O uso de bebidas alcoólicas nas sociedades indígenas:
algumas reflexões sobre os Kaingáng da bacia do rio Tibagi, Paraná
Juberty Antonio de Souza
Marlene de Oliveira
Marilda Kohatsu
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COIMBRA JR., CEA., SANTOS, RV and ESCOBAR, AL., orgs. Epidemiologia e saúde dos povos
indígenas no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; Rio de Janeiro: ABRASCO, 2005.
260 p. ISBN: 85-7541-022-9. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
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O USO DE BEBIDAS ALCOÓLICAS
NAS SOCIEDADES INDÍGENAS: ALGUMAS
REFLEXÕES SOBRE OS KAINGÁNG
DA BACIA DO RIO TIBAGI, PARANÁ
Juberty Antonio de Souza, Marlene de Oliveira
Marilda Kohatsu
Este artigo não tem a intenção de suscitar um debate teórico
acerca do alcoolismo, mas apontar para algumas questões referentes ao uso de
bebidas alcoólicas no contexto das sociedades indígenas, enfocando principalmente pesquisa realizada entre os Kaingáng da Bacia do Rio Tibagi, no Paraná.
Discutir o uso de bebidas alcoólicas e/ou alcoolismo entre este grupo implica
desvendar uma longa rede de relações que foram sendo tecidas pelos Kaingáng a
partir de uma trajetória estabelecida ao longo do contato com a sociedade nacional. Para compreender este fenômeno, presente na maioria das populações indígenas, faz-se necessário entender as múltiplas causas relacionadas ao processo de
alcoolização no interior dessas sociedades.
Nossa análise acerca do fenômeno do alcoolismo não se limita somente
aos modelos explicativos da biomedicina, pois esses não têm sido suficientes para
compreender o complexo problema do uso de álcool e/ou alcoolismo entre as
populações indígenas. As ciências sociais, e antropologia em particular, têm fornecido subsídios importantes para elucidar a diversidade de situações ligadas ao
consumo de bebidas alcoólicas, o contexto no qual se aprende a beber, a intensidade do consumo, as representações do beber, as variações nos estilos de beber,
etc. Por sua vez, destacamos a importância da epidemiologia, que tem propiciado, por meio de instrumento apropriado, a obtenção de taxas sobre a prevalência
do alcoolismo, entre outros aspectos.
E n t r e os agravos à saúde que a c o m e t e m os povos indígenas no Brasil,
é perceptível que o c o n s u m o de bebidas alcoólicas tem se intensificado, ainda
que faltem dados precisos para quantificar tendências. No quadro de morbida¬
de ambulatorial, aparece c o m o agravo freqüente, destacando-se c o m o principal causa de mortalidade ligada a fatores externos, tais c o m o acidentes, brigas,
quedas, atropelamentos, etc. D o e n ç a s c o m o cirrose, diabetes, hipertensão arterial, doenças do c o r a ç ã o , do aparelho digestivo, depressão e estresse, entre
outras, estão relacionadas ao c o n s u m o abusivo de bebidas alcoólicas (Oliveira, 2 0 0 0 b ) .
A desnutrição protéico-calórica em crianças aparece de forma bastante
significativa nas aldeias indígenas, principalmente na região sul do país, sendo
provável que esteja, em parte, ligada ao consumo de bebidas alcoólicas por parte dos pais. As atividades cotidianas, incluindo subsistência e alimentação, podem ser bastante alteradas pelo consumo de bebidas alcoólicas. A síndrome fetal alcoólica, decorrente do consumo de álcool durante a gestação, configura-se
c o m o uma realidade perversa que atinge os grupos indígenas. Muitas crianças
apresentam problemas de comportamento, deficiências no crescimento, desordem no sistema nervoso central (Siqueira-Duran, 2 0 0 1 ) , entre outras dificuldades. Nem de longe esses problemas são reconhecidos ou diagnosticados c o m o
sendo ligados ao uso de bebidas alcoólicas, ainda que possivelmente estejam
em algum grau.
Ainda em relação aos fatores externos ligados ao alcoolismo, têm sido relacionados casos de homicídio, suicídio, violência entre grupos, incestos, abusos
sexuais, estupros, que elevam o índice de mortalidade entre os jovens e adultos
dentro de áreas indígenas em diferentes estados do Brasil. Esta situação tornouse objeto de preocupação de alguns grupos indígenas, que têm solicitado uma
intervenção dos órgãos oficiais para resolver o problema.
Assim, preocupados com a situação sobre uso abusivo de bebidas alcoólicas entre o povo Kaingáng da Bacia do Rio T i b a g i e as c o n s e q ü ê n c i a s desse
1
processo, foi iniciado um trabalho de pesquisa e intervenção . Para uma melhor
compreensão acerca do uso de bebidas alcoólicas e/ou alcoolismo, ao longo deste texto destacaremos algumas questões ligadas ao b e b e r que têm sido fundamentais para o nosso trabalho. Ε importante ressaltar que o estabelecimento do
debate interdisciplinar tem possibilitado uma melhor compreensão sobre o al¬
1
Este capítulo apresenta dados de u m a pesquisa e m andamento coletados entre os Kain-
gáng da Τ . I. do Apucaraninha da região de Londrina, Paraná. O s Kaingáng são um povo
Jê meridional e representam um c o n t i n g e n t e populacional n u m e r i c a m e n t e importante
no sul do país, somando aproximadamente 2 5 mil pessoas, espalhados pelos Estados de
São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio G r a n d e do Sul. N o Paraná, vivem cerca de 7 . 5 0 0
Kaingáng, distribuídos e m várias Terras Indígenas. A Τ . I. Apucaraninha ocupa a porção
sudoeste do M u n i c í p i o de Londrina, sendo limitada ao norte pelo R i o Apucaraninha, ao
sul pelo Rio Apucarana e a leste pelo Rio T i b a g i . Os Kaingáng da Τ . I. Apucaraninha so­
m a m aproximadamente 1.300 pessoas, e m um total de 2 5 0 famílias. A Prefeitura M u n i c i pal de Londrina, por intermédio das Secretarias Municipais de Ação Social e Saúde, tem
desenvolvido importantes trabalhos junto a esta população.
coolismo nos seus múltiplos fatores. No final do texto apontamos para algumas
possibilidades para a implantação de programas, objetivando a redução de danos
em relação ao uso de bebidas alcoólicas no contexto dessas sociedades.
