UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAS Ritmistas, Baianas e Passistas: uma etnografia da Escola de Samba Embaixada Copa Lord. CAMILA AZEVEDO DOS REIS FLORIANÓPOLIS 2007 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAS Ritmistas, Baianas e Passista: uma etnografia da Escola de Samba Embaixada Copa Lord. CAMILA AZEVEDO DOS REIS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção de título de Graduação do Curso de Ciências Sociais no Centro de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal de Santa Catarina, sob a orientação da Profª Drª Sônia Weidner Maluf. FLORIANÓPOLIS 2007 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAS Ritmistas, Baianas e Passistas: uma etnografia da Escola de Samba Embaixada Copa Lord. Camila Azevedo dos Reis Monografia apresentada ao Departamento de Graduação do Curso de Ciências Sociais no Centro de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal de Santa Catarina, aprovada pela Banca composta pelos seguintes professores: _______________________________ Profª. Drª Sônia Weidner Maluf Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/PPGAS) - Orientadora _____________________________________ Prof°. Dr° Rafael José de Menezes Bastos Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/PPGAS) _____________________________ Prof°. Marco Aurélio da Silva Centro Universitário de São José (USJ) FLORIANÓPOLIS 2007 Dedico este trabalho a minha família, em especial aos meus pais, “Mama e Dad”, ao Rodrigo Moreira, e as amigas Anne Santilli, Rosa Maria, Manuela Venancio e Camila de Sousa. Agradecimentos Desde meu ingresso na Universidade, inicialmente no curso de Serviço Social, tive alguns encontros com pessoas que marcaram a minha trajetória acadêmica, e que não poderiam deixar de estar nos meus agradecimentos. No curso de Serviço Social, dois professores em especial merecem meu carinho e agradecimento, o professor Nelson dos Santos Machado, que na primeira fase do curso me apresentou aos clássicos autores da Sociologia, motivando-me a mudar de curso logo no primeiro semestre de meu ingresso, tamanho foi o meu fascínio, e a professora de filosofia Doroti Martins, pelas longas contestações filosóficas que inocentemente fazia em suas aulas, mas que posteriormente decorreram-me importantes silêncios de conhecimento. No curso de Ciências Sociais, em primeiro lugar agradeço a professora e na época coordenadora do curso, Janice Tirelle pelo conforto das inúmeras vezes que entrava em sua sala para conversar sobre a burocracia que encontrava para conseguir a minha transferência, e a Maria de Lourdes Vargas pela sua ajuda junto ao processo, com certeza elas foram fundamentais para eu estar concluindo o curso neste momento. Aos professores, Rafael Bastos e Mirim Hartung, pelo prazer de ter sido aluna e pela oportunidade de ser monitora, e ao encontro com a professora Miriam Grossi, que me apresentou aos estudos de gênero, e me auxiliou na organização deste trabalho. À professora e orientadora desta pesquisa, Sônia Weidner Maluf, pela atenção, compreensão e orientação para a realização do trabalho, e a banca de defesa composta pelos professores Rafael J. M. Bastos e Marco Aurélio da Silva, que desde a defesa do projeto fizeram sugestões valiosas, que contribuíram para a realização do trabalho. À escola de samba Embaixada Copa Lord, em especial o Osvaldo Meira Junior, o compositor Célio, o ex-presidente Júlio dos Santos, o carnavalesco José Alfredo Beirão, e as mulheres, Dona Uda Gonzaga, Nega Tide, e a Elizângela Aranha, pela enorme receptividade que encontrei desde os primeiros diálogos. Em especial agradeço minha família, que sempre esteve ao meu lado mesmo estando longe, o companheirismo de Rodrigo Moreira, e a todos os amigos que estiveram presentes nesta minha caminhada. Resumo O presente trabalho pretende apresentar a escola de samba Embaixada Copa Lord a partir dos encontros com integrantes da Escola e suas narrativas, sobretudo com mulheres que fazem parte do contexto social do samba e da Escola em Florianópolis, e de minhas observações do desfile e do cotidiano da mesma. A partir da etnografia do dia do desfile da Copa, busco descrever a sua organização durante a concentração, momento que antecede os desfile, e o processo de criação do mesmo. Após o desfile, acompanhando encontros da Escola, é que pude conhecer a Copa Lord para além da Passarela do Samba, e assim mostrar as reuniões e festas que a Escola promove, bem como as apresentações que se realizam fora do período do Carnaval, no seu cotidiano, no bairro em que está sediada: o Monte Serrat. Apresento a bateria da escola e a participação das mulheres na mesma, buscando entender seu contexto a partir dos ensaios e do desfile, a ala das baianas, considerada a tradição da Escola e o seu diferente dançar na Passarela, e sua relação quase que oposta com as passistas da Escola, buscando entender nestas o universo dos concursos e da mídia. Em um terceiro momento, prendo-me a apresentar o encontro com três gerações de mulheres da Escola, buscando mostrar nas suas narrativas os diferentes contextos do samba e do Carnaval de Florianópolis. Em todos estes momentos, busquei compreender as formas de organização da Escola, a divisão do trabalho, as relações de seus integrantes entre si e com a comunidade do bairro, com o foco na participação das mulheres, suas histórias, e seus relatos sobre a vida na Escola. Índice Introdução - “Ô Abre Alas que eu quero passar” Capítulo I - “Apresentando da Escola de Samba Embaixada Copa Lord”. 9 14 1. Etnografia da “Concentração” do Desfile.........................................................................14 2. O processo de criação do desfile e o papel do Carnavalesco da Escola de Samba...........21 3. A Escola de Samba para além da Passarela Nego Quirido...............................................29 Capítulo II - “Ritmistas, Baianas e Passistas na Copa Lord” 36 1. Minha entrada ao campo: a apresentação da Bateria e a participação das mulheres........36 2. As Baianas da Escola de Samba........................................................................................41 3. As Passistas e os demais concursos da Escola..................................................................46 Capítulo III - “Encontro com três gerações de Mulheres na Copa Lord” 54 1. Uma liderança feminina: O encontro com D. Uda Gonzaga.............................................55 2. Nega Tide: A eterna passista do Carnaval de Florianópolis.............................................60 3. Elizângela Aranha, a Madrinha da bateria da Escola........................................................64 Capítulo IV - “Uma Narrativa Visual do Desfile de Carnaval de 2006, da escola Embaixada Copa Lord” 68 Considerações Finais.............................................................................................................85 Anexos...................................................................................................................................91 Bibliografia...........................................................................................................................96 “Quem Vem Lá?” “Quem vem lá, De amarelo, vermelho e branco, Levantando a poeira do chão? É a Copa Lord, do Morro da Caixa, Quem vem bailando com satisfação, Cantando, com harmonia, A sua linda melodia. (Quem nunca viu) Quem nunca viu, Venha ver Tanta beleza pra crer Que faz sambar a própria lua, E as estrelas também, Os arvoredos Ficam bailando com emoção, E os passarinhos, Vão cantando esta canção: La, la, la, ... (Oi, Quem Vem Lá?)”. (Samba-Hino de Avez-Vous e Álvaro Fogão) Introdução “Ô Abre Alas que eu quero passar”1 Este trabalho busca descrever o cotidiano, a preparação do desfile e o próprio desfile de carnaval da escola de samba Embaixada Copa Lord, tendo como foco a participação e a trajetória de mulheres participantes da Escola e questões de gênero, que envolvem divisão de trabalho, distribuição de responsabilidades, liderança e autoridade e lugares simbólica e socialmente marcados. Nesse sentido, procura-se dialogar com os estudos antropológicos de Carnaval, mais especificamente com os estudos sobre as escolas de samba, e com os estudos de gênero. Encontrei especificamente sobre Carnaval e gênero alguns autores que abordam a música carnavalesca e de como são retratados os papéis de gênero em suas letras (Beltrão, 1993; Veiga, 2006; Oliven, 1987), e ainda o livro Batuque na Cozinha, do jornalista Alexandre Medeiros (2004), que nos apresenta à história de quatro tias da escola de samba Portela, do Rio de Janeiro, e suas excepcionais receitas, normalmente servidas nas rodas de samba e festas organizadas por elas, ou pela escola de samba. Este livro fez-me refletir nos diversos lugares em que as mulheres estiveram e estão nas escolas de samba. Pensar o Carnaval como um rito social, em que há a suspensão dos códigos estabelecidos socialmente, que anulam as diferenças de “status” do dia a dia, no qual as “estruturas” do cotidiano se equivalem, e torna-se possível a inversão dos papéis sociais, está presente nos estudos sobre o Carnaval no Brasil (DaMatta, 1997; Leopoldi, 1978; Goldwasser, 1975). Mas, é possível também pensá-lo como um período de “intensificação” das relações sociais e reafirmação das regras sociais que se estabelecem cotidianamente (Pereira de Queiroz, 1992; Silva, 20032). Ambas as formas de pensá-lo não se excluem, o Carnaval tem uma dimensão estrutural de caráter consciente e repetitivo, em que experiências e atos socialmente definidos podem retornar a cada ano (podendo ser repensado hoje visto os inúmeros carnavais fora de época no Brasil), mas também possui 1 Composição de Chiquinha Gonzaga em 1899, para o cordão Rosa de Ouro. Considerada a primeira música de Carnaval para um cordão carnavalesco (www.chiquinhagonzaga.com). 2 Marco Aurélio trabalhará especificamente sobre a intensificação das relações GLS no Carnaval de Florianópolis, utilizando a discussão de James Green (2000) sobre o tema. 9 sua própria história, têm contextos sociológicos distintos e diferentes formas festivas, todas com sua história particular (Cavalcanti, 1999). As escolas de samba surgem3 por sua vez, através de uma organização institucional, determinando uma maneira de se fazer o Carnaval, baseado na divisão de tarefas e funções para a realização dos desfiles (Goldwasser, 1975; Cavalcanti, 1994/1999; Prass, 2004; Silva, 2002). Sabe-se que as escolas de samba constituem-se em um espaço representativo de entretenimento e encontros, e que nelas se estabelecem e revigoram regras de reconhecimento e lealdade que garantem uma rede básica de sociabilidade (Magnani, 2002). O surgimento das escolas de samba está estritamente ligado no diálogo entre os diferentes grupos e redes sociais da cidade à qual a escola pertence. Pensar o Carnaval na sua pluralidade organizacional e de realização, é também compreender suas diversas formas de interpretações. A origem das escolas de samba se dá no Rio de Janeiro bem como boa parte dos estudos antropológicos, ou não antropológicos, sobre o tema. Assim, este trabalho pretende entender as (re) significações e transformações encontradas neste modelo de festa em Florianópolis, utilizando os estudos sobre as escolas de samba de forma comparativa, sobretudo as escolas do Rio de Janeiro, e um estudo sobre uma escola de Porto Alegre. O presente trabalho pretende contribuir ainda para os estudos de Carnaval em Florianópolis, visto a pouca produção que se tem sobre o tema4. Decidida a estudar a escola de samba Embaixada Copa Lord, o objetivo inicial foi pesquisar as formas de representação – artística e musical, do enredo apresentado pela Escola no carnaval de 2006, “Sexta-feira... Lua Cheia? Cruz credo... Não fala bobagem! Tem cheiro de bruxa no ar”5, e suas implicações de gênero, instigada principalmente pela recém feita leitura do livro Encontros Noturnos: bruxas e bruxarias na Lagoa da 3 Sobre o surgimento das escolas de samba no Rio de Janeiro e seu contexto ver: CABRAL, 1974; MOURA, 1983; PEREIRA DE QUEIROZ, 1992; TINHORÃO, 1998. Sobre o surgimento das escolas em Florianópolis ver: TRAMONTE, 1996. 4 Sobre as escolas de samba em Florianópolis encontrei os estudos acadêmicos de: TRAMONTE, 1996; SILVA, 2002; e também um livro escrito por um integrante e fundador da escola Copa Lord, Quem Vem Lá? De Abelardo Henrique Blumenberg. 5 Ver samba-enredo deste ano em anexo 1, na página 91. 10 Conceição, de Sônia Maluf6. Após participar e observar o desfile, outras questões me chamaram a atenção na Passarela, como a participação das mulheres em alguns lugares específicos no desfile da Copa Lord. A mudança do tema da pesquisa se concretizou de fato, após participar de encontros e eventos da Escola, tendo expandido meu campo de observação, o que me permitiu indagar sobre que lugares eram estes, por exemplo, como se dá a participação das mulheres na bateria, o que significa e como se organiza a ala das baianas e como são escolhidas as passistas da Escola7. Outras questões também estiveram presentes no decorrer da pesquisa como, entender o que é uma escola de samba, o seu contexto na cidade de Florianópolis, como ela se organiza, qual o papel na comunidade à qual pertence, o seu cotidiano, e a sua concepção de criação dos desfiles. A perspectiva de gênero8 é um dos recortes da pesquisa, assim como aparecerão, no decorrer da mesma, questões como a escola de samba como mediadora cultural, na qual participam grupos sociais diferentes, a relação de festa e cotidiano, recortes geracionais e étnicos. O presente trabalho pretende apresentar a escola de samba Embaixada Copa Lord a partir dos encontros com integrantes da Escola e suas narrativas, sobretudo com mulheres que fazem parte do contexto social do samba e da Escola em Florianópolis, e de minhas observações do desfile e do cotidiano da mesma. A partir da etnografia do dia do desfile da Copa, busco descrever a sua organização durante a concentração, momento que antecede o desfile, e o processo de criação do mesmo. Após o desfile, acompanhando encontros da Escola, é que pude conhecer a Copa Lord para além da Passarela do Samba, e assim mostrar as reuniões e festas que a Escola promove, bem como as apresentações que se realizam fora do período do Carnaval, no seu cotidiano, no bairro em que está sediada: o Monte Serrat. Em todos estes momentos, busquei compreender as formas de organização da Escola, a divisão do trabalho, as relações de seus integrantes entre si e com a comunidade do bairro, com o foco na participação das mulheres, suas histórias, e seus relatos sobre a vida na Escola. 