O uso de bebidas alcoólicas nas sociedades indígenas: algumas reflexões sobre os Kaingáng da bacia do rio Tibagi, Paraná Juberty Antonio de Souza Marlene de Oliveira Marilda Kohatsu SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros COIMBRA JR., CEA., SANTOS, RV and ESCOBAR, AL., orgs. Epidemiologia e saúde dos povos indígenas no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; Rio de Janeiro: ABRASCO, 2005. 260 p. ISBN: 85-7541-022-9. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. O USO DE BEBIDAS ALCOÓLICAS NAS SOCIEDADES INDÍGENAS: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OS KAINGÁNG DA BACIA DO RIO TIBAGI, PARANÁ Juberty Antonio de Souza, Marlene de Oliveira Marilda Kohatsu Este artigo não tem a intenção de suscitar um debate teórico acerca do alcoolismo, mas apontar para algumas questões referentes ao uso de bebidas alcoólicas no contexto das sociedades indígenas, enfocando principalmente pesquisa realizada entre os Kaingáng da Bacia do Rio Tibagi, no Paraná. Discutir o uso de bebidas alcoólicas e/ou alcoolismo entre este grupo implica desvendar uma longa rede de relações que foram sendo tecidas pelos Kaingáng a partir de uma trajetória estabelecida ao longo do contato com a sociedade nacional. Para compreender este fenômeno, presente na maioria das populações indígenas, faz-se necessário entender as múltiplas causas relacionadas ao processo de alcoolização no interior dessas sociedades. Nossa análise acerca do fenômeno do alcoolismo não se limita somente aos modelos explicativos da biomedicina, pois esses não têm sido suficientes para compreender o complexo problema do uso de álcool e/ou alcoolismo entre as populações indígenas. As ciências sociais, e antropologia em particular, têm fornecido subsídios importantes para elucidar a diversidade de situações ligadas ao consumo de bebidas alcoólicas, o contexto no qual se aprende a beber, a intensidade do consumo, as representações do beber, as variações nos estilos de beber, etc. Por sua vez, destacamos a importância da epidemiologia, que tem propiciado, por meio de instrumento apropriado, a obtenção de taxas sobre a prevalência do alcoolismo, entre outros aspectos. E n t r e os agravos à saúde que a c o m e t e m os povos indígenas no Brasil, é perceptível que o c o n s u m o de bebidas alcoólicas tem se intensificado, ainda que faltem dados precisos para quantificar tendências. No quadro de morbida¬ de ambulatorial, aparece c o m o agravo freqüente, destacando-se c o m o principal causa de mortalidade ligada a fatores externos, tais c o m o acidentes, brigas, quedas, atropelamentos, etc. D o e n ç a s c o m o cirrose, diabetes, hipertensão arterial, doenças do c o r a ç ã o , do aparelho digestivo, depressão e estresse, entre outras, estão relacionadas ao c o n s u m o abusivo de bebidas alcoólicas (Oliveira, 2 0 0 0 b ) . A desnutrição protéico-calórica em crianças aparece de forma bastante significativa nas aldeias indígenas, principalmente na região sul do país, sendo provável que esteja, em parte, ligada ao consumo de bebidas alcoólicas por parte dos pais. As atividades cotidianas, incluindo subsistência e alimentação, podem ser bastante alteradas pelo consumo de bebidas alcoólicas. A síndrome fetal alcoólica, decorrente do consumo de álcool durante a gestação, configura-se c o m o uma realidade perversa que atinge os grupos indígenas. Muitas crianças apresentam problemas de comportamento, deficiências no crescimento, desordem no sistema nervoso central (Siqueira-Duran, 2 0 0 1 ) , entre outras dificuldades. Nem de longe esses problemas são reconhecidos ou diagnosticados c o m o sendo ligados ao uso de bebidas alcoólicas, ainda que possivelmente estejam em algum grau. Ainda em relação aos fatores externos ligados ao alcoolismo, têm sido relacionados casos de homicídio, suicídio, violência entre grupos, incestos, abusos sexuais, estupros, que elevam o índice de mortalidade entre os jovens e adultos dentro de áreas indígenas em diferentes estados do Brasil. Esta situação tornouse objeto de preocupação de alguns grupos indígenas, que têm solicitado uma intervenção dos órgãos oficiais para resolver o problema. Assim, preocupados com a situação sobre uso abusivo de bebidas alcoólicas entre o povo Kaingáng da Bacia do Rio T i b a g i e as c o n s e q ü ê n c i a s desse 1 processo, foi iniciado um trabalho de pesquisa e intervenção . Para uma melhor compreensão acerca do uso de bebidas alcoólicas e/ou alcoolismo, ao longo deste texto destacaremos algumas questões ligadas ao b e b e r que têm sido fundamentais para o nosso trabalho. Ε importante ressaltar que o estabelecimento do debate interdisciplinar tem possibilitado uma melhor compreensão sobre o al¬ 1 Este capítulo apresenta dados de u m a pesquisa e m andamento coletados entre os Kain- gáng da Τ . I. do Apucaraninha da região de Londrina, Paraná. O s Kaingáng são um povo Jê meridional e representam um c o n t i n g e n t e populacional n u m e r i c a m e n t e importante no sul do país, somando aproximadamente 2 5 mil pessoas, espalhados pelos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio G r a n d e do Sul. N o Paraná, vivem cerca de 7 . 