REPENSANDO O CONCEITO
BIOMÉDICO DO ALCOOLISMO
Ε necessário conceituar aqui c o m o o alcoolismo vem sendo definido pelas ciências médicas. Segundo a Organização Mundial da Saúde ( O M S ) , o alcoolismo
passou a ser denominado como "Síndrome de Dependência do Álcool" e sua definição enquanto tal é: "...estado
da ingestão
sempre
do álcool,
incluem
uma compulsão
co, a fim de experimentar
sua falta, a tolerância
apud
psíquico
caracterizado
seus efeitos psíquicos
ao mesmo
podendo
psicossociais
manifestações"
e ambientais
geralmente
físico,
de comportamento
para ingerir álcool
Quilles, 2 0 0 0 : 6 ) . O u ainda, "...uma
genéticos,
e, também,
por reações
resultante
e outras
de modo contínuo
ou
que
periódi-
e por vezes evitar o desconforto
ou não estar presente"
doença
influenciando
crônica
de
( J . M . Bertolote
primária,
com
seu desenvolvimento
fatores
e suas
(Marlatt, 1999).
A síndrome da dependência do álcool é caracterizada c o m o um processo seqüencial, que se inicia c o m ingestão de bebidas até chegar a uma situação
de dependência, num período que varia entre 5 a 10 anos, ligada a fatores cognitivos, comportamentais e fisiológicos. Por outro lado, as incapacidades relacionadas ao álcool consistem em disfunções físicas, psicológicas e sociais que
advêm direta ou indiretamente do uso excessivo de bebida e da "dependência"
(Souza, 1996).
O conceito biomédico da síndrome de dependência do álcool, caracterizada c o m o universal, tem estabelecido o alcoolismo c o m o doença, cuja causa é
sempre a mesma para todas as pessoas em diferentes culturas. Dentro deste conceito, o alcoolismo aparece com conotação física, patológica e individual. No entanto, sabemos da necessidade de relativizar este conceito, visto que diversas culturas têm demonstrado padrões e hábitos de beber bastante específicos (Heath,
1 9 9 3 ) . Entre os grupos indígenas, a maneira c o m o b e b e m difere de grupo para
grupo, assim c o m o as taxas variam de acordo com as particularidades do contexto sociocultural e histórico de cada povo (Langdon, 2 0 0 0 ) . Sobre isso, Marlatt
( 1 9 9 9 : 6 5 ) , cita uma frase bastante pertinente que diz "um só tamanho
dos", querendo dizer que: "...pensar
desta forma
o alcoolismo
veste to-
pode inadvertida¬
mente desencorajar
de tratamento
as suas
indivíduos
que trabalhem
com problemas
com propostas
mais leves a participar
de moderação
de
mais apropriados
serviços
para
condições".
Frente a isso, consideramos a necessidade de se repensar o conceito do
alcoolismo, elegendo outros fatores que não sejam somente aqueles de ordem
biomédica. Para tanto, é importante considerar a contribuição de outras disciplinas, como a antropologia, que parte de outras perspectivas para interpretar o "beber". Há importantes pesquisas antropológicas que apontaram para maneiras diferentes de se olhar a questão do alcoolismo, demonstrando os vários significados
do beber em diferentes povos do mundo (Douglas, 1987; Heath, 1993; Jellinek,
1960; M e n é n d e z , 1990). Estes autores destacam a necessidade de se entender o
fenômeno do alcoolismo dentro do contexto sociocultural, sinalizando para a diversidade e as múltiplas representações do "beber" nas diferentes culturas, assim
como para as diferentes causas do consumo de bebidas alcoólicas, sua intensidade
e estilos de beber (Langdon, no prelo). Segundo Douglas ( 1 9 8 7 ) , o uso do álcool
não só conduz a um relaxamento dos padrões culturais, mas também a comportamentos altamente padronizados e aprendidos, que diferem de uma cultura para
outra. Já Heath (1993), ressalta a diversidade de significados do álcool. E m determinados contextos pode servir de alimento, enquanto que em outros é tido como
sagrado. A embriaguez pode ser considerada como um estado religioso, enquanto
que em outros grupos, um grande desconforto ( D . Heath apud Quilles, 2 0 0 0 ) .
O c o n s u m o excessivo de bebidas alcoólicas e de outras drogas tem se
agravado entre várias etnias indígenas no país, o que mostra a situação de vulnerabilidade a que estão expostas. Vários são os fatores que contribuem para o agravamento desta problemática — expropriação, redução e exploração de territórios
indígenas, dificuldades de auto-sustentação, moradia nas periferias de grandes cidades, etc. Ao adotarmos uma perspectiva interdisciplinar, buscamos a possibilidade de uma compreensão mais profunda sobre o fenômeno para, assim, podermos (re)orientar e (re)avaliar ações que conduzam à redução do alcoolismo entre esses povos.
DAS BEBIDAS ALCOÓLICAS FERMENTADAS
ÀS BEBIDAS ALCOÓLICAS DESTILADAS
O uso de bebidas fermentadas e de substâncias psicoativas é uma tradição bastante antiga, que por vezes remonta ao período pré-colombiano, e que desempe¬
nha importante papel dentro da estrutura social das diferentes sociedades indígenas do continente sul americano. A maioria dessas sociedades preparava bebidas
alcoólicas fermentadas, cujas matérias-primas incluíam seiva da palmeira, mel,
frutas, banana, batata doce, milho, mandioca, caju, etc. Eram preparadas e depositadas em cochos de madeira ou em grandes potes de barro, cabendo às mulheres sua produção. O consumo era coletivo e, em alguns grupos, a beberagem durava dias, até se exaurir o estoque da bebida, e servia para cumprir rituais bem
marcados. Outros grupos usavam a bebida fermentada com finalidade terapêutica e em rituais de xamanismo. Outros faziam uso dessas habitualmente, c o m o
alimento ou divertimento. A maneira, a finalidade e a ocasião para se fazer uso
dessas bebidas diferiam (e continuam a diferir) de um grupo para outro.
Entre os Kaingáng, o uso de bebidas fermentadas restringia-se a rituais,
seguindo um calendário bem marcado. Acontecia por ocasião de caçadas, pescarias, colheita, guerra, ritos de nascimento, iniciação, cerimônias fúnebres e celebrações mágico-religiosas. O kiki é uma bebida fermentada feita a base de milho, água e m e l , usada durante a festa mais importante dos Kaingáng — o kiki
koi, um ritual do culto aos mortos. Sua preparação era marcada por atividades ri¬
tualísticas, organizadas pelas metades exogâmicas (kamé
e kairu).
