1 Tolerância zero: expressão da ignorância máxima Claudio Mano Bacharel em Filosofia pela UFJF Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Souza” da UFJF [email protected] Pessoas embriagadas devem conduzir veículos automotores? Certamente não. Na verdade, nem deveriam circular a pé pelas calçadas, uma vez que podem causar todo tipo de transtornos e acidentes. Mas, ingerir “qualquer” quantidade de bebida alcoólica implica necessariamente em perder a capacidade de dirigir com segurança? Neste texto, tentaremos expor que a palavra de ordem da “lei seca”, a tolerância zero, fundamenta-se exclusivamente no âmbito do politicamente correto. Trata-se tão somente de uma ação “moralizadora”: pífia no que se refere à efetiva segurança no trânsito, mas devastadora, no que tange a manutenção da liberdade e dignidade individuais; marco fundador dos regimes democráticos. Introdução No antigo Egito, a cerveja já se apresentava como uma bebida popular: “Ricos e pobres bebiam cerveja”1. Além disso o vinho, além de apreciado, era reconhecido como uma bebida que contribuía à boa saúde. No Novo Testamento, Paulo diz a Timóteo: “Não beba apenas água, mas use um pouco de vinho em beneficio de seu estomago e de seu freqüente mal estar (I Tim, v, 23)”2. Nosso objetivo não é tratar da trajetória da bebida alcoólica através 1 2 EGYPT. In: Encyclopaedia Britannica, Chicago, 1967, vol 8, p 43 ALCOHOLISM. In: Encyclopaedia Britannica, Chicago, 1967, vol 1, p 549 2 da história, mas sim, lembrar ao leitor que essa convivência do homem com um produto que modifica seu estado físico e mental, não é uma novidade do mundo contemporâneo, e nem tão pouco, reconhecida como necessariamente prejudicial. Até nossos dias, o vinho ainda é utilizado na celebração da missa católica. Se existem aqueles que exageram no uso do álcool, e até mesmo tem em seu consumo a manifestação de uma doença – alcoolismo –, a imensa maioria da sociedade, que é sadia, associa a bebida alcoólica a algum tipo de celebração ou confraternização. Um hábito que herdamos de nossos antepassados. Um brinde com champanhe para celebrar a chegada do ano novo, o nascimento de um filho, seu batizado, casamento, etc. O ritual do almoço de domingo em família, onde não pode faltar um bom copo de vinho ou aquela cerveja gelada. Como podemos observar, a bebida alcoólica esta intimamente ligada a nossa vida social. A tolerância zero propugnada pelo governo, na prática, implica que para atendermos nossos compromissos sociais, deveremos deixar o carro na garagem. O legislador brasileiro, no entanto, embora pródigo em criar proibições e entraves à vida dos cidadãos, se esqueceu de prover as cidades com um planejamento urbano adequado. Deslocar-se pelo emaranhado de ruelas sujas e mal conservadas que recebemos em troca de nossos impostos, mesmo com o uso de um automóvel particular, já é um desafio. Tentar fazê-lo, contando com a eficiência do transporte público, é no mínimo um ato de ingenuidade. Mas qual a efetiva necessidade de sermos submetidos a essa situação vexatória? Qual o ganho real auferido pela sociedade diante da imposição da tolerância zero? Álcool e direção em outras sociedades Primeiramente, apresentaremos a postura atual de dois países em relação à ingestão de bebida alcoólica e direção. Uma adotada na Europa; na França. A outra, assumida na maior nação motorizada do mundo: os Estados Unidos da América. Na França3, a alcoolemia – taxa de álcool no sangue – máxima permitida é de 0,5g de álcool por litro de sangue, o que equivale a 0,25mg de álcool por litro de ar expirado – no Brasil, a tolerância zero admite um registro de 0,05mg –. Como exemplo, se considerarmos que uma taça de vinho, quando ingerido, eleva em aproximadamente 0,2g a taxa de álcool no sangue. Duas taças, de uma forma geral, nos levam próximo ao índice máximo permitido, mas ainda podemos conduzir um veículo com segurança e dentro da legalidade. 