5 0 0 Kaingáng, distribuídos e m várias Terras Indígenas. A Τ . I. Apucaraninha ocupa a porção sudoeste do M u n i c í p i o de Londrina, sendo limitada ao norte pelo R i o Apucaraninha, ao sul pelo Rio Apucarana e a leste pelo Rio T i b a g i . Os Kaingáng da Τ . I. Apucaraninha so m a m aproximadamente 1.300 pessoas, e m um total de 2 5 0 famílias. A Prefeitura M u n i c i pal de Londrina, por intermédio das Secretarias Municipais de Ação Social e Saúde, tem desenvolvido importantes trabalhos junto a esta população. coolismo nos seus múltiplos fatores. No final do texto apontamos para algumas possibilidades para a implantação de programas, objetivando a redução de danos em relação ao uso de bebidas alcoólicas no contexto dessas sociedades. REPENSANDO O CONCEITO BIOMÉDICO DO ALCOOLISMO Ε necessário conceituar aqui c o m o o alcoolismo vem sendo definido pelas ciências médicas. Segundo a Organização Mundial da Saúde ( O M S ) , o alcoolismo passou a ser denominado como "Síndrome de Dependência do Álcool" e sua definição enquanto tal é: "...estado da ingestão sempre do álcool, incluem uma compulsão co, a fim de experimentar sua falta, a tolerância apud psíquico caracterizado seus efeitos psíquicos ao mesmo podendo psicossociais manifestações" e ambientais geralmente físico, de comportamento para ingerir álcool Quilles, 2 0 0 0 : 6 ) . O u ainda, "...uma genéticos, e, também, por reações resultante e outras de modo contínuo ou que periódi- e por vezes evitar o desconforto ou não estar presente" doença influenciando crônica de ( J . M . Bertolote primária, com seu desenvolvimento fatores e suas (Marlatt, 1999). A síndrome da dependência do álcool é caracterizada c o m o um processo seqüencial, que se inicia c o m ingestão de bebidas até chegar a uma situação de dependência, num período que varia entre 5 a 10 anos, ligada a fatores cognitivos, comportamentais e fisiológicos. Por outro lado, as incapacidades relacionadas ao álcool consistem em disfunções físicas, psicológicas e sociais que advêm direta ou indiretamente do uso excessivo de bebida e da "dependência" (Souza, 1996). O conceito biomédico da síndrome de dependência do álcool, caracterizada c o m o universal, tem estabelecido o alcoolismo c o m o doença, cuja causa é sempre a mesma para todas as pessoas em diferentes culturas. Dentro deste conceito, o alcoolismo aparece com conotação física, patológica e individual. No entanto, sabemos da necessidade de relativizar este conceito, visto que diversas culturas têm demonstrado padrões e hábitos de beber bastante específicos (Heath, 1 9 9 3 ) . Entre os grupos indígenas, a maneira c o m o b e b e m difere de grupo para grupo, assim c o m o as taxas variam de acordo com as particularidades do contexto sociocultural e histórico de cada povo (Langdon, 2 0 0 0 ) . Sobre isso, Marlatt ( 1 9 9 9 : 6 5 ) , cita uma frase bastante pertinente que diz "um só tamanho dos", querendo dizer que: "...pensar desta forma o alcoolismo veste to- pode inadvertida¬ mente desencorajar de tratamento as suas indivíduos que trabalhem com problemas com propostas mais leves a participar de moderação de mais apropriados serviços para condições". Frente a isso, consideramos a necessidade de se repensar o conceito do alcoolismo, elegendo outros fatores que não sejam somente aqueles de ordem biomédica. Para tanto, é importante considerar a contribuição de outras disciplinas, como a antropologia, que parte de outras perspectivas para interpretar o "beber". Há importantes pesquisas antropológicas que apontaram para maneiras diferentes de se olhar a questão do alcoolismo, demonstrando os vários significados do beber em diferentes povos do mundo (Douglas, 1987; Heath, 1993; Jellinek, 1960; M e n é n d e z , 1990). Estes autores destacam a necessidade de se entender o fenômeno do alcoolismo dentro do contexto sociocultural, sinalizando para a diversidade e as múltiplas representações do "beber" nas diferentes culturas, assim como para as diferentes causas do consumo de bebidas alcoólicas, sua intensidade e estilos de beber (Langdon, no prelo). Segundo Douglas ( 1 9 8 7 ) , o uso do álcool não só conduz a um relaxamento dos padrões culturais, mas também a comportamentos altamente padronizados e aprendidos, que diferem de uma cultura para outra. Já Heath (1993), ressalta a diversidade de significados do álcool. E m determinados contextos pode servir de alimento, enquanto que em outros é tido como sagrado. A embriaguez pode ser considerada como um estado religioso, enquanto que em outros grupos, um grande desconforto ( D . Heath apud Quilles, 2 0 0 0 ) . O c o n s u m o excessivo de bebidas alcoólicas e de outras drogas tem se agravado entre várias etnias indígenas no país, o que mostra a situação de vulnerabilidade a que estão expostas. Vários são os fatores que contribuem para o agravamento desta problemática — expropriação, redução e exploração de territórios indígenas, dificuldades de auto-sustentação, moradia nas periferias de grandes cidades, etc. Ao adotarmos uma perspectiva interdisciplinar, buscamos a possibilidade de uma compreensão mais profunda sobre o fenômeno para, assim, podermos (re)orientar e (re)avaliar ações que conduzam à redução do alcoolismo entre esses povos. DAS BEBIDAS ALCOÓLICAS FERMENTADAS ÀS BEBIDAS ALCOÓLICAS DESTILADAS O uso de bebidas fermentadas e de substâncias psicoativas é uma tradição bastante antiga, que por vezes remonta ao período pré-colombiano, e que desempe¬ nha importante papel dentro da estrutura social das diferentes sociedades indígenas do continente sul americano. A maioria dessas sociedades preparava bebidas alcoólicas fermentadas, cujas matérias-primas incluíam seiva da palmeira, mel, frutas, banana, batata doce, milho, mandioca, caju, etc. Eram preparadas e depositadas em cochos de madeira ou em grandes potes de barro, cabendo às mulheres sua produção. O consumo era coletivo e, em alguns grupos, a beberagem durava dias, até se exaurir o estoque da bebida, e servia para cumprir rituais bem marcados. Outros grupos usavam a bebida fermentada com finalidade terapêutica e em rituais de xamanismo. Outros faziam uso dessas habitualmente, c o m o alimento ou divertimento. A maneira, a finalidade e a ocasião para se fazer uso dessas bebidas