Os Kaingáng
bebiam o kiki até esgotarem os grandes cochos de madeira (Baldus, 1979; Barbo¬
za, 1913; Becker, 1976; Borba, 1 9 0 8 ; Teschauer, 1 9 0 5 ; Veiga, 1 9 9 4 ) . O kiki koi
era um ritual altamente simbólico, no qual transparece a rede social desta sociedade, permitindo aos seus integrantes intensificar suas relações e reafirmar sua
identidade grupal.
Segundo Baldus ( 1 9 7 9 ) , é possível que o ritual do kiki koi tenha sido realizado em todas as aldeias Kaingáng até o inicio do século X X . Entre os Kaingáng
do Apucaraninha, está somente na m e m ó r i a de alguns velhos. Atualmente, os
Kaingáng de C h a p e c ó ainda mantêm este rito. Q u e se saiba, são os únicos que
ainda o realizam, preparando a bebida em grandes cochos de madeira, mas adicionando cachaça aos ingredientes tradicionais (Tommasino & Rezende, 2 0 0 0 ) .
No Brasil, são vários os grupos indígenas que ainda c o n s o m e m bebidas
alcoólicas fermentadas e, para todos, a bebida possui um significado próprio dentro do contexto na qual é consumida. Entre algumas etnias do Acre, c o m o os Ka¬
xináwa, fabrica-se a c a i ç u m a , feita de batata e de macaxeira, que é consumida
durante a festa do mariri.
Os Yawanáwa, também fabricantes da caiçuma, costu-
m a m e n c h e r os c o c h o s de madeira c o m 2 0 0 a 4 0 0 litros da bebida "forte", que
consomem por ocasião de vários rituais (Oliveira, 2000a). Os Kaxináwa, os Yami¬
náwa e os Kulina, entre outros, têm por costume oferecer às suas crianças a cai¬
ç u m a . Neste caso, a bebida cumpre a função de alimento e é preparada c o m o
"bebida fraca" (Oliveira, 2000a).
Tudo indica que o consumo de bebidas alcoólicas fermentadas entre os
grupos indígenas não provocava transtornos de ordem física ou biológica, c o m o
acontece em relação ao uso das destiladas no presente. O uso de psicoativos em
culturas tradicionais ocorria em contextos ritualizados; sendo assim, raramente
apresentava-se c o m o nocivo para os seus participantes, no grau que se vê nos dias
atuais. No entanto, pela dinâmica do contato, as bebidas tradicionais fermentadas acabaram sendo substituídas, mesmo que parcialmente, pelas destiladas. E m
contextos de uso de bebidas fermentadas, a passagem para os destilados parece
ocorrer com maior facilidade.
E m Roraima, o caxiri, o mocororo e o pajuaru são produzidos em grande escala e consumidos por quase todas as etnias. Tradicionalmente, além de distintos significados, a bebida servia também c o m o fonte de alimento. No entanto,
o uso dessas bebidas já está sendo problemático na região dos Wapixána e Maku¬
xí, conforme relatos de representantes indígenas. C o m a introdução dos destilados, ambos os grupos passaram a utilizar a bebida fermentada de forma descontrolada e c o m uma fermentação superior, que denominam de "bebida forte", o
que tem ocasionado muitas desavenças (Oliveira, 2002a,b). Na falta da cachaça,
o caxiri e o pajuaru são fabricados pelos indígenas de forma desordenada, deixando de cumprir funções socialmente definidas e ritualísticas. Entre os Makuxí,
as mulheres estão se recusando a fazer o caxiri por conta das grandes bebedeiras
de seus maridos e pelos transtornos decorrentes (Oliveira, 2002a.b).
Além da fermentação visando a obtenção de teor alcoólico mais forte,
alguns indígenas costumam adicionar às bebidas o fermento comprado em supermercado, objetivando acelerar o processo de fermentação para que possam
consumi-las mais rapidamente. Outras vezes adicionam a própria c a c h a ç a . E m
vários grupos com os quais tivemos contato, a cachaça foi introduzida e c o m e ç a
a fazer parte do cotidiano, contribuindo para a desagregação social, cultural e
ocasionando agravos à saúde. Por exemplo, os Yanomámi, que tradicionalmente
não consumiam bebidas fermentadas, tomaram de empréstimo o caxiri dos Makuxí e atualmente estão c o n s u m i n d o c a c h a ç a em larga escala ( E . Magalhães,
2002, comunicação pessoal).
No caso dos Kaingáng, conforme se dava o processo de pacificação e
contato, consta que começaram a substituir as bebidas fermentadas nos cochos
2
pela c a c h a ç a , fabricada em alambiques , algo que teve importante papel na estratégia de subjugação desse povo frente à sociedade nacional (Mota, 1998; Oli¬
veira, 2000a). A partir de então, deu-se o uso indiscriminado da bebida destilada.
Isso ocorreu concomitantemente à catequização, à desvalorização da cultura indígena, à imposição de novos valores e à perseguição aos kuiã, especialistas tradicionais dos Kaingáng.
C o m os Teréna do Mato Grosso do Sul, a situação não foi diferente. O
contato prolongado e a convivência com os regionais fizeram com que eles compartilhassem dos mesmos problemas, principalmente em relação ao uso de bebidas. A introdução das bebidas destiladas tornou-se uma constante entre este grupo, registrando uma proporção maior do consumo em relação às populações que
vivem no entorno de suas aldeias (Aguiar & Souza, 1997; Souza & Aguiar, 2000).
OS DIFERENTES PADRÕES
DE COMPORTAMENTO ALCOÓLICO
Outra questão importante é reconhecer c o m o se dá o uso das bebidas, as diferentes atitudes e os diversos estilos de beber ( S . Kunitz, apua
Langdon, no prelo;
Zinberg apua M a c R a e , 1992).
Ao estudar os Maxakalí, Minas Gerais, Torreta ( 1 9 9 7 ) , encontrou 3 8 %
dos adultos fazendo uso semanal de bebidas alcoólicas. Entre os Bororós, Quilles
( 2 0 0 0 ) , refere que o costume de b e b e r se dá de forma generalizada. H o m e n s ,
mulheres, velhos e jovens bebem ou já beberam em alguma época, "socialmente" ou de forma dependente.