6 Sônia Maluf é professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, e orientadora desta pesquisa. 7 Falarei sobre cada um desses temas adiante. 8 Entendo por gênero, as relações sociais que são culturalmente e historicamente determinadas (GROSSI, 1998), sendo variáveis e aptas a serem transformadas (STOLKE, 2004). O gênero é um elemento constitutivo das relações sociais assim como as relações de poder, sendo o gênero também um modo de dar significado as relações de poder (SCOTT, 1990); as centralidades sociais das relações de gênero são implicações políticas (STOLKE, 2004; BUTLER, 2003). 11 Para a realização desta pesquisa participei do desfile e dos ensaios do Carnaval de 2006, como observadora e fotógrafa, e de encontros e festas organizadas pela Escola. Utilizei como método a etnografia9, que envolve desde a revisão bibliográfica sobre o tema, a observação participante junto ao grupo estudado, realizando entrevistas e anotações no diário de campo, para o registro visual do desfile e seu aquecimento, a produção de fotos, e por fim, a análise dos dados e a redação da monografia. Inúmeros diálogos foram travados nestes encontros, mas realizei de fato quatro entrevistas, utilizando o gravador e posterior transcrição das mesmas. As entrevistas foram realizadas com o carnavalesco José Alfredo Beirão, com a Nega Tide, uma passista tradicional da Escola, a Elizângela Aranha, Madrinha da Bateria, e com Uda Gonzaga, coordenadora da ala das baianas e integrante do Conselho Deliberativo. O livro Quem Vem Lá?, de Abelardo Henrique Blumenberg, também me serviu de fonte para questionamentos e esclarecimentos sobre alguns aspectos da Escola, também presentes no decorrer do trabalho. Inúmeras dúvidas surgiram em relação ao processo de escrita e de que forma estruturar o texto. Nos encontros com Sônia refletimos a partir do meu diário de campo, que estava bem descritivo, que o texto poderia surgir a partir da escrita do próprio campo. A mesma sugestão fez o professor Rafael Bastos10 durante a defesa do projeto, sugerindo para me preocupar em descrever a Escola e deixar a discussão teórica fluir a partir desta descrição. Devo ainda mencionar que a descrição e a forma de escrita deste trabalho foi influenciada pelos trabalhos etnográficos11 e pela literatura lida sobre o tema12, que muitas vezes são tão etnográficas quanto os próprios trabalhos antropológicos. Busquei construir uma narrativa que contivesse, em cada momento, minha trajetória de campo. Assim, abro com a descrição do aquecimento e da concentração, minutos antes da entrada da Escola na Passarela, e encerro o trabalho com uma etnografia visual do desfile. No primeiro capítulo prendo-me a apresentar a escola de samba Embaixada Copa Lord a partir da etnografia da concentração do desfile, também chamada de aquecimento; 9 Sobre o trabalho etnográfico ver: GEERTZ (1989); PEIRANO (1995); DAMATTA (1987); CLIFFORD (1998). 10 Rafael J. M. Bastos é professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenador do MUSA – Núcleo de Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e no Caribe. 11 Como por exemplo, os trabalhos de: PRASS (2004), BASTOS (1993), SILVA (2003), GOLDWASSER (1975), entre outros. 12 Como o primeiro romance de Jorge Amado - O País do Carnaval tendo sua primeira edição publicada em setembro de 1931. 12 posteriormente falo do processo de criação do desfile e apresento o carnavalesco da escola, trazendo a concepção de mediação cultural para se pensar as figuras centrais da escola e a própria escola, sobretudo o carnavalesco; e em um terceiro momento falo do papel da Escola para além da Passarela Nego Quirido, trazendo os encontros realizados durante o ano, e a concepção de comunidade muito corrente nos discursos dos integrantes da Escola. No segundo capítulo do trabalho destaco três alas com a participação das mulheres no desfile da Escola, que despertaram minha curiosidade durante a apresentação na Passarela do Samba, através de diálogos, anotações no diário de campo e entrevistas realizadas. Primeiramente apresento a bateria da Escola e a participação das mulheres nesta através dos ensaios e do desfile; em um segundo momento eu apresento a ala das baianas, que tem um jeito de se vestir e dançar especial, que me instigou a estudá-las, e por que são consideradas a tradição da Escola. Apresento em seguida as passistas da Copa Lord, e como funcionam os concursos, como elas são eleitas, enfim, todo o processo que as envolve dentro e fora das escolas de samba. No terceiro capítulo do trabalho, apresento três narrativas de mulheres de três gerações diferentes envolvidas com o samba e com a escola Copa Lord. Neste momento elas falam de suas experiências, e de fragmentos de suas histórias de vida, o que nos faz compreender sua relação com a Copa Lord e seus integrantes. No quarto e último capítulo apresento uma narrativa visual do desfile e da concentração da escola Embaixada Copa Lord, considerando que esta seria a melhor forma de apresentá-lo no trabalho e também pela multiplicidade de significados que a imagem (a fotografia) propicia ao leitor (Rial, 1998). As fotografias serviram-me em um primeiro momento para a visualização do meu campo (Collier J. Apud. Rial, 1998), e para mostrar os diferentes momentos da Escola antes e durante o desfile, assim como também as disposições das alas, o que não exclui a pluralidade de interpretações que elas podem ter para cada leitor. Posteriormente, através de diálogos e entrevistas, as fotografias revelamme personagens e integrantes da Escola, o que apresentarei nas legendas de cada foto. 13 Capítulo I - Apresentando a Escola de Samba Embaixada Copa Lord. 1. Etnografia da “Concentração” do Desfile Domingo, 25 de fevereiro de 2006, dia do desfile das escolas de samba de Florianópolis na Passarela do samba Nego Quirido. Era noite, por volta das 20 horas, quando estávamos a caminho do centro da cidade. Estava ansiosa para começar meu trabalho, e o trânsito só fazia aumentar minha expectativa de chegar junto à escola de samba Embaixada Copa Lord, cujo desfile eu iria acompanhar como observadora e fotógrafa. Tive a parceria de Rodrigo, com quem pude dividir tais expectativas. Rodrigo Moreira da Silva é meu namorado e está atualmente matriculado no Programa de PósGraduação em música pela UDESC - Universidade Estadual de Santa Catarina, tive sua companhia em diversos momentos no decorrer da pesquisa. A Passarela do Samba Nego Quirido foi inaugurada em 1989 e segundo Cristiana Tramonte (1996), foi como um ‘divisor de águas’ entre os sambistas, pois colocou em discussão a participação popular no Carnaval. As escolas desfilavam até então nas ruas do centro da cidade e com grande participação popular. Com a criação da Passarela do samba os desfiles passaram a ter uma participação seletiva, daqueles que poderiam pagar para assistir o desfile. Segundo José Ramos Tinhorão, sobre as transformações do Carnaval em uma entrevista a revista Nossa História13, existe o que ele chama de institucionalização e comercialização do Carnaval por interesses privados. Até meados do século XIX as ruas eram ocupadas para a brincadeira popular, com o processo de industrialização ocorrida no final do século XIX e início do século XX, as ruas passaram a ser cada vez mais isoladas para a organização de determinadas formas de se fazer o Carnaval; segundo Tinhorão: “é a privatização do espaço público”. Demoramos mais ou menos uma hora para conseguir estacionar o carro, o centro da cidade estava muito movimentado e uma das principais avenidas estava fechada para a organização e o aquecimento das escolas antes de entrarem definitivamente na Passarela do Samba Nego Quirido. 13 Revista Nossa História, ano 2/n° 16, fevereiro de 2005, p.40. 14 Tamanha demora no trânsito fez-me observar as pessoas que andavam na rua e os carros cheios de fantasias; notava-se que as pessoas estavam agitadas, ansiosas para desfilar. Percebi então, que não era só eu enquanto pesquisadora que estava tão ansiosa, todos os foliões e organizadores das escolas também estavam na expectativa da festa começar. Ao chegar à Avenida Governador Gustavo Richard, onde as escolas se aqueciam, tentei identificar pelas fantasias quais eram os foliões da Escola Copa Lord, e onde se encontrava o pessoal da organização. A primeira escola a desfilar foi a Protegidos da Princesa14, a qual já estava entrando na Passarela Nego Quirido quando chegamos. As escolas chamam de aquecimento, ou concentração, o momento do encontro entre os integrantes e organizadores para a organização das alas na Avenida paralela à “Nego Quirido”. Ficamos na Avenida da concentração, onde a escola Unidos da Coloninha15 já estava se aquecendo, seria a segunda escola a desfilar. Aos poucos comecei a identificar o pessoal da Copa Lord chegando, as pessoas se reconheciam pelos figurinos de cada ala e pareciam que enfim se encontravam, pois até então, enquanto andavam sozinhos pareciam perdidos, na busca de suas respectivas alas na organização para o desfile. As alas são ordenadas a partir do enredo criado pelo carnavalesco da escola, no qual monta-se um esquema narrativo da história que será contada pela escola através das diferentes alas, carros alegóricos e fantasias, ordenando assim o lugar em que os integrantes da escola sairão durante o desfile na Avenida16. A relação indivíduo e coletivo está presente no discurso dos organizadores para obter um desfile com sucesso. Há uma preocupação pela unidade da Escola durante o desfile, a participação do folião é de grande importância para a formação de cada ala, sendo 14 A Protegidos da Princesa foi a primeira escola de samba de Florianópolis, fundada em 1948. O surgimento da mesma acontece, quando na década de 40 foi fundado em Florianópolis o 5° Distrito Naval por determinação do ministério da Marinha, assim marinheiros do Rio de Janeiro e do Norte do país vieram servir a Ilha e mais tarde fixaram suas residências no Morro da Caixa, sendo o berço que dará origem à primeira Escola de Samba de Florianópolis (TRAMONTE, 1996). 15 A Unidos da Coloninha era até a década de 1960 um bloco carnavalesco que contagiava os moradores nos arredores do bairro Coloninha, no coração do Estreito, área continental de Florianópolis. O despretensioso sucesso alcançado pelo bloco veio a inspirar a criação da agremiação, e em 1962 foi fundada a Sociedade Recreativa e Cultural Unidos da Coloninha (www.coloninha.com.br). 16 Para uma maior compreensão da organização das alas do desfile da Copa Lord de 2006, ver quadro em anexo 2, na página 93. 15 o conjunto, o grupo visto como um todo o que é analisado pelos jurados. O trabalho em equipe e o pensamento coletivo estão presentes nas falas dos diretores e organizadores em uma das reuniões que presenciei17. Havia muitas barraquinhas de lanches, bebidas e churrasquinho. Não pude deixar de observar também alguns garçons com bandejas que circulavam pelos foliões servindo drinques. Éramos abordados o tempo todo por cambistas que queriam vender convites para assistir o desfile na arquibancada. O Rodrigo estava sem convite, mas o valor que os cambistas cobravam era mais que o triplo do valor inicial, vendidos na Casa do Carnaval18 e na Passarela Nego Quirido. Os convites para o Carnaval acabaram duas horas depois do início de suas vendas, comprado principalmente pelos cambistas, que aproveitam a festa para obter uma forma alternativa de renda. Enquanto os integrantes da Copa não estavam todos na concentração, fomos até o final da Passarela, onde se encontravam muitas pessoas que podiam assistir gratuitamente ao desfile do lado de fora. Ao final da Passarela, passariam todas as escolas, todas as alas dispostas e já dava para assistir a primeira escola encerrando o seu desfile, os carros, as alas e a bateria passando por nós. Esta área é chamada de dispersão, e alguns organizadores ficam responsáveis para a saída das escolas e dos carros alegóricos da Passarela. Tivemos o privilégio de ver a comemoração deles nesta área, após saírem do desfile. Durante o mesmo, mantinham-se em certa “postura” para a escola não perder pontos. Era uma extravagância de alegria no momento em que a escola finalizava o desfile, ou seja, ao chegar no final da Passarela e passar pela cronometragem final, verificando o êxito no tempo do desfile. Durante a Avenida três relógios marcam o tempo, sendo este um quesito avaliado pela Comissão19 - o tempo em que cada escola passa pela Avenida é de 80 minutos. 17 Refiro-me à reunião de harmonia que aconteceu no dia 23 de fevereiro de 2006 no ACIF – Associação Comercial e Industrial de Florianópolis. A reunião de harmonia tem como finalidade organizar junto a Diretoria e a Comissão de Carnaval o desfile da Escola. 18 A Casa do Carnaval localizava-se na antiga Câmara Municipal, ao lado da Praça XV, apenas no período do Carnaval. Lá se encontrava o escritório das quatro escolas de samba de Florianópolis para a venda de fantasias e de convite, e no andar de cima tinha o museu do Carnaval de Florianópolis. 19 Os quesitos avaliados pela comissão julgadora nos desfiles das escolas de samba são: Bateria, SambaEnredo, Harmonia, Evolução, Enredo, Carros Alegóricos e Adereços, Fantasias, Comissão de Frente; e Mestre-Sala e Porta-Bandeira. Tendo obrigatoriamente cada escola, no mínimo 120 integrantes na bateria, 16 Os desfiles dramatizam através do enredo proposto por cada escola, e a Passarela do samba passa a ser o palco no qual os atores ali presentes dançam e representam através de códigos corporais e coreografias ligadas ao tema. Há alas em que os passos, os movimentos e a dança se realizam conforme uma coreografia ensaiada previamente pela escola, em outros, esses movimentos não são pré-estabelecidos, mas acabam por ser definidos, pois os alguns foliões não sambam, mas andam como em procissão, sempre caminhando para frente e fazendo o tempo todo reverências com as mãos, circulando pela ala, formando sempre o conjunto da mesma. Pude observar que estas “posturas” variam conforme os diferentes lugares em que cada integrante está na Avenida; a comissão de frente é sempre uma ala coreografada, e é a responsável por representar o tema que a escola está apresentando naquele ano. A comissão de frente, muitas vezes é composta por dançarinos, e tem como responsável um coreógrafo, a fim de que o grupo desfile coeso. As pessoas que ficam nos carros alegóricos não têm uma coreografia específica, dançam conforme representam seus personagens e fazem reverências ao público. Os destaques dos carros alegóricos são as figuras centrais da história narrada, e sua dança varia conforme o papel de seus personagens. Existiam mais duas alas coreografadas, que no decorrer do desfile encenavam sua dança. A ala das baianas também é uma ala diferencial no seu desfilar, discutirei maiores detalhes em um capítulo específico, assim como as passistas e os destaques frente à bateria. As demais alas, que não possuem uma coreografia dançam dentro de um espaço demarcado e coordenado pela equipe de harmonia, que fica responsável para orientar a “evolução” daquele grupo. A evolução20 é também um quesito importante, pois faz parte dos itens pontuados pela Comissão Julgadora e deve ser observado o tempo todo pelos organizadores de cada ala, para a escola não perder pontos. Segundo consta no texto que nos foi entregue na reunião de harmonia, a evolução no desfile de uma escola de samba está na qualidade e na regularidade dos movimentos e da dança, que acontece sempre de forma progressiva, já que a Escola avança na Passarela no decorrer do desfile. São avaliados a agilidade, a vibração, a trinta na ala das baianas, dois carros alegóricos, dez integrantes na comissão de frente, e 1200 integrantes no total da escola (www.liesf.com.br). 