diferiam (e continuam a diferir) de um grupo para outro. Entre os Kaingáng, o uso de bebidas fermentadas restringia-se a rituais, seguindo um calendário bem marcado. Acontecia por ocasião de caçadas, pescarias, colheita, guerra, ritos de nascimento, iniciação, cerimônias fúnebres e celebrações mágico-religiosas. O kiki é uma bebida fermentada feita a base de milho, água e m e l , usada durante a festa mais importante dos Kaingáng — o kiki koi, um ritual do culto aos mortos. Sua preparação era marcada por atividades ri¬ tualísticas, organizadas pelas metades exogâmicas (kamé e kairu). Os Kaingáng bebiam o kiki até esgotarem os grandes cochos de madeira (Baldus, 1979; Barbo¬ za, 1913; Becker, 1976; Borba, 1 9 0 8 ; Teschauer, 1 9 0 5 ; Veiga, 1 9 9 4 ) . O kiki koi era um ritual altamente simbólico, no qual transparece a rede social desta sociedade, permitindo aos seus integrantes intensificar suas relações e reafirmar sua identidade grupal. Segundo Baldus ( 1 9 7 9 ) , é possível que o ritual do kiki koi tenha sido realizado em todas as aldeias Kaingáng até o inicio do século X X . Entre os Kaingáng do Apucaraninha, está somente na m e m ó r i a de alguns velhos. Atualmente, os Kaingáng de C h a p e c ó ainda mantêm este rito. Q u e se saiba, são os únicos que ainda o realizam, preparando a bebida em grandes cochos de madeira, mas adicionando cachaça aos ingredientes tradicionais (Tommasino & Rezende, 2 0 0 0 ) . No Brasil, são vários os grupos indígenas que ainda c o n s o m e m bebidas alcoólicas fermentadas e, para todos, a bebida possui um significado próprio dentro do contexto na qual é consumida. Entre algumas etnias do Acre, c o m o os Ka¬ xináwa, fabrica-se a c a i ç u m a , feita de batata e de macaxeira, que é consumida durante a festa do mariri. Os Yawanáwa, também fabricantes da caiçuma, costu- m a m e n c h e r os c o c h o s de madeira c o m 2 0 0 a 4 0 0 litros da bebida "forte", que consomem por ocasião de vários rituais (Oliveira, 2000a). Os Kaxináwa, os Yami¬ náwa e os Kulina, entre outros, têm por costume oferecer às suas crianças a cai¬ ç u m a . Neste caso, a bebida cumpre a função de alimento e é preparada c o m o "bebida fraca" (Oliveira, 2000a). Tudo indica que o consumo de bebidas alcoólicas fermentadas entre os grupos indígenas não provocava transtornos de ordem física ou biológica, c o m o acontece em relação ao uso das destiladas no presente. O uso de psicoativos em culturas tradicionais ocorria em contextos ritualizados; sendo assim, raramente apresentava-se c o m o nocivo para os seus participantes, no grau que se vê nos dias atuais. No entanto, pela dinâmica do contato, as bebidas tradicionais fermentadas acabaram sendo substituídas, mesmo que parcialmente, pelas destiladas. E m contextos de uso de bebidas fermentadas, a passagem para os destilados parece ocorrer com maior facilidade. E m Roraima, o caxiri, o mocororo e o pajuaru são produzidos em grande escala e consumidos por quase todas as etnias. Tradicionalmente, além de distintos significados, a bebida servia também c o m o fonte de alimento. No entanto, o uso dessas bebidas já está sendo problemático na região dos Wapixána e Maku¬ xí, conforme relatos de representantes indígenas. C o m a introdução dos destilados, ambos os grupos passaram a utilizar a bebida fermentada de forma descontrolada e c o m uma fermentação superior, que denominam de "bebida forte", o que tem ocasionado muitas desavenças (Oliveira, 2002a,b). Na falta da cachaça, o caxiri e o pajuaru são fabricados pelos indígenas de forma desordenada, deixando de cumprir funções socialmente definidas e ritualísticas. Entre os Makuxí, as mulheres estão se recusando a fazer o caxiri por conta das grandes bebedeiras de seus maridos e pelos transtornos decorrentes (Oliveira, 2002a.b). Além da fermentação visando a obtenção de teor alcoólico mais forte, alguns indígenas costumam adicionar às bebidas o fermento comprado em supermercado, objetivando acelerar o processo de fermentação para que possam consumi-las mais rapidamente. Outras vezes adicionam a própria c a c h a ç a . E m vários grupos com os quais tivemos contato, a cachaça foi introduzida e c o m e ç a a fazer parte do cotidiano, contribuindo para a desagregação social, cultural e ocasionando agravos à saúde. Por exemplo, os Yanomámi, que tradicionalmente não consumiam bebidas fermentadas, tomaram de empréstimo o caxiri dos Makuxí e atualmente estão c o n s u m i n d o c a c h a ç a em larga escala ( E . Magalhães, 2002, comunicação pessoal). No caso dos Kaingáng, conforme se dava o processo de pacificação e contato, consta que começaram a substituir as bebidas fermentadas nos cochos 2 pela c a c h a ç a , fabricada em alambiques , algo que teve importante papel na estratégia de subjugação desse povo frente à sociedade nacional (Mota, 1998; Oli¬ veira, 2000a). A partir de então, deu-se o uso indiscriminado da bebida destilada. Isso ocorreu concomitantemente à catequização, à desvalorização da cultura indígena, à imposição de novos valores e à perseguição aos kuiã, especialistas tradicionais dos Kaingáng. C o m os Teréna do Mato Grosso do Sul, a situação não foi diferente. O contato prolongado e a convivência com os regionais fizeram com que eles compartilhassem dos mesmos problemas, principalmente em relação ao uso de bebidas. A introdução das bebidas destiladas tornou-se uma constante entre este grupo, registrando uma proporção maior do consumo em relação às populações que vivem no entorno de suas aldeias (Aguiar & Souza, 1997; Souza & Aguiar, 2000). OS DIFERENTES PADRÕES DE COMPORTAMENTO ALCOÓLICO Outra questão importante é reconhecer c o m o se dá o uso das bebidas, as diferentes atitudes e os diversos estilos de