E m uma pesquisa sobre alcoolismo entre os Navajo, foram identificados diferentes estilos de beber, destacando-se o "beber social" e o "beber problem á t i c o " ( S . Kunitz apua
Langdon, no prelo). No primeiro, caracterizado por
grupos de h o m e n s e pela grande quantidade de bebida que ingeriam por dias
seguidos, as pessoas conseguiam passar dias e até semanas sem beber ou tinham
bebedeiras episódicas. O segundo estilo era caracterizado por pessoas que be¬
biam sozinhas. No caso do estilo de beber social, verificou-se que algumas pessoas conseguiam parar de beber sem ajuda ou sem interferência médica, o que
não ocorria c o m os bebedores solitários. Esses não conseguiam parar e n e m di-
2
Na Terra Indígena do Apuearaninha, consta que foram instalados vários alambiques pa-
ra produzir a ç ú c a r e aguardente, c o m várias c o n s e q ü ê n c i a s . Há referências sobre estes
alambiques ainda na época do Governo de G e t ú l i o Vargas.
minuir o uso das bebidas e muitas vezes morriam por causas relacionadas ao
uso de álcool.
E n t r e os Kaingáng, embora alguns b e b a m individualmente, a grande
maioria costuma beber de forma coletiva. O u seja, o beber é usualmente compartilhado. O ato de beber em companhia de outros parece ser um elo importante
de ligação social, sempre ligado a contextos de reuniões e festividades. Não se
percebe muito o estilo "beber sozinho" entre os Kaingáng, embora ocorra.
Outro aspecto importante refere-se à freqüência, isto é, se o c o n s u m o
acontece todos os dias, em alguns dias ou somente em finais de semana. Entre os
Kaingáng, constatamos uma variação que parece estar ligada a determinados valores, c o m o responsabilidade familiar, dinheiro, emprego, problemas de saúde,
disposição para o trabalho, entre outros. Enquanto algumas pessoas b e b e m somente em finais de semana (quando se verifica o aumento de violência e de prisões), outras bebem durante a semana. Os bebedores de finais de semana costumam dizer que "durante
cuidar da família.
a gente não bebe, pois precisa
trabalhar
para
Se beber, aí estraga tudo e a gente não consegue
trabalhar.
Ago-
ra no fim de semana
a semana
aí a gente bebe com os companheiros"
(homem Kaingáng, 42
anos). O u seja, para alguns, a responsabilidade em relação à família é um mecanismo importante que reduz o consumo de bebida durante a semana. Segundo
outro informante, "...se tivesse dinheiro
mizar para andar certo. Sempre
dos companheiros
bebia
todos os dias, mas tenho que
tomo uns goles para matar a vontade.
a gente sempre
passa na bebida
e sente prejudicado"
econo-
Por causa
(homem
Kaingáng, 32 anos). Ε bastante c o m u m ouvir lamentações e acusações por parte
dos bebedores em relação aos seus companheiros: "A gente passa na bebida
causa dos companheiros,
eles não deixam
a gente afastar
da bebida"
por
(Kaingáng,
39 anos).
Numa análise sobre o estilo de beber de uma comunidade andina, Heath
( 1 9 9 3 ) referiu-se ao beber compartilhado c o m o sendo um "lubrificante social",
um símbolo de unidade. Jellinek ( 1 9 6 0 ) fala da dimensão simbólica que a bebida proporciona e o beber compartilhado c o m o possibilidade de identificação de
uns c o m os outros.
Para os Kaingáng, o ato de beber em companhia de u m a ou mais pessoas parece estar fortemente vinculado a aspectos da organização sociocultural,
no qual laços de reciprocidade são estabelecidos e fortalecidos. Quando tem dinheiro, um companheiro oferece para pagar a bebida dos demais, geralmente
um parente. Segundo um informante, "muita gente bebia
dias. Se eu acho no meio da semana
demais
aqui, todo os
os meus colegas aí eu bebo. No dia de festa aí
eu bebo mesmo,
são muitos os colegas.
Tem outro clima de divertimento"
Kaingáng, 36 anos). Disse outro: "Não bebo no meio da semana,
ta-feira,
no sábado e domingo.
Se quiser parar de beber, acho que consigo. As vezes
paro, fico 20 dias sem tomar nada e aí os companheiros
Sozinho
não sinto vontade
que eles animam
a gente"
(homem
só bebo na sex-
beber, somente
quando
e volto a
beber.
estou com os companheiros
oferecem
por-
( h o m e m Kaingáng, 52 anos). U m outro informante,
que se diz bebedor de final de semana, relata: "no tempo que eu tomava,
tinha vontade
de beber depois do trabalho
sempre
para tirar a dor do corpo. Agora
parei
de beber porque estou com uma dor meio esquisita.
Os amigos me convidaram
ir na casa deles beber, aí eu experimentei
e logo começou
Talvez eu fico louco. A bebida
valentão,
matado.
a bebida
é boa, mas encurta
a vida da gente. A gente quer ser
bom da boca. Já briguei muito e aí encontra
Por isso eu tenho que descansar
da bebida.
com outro valentão
Meu irmão me deu
mas se ele quiser beber eu pago pra ele. Meus amigos estão sabendo
mas mesmo assim eles oferecem
me ofereceram
e eu disse não. Aí eles falaram
e morre
conselho,
que eu
pra mim e às vezes eu pago pra eles. No
eu pago para eles ficarem contentes"
pra
a dor de novo.
parei,
domingo
que eu queria ser melhor que eles. Aí
(homem Kaingáng, 4 2 anos).
Verificamos que as pessoas que b e b e m sozinhas são aquelas c o m maior
facilidade de se embriagarem durante a semana, a qualquer hora do dia, sendo
discriminadas na aldeia. Ε comum ouvir pessoas dizendo "lá vem fulano
bêbado"
e já esta
ou "esse aí não tem mais jeito". Uma dessas pessoas revelou-nos em seus
momentos de não embriaguez o desejo enorme de parar de beber para não mais
sofrer. Segundo esse h o m e m , por mais que se esforce, não tem conseguido deixar a cachaça (Oliveira, 2002a,b). Vale ressaltar que alguns homens que bebiam
"sem controle" foram deixados por suas mulheres. A propósito, a proporção de
mulheres Kaingáng que fazem uso de bebidas alcoólicas é quase insignificante
quando comparada aos homens. Entre os Teréna, Souza & Aguiar (2000) observaram que as mulheres que residem nas periferias de cidades consomem mais álcool do que as residentes nas aldeias.