20 Conceitos como evolução e harmonia foram-me esclarecidos na reunião de harmonia, já citada anteriormente, dois dias antes do dia do desfile, onde foi-nos entregue também um texto o qual explicava tais conceitos. Participaram da reunião o Presidente da Escola, seu vice, o Presidente da Velha Guarda, alguns integrantes da Velha Guarda, o diretor de som, o mestre da bateria, o carnavalesco, a coreógrafa, o diretor de barracão, representantes da comunidade e integrantes da harmonia, entre outros. 17 precisão, a espontaneidade, a elegância, a criatividade, o vigor e a empolgação dos participantes. Todos os “grupos”21, ou alas, incluindo as passistas, mestre-sala, porta bandeira, bateria e carros alegóricos têm espaço demarcado para evoluírem, para que nenhuma ala avance sobre espaço da outra. Durante o desfile, a escola perde pontos se houver algum “claro” ou buraco entre os foliões, ou caso não se mantenha o espaço prédeterminado entre as alas. Segundo Cavalcanti (1999), a evolução articula a sonoridade da bateria - a cadência e a marcação do samba, à dança das alas, conforme estas avançam nos espaços demarcados previamente pela organização. Assim que vimos o final do desfile da escola Protegidos da Princesa, voltamos para onde as escolas se preparavam para entrar. Neste momento, passou por mim um grupo de meninas que comentavam estar se sentindo o máximo com aquelas fantasias. Tive a impressão, de que estar como folião deveria ser realmente uma experiência única, fiquei imaginando como seria então estar na Passarela desfilando. Mais tarde, em uma entrevista realizada com a Nega Tide22, esta me perguntou: “Nunca participasse do Carnaval, nega? Ah... Se tu sai um ano, não quer mais parar! Ah, não, é muito bom, a melhor coisa que tem é uma escola de samba, eu gosto. É pena, que agente fica esperando o ano inteiro para só dois dias, que é o dia do desfile e o dia que sai o resultado. Antes não, antes o Carnaval era melhor, porque tinha o sábado de Carnaval , o domingo de Carnaval, segunda feira de concurso, na terça já se dava o resultado e já se saia”, mencionando também sobre algumas mudanças no Carnaval de Florianópolis23. A Coloninha já estava pronta para entrar, e enquanto isso, a Copa Lord se organizava, agora por completo na Avenida de aquecimento. Todas as alas já estavam dispostas, e as pessoas agitadas. Via-se a ansiedade delas em querer entrar na Passarela. O diretor de harmonia Osvaldo Meira Júnior, mais conhecido como Meira, já estava com um microfone na mão e exigia muita atenção, pois ali eram dados os últimos toques. O responsável por cada ala e a equipe de “harmonia” o ajudava, a fim de confirmar a presença 21 A utilização do termo grupo, ao se referir a ala, estava presente na fala de D. Uda Gonzaga na entrevista que fizemos em sua casa no dia 06 de janeiro de 2007. 22 A entrevista realizada com Erotildes Helena da Silva, mais conhecida como Nega Tide, aconteceu no dia 04 de dezembro de 2006. Dedicarei a terceira parte do trabalho para falar das entrevistas realizadas com as diferentes gerações de mulheres integrantes da Escola e suas experiências na Avenida do Samba. 23 As transformações e mudanças de significados do Carnaval de Florianópolis estarão constantemente no discurso dos meus entrevistados e diálogos com integrantes da Escola. O que certamente me levará a reflexões no decorrer do trabalho. 18 de todos e verificar se as fantasias estavam completas, entre outros imprevistos que poderiam acontecer. A ala das crianças era uma das alas que necessitava maior atenção, pois nem todas as crianças estavam com seus pais, e elas sempre queriam comer alguma coisa e brincar; para a coordenação desta ala foi preciso seis pessoas24. O diretor de harmonia em uma escola de samba é o responsável por fazer a organização junto à diretoria, o carnavalesco e a comissão do carnaval, da montagem e da distribuição da Escola para o desfile. Deve articular com os responsáveis das diversas alas, como o mestre da bateria, as baianas, mestre-sala e porta bandeira, a ala das crianças, entre outras, para que se estabeleça a “noção de conjunto” a fim de ter uma unidade no canto, na dança e na música durante o desfile. Segundo Maria Júlia Goldwasser (1975), em seu estudo sobre a escola Estação Primeira da Mangueira, do Rio de Janeiro, a equipe de harmonia é responsável pela evolução da Escola, parte coreográfica, e pela “concatenação” entre o canto, o ritmo e a dança. O conceito de “harmonia” no contexto das escolas de samba se refere a um entrosamento entre todos os participantes durante o desfile25. Segundo Meira, o diretor de harmonia da Copa Lord, o entrosamento deve acontecer entre o ritmo, a melodia cantada por todos e a dança, observando sempre a distribuição de todos no decorrer da Avenida. Meira também apresenta alguns conceitos de harmonia26, sendo estes: a “harmonia do canto”, que é a igualdade do canto, letra e melodia pela totalidade dos componentes da Escola; a “harmonia do samba”, que é o entrosamento da melodia do samba com o ritmo da bateria, e por fim, a “harmonia do ritmo”, que é a permanência do andamento da dança dos integrantes com o ritmo. Neste ponto, observei que a dança das baianas, das passistas e das alas coreografadas estão estritamente ligadas a partes do samba-enredo, e assim ao ritmo da bateria. Durante o desfile a harmonia seja ela musical, dançada ou cantada e a evolução, são quesitos importantes e que serão avaliados pela comissão julgadora. Segundo o diretor de 24 Todos os últimos detalhes para o desfile foram discutidos e esclarecidos na reunião de Harmonia, no dia 23 de fevereiro de 2006, da qual participei. 25 Diferente do conceito de harmonia no contexto da música tradicional ocidental, por exemplo, que se refere às relações entre os acordes, o conjunto de notas. Para mais detalhes sobre harmonia no contexto da música ocidental, ver SCHOENBERG, 2001. 26 Os conceitos de “harmonia do canto” e a “harmonia do samba” também estavam presentes em Cavalcanti (1999), exatamente com o mesmo significado, como itens avaliados pela comissão julgadora no quesito de harmonia no Carnaval do Rio de Janeiro, estabelecido pela RIOTUR. 19 harmonia Meira, um deslize na harmonia é chamado de “atravessamento do samba”27 e pode ocorrer de duas formas, isoladas ou simultaneamente, a primeira é a “divergência no canto”, no qual há um desencontro na melodia e ou letra cantada pelos integrantes, a segunda é a “divergência entre o ritmo e a melodia”, no qual o ritmo tocado pela bateria não é acompanhado pelo andamento da dança e pelo canto da melodia do samba. Existe ainda o “atravessamento do ritmo”, que acontece quando um ritmista está fora do ritmo, mas cabe ao diretor de bateria estar atento para tal deslize. Despedi-me de Rodrigo, pois entraria no portão que daria para a Passarela, uma área restrita aos organizadores e a Escola. Ele foi para o final da Avenida, pois nos encontraríamos lá, ao final do desfile da Copa Lord. Comecei a fotografar já durante a concentração e me preparava para fotografar o desfile. Minha intenção com a fotografia era registrar minhas impressões na Avenida e no aquecimento da Escola, a fim de obter uma narrativa visual do meu olhar sob o desfile. Com a máquina fotográfica senti-me mais segura em conversar com as pessoas, pois me aproximava delas para conversar. Senti que elas, ao me identificarem como fotógrafa, também não hesitavam em ser fotografadas o que facilitou algumas conversas durante e depois do desfile. Fotografei a comissão de frente se concentrando, e a bateria aquecendo28. Um desses encontros de conversa e fotografia aconteceu com alguns integrantes da bateria. Percebi a participação de algumas mulheres, e fui conversar com elas. Ao me aproximar, perguntei a elas em quantas eram na bateria e quais instrumentos elas tocavam. Disseram-me que eram 14 mulheres entre o total de 170 componentes da bateria, e treze delas tocavam o ganzá e uma tocava o tarol29. Observei também a presença de Raquel Aranha30, que dançava e tocava pandeiro e ficava na frente desta, juntamente com a Rainha, a Madrinha, a cidadã e o cidadão do samba. Faltavam quinze minutos para começar e a expectativa estava a mil. A Velha Guarda, antes do desfile iniciar, entrou pelo final da “Nego Quirido” passando pela Avenida cumprimentando as pessoas nas arquibancadas, e já iam se 27 Segundo o texto, citado anteriormente, apresentado pelo diretor de harmonia durante a reunião de harmonia no dia 23 de fevereiro de 2006. 28 Ver a quarta parte do trabalho a apresentação fotográfica de meu olhar na Passarela Nego Quirido, na página 68. 29 Sobre a bateria e a participação das mulheres na bateria, ver capítulo dois. 30 Raquel Aranha é irmã de Elizângela Aranha, a Madrinha da Bateria da Escola. Falarei delas no segundo capítulo. 20 aproximando de onde estávamos. Assim que chegaram, se posicionaram atrás do último carro, posição esta em que desfilariam31. “A sirene deu seu primeiro sinal, mais duas vezes e estaríamos entrando. Posicioneime na lateral esquerda da Avenida para que não atrapalhasse ninguém durante o desfile. Fogos de artifícios explodiam no céu iluminando a “Nego Quirido”; ao microfone era anunciada a chegada da escola de samba Embaixada Copa Lord. O público estava de pé eufórico para o ver o espetáculo começar. O samba-enredo era puxado sem nenhum acompanhamento de instrumentos da bateria, apenas ao som do cavaquinho. Dado o último sinal da sirene é a hora da entrada da Copa ao som explosivo da bateria da Escola de samba; a emoção era contagiante. Assim começa o espetáculo na Passarela Nego Quirido. Música, cores, dança, arte, fazia uma noite muito agradável. Todos estavam alegres e torcendo para que sua escola realizasse um bom desfile” (Diário de Campo). Na arquibancada estavam muitas pessoas das comunidades em que cada escola mantém sua sede, muitas pessoas vestiam a camisa de sua escola, levantavam bandeiras e cantavam o samba-enredo junto. Tanta beleza na apresentação dos desfiles não os fazia esquecer que ali estava acontecendo uma disputa por um título. Para Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (1994), a rivalidade presente na Passarela entre as escolas constitui a “natureza” do desfile e sua comunicabilidade com o público. As escolas de samba rivalizam entre si por meio do desfile - uma sofisticada forma dramática e estética, e organizam essa rivalidade por meio de regras comuns. 2. O processo de criação do Desfile e o papel do Carnavalesco da Escola de Samba Para quem trabalha com o Carnaval, o dia do desfile é apenas o apogeu de um ciclo, que recomeça logo que termina a apresentação do desfile daquele ano. O ano carnavalesco está sempre um ano à frente do calendário corrente (CAVALCANTI, 1994). Assim, pensar o Carnaval implica toda sua preparação. Um enredo que se transformará em samba-enredo, em alegorias e fantasias. Para a criação do enredo existe a figura do carnavalesco da escola responsável por criar o tema que a escola representará na Avenida. 31 As posições de cada ala variam a cada ano na apresentação dos desfiles. No desfile deste ano, 2007, observei que a Velha Guarda estava na frente do terceiro carro. 21 O carnavalesco de uma escola de samba segundo Cavalcanti (1999), é o criador do enredo, do qual decorre o samba-enredo, e o responsável pela concepção dos carros alegóricos. Segundo a autora, esse personagem teria surgido no Rio de Janeiro em torno da década de 1960, período em que as escolas têm grande destaque nacional e passa a ser cada vez mais crescente a adesão da classe média às escolas de samba (FERREIRA, 2004). Antes a criação dos enredos era feita por compositores das escolas. Segundo Cristiana Tramonte (1996), a figura do carnavalesco surge em Florianópolis na década de 1980, incentivado pelos “blocos de empresas”, organizados principalmente pela classe média e pelas escolas que passaram a contratar o carnavalesco para criar o enredo32. Para uma maior compreensão sobre o que é o enredo de uma escola de samba e sobre o processo de criação do mesmo, entrevistei José Alfredo Beirão, o carnavalesco e figurinista da Escola Copa Lord do ano de 2006. A entrevista, além de mostrar sua concepção a respeito do papel do carnavalesco na escola, nos revela também parte de sua história junto ao Carnaval de Florianópolis. A entrevista foi realizada em 07 de março de 2006, e trouxe uma série de questões que nortearam posteriormente minha pesquisa. José Alfredo Beirão, formado em arquitetura, trabalhava em um escritório, e quando chegava o verão, parava tudo para se dedicar ao Carnaval, como figurinista. Seu primeiro Carnaval profissional foi em 1990 pela escola Copa Lord, com o enredo “No comércio da vida”. Até então, segundo Beirão, “era tudo muito amador”, “no gostar de fazer”, e “na raça”, porque o Carnaval não era profissional33. Mais tarde é que Beirão assume o papel de carnavalesco da Escola, que segundo suas palavras: “é o responsável por todo o espetáculo, o que vai apresentar [o enredo] artisticamente na Avenida, (...) seria como se fosse o diretor do espetáculo de teatro”. O carnavalesco pode trabalhar dirigindo uma equipe de figurinos, adereços e carros alegóricos. O trabalho é sempre realizado em conjunto, seguindo sempre o que o carnavalesco idealizou. Sobre os carros alegóricos, Beirão diz pedir a uma terceira pessoa para coordenar a produção, e sobre sua elaboração ele discorre: “ele funciona como um 32 Observei uma ala no desfile da Copa Lord que era composta basicamente por professores e estudantes da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina, incentivada por uma integrante da Copa que tem vínculo com a Universidade. 