beber ( S . Kunitz, apua Langdon, no prelo; Zinberg apua M a c R a e , 1992). Ao estudar os Maxakalí, Minas Gerais, Torreta ( 1 9 9 7 ) , encontrou 3 8 % dos adultos fazendo uso semanal de bebidas alcoólicas. Entre os Bororós, Quilles ( 2 0 0 0 ) , refere que o costume de b e b e r se dá de forma generalizada. H o m e n s , mulheres, velhos e jovens bebem ou já beberam em alguma época, "socialmente" ou de forma dependente. E m uma pesquisa sobre alcoolismo entre os Navajo, foram identificados diferentes estilos de beber, destacando-se o "beber social" e o "beber problem á t i c o " ( S . Kunitz apua Langdon, no prelo). No primeiro, caracterizado por grupos de h o m e n s e pela grande quantidade de bebida que ingeriam por dias seguidos, as pessoas conseguiam passar dias e até semanas sem beber ou tinham bebedeiras episódicas. O segundo estilo era caracterizado por pessoas que be¬ biam sozinhas. No caso do estilo de beber social, verificou-se que algumas pessoas conseguiam parar de beber sem ajuda ou sem interferência médica, o que não ocorria c o m os bebedores solitários. Esses não conseguiam parar e n e m di- 2 Na Terra Indígena do Apuearaninha, consta que foram instalados vários alambiques pa- ra produzir a ç ú c a r e aguardente, c o m várias c o n s e q ü ê n c i a s . Há referências sobre estes alambiques ainda na época do Governo de G e t ú l i o Vargas. minuir o uso das bebidas e muitas vezes morriam por causas relacionadas ao uso de álcool. E n t r e os Kaingáng, embora alguns b e b a m individualmente, a grande maioria costuma beber de forma coletiva. O u seja, o beber é usualmente compartilhado. O ato de beber em companhia de outros parece ser um elo importante de ligação social, sempre ligado a contextos de reuniões e festividades. Não se percebe muito o estilo "beber sozinho" entre os Kaingáng, embora ocorra. Outro aspecto importante refere-se à freqüência, isto é, se o c o n s u m o acontece todos os dias, em alguns dias ou somente em finais de semana. Entre os Kaingáng, constatamos uma variação que parece estar ligada a determinados valores, c o m o responsabilidade familiar, dinheiro, emprego, problemas de saúde, disposição para o trabalho, entre outros. Enquanto algumas pessoas b e b e m somente em finais de semana (quando se verifica o aumento de violência e de prisões), outras bebem durante a semana. Os bebedores de finais de semana costumam dizer que "durante cuidar da família. a gente não bebe, pois precisa trabalhar para Se beber, aí estraga tudo e a gente não consegue trabalhar. Ago- ra no fim de semana a semana aí a gente bebe com os companheiros" (homem Kaingáng, 42 anos). O u seja, para alguns, a responsabilidade em relação à família é um mecanismo importante que reduz o consumo de bebida durante a semana. Segundo outro informante, "...se tivesse dinheiro mizar para andar certo. Sempre dos companheiros bebia todos os dias, mas tenho que tomo uns goles para matar a vontade. a gente sempre passa na bebida e sente prejudicado" econo- Por causa (homem Kaingáng, 32 anos). Ε bastante c o m u m ouvir lamentações e acusações por parte dos bebedores em relação aos seus companheiros: "A gente passa na bebida causa dos companheiros, eles não deixam a gente afastar da bebida" por (Kaingáng, 39 anos). Numa análise sobre o estilo de beber de uma comunidade andina, Heath ( 1 9 9 3 ) referiu-se ao beber compartilhado c o m o sendo um "lubrificante social", um símbolo de unidade. Jellinek ( 1 9 6 0 ) fala da dimensão simbólica que a bebida proporciona e o beber compartilhado c o m o possibilidade de identificação de uns c o m os outros. Para os Kaingáng, o ato de beber em companhia de u m a ou mais pessoas parece estar fortemente vinculado a aspectos da organização sociocultural, no qual laços de reciprocidade são estabelecidos e fortalecidos. Quando tem dinheiro, um companheiro oferece para pagar a bebida dos demais, geralmente um parente. Segundo um informante, "muita gente bebia dias. Se eu acho no meio da semana demais aqui, todo os os meus colegas aí eu bebo. No dia de festa aí eu bebo mesmo, são muitos os colegas. Tem outro clima de divertimento" Kaingáng, 36 anos). Disse outro: "Não bebo no meio da semana, ta-feira, no sábado e domingo. Se quiser parar de beber, acho que consigo. As vezes paro, fico 20 dias sem tomar nada e aí os companheiros Sozinho não sinto vontade que eles animam a gente" (homem só bebo na sex- beber, somente quando e volto a beber. estou com os companheiros oferecem por- ( h o m e m Kaingáng, 52 anos). U m outro informante, que se diz bebedor de final de semana, relata: "no tempo que eu tomava, tinha vontade de beber depois do trabalho sempre para tirar a dor do corpo. Agora parei de beber porque estou com uma dor meio esquisita. Os amigos me convidaram ir na casa deles beber, aí eu experimentei e logo começou Talvez eu fico louco. A bebida valentão, matado. a bebida é boa, mas encurta a vida da gente. A gente quer ser bom da boca. Já briguei muito e aí encontra Por isso eu tenho que descansar da bebida. com outro valentão Meu irmão me deu mas se ele quiser beber eu pago pra ele. Meus amigos estão sabendo mas mesmo assim eles oferecem me ofereceram e eu disse não. Aí eles falaram e morre conselho, que eu pra mim e às vezes eu pago pra eles. No eu pago para eles ficarem contentes" pra a dor de novo. parei, domingo que eu queria ser melhor que eles. Aí (homem Kaingáng, 4 2 anos). Verificamos que as pessoas que b e b e m sozinhas são aquelas c o m maior facilidade de se embriagarem durante a semana, a qualquer hora do dia, sendo discriminadas na aldeia. Ε comum ouvir pessoas dizendo "lá vem fulano bêbado" e já esta ou "esse aí não tem mais jeito". Uma dessas pessoas revelou-nos em