3 http://www.securite-routiere.gouv.fr/connaitre-les-regles/reglementation-et-sanctions/alcool , em 22/02/13 3 Vale notar, entretanto, que a concentração de álcool no sangue, obedece a características particulares de cada indivíduo. Peso, sexo, estado emocional, ter ou não algum alimento no estomago, entre outros, são fatores que irão influenciar no fato de uma mesma quantidade de álcool ingerida, resultar em diferentes taxas efetivas dependendo da pessoa. Em indivíduos muito magros, ou já idosos, uma taça pode contribuir com um aumento de até 0,3g. A taxa máxima de álcool no sangue será alcançada em cerca de meia hora após sua ingestão – se em jejum – ou em até uma hora – quando acompanhada do consumo de alimentos –. Por outro lado, a alcoolemia se reduzira sempre na proporção de aproximadamente 0,15g por hora. Fica claro, portanto, que uma velocidade de ingestão que supere a capacidade de eliminação pelo organismo, necessariamente acabará por levar a embriaguez. Ao contrário do que apregoam as “conversas de botequim”, artifícios como a ingestão de café, óleos, etc, não afetam o efeito do álcool sobre o indivíduo ou o desempenho do etilômetro. É certo porém, que a presença de álcool não ingerido na boca – líquidos para limpeza bucal, ou mesmo bombons – podem produzir uma leitura errônea no equipamento de medição; mas por tempo limitado. De qualquer forma, caso a taxa registrada ultrapasse o valor de 0,5g, o motorista sofrerá as sansões previstas em lei. Multa de 135€ (R$ 360), 6 pontos na carteira de motorista, apreensão do veículo e suspensão da carteira de motorista por até 3 anos. Caso a taxa ultrapasse 0,8g, além da multa passar para 4.500€ (R$ 12.100), são acrescidas a obrigatoriedade de participar de curso de reeducação no trânsito, bem como a possibilidade de pena de prisão por até 2 anos. Na reincidência de uma taxa superior a 0,8g ou caso o condutor apresente evidentes sinais de embriaguez, a multa passa para 9.000€ (R$ 24.200), o veículo é confiscado e a pena de prisão pode ser estipulada em até 4 anos. Como podemos ver, a lei é duríssima. Mas não impede ninguém de confraternizar com os amigos. Na França, a submissão ao teste do etilômetro é obrigatória, e a recusa implica nas mesmas penalidades de quem apresenta uma taxa superior a 0,8g. Interessante notar, que desde dezembro de 2011, as discotecas e bares, que funcionam à noite, possuem etilômetros a disposição de seus clientes, de modo que possam verificar qual sua condição de fato antes de embarcarem em seus veículos. Agora, vejamos o que se passa na América do Norte. Lá, o limite máximo permitido é um pouco superior ao da França: 0,8g de álcool por litro de sangue. Tomamos como referência no trecho que se segue, as leis do estado do Tennessee4. No Tennessee, existe uma 4 http://www.tn.gov/safety/dlhandbook/07chap6.pdf , em 22/02/13 4 forte preocupação com as conseqüências da direção insegura por conta da ingestão do álcool, bem como de outras substâncias que afetam a capacidade física e intelectual do indivíduo. Em 2005, 37% dos óbitos relacionados a acidentes de trânsito no estado – 464 mortes – foram relacionadas ao uso de álcool. A medida em que o álcool é consumido, ele se acumula no sangue e afeta todos os órgãos. Após a ingestão, somente o tempo – a oxidação do álcool pelo fígado – fará com que seja eliminado, a uma taxa de cerca de um copo de bebida ingerida por hora. Eles consideram, que mesmo dentro do limite aceito pela lei, sempre ocorre alguma perda na capacidade de julgamento e controle muscular por parte de quem fez a ingestão de bebida alcoólica, em maior ou menor grau, dependendo do indivíduo. Por isso, para condutores menores de 21 anos, o limite máximo permitido é fixado em 0,2g. Vale notar que lá, a atenção da vigilância policial não se restringe a submeter as pessoas ao teste do etilômetro. A submissão ao teste é obrigatória por lei a todos que trafegam nas rodovias do estado, e poderá ser solicitado “sempre que o agente da lei tiver uma razoável base de suspeita para acreditar que você esta dirigindo sob influência”5 de álcool ou outra droga qualquer. Dirigir de maneira errática, muito lento ou muito rápido, acionamentos desnecessários do freio, etc, além de constituírem por si só faltas de trânsito, são motivo para o agente da lei interceptar o veículo e examinar seu condutor. Quanto às penalidades por exceder a alcoolemia permitida, a primeira condenação implica em prisão de dois a sete dias, e multa entre US$ 350 e US$ 1.500 (R$ 714 a R$ 3.000). A reincidência, em pena de 45 dias a 11 meses, multa de até US$ 1.500 (R$ 3.000), além de ter o carro apreendido e até confiscado. Na terceira, pena