33 A profissionalização está ligada ao fato de hoje eles serem pagos para confeccionar os desfiles nas escolas de samba. 22 cenário para aquilo que eu estou contando, então ele tem que estar completamente dentro do tema proposto, dentro do enredo, representando alguma coisa”. Segundo Beirão, “O enredo é o tema proposto que você vai contar na Avenida, o que a escola vem contando este ano”. Para Cavalcanti (1999): O desfile é em essência a encenação de um enredo, narrado por múltiplos meios em cortejo linear. Os outros elementos como as fantasias, alegorias, carros, e sambaenredo, transformam e ampliam significados sugeridos pelo enredo. É ele o elementochave da forma estética e cultural do desfile; sem enredo não há desfile (CAVALCANTI, 1999: 82, grifos meus). O carnavalesco muitas vezes não pertence à comunidade da escola, e sim à classe média intelectualizada. Muitas vezes ele está ligado à mídia, como jornalistas, ou são artistas ou profissionais liberais. Sua relação profissional com a escola geralmente dura o período de um “ciclo carnavalesco”34; o carnavalesco circula em um meio social que transcende esta ou aquela escola em particular (CAVALCANTI, 1999). Segundo Beirão: “eu sou um profissional (...) pago para trabalhar, então se eles acharem que meu trabalho está bom... Uma vez tentaram fazer por dois anos, mas eu não aceitei. No Consulado eu fiquei 15 anos né? Aí... fui para o Copa ano passado, fiquei com o Copa esse ano, agora não sei para onde eu vou, eles podem me dispensar, e eu posso não querer [caso eles queiram contratar novamente], se outro me chama e faz uma proposta mais interessante... Então é assim que está funcionando.” Cavalcanti, em Rito e o Tempo, traz uma concepção interessante sobre o papel do carnavalesco como um mediador cultural. A compreensão do carnavalesco como mediador cultural está na interação deste com os diferentes grupos sociais presentes nas escolas de samba, entre as diferentes tradições do samba e das escolas, e no seu próprio papel de tradutor cultural, ao recriar temas conhecidos na linguagem do samba e do desfile. A compreensão do mediador cultural também está presente nos estudos de Hermano Vianna (2004) sobre o samba; a existência de indivíduos que agem como mediadores 34 O ciclo carnavalesco segundo LEOPOLDI (1978), é o período compreendido entre dois carnavais consecutivos. Muito interessante foi observar a confusão que meus entrevistados faziam entre o calendário corrente e o ciclo carnavalesco, quando falavam no “Carnaval deste ano”, mesmo estando em 2006, se referiam ao Carnaval de 2007. 23 culturais, assim como espaços sociais onde essas mediações acontecem, são fundamentais para se pensar na transformação do samba em gênero nacional, elemento central para a definição da identidade nacional, a brasilidade. No seu livro O Mistério do Samba, Vianna nos apresenta aspectos da atuação de músicos e compositores populares no século XIX e início do século XX como mediadores culturais, que tinham fama junto à elite da época. O carnavalesco faz a ponte entre a literatura e a escola, sendo esta um espaço de mediação cultural entre diferentes grupos sociais. O espaço de mediação cultural se caracteriza pela circularidade de seus atores sociais, para além da relação de oposição entre cultura popular e cultura erudita. O popular não é invenção de um único grupo social, ele se constitui em processos híbridos e complexos identificados por signos e elementos de diversos grupos (CANCLINI, 1992 Apud. VIANNA, 2004). O Carnaval e as músicas carnavalescas são muito significativos para se pensar a pluralidade cultural, das diversas formas de se brincar e fazer o Carnaval no país e o constante diálogo entre os diferentes grupos sociais. Os sambas-enredos surgem na década de 1950, fato este que segundo Cavalcanti (1999) “define a evolução formal do desfile, no sentido da integração de seus diversos componentes expressivos em uma unidade dramática” (CAVALCANTI, 1999: 84). Desde o início das brincadeiras de Carnaval havia um ecletismo na música carnavalesca, como ainda podemos perceber nos dias de hoje presentes nos bailes carnavalescos, nos trios elétricos de Salvador e demais cidades no país, e na predominância do frevo no Carnaval de Pernambuco, entre outros gêneros musicais. Já nos primeiros anos do século XX podia-se ouvir no Carnaval carioca, grupos cantando xotes, tangos, polcas, modinhas, valsas, lundus, ou maxixes, entre outros gêneros, assim como as novidades internacionais da época35. As festas carnavalescas que emergem no início do século XX, também representam o diálogo entre as diferentes camadas da sociedade; a elite mantinha boa parte do controle das festas nas ruas, mas também refletia o gosto popular - organizando concursos para a participação de pequenos grupos carnavalescos. Cada vez mais o chamado “Pequeno Carnaval”, como os cordões, ranchos e blocos com a participação popular, começa a ter espaço junto ao chamado “Grande Carnaval”, como as Sociedades Carnavalescas, e a 35 Sobre mais detalhes da música popular no período a que me refiro ver TINHORÃO (1998). 24 participação da elite (FERREIRA, 2004). Segundo Felipe Ferreira36 a respeito do discurso presente no Carnaval da década de 1920: O Carnaval carioca (...) tinha-se estabelecido como a grande festa da integração nacional. Representava-se nas ruas do Rio de Janeiro, durante os dias de folia, uma verdadeira celebração da diversidade étnica e cultural de uma nação plural. A festa carioca se impunha como a essência da festa nacional e se preparava para o salto de qualidade e organização que seria dado nos primeiros anos da década de 1930, quando a folia brasileira se imporia [como evento a nível internacional] (FERREIRA, 2004: 305, grifos meus). Segundo Cavalcanti (1999), se referindo aos desfiles no Rio de Janeiro, hoje as escolas integram diferentes grupos sociais, assim como os desfiles apresentam esteticamente linguagens artísticas diversas, como os figurinos, a produção dos carros alegóricos, a música e a dança, o que também observamos nos desfiles das escolas de Florianópolis. Sobre o processo de criação do enredo, Beirão diz que depois de ter a história em mãos, ele faz uma decupagem, ala por ala. “Tudo tem uma seqüência e uma lógica, (...) para mim tem que ter começo, meio e fim. Normalmente, no meu tipo de trabalho eu sempre parto do macro para o micro, do universal para chegar a um ponto que geralmente [e no caso] termina na Ilha, ou em Santa Catarina”. Observei que todos os enredos das escolas daquele ano tratavam de temáticas regionalistas e pesquisando enredos de anos anteriores, o mesmo acontecia. Muitos tratam da temática racial, do morro, de lendas, histórias e personagens locais ligados à escola ou à região em que esta se encontra. Parece que ficou marcada a preferência das escolas e dos compositores por tratarem de temas históricos e literários, que se iniciou a partir dos anos trinta. Segundo Cavalcanti (1999), com o Estado Novo as escolas passam a ter a obrigatoriedade de criar enredos com a temática nacional37; “(...) ‘nacional’ nesse momento 36 Felipe Ferreira é mestre em Antropologia da Arte pela UFRJ e doutor em Geografia Cultural, pela UFRJ/Sorbonne, e escreveu diversos livros e artigos sobre o Carnaval. Este livro, a que faço referência, faz parte da coleção O Livro de Ouro pela editora Ediouro, e tem o caráter mais histórico do que antropológico. 37 Nesta mesma obra, no segundo capítulo, a autora aborda especificamente sobre a temática racial no Carnaval carioca. 25 significou a referência a fatos, personagens, lendas, heróis, datas e acontecimentos históricos brasileiros” (CAVALCANTI, 1999: 31). Sobre o processo de criação do enredo do ano de 2006, “Sexta-feira... Lua Cheia? Cruz credo... Não fala bobagem! Tem cheiro de bruxa no ar”, Beirão me disse que partiu da lenda das bruxas que existe em Itaguaçu. Beirão residia perto do local e achava interessante a história para “carnavalizar”. Segundo conta Beirão, as bruxas iriam fazer uma festa na praia em Itaguaçu e elas não queriam convidar o senhor delas, pois cheirava muito mal, a enxofre, e as fazia beijar seus pés. Por não o convidarem, ele apareceu na festa e as petrificou, assim as pedras que estão hoje no local representam cada uma das bruxas que estavam na festa38. O carnavalesco percebeu que seria muito pouco para desenvolver o desfile e começou a estudar a questão da trajetória da bruxaria, e viu que era muito mais “forte e intenso” do que ele imaginava. Beirão começou a ver o que poderia ser feito para o desfile. Ficou muito impressionado com as histórias sobre a Inquisição, sobre a caça às bruxas, principalmente mulheres, mas disse ter ficado na dúvida, porque trabalharia com um outro lado da igreja católica: “como eu vou colocar a igreja católica no papel de vilã, perante o grande público?”, mas resolveu assumir, pois “O culto a natureza era o princípio de tudo enquanto não bruxaria, enquanto não existia a igreja católica”. Segundo Beirão existe o que os carnavalescos chamam de “licença poética” do carnavalesco, que é enriquecer o enredo, fazer um viés com o tema local, e ter a sensibilidade para que não fique algo pesado, e sim que passe alguma mensagem para o público, “pois o povo já sofre tanto o ano inteiro que ele quer um pouco de alegria para ver o desfile”. Maria de Lourdes da Costa Gonzaga, mais conhecida como D. Uda, ao falar do trabalho da Escola o ano todo para realizar o desfile, também tinha o discurso parecido com o Beirão39. Segundo D. Uda: “Trabalha-se 360 dias, é merecedor ter três dias de festa”. Pensar no Carnaval como um momento de relaxamento dos problemas do cotidiano, que distrai e faz esquecer os problemas da vida não é recente. No começo do século XX, um pequeno trecho do que foi publicado no Jornal do Commercio, no dia 13 de fevereiro 38 Lenda contada por Franklin Cascaes em seu livro O Fantástico na Ilha de Santa Catarina. CASCAES (1992). 39 Em uma entrevista realizada no dia 06 de Janeiro de 2007 em sua casa, no Monte Serrat. 26 de 1904, ilustra o pensamento que se tinha e ainda se mantém do Carnaval atual, da “fuga do desencanto cotidiano”: Não valem pelas mágoas de todo o ano esses três dias de febre e delírio? O Carnaval é festa do povo, é o portador da alegria que se espalha nas ruas, alastra-se como um rastilho de pólvora, apreende todas as armas e desterra para ínvias e escuras paragens o espectro da tristeza (Jornal do Commercio Apud. FERREIRA, 2004). Segundo Felipe Ferreira em O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, a visão modernista, período em que as escolas de samba começam a surgir, também incorporava a visão de fuga do dia-a-dia, das amarguras do cotidiano na idéia do Carnaval como “resistência antropofágica” do povo brasileiro às imposições externas, assim reforçava a idéia de brasilidade (FERREIRA, 2004). Estudos como Carnavais, Malandros e Heróis, de Roberto DaMatta (1977), também nos apresenta o Carnaval como um período em que há a suspensão das regras hierarquizantes do cotidiano, em que são experimentadas novas formas de relacionamentos, que cotidianamente “jazem adormecidas”. Segundo DaMatta, o Carnaval é um ritual definido pela dialética entre o cotidiano e o extraordinário: Não há uma sociedade sem uma idéia de mundo extraordinário, onde habitam os deuses e onde, em geral, a vida transcorre num plano de plenitude, abastança e liberdade. Montar o ritual é, pois, abrir-se para esse mundo, dando-lhe uma realidade, criando um espaço para ele e abrindo as portas da comunicação entre o ‘mundo real’ e o ‘mundo especial’ (DAMATTA, 1977: 39). Para a criação do enredo, o carnavalesco faz uma vasta revisão bibliográfica sobre o tema e em forma de “Book”40, termo utilizado por Beirão, semelhante a um projeto, entrega para a aprovação e o diálogo com a Escola. Para tal estudo, quase sempre Beirão tem alguma parceria, não o faz sozinho. 40 Beirão entregou-me o Book para poder entender o que significa, e nele tinha todo o estudo feito pelo carnavalesco, narrando o enredo que foi trabalhado pela Escola em 2006, apresentava cada ala e seu figurino, também feito pelo carnavalesco, teoricamente e o por quê no contexto da história. No Book também tinha toda a equipe de produção do carnaval da Escola. 27 Após apresentação do enredo para a Escola, assim como para os compositores, acontece o concurso dos sambas, que leva algumas semanas para selecionar o sambaenredo final, que representará a Escola na Avenida. Pude presenciar o dia da final do concurso dos sambas-enredos41 do Carnaval de 2007. O evento acontecera no Clube Primeiro de Junho em São José, no dia 08 de outubro de 2006. As apresentações dos sambas-enredos aconteceram nos quatro domingos do mês de setembro, no Clube Novo Horizonte que fica na Avenida Beira Mar Norte. Fato notório neste mesmo dia foi a criação da ala dos compositores, até então não existente na Escola. Ao conversar com Célio, um dos compositores que conheci e um dos criadores do samba-enredo de 2006, este me dissera que não participou do concurso do enredo de 2007 para abrir espaço a novos artistas. Conversando também com Lídio da Costa, mais conhecido como Seu Lidinho42, sobre a minha surpresa de a ala estar sendo criada este ano, este também dissera que existia uma predominância de compositores, que em quase todos os anos compunham os samba-enredos para a Escola. A minha surpresa com a oficialização da ala dos compositores aconteceu, porque nas leituras que vinha fazendo sobre as escolas de samba do Rio de Janeiro (CAVALCANTI, 1999; GOLDWASSER, 1975), soube que esta é uma ala considerada tradicional nas escolas do Rio, e acreditava que esta já existia na escola de samba Embaixada Copa Lord. Como já vimos, as escolas de samba não funcionam apenas no período do Carnaval e sim durante o ano inteiro, realizando reuniões, encontros e festas entre seus integrantes. O Carnaval tornou-se um espetáculo, consumido pela cidade para além dos quatro dias de festa. Ainda é notório o papel social que a Escola ocupa na comunidade na qual está inserida, realizando projetos sociais, e tendo sua participação na confecção e apresentação do desfile. 