seus momentos de não embriaguez o desejo enorme de parar de beber para não mais sofrer. Segundo esse h o m e m , por mais que se esforce, não tem conseguido deixar a cachaça (Oliveira, 2002a,b). Vale ressaltar que alguns homens que bebiam "sem controle" foram deixados por suas mulheres. A propósito, a proporção de mulheres Kaingáng que fazem uso de bebidas alcoólicas é quase insignificante quando comparada aos homens. Entre os Teréna, Souza & Aguiar (2000) observaram que as mulheres que residem nas periferias de cidades consomem mais álcool do que as residentes nas aldeias. A religião atua c o m o fator importante entre os Kaingáng no ato de "parar de beber ou c o m e ç a r a beber". Tanto a igreja católica c o m o as pentecostais (Missão Cristianismo Decidido e Assembléia de D e u s ) têm exercido um papel neste sentido. Os indivíduos que passam pela conversão religiosa devem seguir regras rígidas de conduta e entre elas está a proibição ao uso de bebidas alcoólicas. E m alguns casos, a conversão com a finalidade de deixar a bebida ocorre em aparência, pois, conforme percebemos, muitas pessoas convertidas continuam a beber, muitas vezes de forma oculta. Outros, já convertidos, voltam a beber de repente, às vezes até por motivos "banais", c o m o foi o caso de um h o m e m e sua mulher que, após sete anos convertidos, voltaram a fumar e beber porque ficaram desgostosos c o m um comentário feito por um "irmão" da Igreja. Segundo Oliveira ( 2 0 0 2 a , b ) , a conversão religiosa tem conseguido restringir o uso de bebidas alcoólicas entre os Kaingáng, apesar da ocorrência de "desvios" (i.e., atos ou atitudes "proibidos" pela religião). Isso também foi observado entre os Teréna (Souza & Aguiar, 2 0 0 0 ) . O u seja, a religiosidade apresentase c o m o fator a ser considerado dentre os mecanismos controladores do uso abusivo de álcool. Por outro lado, diferentes igrejas pentecostais instaladas e m aldeias de todo o país pregam c o m o principio básico a "conversão das almas pagas". Faz-se necessária uma maior reflexão sobre os prejuízos que isto tem provocado para as sociedades indígenas. A idade é também um fator importante na iniciação do consumo de bebidas alcoólicas, o que tem i m p l i c a ç õ e s no e s t a b e l e c i m e n t o de programas de prevenção. E m alguns grupos indígenas, c o m o os Teréna, Gavião, Xavánte, Ka¬ rajá, Tikúna, Maxakalí, Kayapó, Kaiwá, Xakriabá, Makuxí, entre outros, o início do consumo de bebidas destiladas c o m e ç a entre 10 e 12 anos de idade, e às vezes até m e s m o aos 7 anos (Oliveira, 2 0 0 0 a ) . Esse padrão é t a m b é m observado entre os Kaingáng. O fato de começarem a beber c o m esta idade parece marcar um rito de passagem para a fase adulta, visto que neste ato estão embutidos atributos c o m o coragem, força e valentia, que reforçam a idéia de masculinidade. Ao contrário, se deixa de beber, lembrando sempre que são os companheiros que oferecem a bebida, este indivíduo pode ser taxado c o m o fraco ou covarde. O início precoce do consumo faz com que jovens Kaingáng, quando atingem seus 2027 anos, c o m e c e m a apresentar intensas dores no estômago, às vezes convulsões, sintomas possivelmente causados pela síndrome de abstinência. Shore et al. (1973) e Walker et al. ( 1 9 9 4 ) apontaram que, além das altas taxas de alcoolismo entre indígenas americanos em relação à população não-in¬ dígena, estas são maiores entre os mais jovens. O'Nell & Mitchell ( 1 9 9 6 ) explicam que as maiores taxas de consumo de álcool entre os jovens ocorre c o m o demonstração de coragem, humor e talvez por estarem mais distantes dos valores tradicionais. Constatada a diversidade nos padrões do comportamento alcoólico dos Kaingáng, o passo seguinte é apreender o significado que atribuem a "beber problemático", "beber sucessivo", "beber excessivo" ou "abuso episódico do álcool" (Langdon, no prelo; Marlatt, 1999). O reconhecimento de especificidades na variação de estilos de beber dentro de um mesmo grupo é importante para melhor c o m p r e e n d e r o f e n ô m e n o d o a l c o o l i s m o , e a j u d a a o r i e n t a r n o t r a t a m e n t o am¬ b u l a t o r i a l o f e r e c i d o n a a l d e i a . Λ partir d o e n t e n d i m e n t o da e x i s t ê n c i a d o s difer e n t e s estilos, e x e m p l i f i c a d o s d e a c o r d o c o m as narrativas d c nossos i n f o r m a n t e s , p o d e m o s d i z e r q u e os K a i n g á n g p e r c e b e m o a l c o o l i s m o c o m o u m fator n e g a t i vo, f a z e n d o c o m q u e b u s q u e m a l t e r n a t i v a s p a r a m i n o r a r a s i t u a ç ã o . O USO DE BEBIDAS NO C O N T E X T O DAS FESTAS As festas, i n c l u i n d o o D i a d o í n d i o , N a t a l , A n o N o v o , S a n t o A n t ô n i o , S ã o J o ã o , S ã o Pedro, Festa do D i v i n o , b e m c o m o bailes c o m c o n j u n t o s sertanejos, são ocasiões q u a n d o os K a i n g á n g g e r a l m e n t e f a z e m uso da b e b i d a e m larga e s c a l a ( O l i veira, 2 0 0 2 a , b ) . Ε perceptível a l i g a ç ã o q u e eles e s t a b e l e c e m c o m a b e b i d a antes, d u r a n t e e d e p o i s da festa, s e n d o t a m b é m vários os s i g n i f i c a d o s q u e a t r i b u e m a o fato d e b e b e r e m n e s t a s o c a s i õ e s . As festas m u i t a s v e z e s p r o p o r c i o n a m a o s j o v e n s o " p r i m e i r o g o l e " . É c o m u m o b s e r v a r n e s t a s o c a s i õ e s r a p a z e s e m o ç a s faz e n d o uso de b e b i d a s , a i n d a q u e s e j a s o m e n t e u m c o p o d e c e r v e j a . O u s o da c a c h a ç a n o c o n t e x t o das festas e s t a b e l e c e e i n t e n s i f i c a u m a red e d e r e l a ç õ e s s