A religião atua c o m o fator importante entre os Kaingáng no ato de "parar de beber ou c o m e ç a r a beber". Tanto a igreja católica c o m o as pentecostais
(Missão Cristianismo Decidido e Assembléia de D e u s ) têm exercido um papel
neste sentido. Os indivíduos que passam pela conversão religiosa devem seguir
regras rígidas de conduta e entre elas está a proibição ao uso de bebidas alcoólicas. E m alguns casos, a conversão com a finalidade de deixar a bebida ocorre em
aparência, pois, conforme percebemos, muitas pessoas convertidas continuam a
beber, muitas vezes de forma oculta. Outros, já convertidos, voltam a beber de
repente, às vezes até por motivos "banais", c o m o foi o caso de um h o m e m e sua
mulher que, após sete anos convertidos, voltaram a fumar e beber porque ficaram desgostosos c o m um comentário feito por um "irmão" da Igreja.
Segundo Oliveira ( 2 0 0 2 a , b ) , a conversão religiosa tem conseguido restringir o uso de bebidas alcoólicas entre os Kaingáng, apesar da ocorrência de
"desvios" (i.e., atos ou atitudes "proibidos" pela religião). Isso também foi observado entre os Teréna (Souza & Aguiar, 2 0 0 0 ) . O u seja, a religiosidade apresentase c o m o fator a ser considerado dentre os mecanismos controladores do uso abusivo de álcool. Por outro lado, diferentes igrejas pentecostais instaladas e m aldeias de todo o país pregam c o m o principio básico a "conversão das almas pagas". Faz-se necessária uma maior reflexão sobre os prejuízos que isto tem provocado para as sociedades indígenas.
A idade é também um fator importante na iniciação do consumo de bebidas alcoólicas, o que tem i m p l i c a ç õ e s no e s t a b e l e c i m e n t o de programas de
prevenção. E m alguns grupos indígenas, c o m o os Teréna, Gavião, Xavánte, Ka¬
rajá, Tikúna, Maxakalí, Kayapó, Kaiwá, Xakriabá, Makuxí, entre outros, o início
do consumo de bebidas destiladas c o m e ç a entre 10 e 12 anos de idade, e às vezes até m e s m o aos 7 anos (Oliveira, 2 0 0 0 a ) . Esse padrão é t a m b é m observado
entre os Kaingáng. O fato de começarem a beber c o m esta idade parece marcar
um rito de passagem para a fase adulta, visto que neste ato estão embutidos atributos c o m o coragem, força e valentia, que reforçam a idéia de masculinidade.
Ao contrário, se deixa de beber, lembrando sempre que são os companheiros que
oferecem a bebida, este indivíduo pode ser taxado c o m o fraco ou covarde. O início precoce do consumo faz com que jovens Kaingáng, quando atingem seus 2027 anos, c o m e c e m a apresentar intensas dores no estômago, às vezes convulsões,
sintomas possivelmente causados pela síndrome de abstinência.
Shore et al. (1973) e Walker et al. ( 1 9 9 4 ) apontaram que, além das altas
taxas de alcoolismo entre indígenas americanos em relação à população não-in¬
dígena, estas são maiores entre os mais jovens. O'Nell & Mitchell ( 1 9 9 6 ) explicam que as maiores taxas de consumo de álcool entre os jovens ocorre c o m o demonstração de coragem, humor e talvez por estarem mais distantes dos valores
tradicionais.
Constatada a diversidade nos padrões do comportamento alcoólico dos
Kaingáng, o passo seguinte é apreender o significado que atribuem a "beber problemático", "beber sucessivo", "beber excessivo" ou "abuso episódico do álcool"
(Langdon, no prelo; Marlatt, 1999). O reconhecimento de especificidades na variação de estilos de beber dentro de um mesmo grupo é importante para melhor
c o m p r e e n d e r o f e n ô m e n o d o a l c o o l i s m o , e a j u d a a o r i e n t a r n o t r a t a m e n t o am¬
b u l a t o r i a l o f e r e c i d o n a a l d e i a . Λ partir d o e n t e n d i m e n t o da e x i s t ê n c i a d o s difer e n t e s estilos, e x e m p l i f i c a d o s d e a c o r d o c o m as narrativas d c nossos i n f o r m a n t e s ,
p o d e m o s d i z e r q u e os K a i n g á n g p e r c e b e m o a l c o o l i s m o c o m o u m fator n e g a t i vo, f a z e n d o c o m q u e b u s q u e m a l t e r n a t i v a s p a r a m i n o r a r a s i t u a ç ã o .
O USO DE BEBIDAS NO C O N T E X T O DAS FESTAS
As festas, i n c l u i n d o o D i a d o í n d i o , N a t a l , A n o N o v o , S a n t o A n t ô n i o , S ã o J o ã o ,
S ã o Pedro, Festa do D i v i n o , b e m c o m o bailes c o m c o n j u n t o s sertanejos, são ocasiões q u a n d o os K a i n g á n g g e r a l m e n t e f a z e m uso da b e b i d a e m larga e s c a l a ( O l i veira, 2 0 0 2 a , b ) . Ε perceptível a l i g a ç ã o q u e eles e s t a b e l e c e m c o m a b e b i d a antes, d u r a n t e e d e p o i s da festa, s e n d o t a m b é m vários os s i g n i f i c a d o s q u e a t r i b u e m
a o fato d e b e b e r e m n e s t a s o c a s i õ e s . As festas m u i t a s v e z e s p r o p o r c i o n a m a o s j o v e n s o " p r i m e i r o g o l e " . É c o m u m o b s e r v a r n e s t a s o c a s i õ e s r a p a z e s e m o ç a s faz e n d o uso de b e b i d a s , a i n d a q u e s e j a s o m e n t e u m c o p o d e c e r v e j a .