41 Também conhecido como samba de quadra (BLUMENBERG, 2005). Sobre as diferenciações do samba na primeira metade do século XX, ver: TINHORÃO, 1998; MENEZES BASTOS, 1996; MOURA, 1983; SANDRONI, 2001. 42 Seu Lidinho ingressou na Copa na juventude, e hoje faz parte da Velha Guarda. Seu Lídio sempre mostrou seu talento para a dança, foi o cidadão samba do ano de 2006 da Copa Lord. Mais tarde pude notar sua presença em todas as festas e atividades da Escola, sempre mostrando seu samba-no-pé e sua simpatia, conversamos sempre que nos encontramos. 28 3. A Escola de Samba para além da Passarela Nego Quirido Era 22 de janeiro de 1955. Tarde de verão. Calor insuportável. Após gostosa pelada de futebol no campo da Escola Industrial – hoje Centro Federal de Educação Tecnológica – uni-me a Quirido (Juventino João Machado), Lô (Valdemiro José da Silva) e Jorginho (Jorge Costa) para ‘levar um papo’. Estávamos sentados no muro da Legião Brasileira de Assistência, em frente ao bar do Secundino Lemos, conhecido por ‘Seu Segundo’. Papo vai, papo vem, bebida subindo às nossas cabeças, começamos a entoar sambas de carnaval. Foi aí que se deu o estalo inspirador da fundação da Copa Lord. Este é um trecho do livro Quem Vem lá, de Abelardo Henrique Blumenberg, mais conhecido como Avez-Vous43, e ilustra o momento da idealização da mais nova escola de Florianópolis, que realizara seu primeiro desfile no dia 25 de fevereiro de 1955. A partir daí, “Estava fundada a Sociedade Recreativa Cultural e Samba ‘Embaixada Copa Lord’”. A sede da escola Copa Lord foi criada em 1966, na gestão de Armandino Gonzaga44, e se encontra até hoje na Rua General Vieira da Rosa, número 141, logo no início da subida do Monte Serrat45. Muitos desfiles ali foram planejados e vitórias comemoradas. A sede da Escola hoje é local para reuniões do Conselho Deliberativo, para a confecção de alguns adereços para o desfile, realização de alguns encontros e local de projetos sociais para a comunidade, como o Projeto “Livros e Batucadas”. Este projeto é organizado por estudantes da UDESC - Universidade Estadual de Santa Catarina, no qual há a formação da bateria mirim da Escola, e acontece todo sábado à tarde. Segundo Nega Tide, antigamente se faziam muitas festas na sede, hoje a Escola pouco a utiliza por causa da violência no morro. Na década de 1980 acontecia o “Botequim da Copa” todos os finais de semana. Nega Tide, Dona Mariazinha, Dona Lourdes e Bibina eram quem cozinhavam mocotó, dobradinha, feijoada, e carne assada com maionese, entre outras delícias. Muitas vezes Tide cozinhava em seu fogão e levava cedinho a comida para 43 Avez-Vous é advogado, fundador e Presidente de honra da atual Sociedade Recreativa Cultural e Samba “Embaixada Copa Lord”. 44 Armandino Gonzaga, marido de D. Uda Gonzaga, era da Protegidos da Princesa e entrou em na Copa em 1964, foi Presidente da Escola até 1978, ano em que faleceu. 45 O Monte Serrat também é conhecido como Morro da Caixa, pois existe uma caixa d’água da CASAN mais ou menos na metade do morro. Ainda é chamado por muitos de Morro da Copa, referindo-se a Escola de samba. 29 a sede, pois o fogão de lá era muito pequeno. Segundo Tide, muitos artistas do Rio compareciam para saborear sua comida e cair na festa organizada pela Escola. Dona Uda Gonzaga disse que a sede surgiu com o intuito de integrar a comunidade, e que a partir da sua inauguração, aumentou a participação das mulheres na Escola, que passaram a estar diretamente ligada aos desfiles e a Escola, principalmente na organização das festividades e na parte social da Escola. Disse-me que quando criaram a sede, um grupo de dez mulheres, esposas dos diretores incluindo ela, organizou o “grêmio feminino” para participarem ativamente dentro da Escola de samba, “Esse grêmio foi uma forma de estarmos integradas dentro da Escola realmente”, pois segundo Uda, o Carnaval antes era apenas o desfile, e nele era muita mais comum a participação de mulheres solteiras. Sobre a importância da sede, discorre Avez-Vous em seu livro Quem Vem lá?: Para gáudio da comunidade copalordense, incontáveis eventos ali foram realizados. Também se promoveram cursos de alfabetização, corte e costura, ginástica rítmica, capoeira, escolinha de porta-bandeira e mestre-sala, etc., nesse ambiente social vivido pelos sambistas e seus familiares (BLUMENBERG, 2005: 61). Hoje a Escola tem realizado o “Domingo da Copa”, que não acontece na sede e sim no Clube Novo Horizonte na Avenida Beira Mar Norte, ao lado da Polícia Federal. A festa tem acontecido quinzenalmente, com a participação da bateria, das passistas, mestre-sala e porta bandeira e a apresentação de alguns grupos musicais, como o grupo “Bom Partido” e a “Velha Guarda Show”. Destas festas participam além de pessoas da “comunidade”, todos aqueles que são integrantes da Escola, e quem tem interesse em conhecer as festas organizadas pela mesma, cobram um valor de entrada e são abertas ao público. O termo comunidade é muito corrente nas narrativas dos meus entrevistados e no discurso dos diretores da Escola, mas podem apresentar significados distintos. Na reunião que presenciei de posse da nova Diretoria46, D. Uda Gonzaga apresentou um discurso sobre a Escola e a comunidade, fazendo referência à história popular do Carnaval e à relação com a história do morro. Falou também da importância da sede da Escola para a auto-estima da 46 No dia 29 de maio de 2006, na sede da Escola no Monte Serrat. 30 Copa e da comunidade. Na reunião de harmonia muito foi falado sobre a comunidade47, segundo o Presidente na reunião: “A comunidade tem tudo a ver com a Escola”. Essa noção de comunidade a que sempre se referiam só foi por mim entendida quando subi o morro Monte Serrat para conhecer D. Uda Gonzaga. Ao perguntar na padaria da esquina, ao cobrador do ônibus e ao moço que trabalha na “Zona Azul”, eles me informaram onde era a escola em que D. Uda trabalha, em que ponto descer, e em que entrada subir e aguardar o ônibus. Ao fazer referência a D. Uda e à escola Copa Lord todos me compreendiam e falavam com a naturalidade de pertencerem e fazerem parte daquele mesmo “pedaço”48, daquela comunidade (MAGNANI, 2002). Mas esta foi a minha compreensão do que seria comunidade. Na entrevista com D. Uda, com a Nega Tide e com a Elizângela Aranha é que pude perceber os diferentes sentidos que cada uma delas dá a comunidade. Para D. Uda Gonzaga, a comunidade a que se refere é a dos moradores do Monte Serrat. D. Uda é uma líder comunitária, nasceu e cresceu no morro, e vive lá até hoje. Há vinte anos é a diretora da escola municipal do alto do Morro, participa de encontros da igreja dando aula de catecismo, do Conselho Deliberativo da escola Copa Lord, e está sempre presente no projeto “Livros e Batucadas”, que fica ao lado de sua casa. Sua relação de vida, com a comunidade do Monte Serrat e com a Copa Lord está entrelaçada no seu discurso sobre o que é comunidade. Mas, ao entrevistar Nega Tide e Elizângela Aranha49, notei outro sentido para o termo comunidade, que estaria para além do Monte Serrat. Elas se referem à comunidade como a “comunidade copalordense”, aos que participam da Escola, mas não necessariamente residem no Monte Serrat. Segundo as palavras de Elizângela Aranha: “Porque eu nunca morei ali perto da Copa Lord, mas eu cresci acompanhando o processo da Escola. Para mim a comunidade mesmo é as pessoas que estão ali participando. Tem gente que mora do lado da comunidade, e que não se dedicam tanto quanto pessoas que moram ali do outro lado da ponte”. 47 Durante a reunião de harmonia no dia 23 de fevereiro, o segundo ponto levantado e com destaque foi a relevância que a Escola dá a comunidade e sua participação, discutiu-se a entrega de camisetas e faixas a comunidade, para as pessoas que ficariam na arquibancada, assistindo ao desfile. 48 Para a compreensão dos fenômenos urbanos e suas formas de sociabilidade, Magnani (2002) apresenta o “pedaço” como categoria de análise, tomando-o como ponto de referência para distinguir determinado grupo de freqüentadores como pertencentes a uma rede de relações. 49 A entrevista com Elizângela aconteceu no dia 05 de dezembro de 2006, no centro de vendas Itaguaçu. 31 Ambos os significados de comunidade não excluem o caráter familiar, tanto presente entre os moradores do Monte Serrat50, como também presente nos encontros da Escola, seja nas reuniões, nos projetos, nos ensaios e nas festas realizadas quinzenalmente aos domingos no Clube Novo Horizonte. Segundo Luciana Prass, em seu livro Saberes Musicais em uma Bateria de Escola de Samba: uma etnografia entre os Bambas da Orgia - uma escola de samba de Porto Alegre, é muito comum a representação de uma escola de samba enquanto família, definida por “laços de consangüinidade real ou metafórica”51 (PRASS, 2004), fundamental para a valorização da escola, ressaltando a existência de um ambiente de tradição (SILVA, 1993 Apud. PRASS, 2004). E é dessa forma também que D. Uda descreve o ambiente dentro da Copa, como se verá adiante. A Escola se organiza institucionalmente através de uma estrutura burocrática que articula seu funcionamento cotidiano e prepara a realização dos desfiles. Na escola de samba Copa Lord existe a Presidência, o Conselho Deliberativo e a Diretoria Executiva. O Pai de Elizângela, seu Nestor, faz parte do Conselho Deliberativo e em sua entrevista falamos um pouco de como funcionam estas organizações dentro da Escola. O Conselho Deliberativo é composto por ex-presidentes da escola Copa Lord e também por alguns membros da Escola, pessoas que já estão lá há muito tempo. O Conselho trabalha durante o ano todo, e não apenas no período de Carnaval. Eles elegem a Diretoria e a Presidência, processo que ocorre a cada dois anos. Eu tive o prazer de acompanhar a cerimônia de posse da nova diretoria, no dia 29 de maio de 2006, na sede da Escola. 50 Pude perceber esta familiaridade nas minhas subidas ao Monte Serrat. Uma vez observei uma senhora que parou o ônibus e não entrou, apenas entregou presentes de final de ano ao motorista e ao cobrador. Era sábado quando fui na escola conversar com D. Uda e lá acontecia um churrasco organizado por um grupo de jovens. Notei também ao esperar o ônibus no “pé do morro”, que muitas pessoas que subiam de carro paravam lá para oferecer carona a seus vizinhos e conhecidos. 51 Durante a banca de defesa do projeto, o professor Rafael J. M. Bastos sugeriu que se investigasse essa dimensão de parentesco nas relações dos integrantes da Escola, percebendo nos dados de campo que apresentei, alguns indícios de uma organização matrifocal na escola de samba, como alguns autores já discutiram em relação aos espaços de culto afro-brasileiros, ver, por exemplo, Ruth Landes, 2002; Patrícia Birman, 1995; e Rita Segato, 1995. Não foi um ponto por mim aprofundado, mas fica claro a utilização de termos e as relações de parentesco entre os integrantes da Escola. 32 Segundo Elizângela, a cada dois anos é formada uma chapa com as eleições da Presidência. Normalmente, mas não obrigatoriamente são pessoas de dentro da Escola, que formam uma comissão com os cargos de primeiro secretário, segundo secretário, vicepresidente, primeiro tesoureiro e segundo tesoureiro. E o Conselho Deliberativo “vota em quem está mais preparado para comandar a Escola por dois anos”. Percebi que existe uma rotatividade dos cargos na Presidência e na Diretoria entre os integrantes da Escola. O pai de Elizângela, por exemplo, que já foi Presidente sempre participou de alguma chapa, ocupando quase todos os cargos ali dentro. Na gestão anterior era Presidente do Conselho Deliberativo e hoje tem o cargo de Vice. Segundo Elizângela: “eles só fazem uma troca, mas é sempre entre eles”. A Diretoria Executiva é eleita para realizar o Carnaval da Escola durante os dois anos, sendo composta pelo Presidente, o seu vice que passa a ser o Diretor do Carnaval, o segundo Vice, os dois secretários e tesoureiros, o Diretor de Patrimônio, o Diretor Social, o Diretor Jurídico, uma pessoa que trabalhe com Relações Públicas e o Coordenador dos Ensaios. Ainda tem a contratação dos profissionais, que podem ou não ficar por dois anos, como o carnavalesco, o figurinista, os compositores, o responsável pelas costureiras e corte, o aderecista, o executor dos carros alegóricos e o escultor. A Velha Guarda foi criada recentemente na Copa Lord, no ano de 2002, coordenado por Carlos Alberto Raulino. Ela é composta por integrantes normalmente de mais idade e que fizeram e fazem parte da história da Copa Lord e do samba em Florianópolis. Segundo o coordenador, não existe uma idade mínima e nem uma obrigatoriedade em desfilar como membro da Velha Guarda, mas geralmente seus integrantes têm mais de cinqüenta anos. Na Passarela existe uma ala específica para a Velha Guarda e a Diretoria, podendo desfilar todos aqueles que já foram integrantes, chegando a quarenta o número na “Nego Quirido”. A Velha Guarda faz reuniões semanalmente e tem uma Diretoria própria, sendo Mario César dos Santos o Presidente atual. Como muitos dos integrantes da Velha Guarda sempre foram músicos, Carlos Raulino junto ao grupo de jovens sambistas do “Bom Partido” foram aos poucos introduzindo os instrumentos musicais, para que retomassem a música que sempre estivera presente na vida deles. Hoje existe a Velha Guarda Show, que são integrantes da Velha Guarda e se apresentam, cantando e tocando sambas-enredos da Copa Lord, “revivendo a 33 memória da Escola”. O discurso da memória e da tradição da Escola está presente nas falas dos Diretores quando dizem respeito a Velha Guarda e as Baianas da Escola; “a origem do Carnaval em Florianópolis está na Velha Guarda e nas Baianas, ali está toda a tradição da Escola. Seu Geraldo, seu Ari e o Guta [integrantes da Velha Guarda] fazem parte da história do samba; A Velha Guarda vem surgindo com o tempo e com o tempo ela vai surgir na Avenida”, ao declarar sobre a posição que a Velha Guarda teria do dia do desfile na Avenida52. A Velha Guarda Show assim como a Bateria Show transcende os limites do próprio Carnaval enquanto um período festivo no calendário corrente. As apresentações da Velha Guarda e da Bateria Show são realizados durante o ano todo em festas na cidade, é o que Luciana Prass (2004) chama de “carnaval-espetáculo”. Em uma das apresentações que presenciei da Velha Guarda Show53, as mulheres não tocavam instrumentos, mas cantavam os sambas-enredos. Elas são chamadas de as “pastoras do samba”, nome que faz referência às pastorinhas da festa de reis, que saíam em ranchos no mês de janeiro. Muitos elementos das procissões e dos “ranchos de reis” foram incorporados pelos ranchos carnavalescos e mais tarde pelas escolas de samba, como também o estandarte, que se tornaria o porta-bandeira das escolas (TINHORÃO, 1998; FERREIRA, 2004). Neste primeiro capítulo apresentei a escola de samba Embaixada Copa Lord a partir da descrição de minha participação e observação na concentração do desfile da Escola na Passarela Nego Quirido. As informações foram trazidas conforme descrevia o cenário, trazendo relatos e informações das reuniões e entrevistas que presenciei e realizei. Na segunda parte, discuti a compreensão da escola de samba como um espaço de mediação cultural, que é fundamental para pensar no seu surgimento, e na expansão que as escolas tiveram principalmente a partir de 1960. O papel do carnavalesco também é compreendido como mediador cultural na medida em que transpõe na linguagem carnavalesca, portanto popular, histórias, lendas e mitos clássicos dos livros das “grandes bibliotecas”. O carnavalesco é fundamental no processo de criação do desfile, e sempre 52 Discurso do diretor de harmonia na reunião realizada no ACIF - Associação Comercial de Florianópolis, no dia 23 de fevereiro de 2006. 