o c i a i s e d e t r o c a , visto ser a c a c h a ç a d i s t r i b u í d a e c o m p a r t i l h a d a e n t r e t o d o s , a l é m d e ser u t i l i z a d a c o m o j u s t i f i c a t i v a para e l e v a r o â n i m o d a q u e les e n v o l v i d o s d u r a n t e a p r e p a r a ç ã o da a t i v i d a d e . S e g u n d o os K a i n g á n g , "a trabalha muito o u a i n d a , "temos ter coragem nestes dias e então temos que dar u n s golinhos de fazer tudo". que beber para para que o corpo tirar a canseira fique firme do para gente corpo", a gente F e s t a s , c o m o a d o D i a d o í n d i o , p o d e m se e s t e n d e r p o r v á r i o s dias, q u a n d o se d a n ç a a n o i t e i n t e i r a , c o m u m a i n t e n s a p a r t i c i p a ç ã o d c p e s s o a s da r e g i ã o n a c o n f r a t e r n i z a ç ã o . Ε n o t á v e l a a l e g r i a d o s K a i n g á n g e m r e c e b e r os fóg ( i s t o é, os b r a n c o s ) n e s s a s o c a s i õ e s . F e s t a s c o m o e s t a s l e v a m os K a i n g á n g a u m e s t a d o d e e m b r i a g u e z c o l e t i v a , p r i n c i p a l m e n t e os h o m e n s . S e g u n d o a L e i 6 . 0 0 1 , o c h a m a d o Estatuto do Í n d i o , é p r o i b i d a a v e n d a d e b e b i d a s a l c o ó l i c a s para os i n d í g e n a s . C o n t u d o , n o c a s o dos K a i n g á n g , n o D i a d o í n d i o , e x i s t e u m a " l i b e r a ç ã o " para v e n d a d c b e b i d a s a l c o ó l i c a s d e n t r o da a l deia. Ε c o m u m nesta o c a s i ã o e n c o n t r a r pessoas caídas pelo salão dc baile ou n o g r a m a d o a o r e d o r d o b a r r a c ã o o n d e a c o n t e c e a f e s t a . N o e n t a n t o , tal s i t u a ç ã o não p a r e c e constituir e m n e n h u m tipo aparente de c o n s t r a n g i m e n t o ou vergon h a ( k o r é g , q u e s i g n i f i c a feio, r u i m ) , o q u e fica e v i d e n c i a d o e m narrativas c o m o : "ninguém pode falar nada porque hoje é permitido beber". Percebe-se que, nos dias p o s t e r i o r e s à f e s t a , p e s s o a s q u e já h a v i a m d e i x a d o a b e b i d a p o r m o t i v o s di¬ 5 versos voltam a fazer uso do álcool, bebendo por várias semanas. Segundo essas pessoas, os antigos companheiros insistem para que bebam e assim acabam não resistindo e recomeçam a beber. Assim c o m o no passado, as festas são para os Kaingáng uma forma coletiva de expressão social. Ε t a m b é m um espaço onde o b e b e r tem uma função 4 que é levar os indivíduos a expressarem emoções e sentimentos . A bebida propicia um estado de desinibição e alegria, tornando-os mais comunicativos e também muito corajosos, o que às vezes acarreta sérios problemas, deixando vir à tona formas de violência. S o b estado de embriaguez, qualquer ofensa pode ser considerada um b o m motivo para brigar. As reuniões sociais muitas vezes findam em discussões e acusações, por vezes evoluindo para brigas c o m a utilização de faca e foice, que resultam em ferimentos e até em morte. Segundo um informante: "A bebida dá coragem trar, de falar. Quando comigo na gente. Quando toma dá coragem aí eu tenho que enfrentar" não toma fica com medo de en- para falar, fazer serviço. Se outro mexer (Kaingáng, 36 anos). Ainda que a violência ocasionada pela bebida não aconteça somente nas festas, é nesse contexto que está mais propensa a emergir. Por isso, nessas ocasiões, algumas pessoas recebem como atribuição do cacique a missão de "controlar" aqueles que "passam" na bebida, na intenção de reprimir atitudes violentas. Dentro da sociedade Kaingáng existe uma diversidade política caracterizada pela existência de facções. E m situações de uso de álcool pode haver o de¬ sencadeamento de tensões entre os grupos. A violência doméstica é tida também c o m o uma das conseqüências do uso de bebidas. As mulheres são as maiores vítimas e sempre que podem reclamam da atitude de seus maridos com o cacique. O ciúme é outro sentimento desencadeado pela ingestão de bebidas alcoólicas e acaba sendo o principal motivo da violência doméstica. Violência entre pais e filhos também faz parte desta dolorosa realidade. Embora não seja uma data festiva no sentido mais amplo, o Dia de Finados é também uma data importante para os Kaingáng. Nos dias que o prece¬ 3 Vários são os motivos que levam a parar de beber, incluindo conversão religiosa e pro- blemas de saúde. Há casos de mulheres Kaingáng que adicionam o medicamento "dissul¬ firam" à comida de seus maridos, para que passem a rejeitar a bebida. Vale ressaltar que não se recomenda este medicamento pelos efeitos colaterais. 4 São vários os sentimentos expressados pelos Kaingáng após a ingestão de bebidas. Assim, para nossa pesquisa foi i m p o r t a n t e c o n h e c ê - l o s para a própria adaptação do C A G E — instrumento de triagem que utilizamos para obtenção de dados epidemiológicos. dem, confeccionam coroas feitas de papel crepom seguindo o modelo ocidental, para enfeitar o cemitério no "dia das almas". Ε uma data também marcada pelo consumo de bebidas alcoólicas. S e no passado era o kiki a bebida usada no ritual dos mortos, hoje são a c a c h a ç a e o vinho. Segundo eles, os "goles" fazem c o m que se sintam menos tristes ao visitar seus parentes mortos. Para um m e l h o r e n t e n d i m e n t o a c e r c a das representações simbólicas dos Kaingáng acerca dessas celebrações na atualidade, podemos nos remeter a Sahlins ( 1 9 9 0 ) , e m sua abordagem sobre a relação entre a história e o dinamismo das culturas. Segundo ele, "A história modos nas diversas sociedades, sas. O contrário mente porque, realizados também históricos, soas organizam preexistentes duzida culturalmente de acordo com os esquemas