de 120 dias a 11 meses, e uma multa que pode chegar a US$ 10.000 (R$ 20.400). A partir da quarta, pena de 150 dias ao máximo que a lei permitir, além de multa de até US$ 15.000 (R$ 30.600). Além disso, existem agravantes caso, por exemplo, o infrator esteja conduzindo um menor de 18 anos no veículo. Entre as penalidades aplicadas aos que excedem os limites de ingestão de álcool permitidos, concomitante à prisão, existe também a da exposição pública: recolher lixo nas ruas por um período de três dias, vestindo uma jaqueta onde se lê: “Eu sou um MOTORISTA BEBADO”6. Mais uma vez, temos uma legislação rigorosa e penalidades muito duras. Por outro lado, do mesmo modo que na França, um reconhecimento de que não é qualquer quantidade de ingestão de álcool que impede uma direção segura do veículo, e que compete 5 6 http://www.tn.gov/safety/dlhandbook/07chap6.pdf , em 22/02/13, p 3 http://www.tn.gov/safety/dlhandbook/07chap6.pdf , em 23-02-13, p 4 5 ao cidadão, julgar se está ou não, tanto em condições de dirigir quanto de atender a restrição prevista em lei. Vemos então, que existem limites de tolerância que podem ser admitidos sem prejuízos para a sociedade. Na verdade, o que a América nos ensina, é que nem tudo pode ser imposto ao cidadão em nome da segurança da sociedade. O viés político-ideológico Como vimos, dois países que são exemplo no cuidado com seus cidadãos, não adotam a tolerância zero. Será o brasileiro mais suscetível aos efeitos do álcool que nossos irmãos americanos e franceses? Quem sabe, não está o legislador brasileiro certo, e o resto do mundo errado. Mas, o resto do mundo? Não existirão outras nações que adotam a tolerância zero? Sim, existem. De um total de 262 nações que pudemos observar7, 40 – cerca de 15% – proíbem a ingestão de qualquer quantidade de álcool ao condutor de um veículo. Quanto as que toleram, prevalecem as taxas admissíveis de 0.5g e 0.8g de álcool por litro de sangue, como na França e nos Estados Unidos. Mas afinal, que nações são essas que adotaram a tolerância zero? São majoritariamente as que não dedicam grande apreço à democracia, e conseqüentemente, pouca consideração à liberdade individual. Em sua cruzada pela restrição absoluta do consumo de álcool quando ao volante, o Brasil é acompanhado, entre outros, por Cuba, Rússia e algumas das republicas sob sua área de influência, e também, por vários paises árabes e do oriente médio. Vejam, não estamos sugerindo que o legislador brasileiro esteja comprometido com uma ideologia alienígena quando formula as normas para nossa sociedade. Nem tão pouco o executivo, que na contra-mão do espírito democrático, mostra-se pródigo fabricante de leis, submeta-se aos desejos dos irmãos Castro. Mas sim, este incidental alinhamento, algo muito provavelmente não premeditado, revele uma pré-disposição às soluções messiânicas tão típicas do totalitarismo. Considerações finais Não existirá outra forma, que não seja a de vigiar e restringir os movimentos dos cidadãos, para evitar que acidentes desnecessários aconteçam? Será que trazemos dentro de nós, como apregoam certas religiões, a semente do mal? Esta, oriunda de um pecado original, exige um permanente controle externo, com a finalidade de proteger-nos de nós mesmos. Quem sabe, colocar uma “coleira” no homem – implantação de chips de identificação – pode 7 http://www.drinkdriving.org/worldwide_drink_driving_limits.php , em 23-02-13 6 vir a ser uma “exigência fundamental” da cidadania. Primeiro, tendo em vista controlar contumazes criminosos, a seguir, aqueles que contrariam as normas – como transgredir a tolerância zero –, e finalmente, alardeada como “sadia” medida preventiva, acompanhar o homem desde seu nascimento. A lógica por detrás desse raciocínio é que, retirando os meios para que possa praticar o mal, o homem será bom por falta de opção. Assim, não se pune em função das reais conseqüências de um ato, pois se é julgado pelas nefastas conseqüências que nunca se produziram. Nessa marcha, em um tempo que já se prenuncia, perderemos o direito de exercer a única capacidade que nos distingue dos animais e nos faz humanos: o exercício de julgar e agir em acordo com um livre arbítrio. Uma vez atingido esse ponto, nossa vida valerá tanto quanto a de um frango. Seremos bem criados, mas prontos a