53 No dia 08 de outubro na final do concurso do samba-enredo para o Carnaval de 2007, no Clube Primeiro de Junho em São José. Ver fotos em anexo 3 na página 94. 34 dirige uma equipe, sendo o desfile o resultado final deste processo de trabalho coletivo da Escola. E por fim, visto a expansão das escolas de samba para além do desfile de Carnaval, apresentei o seu funcionamento interno, a sede da Escola, que já foi palco de muitas festas, encontros e almoços organizados pelas mulheres, e hoje abriga algumas reuniões e projetos para a comunidade. Discorro também sobre o grêmio feminino, que foi a forma pela qual as mulheres passaram a participar ativamente na estrutura interna da Escola, principalmente na organização das festividades e de projetos sociais. E por último, apresento algumas de suas organizações, como a Velha Guarda Show e a Bateria Show, que se apresentam nas festas organizadas pela Escola na cidade. O capítulo a seguir mostrará a partir de observações nos ensaios, no desfile e de entrevistas, alguns aspectos que destaquei como relevantes para uma análise da participação e dos lugares das mulheres na Escola de Samba. 35 Capítulo II - Ritmistas, Baianas e Passistas na Copa Lord. 1. Minha entrada ao campo: a apresentação da Bateria e a participação das mulheres Decidida a estudar a escola de samba Embaixada Copa Lord de Florianópolis, e como faltavam duas semanas para o Carnaval, sem nenhum contato com integrantes ou conhecidos da Escola, achei que o melhor seria freqüentar os ensaios da bateria da Escola, que estava acontecendo na Praça Fernando Machado no centro de Florianópolis. Percebi que lá era o local de encontro entre os diretores, músicos, e integrantes da Escola, assim poderia fazer contatos necessário para obter autorização para participar do desfile da Escola na Avenida. Apresento a seguir a bateria da Escola a partir da minha inserção a campo, através de observações e algumas conversas travadas com integrantes da Escola nos ensaios e durante o desfile. Pela primeira vez estava sendo apresentada a uma escola de samba e sua bateria, e tamanha receptividade fez-me com que retornasse em diversos outros momentos junto a Escola. “Era 15 de fevereiro de 2006, por volta das 21horas, quando cheguei na Praça Fernando Machado, sozinha. Os integrantes da Escola estavam agitados para começar a ‘batucada’ na hora marcada. Alguns músicos estavam chegando e a bateria estava se organizando para a apresentação. Tanto o equipamento de som quanto a bateria estavam isolados por uma fita no centro da Praça, talvez para evitar algum imprevisto. Barracas estavam organizadas para a venda de comidas e bebidas, e também para a venda de fantasias da Escola. O cenário completa-se com os espectadores que esperavam ansiosamente o samba começar, turistas, moradores do centro, ilhéus e integrantes da Escola. O clima já era de Carnaval” (Diário de Campo). A presença da bateria da escola de samba é obrigatória no desfile e demarca a identidade do conjunto da escola de samba. Segundo Cavalcanti (1994), a bateria sinaliza o caráter da festa propriamente carnavalesca, sendo o primeiro quesito de desempate no caso de duas escolas ficarem em primeiro lugar. Segundo o discurso nativo, a bateria é o coração da Escola, termo também presente no título do terceiro capítulo do livro de Luciana Prass 36 (2004), provavelmente utilizado pelos ritmistas54 e integrantes dos Bambas da Orgia, escola de samba de Porto Alegre, para se referir a bateria. A organização da bateria se dava na divisão de seus integrantes em dois blocos, que ficavam lado a lado, separados por um corredor, onde a Rainha e a Madrinha da Bateria em alguns momentos, conforme algumas convenções da bateria (situada também em partes do samba-enredo), desfilavam dançando e quebrando seus quadris em meio a bateria deixando o público impressionado, pois dançam muito bem. Nesses momentos a bateria se abaixava ressaltando a beleza da dança e das dançarinas. A disposição dos instrumentos da bateria da Copa Lord acontece da seguinte maneira: nas duas primeiras filas ficam os naipes55 da cuíca com dez integrantes; nas duas segundas filas ficam os naipes dos chocalhos, somando um total de vinte integrantes. Segundo o diretor Eduardo, os chocalhos se diferenciam dos ganzás, pois é composto por pequenos pratos de metal, e os ganzás são preenchidos de areia56. Nas duas próximas filas ficava o naipe dos tamborins, também somando vinte integrantes. Ao se referir aos demais naipes da bateria o diretor a chamou de “bateria grande”. A bateria grande é composta por onze fileiras com dez integrantes em cada uma. Em três fileiras ficavam os surdos, que se diferenciam em três tipos: os surdos de primeira, que são os maiores; os surdos de segunda, que são um pouco menor que os de primeira; e por último os surdos de terceira, que são os menores. Os surdos de primeira, também conhecidos como paulistão, são os responsáveis pela marcação do ritmo do samba (PRASS, 2004; SILVA, 2002). Os repeniques e as caixas, também conhecido por tarol, são intercalados entre os surdos, ocupando o total de oito fileiras. A disposição espacial dos naipes de instrumentos da bateria varia de escola para escola, conforme a identidade sonora que cada grupo idealizou e construiu ao longo dos anos (PRASS, 2004; FERREIRA, 2004). 54 Ritmistas é um termo muito comum ao falar dos músicos que tocam na bateria das Escolas de Samba, e significa aquele que faz ritmo, faz música. Luciana Prass (2004) utiliza esta categoria ao se referir aos músicos da bateria da escola Bambas da Orgia. 55 Naipe é um termo utilizado nas orquestras para diferenciar os tipos de instrumentos, como o naipe dos metais, naipe de cordas, entre outros, e também usado por Luciana Prass (2004) em seus estudos sobre a bateria da escola Bambas da Orgia, para se referir ao conjunto de instrumentos utilizados pelos ritmistas. 56 A dúvida surgiu, porque ao perguntar às mulheres que tocavam no desfile, elas me disseram que tocavam ganzá e, ao verificar no trabalho de PRASS (2004), percebi que ela também utiliza o termo ganzá ao se referir ao instrumento que o diretor entrevistado chama de chocalho. Utilizo o termo chocalho apresentado pelo diretor da bateria da Copa Lord. Para uma visualização do instrumento, ver foto 12 na página 75. 37 A disposição apresentada acima dos instrumentos acontece tanto na Passarela do samba como nos ensaios, apenas nestes o número de integrantes é reduzido, mas a disposição se mantém. Os ritmistas geralmente classificam os instrumentos como “pesados” e “leves” (PRASS, 2004), podendo ser chamado de instrumentos de “couro pesado” e “miudezas” (ARAÚJO, 1992 Apud. PRASS, 2004), ou ainda, como o diretor da bateria da Copa chamou, de “bateria grande” e “bateria de acompanhamento”. Na organização tradicional da bateria, os “pesados” ficam geralmente atrás, e na frente ficam os instrumentos de afinação aguda, sendo normalmente chamados de instrumentos “leves”. A categoria leve ao se referir a instrumentos pequenos também era constante no discurso dos meus entrevistados principalmente quando perguntava sobre os instrumentos tocados pelas mulheres, que são na maior parte das vezes o chocalho. Segundo o diretor Eduardo, o grupo de tocadores de chocalho é composto em 99% por mulheres. Para Uda Gonzaga, “elas abrem a bateria”, pois estão sempre nas primeiras fileiras. Mas há mulheres também tocando outros instrumentos, mesmo que sejam vistas como exceção. É o caso de Alessandra que já tocou surdo, mas atualmente está na caixa, e a Cris que toca cuíca, mas segundo o diretor, ela não tem vindo aos ensaios e acha que não deverá sair este ano, no desfile de 200757. Durante o desfile de 2006, conversando com as meninas da bateria disseram-me que eram 14 mulheres que tocavam, mais a irmã de Elizângela Aranha, a Raquel Aranha que era uma “Passista da Bateria”. Raquel dançava e tocava pandeiro, mas não era considerada uma integrante da bateria. Segundo Elizângela, a Escola achou interessante colocá-la em destaque, pois “você sempre vê uma passista sambando, agora uma menina, por que ela é uma menina, sambando e tocando pandeiro, é difícil. Eu nunca vi, sambar, tocar e correr né?”. Ao fazer referência de minhas observações em relação à participação das mulheres na bateria, que na sua maioria tocava o chocalho, Beirão também se referia aos instrumentos tocados por elas como “instrumentos leves” e “coisa pequena”; “Acho que têm algumas que arriscam no tamborim (...). Mas a bateria é 98% masculina”. 57 Retornei a campo para esclarecer algumas dúvidas sobre a bateria da Escola, no dia 30 de janeiro de 2007. Os ensaios para o Carnaval de 2007 começaram em dezembro, novamente na Praça Fernando Machado. 38 Interessante observar que a utilização das categorias leve/pesado não está presente apenas no discurso dos meus entrevistados. Sobre sua entrada em campo, Luciana Prass (2004) descreve que começou a participar dos ensaios da bateria da escola Bambas da Orgia, tocando o tamborim, pois era o único naipe com participação feminina e segundo ela, seria menos impactante, além de ser um instrumento leve e que pertencia aos ritmistas. Segundo observou, a participação de mulheres não era vetada, mas era um número reduzido e que geralmente tocavam nos naipes considerados leves, como o ganzá, o tamborim, o prato (o que não observei na bateria da Copa Lord) e a cuíca. Segundo Luciana, a utilização destes termos era comum entre os integrantes da escola. Mas, assim como nos Bambas da Orgia, na bateria da Copa também já houve mulheres tocando instrumentos da “bateria grande”, como o surdo, não havendo uma regra que seja pré-estabelecida. Maria Inês Silveira Paulilo (1987) encontrou essas mesmas categorias, “leves” e “pesados”, entre os agricultores de diferentes regiões do Brasil para se referirem ao trabalho de mulheres e homens no campo. Paulilo observou que mesmo quando havia inversão da tarefa de uma região a outra, o qualificativo “leve” ou “pesado” permaneceria ligado ao gênero e não ao tipo de trabalho desempenhado. Isso nos faz pensar que usar os adjetivos “leve” e “pesado” para os instrumentos, pode não estar ligado ao seu peso fisicamente mensurável, mas a outros aspectos sociais e simbólicos, sendo o ritmista da escola de samba um desses aspectos. Segundo Cristiana Tramonte (1996), os desfiles das escolas apontam para a visibilidade dos negros (desde o surgimento das escolas, a sua participação, quanto na dramatização dos enredos, com temáticas em sua maioria racial), e para um espaço de igualdade entre homens e mulheres, ainda que este mais lentamente. A participação feminina na bateria, por exemplo, é um dado inédito, pois anteriormente a participação das mulheres no Carnaval não era bem vista, segundo relata Dona Didi, uma das fundadoras da escola Protegidos da Princesa. Nadir Vieira de Oliveira, mais conhecida como Dona Didi, era uma das mais famosas incentivadoras das escolas de samba em Florianópolis e uma das primeiras mulheres a integrar uma escola de samba. Sua casa era um dos locais de reunião e encontro dos sambistas (TRAMONTE, 1996). Na frente da bateria durante os ensaios ficavam os intérpretes, com microfones, e na lateral esquerda ficava o equipamento e o coordenador de som. Ao lado dos intérpretes 39 estavam os dois cavaquinhos, responsáveis por “arrancar” o som na Avenida e segurar o andamento da bateria. Ao retornar a campo este ano para tirar algumas dúvidas, tive o prazer de conhecer o Gersom e o Andy, os dois músicos que tocam cavaquinho desde 1998 na Escola. Eu estava de frente para a bateria, e esta, de frente para a Praça XV de Novembro. Em alguns momentos, crianças participavam dançando na frente da bateria, dentro da área que isolava o público dos músicos, o que me fez deduzir que eram crianças da comunidade. Mais tarde, ao falarem no microfone, descobri que são crianças da ala infantil e uma das passistas mirim58. O cidadão-samba de 2006, seu Lidinho, também mostrava sua “arte de dizer-no-pé”59 junto a Madrinha e a Rainha da Bateria, mas devo ressaltar que só as moças passavam pelo corredor formado pela bateria. A bateria da Escola é coordenada por cinco diretores e um mestre da bateria. São eles: Almir, Eder, Malkon, Flávio, Eduardo - conhecido como Dú da Cuíca. O mestre é o Carlos Alberto, mais conhecido como Carlão, e está a treze anos na bateria da Escola. Os ensaios começam normalmente no mês de outubro na sede da Escola, mas só em janeiro é que o número de integrantes aumenta devido a proximidade do Carnaval e os ensaios passam a acontecer no centro da cidade. Os ensaios são abertos ao público e no caso de quem queira tocar, segundo um dos diretores é necessário participar de todos os ensaios para pegar os “toques”. Caso não acompanhe o ritmo da bateria, ou “atravesse” o som com freqüência, não desfila junto a Escola e caso contrário, o mestre vai dizer que está “pronto” para tocar. Normalmente já fazem parte da bateria músicos que quase todos os anos tocam na Escola, mas esta está sempre aberta a pessoas novas que queiram aprender e participar. Áurea Demaria Silva em sua monografia intitulada Ensino e aprendizagem musical na bateria da escola Embaixada Copa Lord, discute o conceito de “performance musical” para se referir ao contexto em que os músicos estão tocando nos desfiles e nos ensaios da bateria da Copa Lord, ou seja, ao conjunto de sua atuação musical (SMALL, 1997Apud. SILVA, 2002). Segundo a autora, as pessoas que interagem sejam cantando, dançando ou tocando partilham da vivência musical, mesmo sem pertencer à bateria da escola. Entendendo a música como uma prática social, os ensaios que acontecem no centro da 58 59 No desfile da Escola, tanto as crianças como as jovens passistas têm uma ala específica. Bela expressão utilizada por Avez-Vous ao qualificar o samba de Seu Lidinho, em BLUMENBERG, 2005. 