é verdadeiro: esquemas culturais em maior ou menor grau, os significados na prática. dos sujeitos é ordenada A síntese seus projetos e dão sentido Nesses diferentes de significação das coi- são ordenados quando nas ações criativas Porque, por um lado, as pes- aos objetos partindo termos, historica- são reavaliados desdobra-se ou seja, as pessoas envolvidas. da ordem cultural. na ação". desses contrários de a cultura das compreensões é historicamente repro- No processo de "construção cultural", as festas Kaingáng foram (re)criadas e ganharam um novo sentido dentro da organização social do grupo. O uso de bebidas destiladas, produto do dinamismo histórico-cultural desta sociedade, atrela-se t a m b é m a estruturas mais antigas. Nesse contexto, os Kaingáng, assim c o m o outros grupos indígenas, criaram uma "cultura do beber" bastante distinta. ESTUDOS EPIDEMIOLÓGICOS SOBRE O ALCOOLISMO O alcoolismo constitui uma das primeiras causas de morte em países latino-americanos c o m o México, C h i l e e Argentina (Menéndez, 1990). Pesquisa realizada na população norte-americana pelo National Clearinghouse for Alcohol and Drug Information ( N C A D I ) , revelou que, em 1993, havia 4,2 milhões de novos usuários de álcool e dentre eles, a taxa na faixa de 12-17 anos aumentou de 125 em 1991 para 172 por mil em 1995 (Marlatt, 1999). O C e n t r o Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas ( C E B R I D ) da Universidade Federal de São Paulo, realizou um extenso levantamento em hospitais psiquiátricos, gerais, clínicas e comunidades terapêuticas em todo o país e concluiu que o álcool foi a principal causa de internações por transtornos mentais, alcançando 9 0 % dos casos (Cavalieri & Egypto, 2 0 0 2 ) . E m populações culturalmente diferentes, as taxas apresentadas são diferenciadas, de acordo c o m maior ou menor permissividade para o uso da bebida (Souza & Aguiar, 2 0 0 0 ) . Wanberg et al. ( 1 9 7 8 ) demonstram que, dentre brancos, negros e hispânicos, os indígenas são os que apresentam maiores taxas de alcoolismo, o que os autores associaram à desagregação social e cultural. T a m b é m nesta vertente, Young ( 1 9 8 8 ) relacionou problemas de álcool e outras doenças à transição epidemiológica entre povos indígenas no Canadá. Há teorias que atribuem as altas taxas do alcoolismo entre indígenas a fatores de ordem genética. Alguns autores argumentam ao longo da "teoria da água e do fogo" (fire water theory), segundo a qual os indígenas não conseguem segurar o álcool por serem mais vulneráveis às bebidas alcoólicas (Ferreira, 1998). Entre os Navajo, 9 4 % dos adultos concordam que os indígenas têm problemas c o m álcool, sendo que 6 3 % acreditam que os mesmos apresentam alguma debilidade física em relação ao álcool, debilidade essa que os brancos não apresentam (Ferreira, 1 9 9 8 ) . Até o presente não há evidências suficientes que comprovem essa teoria. 5 Inquérito realizado entre os Teréna usando o C A G E c o m o instrumento de triagem, encontrou uma taxa de alcoolistas de 1 0 , 1 % na população geral (Souza & Aguiar, 2 0 0 0 ) . Esse percentual foi semelhante ao obtido em população não-indígena, utilizando metodologia s e m e l h a n t e (Miranda-Sá Jr. et al., 1989; Souza, 1 9 9 6 ) . Q u a n d o considerada a faixa de idade acima de 15 anos, a proporção de alcoolistas foi de 17,6% nos aldeados e de 19,7% na população que vive na periferia de Sidrolândia (diferenças estatisticamente não significativas). E m relação ao sexo, os resultados apontaram para 31 % entre homens Teréna aldeados e 2 2 , 4 % entre não aldeados. Esses valores foram semelhantes aos verificados na literatura internacional, isto é, 5 0 % dos prováveis dependentes do sexo masculino apresentavam menos de 30 anos de idade (O'Nell & Mitchell, 1996; Shore et al., 1973; Walker et al., 1994). Entre as mulheres, a prevalência na população aldeada foi de 1,6%, com concentração de casos nas faixas etárias mais elevadas. No entanto, dentre aquelas que vivem na periferia da cidade, a cifra foi 5 C A G E é u m instrumento de fácil aplicação e alta especificidade que procura determi- nar os "bebedores de risco". Amplamente utilizado em muitos países, foi validado n o Brasil por Masur & Monteiro ( 1 9 8 3 ) e seu uso tem sido preconizado pelo Ministério da Saúde. O C A G E em versão na língua portuguesa foi validado para a população Teréna na região de Miranda, M a t o Grosso do S u l , por Souza & Aguiar ( 2 0 0 0 ) . d e 1 7 , 1 % , o u s e j a , u m a p o r c e n t a g e m 10 v e z e s m a i o r q u e a d e m u l h e r e s a l d e a d a s e t a m b é m s u p e r i o r a d e m u l h e r e s n ã o - i n d í g e n a s . N a p o p u l a ç ã o a l d e a d a , as m u l h e r e s c o n s i d e r a d a s a l c o o l i s t a s a p r e s e n t a v a m m e i a i d a d e e m u i t a s e r a m viúvas. N a periferia da c i d a d e e r a m m a i s n o v a s , c m geral e m p r e g a d a s d o m é s t i c a s . U t i l i z a n d o - s e d o C A G F n u m a a m o s t r a de 9 3 f a m í l i a s K a i n g á n g entrevistadas, c o m u m total de 6 7 2 pessoas, foi v e r i f i c a d o q u e a q u e l e s q u e f i z e r a m uso d e b e b i d a s a l c o ó l i c a s n o s ú l t i m o s 12 m e s e s c o n s t i t u í r a m 2 9 , 9 % da p o p u l a ç ã o : 4 0 , 1 % e n t r e os h o m e n s e 1 4 , 2 % e n t r e as m u l h e r e s . Esses valores são b e m s u p e r i o r e s aos v e r i f i c a d o s e m p o p u l a ç õ e s n ã o - i n d í g e n a s ( S o u z a , 1 9 9 6 ) . D e v e - s e o b s e r v a r q u e as taxas a q u i a p r e s e n t a d a s n ã o s i g n i f i c a m q u e todas as pessoas s e j a m d e p e n d e n t e s d o á l c o o l , a p e n a s i n d i c a m