contraexemplos do que os brancos não podem ser e fazer a fim de manter seus privilégios
raciais. Com isso, o termo white trash serve para manter totalmente separados os polos altos e
baixos das formas culturais. Pode-se perceber a manutenção de uma fronteira onde se opera a
base da branquitude, abrangendo ou excluindo certos brancos (sobretudo os pobres e/ou
“anormais”) do escopo social e político da branquitude.
Nos conflitos internos do capitalismo, as estratégias de exclusão que dispersam o
reconhecimento de conflitos de classe em questões multifacetadas, definem o white trash
como uma posição social ameaçada e vulnerável (HARTIGAN, 1997). Assim, aqueles que
perderam suas casas durante essa última crise podem ser imaginados como white trash, uma
vez que fracassaram diante do ideário estável da branquitude.
Dessa forma, o seriado retrata bem o contexto dos Estados Unidos, onde não há
62
segurança social, há o risco inerente de cair na pobreza e, por fim, como as pessoas viram
lixo. O elemento mais sujo explorado por “Hoarders: Buried Alive” não são os objetos
empilhados de maneira desordenada, mas sim o acumulador em si, em como ele contamina
não só as fronteiras entre objetos e sentimentos (LEPSELTER, 2011), mas como ele ameaça a
hegemonia de classe. Assim, considerando a branquitude enquanto um arcabouço de atributos
morais (e não a priori pela cor da pele), os white trash aparecem enquanto losers da nova
ordem econômica e de consumo em ascensão.
A partir dessa discussão, fica visível que o programa embute três questões. Primeiro, a
mudança de como e onde morar: espaços menores, mais limpos e abertos a sociabilidade
extrafamiliar, em um movimento de dessuburbanização em direção as áreas gentrificadas das
grandes cidades. Segundo, junto a esse processo, a decadência do modelo de consumo de
massa e de todo o sistema sustentado por ele, a favor de uma economia mais sustentável,
pautada no consumo segmentado, que condena o consumo desenfreado e defende um modelo
mais consciente, que visa a necessidade e a questão da escolha. Terceiro, o empobrecimento
geral da população, mas em específico, a questão do conservadorismo da perda da hegemonia
branca em um país onde nascem, atualmente, mais não-brancos. O temor de virar white trash
se aproxima, assim, do fato demográfico já instalado de que a maioria dos norte-americanos
será, brevemente, não-branca, o que reaviva os temores morais de uma decadência da nação.
Isso porque, historicamente, ser estadudinense era ser branco e o sucesso no capitalismo local
era sinônimo da branquitude propagandeada pelas mídias de massa durante o auge do
American Way of Life. Nesse novo contexto histórico, social e econômico, os hoarders
aparecem como personificação de um sistema decadente, instáveis e deletérios nas suas
formas de morar, consumir e (não) se relacionar com o mundo, representando um refugo
racial: “o branco pobre e sujo”.
63
Considerações finais
Acumulador ou White trash?
Os episódios do seriado documental “Hoarders: Buried Alive” seguem uma estrutura
comum e se passam quase ao abrigo completo de um contexto maior, social e econômico. A
cada episódio, dois casos de acumulação são trabalhados; em um primeiro momento o
acumulador em si é apresentado, junto a cenas da casa ou apartamento em questão, seguido
por depoimentos de amigos e familiares, contando a relação que tem com o participante, suas
opiniões e impressões sobre a situação que se encontra o acumulador. Tanto os participantes
principais (os hoarders) quanto os secundários (amigos e familiares), explanam o porquê do
comportamento, ao buscar alguma situação ou acontecimento específico que desencadeou a
acumulação. Como observa Lepselter: “Um elemento excluído é o de qualquer
reconhecimento dos distúrbios sociais no mundo que cerca o acumulador” (2011, p.924) 43.
O programa trata a acumulação de forma individualizada, sem considerar contextos
históricos, culturais, políticos e econômicos, portanto sua patologização permite omitir seu
caráter de fenômeno social contemporâneo compreensível em termos outros, no caso dessa
monografia, em termos sociológicos. Segundo Lepselter “o caos do acumulador, em todas as
suas variações, é uma distorção e intensificação, mas não uma aberração distinta, das práticas
habituais do consumo americano” (2011, p. 924). Em outras palavras, as similaridades entre
os retratados e a cultura americana (talvez mesmo com o espectador) são minimizadas de
forma a apresentá-los como quase um “bode expiatório” do que se passa.