40 cidade não são da bateria e sim da escola Copa Lord e de todos os atores sociais que ali estão presentes, compartilhando o momento musical dos ensaios e durante o desfile (SILVA, 2002). Assim, pensar os ensaios e todo o cenário descrito por mim acima, no qual ele está inserido é entender o contexto musical da Escola e a própria constituição da bateria da Copa Lord. Na Avenida, durante a apresentação do desfile entra junto o carro de som, e em cima dele ficam os intérpretes, os músicos que tocam cavaquinho e o puxador do sambaenredo. Dentre os intérpretes, um se destaca como o puxador do samba-enredo. O puxador do samba é quem canta a primeira vez o samba-enredo na Passarela, sem o acompanhamento da bateria apenas ao som do cavaquinho. Ao conversar com a Nega Tide, ela me informou que só houve uma puxadora de samba, que foi a Jane. Jane puxou o samba-enredo “No Comércio da Vida”, em 1990, um desfile de vitória para a Copa Lord. Durante o desfile observei a participação de uma mulher no carro de som, mas segundo Tide: “(...) ela não estava puxando o samba, porque mulher não puxa samba, foi só a Jane quem puxou (...), ela era uma das intérpretes, que ajuda na hora do refrão”. Percebi que os intérpretes podem mudar a cada ano, pois ao presenciar o ensaio deste ano (2007) não eram os mesmo intérpretes do desfile passado e haviam três mulheres, que conforme foi anunciado eram backing vocal. Segundo os meninos que tocam cavaquinho, as mulheres cantam em um tom geralmente mais alto, fazendo o agudo na hora de cantar o samba-enredo e ajuda para não carregar tanto a voz dos intérpretes, não deixando o samba “cair” na Avenida. 2. As Baianas da Escola de Samba A imagem da baiana é uma das mais difundidas no Carnaval do Brasil, sendo muito comum sua presença nas ruas do Rio de Janeiro desde finais do século XIX (FERREIRA, 2004), principalmente com a abolição dos escravos e migrados para a capital em busca de empregos e melhores expectativas de vida. Segundo José Ramos Tinhorão, a nova capital transformou-se no maior centro de convergência de migrações internas, e os baianos constituíam-se a segunda maior colônia de emigrados no Rio de Janeiro (TINHORÃO, 1998). A presença das baianas pelas ruas do Rio chamou a atenção da elite da cidade, tanto 41 pelas suas indumentárias como pela sua boa mão para a cozinha. Eram ótimas quituteiras. Muitas passariam a trabalhar como cozinheiras nas casas dos mais ricos da época. Já na capital, no Rio de Janeiro, esses grupos migrados de diversas regiões do Brasil acabavam por agrupar-se em núcleos vizinhos segundo sua origem regional. Esse agrupamento teve como conseqüência cultural a tentativa de estender suas afinidades de origem às formas de diversão, principalmente nas datas festivas, como o ciclo natalino e o Carnaval, saindo em ranchos e procissões (TINHORÃO, 1998). Os ranchos carnavalescos passariam então a homenagear as baianas nos seus desfiles carnavalescos, quando estas não saiam nos mesmos. A partir da década de 1930, as baianas transformaram-se na figura central das escolas de samba no Rio de Janeiro e até hoje são consideradas essenciais dentro delas. Segundo Ferreira (2004), “uma espécie de reverência aos grupos de mulheres que desfilavam nos Ranchos e Cordões do início do século XX [como baianas] (...)” (FERREIRA, 2004: 368, grifo meu), assim como nos faz pensar também na reverência das baianas que comandavam os terreiros religiosos, a religiosidade afro-brasileira. O terreiro do João Alabá era o de maior prestígio da comunidade baiana no Rio de Janeiro no início do mesmo século, lá “(...) freqüentavam as tias baianas que seriam os grandes esteios da comunidade [religiosa afro-brasileira na capital]” (MOURA, 1983: 62, grifo meu). Vale lembrar que nesse período de nacionalismo em que o país se encontrava, é cada vez mais importante a exaltação de símbolos que “representassem o Brasil”. Surge na mesma época a figura do malandro e, anos mais tarde, a transformação do samba em “pãonosso cotidiano de consumo cultural” e na “música brasileira por excelência” (VIANNA, 2004: 33). As baianas também estiveram presentes no pensamento artístico e cultural brasileiro das primeiras décadas do século XX. Estudos e músicas da época contribuíram para que as imagens das baianas se difundissem pelo Brasil e as tornassem ícone de brasilidade, sendo sinônimo de Brasil também no exterior. Estudos como, por exemplo, o de Cecília Meireles - poeta, educadora e estudiosa das artes populares e dos costumes brasileiros. Cecília expôs em 1933 no Pró-Arte no Rio de Janeiro uma série de ilustrações, dentre elas inúmeros desenhos de baianas, principalmente estudos sobre seus gestos e indumentárias 42 (MEIRELES, 1983). No ano seguinte ilustrou com estes desenhos uma conferência que fez em Portugal sobre o folclore negro do Brasil (FERREIRA, 2004). Segundo Felipe Ferreira, em O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro: O fato mais importante em toda essa história é que, ao promover a figura da baiana, Cecília Meireles contribuía, ao mesmo tempo, para a fixação da imagem que pouco depois centralizaria boa parcela das representações visuais das escolas de samba que começavam a definir naquele momento (FERREIRA, 2004: 258). Já um exemplo da contribuição musical está na consagrada música Que é que a baiana tem, de Dorival Caymmi, de 1939, que contribuiu para a difusão dos trajes das baianas, que usada um pouco mais estilizada por Carmem Miranda, ajudaria a definir a imagem da baiana e do Carnaval tropical brasileiro na época (FERREIRA, 2004). Segundo os estudos de Cecília Meireles, as baianas das escolas de samba são uma estilização da baiana “autêntica”, que utilizava bata e saia rodada branca, o xale, o balaio, para fazer compras durante o dia carregando-os em sua cabeça coberta por um lenço branco. Durante a noite utilizava um tabuleiro de madeira para vender seus doces e quitutes, protegidas sempre com seus talismãs, “colares guias” de miçangas coloridas, madeira ou sementes, as baianas sempre utilizavam cores mais neutras. As baianas das escolas passam a usar muita cor em suas indumentárias, cores vivas nas batas, saias e turbantes, não utilizando as cestas ou tabuleiros, xales e tamancos (MEIRELES, 1983: 34). Hoje a presença das baianas é fundamental nas escolas de samba, uma “escola sem a ala das baianas não é uma escola de samba” (BLUMENBERG, 2005: 155). As baianas dentro das escolas ocupam um lugar especial no conjunto das alas. Durante os desfiles se destacam pela sua dança diferenciando-se das demais formas de dançar e sambar na Avenida. Suas danças se caracterizam por constantes giros com suas grandiosas saias rodadas, em torno do próprio corpo para os dois lados, e por movimentos de saudações com as mãos. Sua coreografia é dançada conforme partes do samba-enredo. Na Copa Lord a coreografia desta ala é combinada nos encontros organizados antes do desfile por D. Uda Gonzaga, responsável pela ala das baianas há mais de vinte anos. D. Uda Gonzaga não é uma baiana da Escola, apenas organiza a ala, disse-me que saiu uma vez de baiana, em 1982. Uda me disse que esses encontros são muito importantes, pois reforçam a integração 43 e a amizade entre as baianas. Para ela, a beleza da dança das baianas está no vestido rodado, que a faz ter esse jeito todo especial, no “carinho do seu sorriso”, no seu caminhar, “é muito importante, têm que ter uma postura. Até eu aqui estou fazendo...” [Uda ao falar sobre a postura das baianas começou a representá-las]. O giro presente na dança das baianas também é característico das religiões afro-brasileiras. Apesar de não ter encontrado referências, é muito difícil não fazer a analogia dos giros das baianas com os das mães-desanto no candomblé e na umbanda. As baianas da Escola têm como semelhança com as demais danças na Passarela a reverência ao público e os simpáticos sorrisos. Suas roupas e indumentárias nos remetem a imagem das baianas do início do século XX, como suas saias, colares, brincos, panos na cabeça e tamancos, sendo estes hoje substituídos por sapatilhas para não ter incidentes durante o desfile. A ala das baianas geralmente é ocupada por mulheres com mais idade. Suas roupas são confeccionadas pelo figurinista e todo o custo pago pela Escola, com exceção das sapatilhas. Na ponta de sua saia tem o chamado bambolê, que a deixa armada e ajuda no movimento da dança, na hora do giro. Segundo D. Uda, a roupa das baianas é a segunda mais cara da “sociedade carnavalesca”, sendo a da porta bandeira a primeira. Normalmente as saias têm três camadas de pano mais o forro, e levam em geral de cinco a seis metros de pano. Atualmente as baianas são consideradas, junto à Velha Guarda da Escola, a tradição do samba e das escolas de samba; são eles e elas os mais antigos integrantes e participantes do Carnaval brasileiro. Segundo Nega Tide: “É muito importante as baianas. (...) A baiana é a tradição da escola de samba, de qualquer escola, tem que ter, quem não tiver nem se classifica (...)”. Segundo Uda, sem a bateria e sem as baianas não tem escola de samba, “Para não dizer que é a mais importante, porque todos são importantes na Avenida, mas as baianas têm um significado totalmente importante e especial dentro da sociedade da escola de samba”, “sua tradição está na Bahia, nas lavadeiras das escadas das igrejas, com suas saias rodadas brancas”. Segundo D. Uda Gonzaga, as baianas não são necessariamente senhoras da comunidade do Monte Serrat, elas são mulheres da grande Florianópolis, e muitas já saem há anos pela Escola. Sobre ter uma idade mínima para participar, D. Uda afirmou não haver regras, mas que geralmente são senhoras de mais idade. Mas segundo ela, se eu quisesse 44 sair como baiana não haveria problema, que em 1982 saíram muitas baianas jovens, e foi muito elogiado. Surpresa maior foi ao perguntar sobre a participação masculina, se homens poderiam sair de baiana e D. Uda me informou que em 1984, três homens saíram como baianas na Escola. Já nos estudos que li sobre o Carnaval do Rio de Janeiro, a ala das baianas é definida como sendo composta obrigatoriamente por mulheres senhoras da comunidade (CAVALCANTI, 1999). Depois do desfile de 2001, no Rio de Janeiro, houve efetivamente a proibição de homens na ala das baianas no regulamento dos desfiles, pois uma das escolas entrou na Passarela com trinta integrantes homens, maquiados e vestidos de baianas. Um dos homens, que era baiana (ou uma baiana, que era homem), tinha bigode e despertou a ira e a vaia do público. Muito repercutiu sobre o assunto até chegar no ouvido da Comissão Julgadora. Observei sobre este fato na internet, críticas referindo-se a falta de respeito com as senhoras, com o discurso do fim da tradição das escolas de samba. Mas neste ano (2007), foi realizada uma reunião com a Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro retirando o artigo que proibia a participação masculina na ala, deixando essa questão a critério de cada escola. A justificativa apresentada pelas agremiações era a dificuldade em compor a ala por senhoras, já que algumas delas tornaram-se evangélicas e outras apresentam problemas de saúde60. Também há críticas quanto à participação de jovens mulheres na ala, e à influência da mídia, com o culto ao corpo jovem e belo. As diferenças entre as escolas de samba nas diferentes regiões do país se dão pelo dinâmico processo de assimilação de cada região para a festa carnavalesca, mesmo sendo o Rio de Janeiro o modelo central. Segundo Ferreira, “Cada uma das cidades redefiniria [e redefine] a festa carnavalesca a seu modo” (FERREIRA, 2004: 158, grifo meu). A baiana muitas vezes é caracterizada por ter seios fartos, corpos volumosos, serem negras-velhas (CAVALCANTI, 1999; BLUMENBERG, 2005), que geralmente têm o dom para a cozinha e o caráter acolhedor (MEDEIROS, 2004; CAVALCANTI, 1999). Segundo Uda, quando eram senhoras mais cheias, ficava muito mais bonita a dança, “naqueles vestidos rodados, elas dançando, rodavam sorrindo, dava a impressão que elas incorporavam a baiana mesmo”. 60 Informação encontrada na notícia do jornal O Dia on-line e no endereço eletrônico da Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (www.aescrj.com.br). 45 Esta imagem idealizada das baianas por vezes é representativa e alude às origens afro-brasileiras do samba, mas mesmo quando não as apresentam (o que geralmente vem acontecendo) passam a representá-las na Passarela, palco para a dramatização, para a incorporação temporária daquela identidade. As baianas surgiram na Copa Lord em 1956, e desde então estão sem exceção em todos os desfiles. Atualmente desfilam obrigatoriamente trinta baianas em cada escola de Florianópolis61. Em especial, a Copa Lord teve a presença da “saudosa” baiana Maria Lúcia dos Santos, conhecida por todos como Mariazinha, considerada a Rainha das baianas de Florianópolis. Mariazinha era a coordenadora da ala das baianas antes de Uda, e pesava 120 quilos. Para Uda, ela representava a típica baiana, pois andava sempre de turbante, saias compridas e tinha a “mão cheia” para a cozinha, “ela cozinha para a sociedade”. 3. As Passistas e os demais concursos da Escola Na entrevista realizada com Beirão, travamos um diálogo sobre a participação das mulheres nas escolas de samba e me referi à conversa que tive com a Gianne – “Cidadãsamba” do ano de 200662, sobre algumas posições de destaques, como a comissão de frente e estar na frente da bateria. Ambos disseram-me que são posições disputadas dentro da Escola, e que são “lugares" onde todas as meninas gostariam de estar - a partir das entrevistas e durante o desfile, constatei que não há só a participação de mulheres nestes lugares. A partir destas considerações surgiu o interesse em entender o que significam estas posições na Escola, se existem concursos para participar, ou se são eleitas pela Escola e se são meninas da comunidade ou é aberto a todos que queiram participar. Nas entrevistas tentei compreender que posições são estas, suas experiências como passistas, e o que significa estar à frente da bateria e na Passarela do Samba. Para tal, entrevistei a Elizângela Aranha que é a atual Madrinha da Bateria, e a Nega Tide, que já foi eleita seis vezes a Cidadã-samba; duas diferentes gerações de experiências com o samba. 