O u s o da c a c h a ç a n o c o n t e x t o das festas e s t a b e l e c e e i n t e n s i f i c a u m a red e d e r e l a ç õ e s s o c i a i s e d e t r o c a , visto ser a c a c h a ç a d i s t r i b u í d a e c o m p a r t i l h a d a
e n t r e t o d o s , a l é m d e ser u t i l i z a d a c o m o j u s t i f i c a t i v a para e l e v a r o â n i m o d a q u e les e n v o l v i d o s d u r a n t e a p r e p a r a ç ã o da a t i v i d a d e . S e g u n d o os K a i n g á n g , "a
trabalha
muito
o u a i n d a , "temos
ter coragem
nestes
dias
e então
temos
que dar u n s golinhos
de fazer
tudo".
que beber
para
para
que o corpo
tirar a canseira
fique
firme
do
para
gente
corpo",
a
gente
F e s t a s , c o m o a d o D i a d o í n d i o , p o d e m se e s t e n d e r
p o r v á r i o s dias, q u a n d o se d a n ç a a n o i t e i n t e i r a , c o m u m a i n t e n s a p a r t i c i p a ç ã o
d c p e s s o a s da r e g i ã o n a c o n f r a t e r n i z a ç ã o . Ε n o t á v e l a a l e g r i a d o s K a i n g á n g e m
r e c e b e r os fóg ( i s t o é, os b r a n c o s ) n e s s a s o c a s i õ e s . F e s t a s c o m o e s t a s l e v a m os
K a i n g á n g a u m e s t a d o d e e m b r i a g u e z c o l e t i v a , p r i n c i p a l m e n t e os h o m e n s .
S e g u n d o a L e i 6 . 0 0 1 , o c h a m a d o Estatuto
do Í n d i o , é p r o i b i d a a v e n d a
d e b e b i d a s a l c o ó l i c a s para os i n d í g e n a s . C o n t u d o , n o c a s o dos K a i n g á n g , n o D i a
d o í n d i o , e x i s t e u m a " l i b e r a ç ã o " para v e n d a d c b e b i d a s a l c o ó l i c a s d e n t r o da a l deia. Ε c o m u m nesta o c a s i ã o e n c o n t r a r pessoas caídas pelo salão dc baile ou n o
g r a m a d o a o r e d o r d o b a r r a c ã o o n d e a c o n t e c e a f e s t a . N o e n t a n t o , tal s i t u a ç ã o
não p a r e c e constituir e m n e n h u m tipo aparente de c o n s t r a n g i m e n t o ou vergon h a ( k o r é g , q u e s i g n i f i c a feio, r u i m ) , o q u e fica e v i d e n c i a d o e m narrativas c o m o :
"ninguém
pode
falar
nada
porque
hoje
é permitido
beber".
Percebe-se que, nos
dias p o s t e r i o r e s à f e s t a , p e s s o a s q u e já h a v i a m d e i x a d o a b e b i d a p o r m o t i v o s di¬
5
versos voltam a fazer uso do álcool, bebendo por várias semanas. Segundo essas
pessoas, os antigos companheiros insistem para que bebam e assim acabam não
resistindo e recomeçam a beber.
Assim c o m o no passado, as festas são para os Kaingáng uma forma coletiva de expressão social. Ε t a m b é m um espaço onde o b e b e r tem uma função
4
que é levar os indivíduos a expressarem emoções e sentimentos . A bebida propicia um estado de desinibição e alegria, tornando-os mais comunicativos e também muito corajosos, o que às vezes acarreta sérios problemas, deixando vir à tona formas de violência. S o b estado de embriaguez, qualquer ofensa pode ser
considerada um b o m motivo para brigar. As reuniões sociais muitas vezes findam em discussões e acusações, por vezes evoluindo para brigas c o m a utilização
de faca e foice, que resultam em ferimentos e até em morte. Segundo um informante: "A bebida
dá coragem
trar, de falar. Quando
comigo
na gente. Quando
toma dá coragem
aí eu tenho que enfrentar"
não toma fica com medo de en-
para falar, fazer serviço.
Se outro
mexer
(Kaingáng, 36 anos). Ainda que a violência
ocasionada pela bebida não aconteça somente nas festas, é nesse contexto que
está mais propensa a emergir. Por isso, nessas ocasiões, algumas pessoas recebem
como atribuição do cacique a missão de "controlar" aqueles que "passam" na bebida, na intenção de reprimir atitudes violentas.
Dentro da sociedade Kaingáng existe uma diversidade política caracterizada pela existência de facções. E m situações de uso de álcool pode haver o de¬
sencadeamento de tensões entre os grupos. A violência doméstica é tida também
c o m o uma das conseqüências do uso de bebidas. As mulheres são as maiores vítimas e sempre que podem reclamam da atitude de seus maridos com o cacique.
O ciúme é outro sentimento desencadeado pela ingestão de bebidas alcoólicas e
acaba sendo o principal motivo da violência doméstica. Violência entre pais e filhos também faz parte desta dolorosa realidade.
Embora não seja uma data festiva no sentido mais amplo, o Dia de Finados é também uma data importante para os Kaingáng. Nos dias que o prece¬
3
Vários são os motivos que levam a parar de beber, incluindo conversão religiosa e pro-
blemas de saúde. Há casos de mulheres Kaingáng que adicionam o medicamento "dissul¬
firam" à comida de seus maridos, para que passem a rejeitar a bebida. Vale ressaltar que
não se recomenda este medicamento pelos efeitos colaterais.
4
São vários os sentimentos expressados pelos Kaingáng após a ingestão de bebidas. Assim,
para nossa pesquisa foi i m p o r t a n t e c o n h e c ê - l o s para a própria adaptação do C A G E —
instrumento de triagem que utilizamos para obtenção de dados epidemiológicos.
dem, confeccionam coroas feitas de papel crepom seguindo o modelo ocidental,
para enfeitar o cemitério no "dia das almas". Ε uma data também marcada pelo
consumo de bebidas alcoólicas. S e no passado era o kiki a bebida usada no ritual
dos mortos, hoje são a c a c h a ç a e o vinho. Segundo eles, os "goles" fazem c o m
que se sintam menos tristes ao visitar seus parentes mortos.
Para um m e l h o r e n t e n d i m e n t o a c e r c a das representações simbólicas
dos Kaingáng acerca dessas celebrações na atualidade, podemos nos remeter a
Sahlins ( 1 9 9 0 ) , e m sua abordagem sobre a relação entre a história e o dinamismo das culturas. Segundo ele, "A história
modos nas diversas sociedades,
sas. O contrário
mente porque,
realizados
também
históricos,
soas organizam
preexistentes
duzida
culturalmente
de acordo com os esquemas
é verdadeiro:
esquemas
culturais
em maior ou menor grau, os significados
na prática.
dos sujeitos
é ordenada
A síntese
seus projetos
e dão sentido
Nesses
diferentes
de significação
das coi-
são ordenados
quando
nas ações
criativas
Porque, por um lado, as pes-
aos objetos partindo
termos,
historica-
são reavaliados
desdobra-se
ou seja, as pessoas envolvidas.
da ordem cultural.
na ação".
desses contrários
de
a cultura
das
compreensões
é historicamente
repro-
No processo de "construção cultural", as festas Kaingáng foram
(re)criadas e ganharam um novo sentido dentro da organização social do grupo.