Após a apresentação do acumulador e da casa, dos depoimentos dos amigos e
familiares, introduz-se a figura do especialista que irá auxiliar o hoarder no processo de
declutter, Ao patologizar a acumulação, há dois discursos distintos e complementares que
permeiam o seriado documental. Por um lado, o discurso da intervenção profissional sobre
um comportamento compulsivo, exposto como autodestrutivo e extremamente irracional,
narrativa comum nos discursos psicológicos populares em torno de obsessões e vícios
(LEPSELTER, 2011)). Por outro lado, de maneira complementar, em meio ao consumo
fantasmagórico do capitalismo industrial, a acumulação oferece uma imagem assombrosa
frente ao consumo normativo. Ao contaminar o valor econômico com valor sentimental, o
acumulador gera um furo no discurso do consumo normativo, descartável. Estas narrativas
43 “One excluded element is any recognition of the social disturbances in the world surrounding the hoarder”.
64
produzem concepções específicas sobre desconexão e a possível reinserção social dos
acumuladores, após intervenção profissional (medicalizada). O especialista media a relação
entre o hoarder e o espectador: é ele quem conduz o acumulador a descartar seus objetos,
organizar a casa e se aproximar do discurso do lar saudável e socializante e do consumo
racional.
Após o acumulador dar um tour da casa ao especialista e aos próprios espectadores,
começa o processo de clean-up, limpeza. Há sempre uma tendência de começar pela sala de
estar e cozinha, como ambientes de maior socialização do lar. Buscam desencobrir sofás e
mesas. Quando o acumulador começa a ficar resistente ao processo, o discurso do expert é
sempre de indagar se aqueles objetos realmente são necessários/úteis, ou se realmente
preferem viver isolados, pois seus amigos e familiares não suportam mais a situação e se
afastaram, ou se uma casa limpa e organizada não lhes é mais atrativa. O discurso tem sempre
uma questão de reinserção social, de transformação das casas em ambientes socializáveis e de
priorizar as relações sociais e familiares acima dos bens materiais.
No imaginário social, se consolidou a ideia do documentário como retrato da
realidade, como reprodução objetiva de mundo. Entretanto, há uma fronteira tênue entre o que
é real e o que é irreal, uma vez que elementos da imagem podem ser manipulados gerando
novas maneiras de olhar e perceber. Vertov (1984) considera a câmera como um olho
mecânico em eterno movimento, capaz de libertar o homem da sua imobilidade,
aproximando-o e afastando-o das coisas, penetrando nelas, atravessando multidões,
deslocando-se. Assim, o olhar mecânico organiza a percepção. Rouch defende que o filme
seduz e procura a identificação e a adesão do público, enquanto simultaneamente se distancia
a através do visionamento dos próprios mecanismos de criação. Para fazer um filme, deve-se
aprender a carregar uma câmera, regulá-la, e em especial, manipular a imagem. Uma vez que
a observação da câmera contribui para desvendar o real e para educar ou organizar o olhar do
espectador, o processo de filmagem diz respeito ao olhar e a intencionalidade do diretor.
Denota, de tal maneira, a orientação do olho-câmera, a intenção do enquadramento, a
montagem e a disposição ao público.
No programa em questão, pode-se perceber que as filmagens se dão a partir de uma
câmara com lente convexa e feitas de baixo para cima. Esta técnica faz com que os ambientes
e os amontoados de objetos pareçam muito maiores do que são. Um aspecto cavernoso é
transmitido pelas técnicas de filmagem associadas às trilhas sonoras sombrias. Assim, ocorre
65
um tratamento criativo da realidade, há uma reelaboração e reescrita da mesma. Verifica-se de
tal forma, um vínculo entre o social e o espectador, a partir da televisão como mídia
moralizante, ambos associados em um processo de alocação do “acumulador” em um
ambienta não apenas insalubre, assustador em seu acúmulo, mas também passado,
ultrapassado, como parte de uma maneira de viver que não pode ser mais mantida e cujos
seguidores ameaçam em trazê-la ao presente, assombrando-o com suas memórias, formas de
viver e sonhos perdidos.
O espectador é convidado a juntar todos os casos em uma categoria única, a de
acumulador, entretanto, o comportamento em si não é uma categoria monolítica
(LEPSELTER, 2011). Alguns acumuladores compram diversas cópias de um mesmo objeto e
os empilham de forma organizada, porém excessiva em seus lares, enquanto alguns jogam
todos juntos. Alguns não consomem de forma tão excessiva, mas não conseguem se desfazer
de nada pois veem uma potencialidade utilitária em tudo. Como exemplo, Bill (66 anos, de
Beverly-MA), aposentado, acumula ferramentas, coleciona revistas e livros do it yourself. Bill
se vê atraído pelas lojas de construção e ainda mais pelas promoções. Após exibirem cenas
das imensas pilhas dentro de sua casa e os depoimentos das famílias, em uma pausa com
música dramática, aparece um quadro preto que diz que Bill está sendo forçado a escolher
entre sua família e seus objetos, e de maneira relutante, decide trabalhar com um profissional.