q u e m fez uso de b e b i d a d u r a n t e o p e r í o d o d o e s t u d o , n ã o p o d e n d o ser n e c e s s a r i a m e n t e c o n s i d e r a d a s " d e p e n d e n t e s " . T o d a v i a , é i m p o r t a n t e ressaltar q u e estas pessoas e s t ã o e m s i t u a ç ã o d e r i s c o para d e s e n v o l v e r d e p e n d ê n cia q u í m i c a a o á l c o o l , o q u e já se observa e m a l g u n s c a s o s . A b e b i d a a l c o ó l i c a q u e c o n s o m e m p r e f e r e n c i a l m e n t e é a c a c h a ç a . A i n d a q u e a l g u n s f a ç a m uso de v i n h o e d e c e r v e j a , m a s as c o n s i d e r a m " b e b i d a d e á l c o o l " . P r o d u t o s c o m o o " á l c o o l d c farmácia", g e r a l m e n t e misturado c o m água e limão, e m e s m o desodorantes, tamb é m p o d e m ser c o n s u m i d o s . Foi t a m b é m e s t i m a d a a f r e q ü ê n c i a de pessoas sob risco de d e s e n v o l v e r d e p e n d ê n c i a q u í m i c a a o á l c o o l , q u e foi d e 1 0 , 7 % para a pop u l a ç ã o geral ( F i g u r a 1 ) . A o se c o n s i d e r a r s o m e n t e as pessoas a c i m a d e 1 0 a n o s , a p o r c e n t a g e m a u m e n t o u para 1 8 % , e a l c a n ç o u 2 1 , 3 % n o s e g m e n t o a c i m a d e 15 a n o s , s e m p r e c o m as cifras dos h o m e n s b a s t a n t e s u p e r i o r e s a das m u l h e r e s . ELEMENTOS PARA PROGRAMAS DE PREVENÇÃO Com base na experiência Kaingáng, d e s t a c a m o s a seguir alguns pontos que con- s i d e r a m o s i m p o r t a n t e s para o e s t a b e l e c i m e n t o d e p r o g r a m a s d e p r e v e n ç ã o e int e r v e n ç ã o s o b r e o c o n s u m o de b e b i d a s a l c o ó l i c a s e n t r e os povos i n d í g e n a s : (1) I d e n t i f i c a r e r e c o n h e c e r c o m o e s s e s g r u p o s se r e l a c i o n a m c o m as b e b i - das a l c o ó l i c a s , q u e i n c l u e m a s p e c t o s c o m o : c m q u a l c o n t e x t o se a p r e n d e a b e b e r ; os e s t i l o s d e b e b e r ; o q u e se b e b e ; c o m o as b e b i d a s f o r a m i n t r o d u z i d a s , e n tre o u t r o s . F i m p o r t a n t e t a m b é m c o n h e c e r c o m o as b e b i d a s se i n s e r e m n o c o t i d i a n o , c o m o se dá a c e s s o aos d e s t i l a d o s , a faixa etária n a q u a l c o m e ç a m a b e b e r , os s e n t i m e n t o s e as a t i t u d e s e x p r e s s o s a p ó s a i n g e s t ã o das b e b i d a s e s u a s c o n s e q ü ê n c i a s i n d i v i d u a i s e s o c i a i s , b e m c o m o os m e c a n i s m o s c u l t u r a i s e s o c i a i s a c i o n a d o s para e n f r e n t a r ( o u n ã o ) o p r o b l e m a ; Figura 1 F r e q ü ê n c i a relativa d e i n d i v í d u o s K a i n g á n g da T . l . A p u c a r a n i n l i a C A C E + , L o n d r i n a , P a r a n a , 1 9 9 9 . (2) Realizar diagnósticos epidemiológicos que possibilitem c o n h e c e r a si- tuação do consumo de álcool e as características sócio-econômicas das famílias daqueles que fazem uso de bebidas. É importante identificar os indivíduos em "situação de risco". Para tal, sugerimos a utilização do C A G E adaptado para aplicação em sociedades indígenas, de acordo com as especificidades culturais de cada grupo. A realização de estudos de prevalência do alcoolismo nas populações indígenas é bastante importante, pois permite a comparação das taxas encontradas com as de outros grupos populacionais, possibilita o reconhecimento dos danos e repercussões dentro do grupo, e pode vir a servir c o m o parâmetro de avaliação de programas; (3) Envolver a comunidade em questão. Ε importante direcionar as ativida des de prevenção aos mais jovens, enfatizando atividades pedagógicas e desportivas junto àqueles que não são usuários de bebidas alcoólicas ou outras drogas. As orientações e as informações educativas sobre as conseqüências do uso abusivo do álcool são necessárias e essenciais. Sugere-se a realização de oficinas sobre saúde, nas quais seja debatido o problema do alcoolismo, suas conseqüências e, principalmente, sua associação c o m outros agravos, incluindo as doenças sexualmente transmissíveis e A I D S . A participação da comunidade deve incluir lideranças tradicionais e especialistas de cura. A revitalização cultural t a m b é m é um aspecto que deve ser enfatizado e incentivado. O resgate de práticas tradicionais contribui para o fortalecimento dos indivíduos e das comunidades, fazendo-se refletir em melhoria da qualidade de vida, assim c o m o da saúde de uma forma geral; (4) Estabelecer e organizar o atendimento às pessoas com problemas com ál- cool e suas famílias nas unidades de saúde situadas nas próprias áreas indígenas. Para tanto, faz-se necessária a capacitação adequada de profissionais, cujo treinamento deve ser abordar as especificidades sócio/históricas e culturais de cada grupo, visando o melhor reconhecimento das pessoas em relação aos aspectos micro e macrossociais associados ao uso de álcool. Deve-se garantir o acompanhamento contínuo dos casos. N o estabelecimento de programas de prevenção e intervenção sobre o alcoolismo, é imprescindível ter clareza acerca do caráter multidisciplinar e processual que este tema requer. As mudanças em relação ao alcoolismo ocorrerão a médio e a longo prazos. D a í a necessidade de se avaliar continuamente cada atividade implantada no decorrer deste processo. Acima de tudo, uma questão é certa: faz-se necessário e urgente enfrentar o problema. Referências AGUIAR, J . I. & SOUZA, J. Α., 1997. Prevalência de Alcoolismo na População Indígena da Nação Teréna do Complexo Sidrolândia-Colônia Dois Irmãos do Buriti. 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