O uso de bebidas destiladas, produto do dinamismo histórico-cultural desta sociedade, atrela-se t a m b é m a estruturas mais antigas. Nesse contexto, os Kaingáng, assim c o m o outros grupos indígenas, criaram uma "cultura do beber" bastante distinta.
ESTUDOS EPIDEMIOLÓGICOS SOBRE O ALCOOLISMO
O alcoolismo constitui uma das primeiras causas de morte em países latino-americanos c o m o México, C h i l e e Argentina (Menéndez, 1990). Pesquisa realizada
na população norte-americana pelo National Clearinghouse for Alcohol and
Drug Information ( N C A D I ) , revelou que, em 1993, havia 4,2 milhões de novos
usuários de álcool e dentre eles, a taxa na faixa de 12-17 anos aumentou de 125
em 1991 para 172 por mil em 1995 (Marlatt, 1999).
O C e n t r o Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas ( C E B R I D ) da Universidade Federal de São Paulo, realizou um extenso levantamento em hospitais psiquiátricos, gerais, clínicas e comunidades terapêuticas em todo o país e concluiu que o álcool foi a principal causa de internações por transtornos mentais, alcançando 9 0 % dos casos (Cavalieri & Egypto, 2 0 0 2 ) .
E m populações culturalmente diferentes, as taxas apresentadas são diferenciadas, de acordo c o m maior ou menor permissividade para o uso da bebida
(Souza & Aguiar, 2 0 0 0 ) . Wanberg et al. ( 1 9 7 8 ) demonstram que, dentre brancos, negros e hispânicos, os indígenas são os que apresentam maiores taxas de alcoolismo, o que os autores associaram à desagregação social e cultural. T a m b é m
nesta vertente, Young ( 1 9 8 8 ) relacionou problemas de álcool e outras doenças à
transição epidemiológica entre povos indígenas no Canadá.
Há teorias que atribuem as altas taxas do alcoolismo entre indígenas a
fatores de ordem genética. Alguns autores argumentam ao longo da "teoria da
água e do fogo" (fire water theory),
segundo a qual os indígenas não conseguem
segurar o álcool por serem mais vulneráveis às bebidas alcoólicas (Ferreira,
1998). Entre os Navajo, 9 4 % dos adultos concordam que os indígenas têm problemas c o m álcool, sendo que 6 3 % acreditam que os mesmos apresentam alguma debilidade física em relação ao álcool, debilidade essa que os brancos não
apresentam (Ferreira, 1 9 9 8 ) . Até o presente não há evidências suficientes que
comprovem essa teoria.
5
Inquérito realizado entre os Teréna usando o C A G E c o m o instrumento de triagem, encontrou uma taxa de alcoolistas de 1 0 , 1 % na população geral
(Souza & Aguiar, 2 0 0 0 ) . Esse percentual foi semelhante ao obtido em população não-indígena, utilizando metodologia s e m e l h a n t e (Miranda-Sá Jr. et al.,
1989; Souza, 1 9 9 6 ) . Q u a n d o considerada a faixa de idade acima de 15 anos, a
proporção de alcoolistas foi de 17,6% nos aldeados e de 19,7% na população que
vive na periferia de Sidrolândia (diferenças estatisticamente não significativas).
E m relação ao sexo, os resultados apontaram para 31 % entre homens Teréna aldeados e 2 2 , 4 % entre não aldeados. Esses valores foram semelhantes aos verificados na literatura internacional, isto é, 5 0 % dos prováveis dependentes do sexo
masculino apresentavam menos de 30 anos de idade (O'Nell & Mitchell, 1996;
Shore et al., 1973; Walker et al., 1994). Entre as mulheres, a prevalência na população aldeada foi de 1,6%, com concentração de casos nas faixas etárias mais
elevadas. No entanto, dentre aquelas que vivem na periferia da cidade, a cifra foi
5
C A G E é u m instrumento de fácil aplicação e alta especificidade que procura determi-
nar os "bebedores de risco". Amplamente utilizado em muitos países, foi validado n o Brasil por Masur & Monteiro ( 1 9 8 3 ) e seu uso tem sido preconizado pelo Ministério da Saúde. O C A G E em versão na língua portuguesa foi validado para a população Teréna na região de Miranda, M a t o Grosso do S u l , por Souza & Aguiar ( 2 0 0 0 ) .
d e 1 7 , 1 % , o u s e j a , u m a p o r c e n t a g e m 10 v e z e s m a i o r q u e a d e m u l h e r e s a l d e a d a s
e t a m b é m s u p e r i o r a d e m u l h e r e s n ã o - i n d í g e n a s . N a p o p u l a ç ã o a l d e a d a , as m u l h e r e s c o n s i d e r a d a s a l c o o l i s t a s a p r e s e n t a v a m m e i a i d a d e e m u i t a s e r a m viúvas.
N a periferia da c i d a d e e r a m m a i s n o v a s , c m geral e m p r e g a d a s d o m é s t i c a s .