sermos abatidos em sacrifício no altar da voraz divindade que zela pela nossa segurança: o estado. Mas voltemos a nossa questão inicial; não existira um outro modelo que nos permita viver em sociedade sem a exigência de uma submissão total a uma vontade moralizadora? Acreditamos que essa alternativa é possível, e nos inspiramos no filósofo genebrino Jean Jacques Rousseau, para tentar expô-la. Rousseau nos diz que todas as leis que se opõem à natureza humana, na verdade, são inúteis. Como não representam nossos anseios, carecem de fiscalização permanente para que sejam cumpridas. De tanto ser coagido a agir contra seus sentimentos – e ai reside o mais nefasto efeito das leis inúteis –, o homem perde sua capacidade de julgamento e, conseqüentemente, sua humanidade. Agora, consideremos o objetivo da tolerância zero: evitar que tragédias desnecessárias envolvendo veículos ocorram. Mas vejam, se eliminarmos as rodovias com faixa de rolamento simples, e as transformarmos em modernas autopistas com faixas de rolamento independentes em cada direção, quantas colisões frontais – as mais devastadoras – serão registradas? Além disso, não será mais possível cometer infração de ultrapassagem proibida. Corrigindo os traçados e eliminando os famosos “pontos negros” das rodovias, não estaremos também eliminando a maior parte dos desastres atribuídos à “velocidade incompatível” com o trecho? Por que não planejarmos nossas cidades, prevendo calçadas largas para os pedestres, espaço exclusivo dedicado às ciclovias e ruas bem planejadas e amplas? Não estaremos assim reduzindo drasticamente o número de acidentes de trânsito? Havendo estacionamentos em número suficiente, certamente quem parar seu veículo em local indevido, merecerá uma severa recriminação de seus concidadãos. O peso da vergonha excederá em muito o valor pecuniário da multa. 7 Notem, sem interferir diretamente sobre o comportamento humano, ao proporcionar um ambiente adequado, mesmo a imperícia ou a imprudência terão seus efeitos fortemente minimizados. É certo que o leitor poderá argumentar que a concepção apresentada é filosófica e utópica. Que na prática, mesmo em se concordando com a tese, faltam recursos para tal empreitada. Bem, não acreditamos que os empecilhos sejam de ordem econômica. Considerando-se a fortuna que políticos gastam em suas campanhas, o trânsito de malas de dinheiro e toda sorte de lamentáveis desvios de verbas públicas que a mídia de tempos em tempos nos apresenta, tudo indica que não faltam recursos financeiros. O que certamente nos falta, são recursos humanos. Uma estrutura de governo que saiba empregar nossas riquezas efetivamente em prol da sociedade. Em relação a ser uma visão utópica, vemos que nos países de “primeiro mundo”, muito já vem se tornando realidade. Mas mesmo lá, acidentes acontecem – viver implica em certos riscos –, e a consternação causada por perceber que alguns excessos cometidos, inclusive pelo abuso de álcool, resultam em fatalidades desnecessárias, leva a refletir sobre medidas restritivas e punitivas. Mas mesmo sob essas circunstâncias, embora limites sejam estabelecidos e rigorosamente fiscalizados, como já expomos acima nesse texto, não se cogita da tolerância zero. Quando adotada em um país democrático, em nossa opinião, ela é o prenúncio da tirania. Um povo que não é capaz de julgar por si só, ainda mais em algo tão trivial como quantos copos de cerveja ingerir, efetivamente não merece viver em liberdade. Para finalizar, vale deixar bem claro que as leis, mesmo as inúteis, precisam ser sempre respeitadas. Pois a alternativa é a desagregação social e o caos. Mas isso não significa que os cidadãos devam abrir mão de seu direito a uma avaliação crítica da ação do legislador, e acima de tudo, de expressar seu julgamento publicamente. Por isso, nas democracias, é fundamental o papel dos meios de comunicação. Eles é que fazem reverberar essas impressões individuais ao ponto de, algumas delas, acabarem por refletir uma opinião pública – não necessariamente a opinião majoritária –. Quando a opinião pública revela a fragilidade, ou mesmo a ineficácia da ação do legislador, o que se espera deste, é que tenha a humildade de reverter aquelas decisões, que embora tomadas em boa fé, acabaram por se mostrar inúteis ou equivocadas.