Loreli, companheira de Bill em seu depoimento declara, “It's not anything you can compete
with, because it's só precious for him” . De tal forma, o seriado já traça uma maneira de
enfatizar a prioridade dos bens materiais acima de relações sociais e familiares. Nas cenas
seguintes, Bill promove um tour de sua casa para o Dr. David Tolin (diretor do setor de
ansiedades do Institute of Living), e ao se deparar com o amontoado de revistas e livros, Dr.
David pergunta se Bill não acha aquilo excessivo, e como resposta recebe um não, que aquilo
é perfeito - diz que também acumula informação. “My tendancy is to get lost in home
improvements, lumber yards, and sales”, declara, assim vê potencialidade em tudo, mesmo
que sua casa já contenha vários conjuntos de cozinhas planejadas, todas encaixotadas, ele se
vê motivado a comprar mais.
Em outro caso, Steven (48 anos, Olympia-WA), mora em uma pequena unidade
habitacional subsidiada, e afirma colocar seus pertences sempre em um lugar temporário, e
assim acabaram ficando. Steven não é nada vaidoso e vive meio ao próprio lixo, há garrafas
plásticas, caixas de pizza, jornais, embalagens e até seus próprios excrementos ao seu redor. A
66
partir destes exemplos, pode-se concluir que a acumulação, não é uma categoria fechada em si
e, segundo o programa, pode afetar qualquer pessoa em qualquer lugar. Os objetos
acumulados pelos hoarders não são vistos como bens – como das casas “normais”, são
concebidos como tranqueiras, lixo. Estes problemas dos acumuladores são concebidos como
irracionais e antissociais. A patologização do hoarder é um processo que sanitariza e torna
padrão o atual morador das áreas gentrificadas das principais cidades norte-americanas, as que
ditam as tendências do que deve ou pode ser considerado a forma correta de consumir, morar
e se socializar.
Ocorre a ênfase no efeito visual de cenário clean, pela redução da desordem e do
excesso de objetos. Não foi só a desordem que foi retirada da casa, mas todos os vestígios de
desleixo e de fraqueza humana, e até do próprio design (RYBCZYNSKI, 1996), surgindo
assim, o novo modelo de casa-cenário, aberta à perscrutação de olhares externos.
Os hoarders, no programa em foco, exprimem exemplos negativos de morar, consumir
e socializar, ao representarem a decadência do imaginário do consumo de massa, e do próprio
American Way of Life. A imagem dos impressionantes amontoados de objetos acumulados
retratam uma concepção pútrida e sombria do self que precisa ser purificado. Ou seja, o
elemento mais sujo e escrutinizado não são os próprios objetos em si, empilhados de maneira
desordenada, mas a contaminação provocada pelo acumulador frente ao limite entre objetos e
sentimentos não-controlados. Ou seja, o self falha racionalmente em gerir o próprio consumo
(consumo e o descarte) (LEPSELTER, 2011), as próprias relações sociais, ao preferir os bens
materiais acima das relações sociais e familiares, e de gerir o lar enquanto ambiente saudável
de socialização.
Produzido logo após a crise que abalou o Estados Unidos entre 2007 e 2008, o seriado
aborda questões que vieram à tona neste período de instabilidade e insegurança, como o medo
da perda das casas, o empobrecimento geral da população, e na cabeça dos conservadores, a
perda da hegemonia branca em um país que nascem, atualmente, mais não-brancos. Os
grupos étnicos e raciais minoritários – especialmente os hispânicos – estão crescendo mais
rapidamente do que a população não-hispânica branca, impulsionados tanto pela imigração
quando pelos nascimentos. Esta tendência tem se repetido por décadas e em maio de 2012, o
Census Bureau, anunciou que os não-hispânicos brancos se tornaram minoria entre os
nascidos dentro dos Estados Unidos pela primeira vez na história.
67
Com o nascimento de mais não-brancos e a instabilidade pós-crise no país, a
branquitude aparece sob ameaça na mente dos políticos conservadores, mas mesmo da classemédia branca que vê sua hegemonia começar a ruir. “Hoarders: Buried Alive” alinha-se a
esses temores ao promover uma higienização dos brancos pobres ou empobrecidos. Nas duas
primeiras temporadas, todos os acumuladores interceptados eram brancos. São os negros e
latinos, em geral, que aparecem nos “sub-empregos”, são eles que compõe a equipe de
limpeza doméstica e operam os caminhões de entulho que recolhem o lixo da casa dos
acumuladores. O programa resume os brancos acumuladores ao fracasso econômico
(endividados, vivendo na pobreza, desempregados e no risco inerente de serem despejados ou
perderem suas casas) e pessoal (incapacidade de gerir um lar “saudável”, ou constituir uma
família e manter relações extra-familiares “normais”). Por fim, tornando difícil definir se há
alguma distinção entre ser classificado como acumulador ou white trash.
68
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