U t i l i z a n d o - s e d o C A G F n u m a a m o s t r a de 9 3 f a m í l i a s K a i n g á n g entrevistadas, c o m u m total de 6 7 2 pessoas, foi v e r i f i c a d o q u e a q u e l e s q u e f i z e r a m uso d e
b e b i d a s a l c o ó l i c a s n o s ú l t i m o s 12 m e s e s c o n s t i t u í r a m 2 9 , 9 % da p o p u l a ç ã o : 4 0 , 1 %
e n t r e os h o m e n s e 1 4 , 2 % e n t r e as m u l h e r e s . Esses valores são b e m s u p e r i o r e s aos
v e r i f i c a d o s e m p o p u l a ç õ e s n ã o - i n d í g e n a s ( S o u z a , 1 9 9 6 ) . D e v e - s e o b s e r v a r q u e as
taxas a q u i a p r e s e n t a d a s n ã o s i g n i f i c a m q u e todas as pessoas s e j a m d e p e n d e n t e s d o
á l c o o l , a p e n a s i n d i c a m q u e m fez uso de b e b i d a d u r a n t e o p e r í o d o d o e s t u d o , n ã o
p o d e n d o ser n e c e s s a r i a m e n t e c o n s i d e r a d a s " d e p e n d e n t e s " . T o d a v i a , é i m p o r t a n t e
ressaltar q u e estas pessoas e s t ã o e m s i t u a ç ã o d e r i s c o para d e s e n v o l v e r d e p e n d ê n cia q u í m i c a a o á l c o o l , o q u e já se observa e m a l g u n s c a s o s . A b e b i d a a l c o ó l i c a q u e
c o n s o m e m p r e f e r e n c i a l m e n t e é a c a c h a ç a . A i n d a q u e a l g u n s f a ç a m uso de v i n h o
e d e c e r v e j a , m a s as c o n s i d e r a m " b e b i d a d e á l c o o l " . P r o d u t o s c o m o o " á l c o o l d c
farmácia", g e r a l m e n t e misturado c o m água e limão, e m e s m o desodorantes, tamb é m p o d e m ser c o n s u m i d o s . Foi t a m b é m e s t i m a d a a f r e q ü ê n c i a de pessoas sob
risco de d e s e n v o l v e r d e p e n d ê n c i a q u í m i c a a o á l c o o l , q u e foi d e 1 0 , 7 % para a pop u l a ç ã o geral ( F i g u r a 1 ) . A o se c o n s i d e r a r s o m e n t e as pessoas a c i m a d e 1 0 a n o s , a
p o r c e n t a g e m a u m e n t o u para 1 8 % , e a l c a n ç o u 2 1 , 3 % n o s e g m e n t o a c i m a d e 15
a n o s , s e m p r e c o m as cifras dos h o m e n s b a s t a n t e s u p e r i o r e s a das m u l h e r e s .
ELEMENTOS PARA PROGRAMAS DE PREVENÇÃO
Com
base na experiência Kaingáng, d e s t a c a m o s a seguir alguns pontos que con-
s i d e r a m o s i m p o r t a n t e s para o e s t a b e l e c i m e n t o d e p r o g r a m a s d e p r e v e n ç ã o e int e r v e n ç ã o s o b r e o c o n s u m o de b e b i d a s a l c o ó l i c a s e n t r e os povos i n d í g e n a s :
(1)
I d e n t i f i c a r e r e c o n h e c e r c o m o e s s e s g r u p o s se r e l a c i o n a m c o m as b e b i -
das a l c o ó l i c a s , q u e i n c l u e m a s p e c t o s c o m o : c m q u a l c o n t e x t o se a p r e n d e a b e b e r ; os e s t i l o s d e b e b e r ; o q u e se b e b e ; c o m o as b e b i d a s f o r a m i n t r o d u z i d a s , e n tre o u t r o s . F i m p o r t a n t e t a m b é m c o n h e c e r c o m o as b e b i d a s se i n s e r e m n o c o t i d i a n o , c o m o se dá a c e s s o aos d e s t i l a d o s , a faixa etária n a q u a l c o m e ç a m a b e b e r ,
os s e n t i m e n t o s e as a t i t u d e s e x p r e s s o s a p ó s a i n g e s t ã o das b e b i d a s e s u a s c o n s e q ü ê n c i a s i n d i v i d u a i s e s o c i a i s , b e m c o m o os m e c a n i s m o s c u l t u r a i s e s o c i a i s a c i o n a d o s para e n f r e n t a r ( o u n ã o ) o p r o b l e m a ;
Figura 1
F r e q ü ê n c i a relativa d e i n d i v í d u o s K a i n g á n g da T . l . A p u c a r a n i n l i a C A C E + , L o n d r i n a , P a r a n a , 1 9 9 9 .
(2)
Realizar diagnósticos epidemiológicos que possibilitem c o n h e c e r a si-
tuação do consumo de álcool e as características sócio-econômicas das famílias
daqueles que fazem uso de bebidas. É importante identificar os indivíduos em
"situação de risco". Para tal, sugerimos a utilização do C A G E adaptado para
aplicação em sociedades indígenas, de acordo com as especificidades culturais
de cada grupo. A realização de estudos de prevalência do alcoolismo nas populações indígenas é bastante importante, pois permite a comparação das taxas encontradas com as de outros grupos populacionais, possibilita o reconhecimento
dos danos e repercussões dentro do grupo, e pode vir a servir c o m o parâmetro de
avaliação de programas;
(3)
Envolver a comunidade em questão. Ε importante direcionar as ativida­
des de prevenção aos mais jovens, enfatizando atividades pedagógicas e desportivas junto àqueles que não são usuários de bebidas alcoólicas ou outras drogas. As
orientações e as informações educativas sobre as conseqüências do uso abusivo do
álcool são necessárias e essenciais. Sugere-se a realização de oficinas sobre saúde,
nas quais seja debatido o problema do alcoolismo, suas conseqüências e, principalmente, sua associação c o m outros agravos, incluindo as doenças sexualmente
transmissíveis e A I D S . A participação da comunidade deve incluir lideranças tradicionais e especialistas de cura. A revitalização cultural t a m b é m é um aspecto
que deve ser enfatizado e incentivado. O resgate de práticas tradicionais contribui
para o fortalecimento dos indivíduos e das comunidades, fazendo-se refletir em
melhoria da qualidade de vida, assim c o m o da saúde de uma forma geral;
(4)
Estabelecer e organizar o atendimento às pessoas com problemas com ál-
cool e suas famílias nas unidades de saúde situadas nas próprias áreas indígenas.
Para tanto, faz-se necessária a capacitação adequada de profissionais, cujo treinamento deve ser abordar as especificidades sócio/históricas e culturais de cada grupo, visando o melhor reconhecimento das pessoas em relação aos aspectos micro
e macrossociais associados ao uso de álcool. Deve-se garantir o acompanhamento
contínuo dos casos.
N o estabelecimento de programas de prevenção e intervenção sobre o
alcoolismo, é imprescindível ter clareza acerca do caráter multidisciplinar e processual que este tema requer. As mudanças em relação ao alcoolismo ocorrerão a
médio e a longo prazos. D a í a necessidade de se avaliar continuamente cada atividade implantada no decorrer deste processo. Acima de tudo, uma questão é
certa: faz-se necessário e urgente enfrentar o problema.
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O uso de bebidas alcoólicas nas sociedades