61 Podendo passar esse número na Passarela. No Rio de Janeiro a ala é composta obrigatoriamente por cem baianas. 62 Meu encontro com Gianne aconteceu no Carnaval de Laguna, no qual desfilamos na escola de samba Vila Isabel no dia 27 de fevereiro de 2006. 46 Todas as escolas de samba de Florianópolis possuem a Rainha da escola, a cidadãsamba e o cidadão-samba. Atualmente além destas posições, a escola de samba Copa Lord possui a ala das Musas, a ala dos Passistas Mirins e a Madrinha da bateria. Durante a apresentação do “samba no pé”63 na Avenida, as cidadãs e cidadãos das quatro escolas são avaliados por uma comissão julgadora formado por jornalistas e radialistas, que ficam espalhados pela arquibancada, camarotes e na pista. A partir desta avaliação, na segunda feira de Carnaval vence o casal que melhor teve desempenho na Passarela, junto com o resultado da escola campeã, tornando-se assim a cidadã e o cidadão do samba da cidade de Florianópolis. A cada ano o casal cidadão-samba passa a faixa a seus sucessores - o casal não necessariamente representa a mesma escola, pode acontecer de ser a cidadã-samba de uma e o cidadão representando outra escola. Segundo Tramonte (1996), o concurso de cidadã-samba surgiu em 1964, fundada pela Propague - Serviços de Comunicação Ltda. Segundo Nega Tide não existia até então o cidadão do samba e a Madrinha da bateria, apenas a cidadã e a Rainha da Escola. Tide foi uma das primeiras cidadãs samba de Florianópolis, em 1965 ganhou seu primeiro título. No seu tempo não existia o concurso para ser a cidadã, você era convidada pela escola por melhor sambar nos ensaios. Hoje existe o concurso, e é aberto a todos que queriam participar; para Tide: “Hoje em dia não tem tanto a comunidade, eu não era da comunidade da Copa Lord, eu era de outra comunidade, de outro morro”, mas segundo Elizângela, “geralmente quem está mais próximo da Escola é que tem mais interesse”. Ao contrário da cidadã, o concurso de cidadão-samba foi criado recentemente, em 1987. Para Cristiana Tramonte (1996) a expressão “cidadã-samba” é significativa, porque “denota claramente o status desejado de inserção do sambista [e no caso da mulher sambista] na categoria de indivíduo aceito socialmente” (TRAMONTE, 1996: 116), principalmente, porque o período em que surge este “posto” nas escolas, ser um sambista e a participação das mulheres no Carnaval não eram bem visto pela “sociedade”. (TRAMONTE, 1996; BLUMENBERG, 2005; GOLDWASSER, 1975). A partir das entrevistas observei que esta expressão “não era bem visto”, em relação à participação 63 O samba no pé é um termo muito utilizado entre os integrantes da Escola ao se referir a qualidade do samba, e é o quesito básico para uma passista, o que significa saber dançar muito bem o samba na Avenida. Para um aprofundamento sobre o termo “samba no pé” e as passistas ver a tese de Simone Sayuri (2006): Samba no pé e na vida: carnaval e ginga dos passistas da Escola de Samba "Estação Primeira de Mangueira". 47 feminina é relativo ao envolvimento das famílias no Carnaval; por exemplo, a família de Nega Tide sempre teve participação nas escolas de samba dessa época, inclusive foi fundadora da Protegidos da Princesa, e Tide disse nunca ter sentido preconceito por ser uma passista e ou sair nas escolas de samba; já D. Uda Gonzaga, em sua entrevista nos revela que seu pai não a deixava participar do Carnaval, pois “não era bem visto uma mulher estar envolvida com o samba”, e só após casar com um “sambista nato” da Escola, nunca mais deixou de estar com a Copa Lord e a sua comunidade. A cidadã-samba representava segundo Nega Tide: “(...) graça, beleza, leveza e muito samba no pé”, mas Tide disse que hoje as meninas não têm o samba no pé, “(...) eu digo para elas, elas não sambam hoje”. É inevitável no seu discurso a comparação do que era ser a cidadã na sua época; “(...) porque elas não sambaram como eu no paralelepípedo; elas hoje sambam no asfalto, e em cima de tablado. Nunca quebrei o salto e nunca tirei o tacão da sandália (risos). Hoje elas chegam sem salto, arrancam o salto na Avenida. (...) Mas hoje está tudo mudado, neguinha, hoje tem o cidadão do samba, que na minha época nunca teve. Cidadão do samba que não dizem samba, é dança de salão, eles não sambam”. Com certeza Tide não fazia referência ao cidadão-samba eleito em 2006, seu Lidinho, o típico “sambista” da Escola presente em todas as festas, “onde se apresenta um batuque, aí está Lidinho, o passista que cativa com o malabarismo de seus pés (...)” (BLUMENBERG, 2005), mas observei a participação de jovens dançarinos do samba nos ensaios da Escola na Praça XV de Novembro. Para a Madrinha da Copa Lord, há uma diferença entre dançar em “casa, churrasco e pagode”, e dançar na Avenida, é preciso ter experiência de palco; “(...) no palco você é uma artista, então você tem que ter postura de artista, não pode sambar séria, você tem que sempre sorrir, tem que fazer reverência para o público, para os jurados”. E para ter esta postura no palco, segundo Elizângela é necessário ter experiência em dança, noção de ensaiar em grupo, em escola de samba, ensaiar na frente da escola e na bateria. Para ter essa “maturidade”, de sorrir, de sambar e percorrer a Passarela tem que ter, o que ela define como “espírito carnavalesco”, “(...) porque não se samba num lugar fixo, o samba é corrido na Avenida né?”. Segundo Elizângela Aranha, a cidadã-samba “(...) é a que samba melhor mesmo, é aquela que dá show de samba na Avenida, a que tem simpatia, mas principalmente mesmo 48 a que tem samba no pé. Uma cidadã não pode ser mais ou menos sambista, ou só bonita, ela tem que ser sambista, ela tem que sambar mesmo, deixa que seja a beleza para a Rainha. A Rainha da escola é que geralmente as meninas não são sambistas natas, mas são aquelas mais carismáticas, que têm beleza, é todo um conjunto, né?”. Toda escola tem a sua Rainha e a Rainha da Bateria, mas no caso da Copa Lord a Rainha da Bateria é substituída pela Madrinha. A Madrinha da Bateria não é um título de concurso, e sim eleito pela Diretoria da Escola. Como já foi dito, a atual Madrinha é a Elizângela Aranha e sua antecessora foi a Nega Tide. Neste caso não houve um evento para passar a faixa, pois segundo Elizângela é um “cargo” recente, que começou no Rio de Janeiro e hoje em dia o mais importante lá é ser a Madrinha da Bateria, onde “as atrizes ficam se guerreando para estar saindo como a Madrinha”. Segundo Tide: “A Madrinha da Bateria tem que sambar. Tem que ser boa de pé”. Segundo a atual Madrinha, este não é um cargo disputado pelas meninas, porque elas sabem que é preciso ter uma história com a Passarela, “ela [a Madrinha] já é considerada uma grande sambista, em todas as escolas”. As disputas geralmente acontecem nos concursos de cidadã-samba e para a Rainha da Bateria. E geralmente disputam estes cargos as meninas que saem na ala das Passistas da Escola, hoje denominado de “Musas da Copa”. As Musas da Copa Lord surgiram em 2005, quando a Escola estava homenageando seus 50 anos de vida, e colocou cada passista para representar um ano de desfile da Escola. Toda escola tem a ala das Passistas, mas na Copa ficou intitulada como as Musas da Copa; “São as Musas da Escola”. O concurso para a seleção das musas aconteceu há dois anos, e para o Carnaval de 2007 houve uma nova seleção. Segundo Elizângela, a Rainha da Escola de 2006 era uma das musas, “e provavelmente a deste ano também seja (...), porque elas já estão ali se apresentando, já vão tendo experiência”. O que também ocorre com a ala das Passistas Mirins, que segundo Elizângela é muito importante, pois as jovens meninas já vão crescendo aprendendo, acumulando experiência com o samba, “já estão crescendo com aquela visão de show né, de Passarela”. Já, a comissão de frente é uma ala coreografada e tem um coreógrafo que ensaia o grupo, preocupado principalmente com a criatividade e a evolução da dança. A comissão de frente é aquela que apresenta o tema, a primeira a ser vista pelo público e pelos jurados. O 49 grupo geralmente é formado por uma equipe de dança, bailarinos e dançarinos. Segundo Elizângela, geralmente sambista não gosta de sair na comissão de frente, só quem já faz dança, pois o passo é “marcado, não é livre”, a dança é coreografada e você deve dançá-la do início ao fim; “Se é uma coreografia para sorrir, tem que sorrir o tempo todo, se é para ficar séria, tem que ficar séria (...), não é livre. No ano que eu participei [da comissão de frente] nós éramos índios, então o índio é sério, e nós saímos com arco e flecha, lança, tínhamos que fazer aquela cara de tímidos o tempo todo. Eu adorei, porque eu gosto de dançar. Foi um ano de experiência, mas não é a mesma coisa, a Escola participou e eu nem senti, foi tão rápido, quando eu vi já passou”. Elizângela gosta mesmo é de estar na frente da bateria, já saiu também em cima de carro alegórico, como destaque, mas segundo ela não é a mesma experiência de estar na frente da bateria. O samba se caracteriza pela “quebra de quadril” que é singular na sua dança, se diferenciando das demais danças pela improvisação64 na Avenida. O mestre-sala e porta bandeira, as baianas, a comissão de frente e as alas coreografadas têm outra “marcação”, “é outra reverência, é outro dançar”. Ao perguntar a Tide como era estar na frente da bateria, assim me respondeu: “Ah... é uma beleza, é uma beleza, porque é ali que está o som rasgado, ali não dá para se perder de jeito nenhum, porque ali é o posto da cidadã do samba e da Madrinha da Bateria”. Tide nos revela algo que é fundamental nos desfiles das escolas de samba, o entrosamento entre o som e a dança. O som é fundamental para a apresentação e a improvisação dos sambistas que estão principalmente ali na frente da bateria, pois estão em destaque e não têm uma coreografia específica, sendo a dança estritamente relacionada ao som impresso pela bateria. Segundo Muniz Sodré (1979) em Samba, o dono do Corpo, esta relação da música e da dança é uma das características da cultura tradicional africana trazida para o Brasil pelos escravos, no qual “a música não é considerada uma função autônoma, e sim um processo de interação entre os homens”. Referir-se à música através da dança é tão válido quanto escutá-la, a ela acrescente o espaço ao tempo; “A informação transmitida pelo ritmo não é 64 A improvisação da dança surge a partir das convenções feita pela bateria, que são praticadas nos ensaios da Escola, freqüentados também pelas passistas, que assim podem praticar a dança, o improviso do samba. Podendo assim os improvisos ser algo já praticado, mas não necessariamente pré-estabelecido para serem executados na Passarela. 50 algo separado do processo vivo dos sujeitos da transmissão-recepção. Transmissor e receptor se convertem na própria informação advinda do som” (SODRÉ, 1979: 22). Segundo Elizângela, outra característica de uma sambista é sair sempre no chão da Avenida. As funções de cidadã, cidadão, Rainha e Madrinha da Bateria, além de sambarem na Passarela, mostrando a arte de sua dança, também participam de festas e ensaios, “(...) tem que representar bem, né? Tem que estar sempre presente, em todas as festas”. A “Corte da Escola”, como são chamado aqueles que usam a faixa - todas as posições citadas acima possuem uma faixa representativa de seus títulos, são responsáveis pela divulgação da Escola, participam de programas de televisão e da rádio da cidade. Interessante observar também que a profissionalização destas funções está para além dos desfiles de Carnaval, pois representam a Escola durante todo o ano, participam de comerciais, viajam, e são convidados para participarem de jurados em concursos pelo Estado de Santa Catarina. Segundo Elizângela, quando uma agência de propaganda precisa de mulatas, de belos corpos negros, elas vão direto nos morros, na sede das escolas de samba convidá-las para fazerem os comerciais. Sobre as mulatas, Sônia Maria Giacomini em Beleza Mulata e Beleza Negra, nos aponta para a idealização da mulata no imaginário brasileiro. No universo em que o samba aparece como música nacional por excelência, a mulata que representaria o samba, “autenticamente brasileiro”, e simbolizaria, nesses discursos, a “integração entre as raças” (GIACOMINI, 1994: 223). Segundo Giacomini, há uma inversão da relação de dominação do ponto de vista racial e sexual, pois as mulheres negras, que estiveram durante séculos submetidas ao trabalho escravo, transformaram-se na mulata irresistível e sedutora. Esta relação tem duas faces, pois ao mesmo que são idealizadas no âmbito da ideologia dominante, também são “representadas positivamente como protagonistas da miscigenação” (GIACOMINI, 1994: 226). Carmen Sílvia Rial, em Japonês está para a tv, assim como mulato para a cerveja: imagens da publicidade no Brasil, também nos aponta para a essencialização da imagem da mulata na construção de uma suposta identidade nacional, pois quase sempre são associadas ao trabalho doméstico, à sensualidade e à musicalidade, sendo representadas normalmente em comerciais de cerveja, Copa do Mundo e Carnaval. Assim, a publicidade no Brasil exibe também duas faces: “a face híbrida em momentos excepcionais quando se 51 trata do Brasil se auto representar”, e a “face branca, no dia-à-dia”. A publicidade contribui assim para a construção de identidades subjetivas, no qual “imaginários e identidades sociais são refletidos (e reproduzidos) por imagens publicitárias” (RIAL, 1995: 16). Beirão trouxe-me uma questão interessante sobre a relação das passistas com as Baianas; costuma-se dizer que uma passista vai acabar Baiana, como se esse fosse o último estágio delas na Escola. Perguntei a Elizângela, a Madrinha da Bateria o que ela pensava sobre esta relação e ela, para minha surpresa, disse-me: “Eu ainda hoje falei esta frase. Porque assim, a passista está intensamente na Escola, na bateria, que é o coração. Você vai envelhecendo, você vai diminuindo seu ritmo, mas vai estar sempre ali, querendo dançar na escola como um posto importante, e a baiana é um posto importante. Então quando eu ficar velhinha, eu digo que vou sair de baiana, porque eu quero continuar num posto importante e ter participação dentro da escola. E as Baianas têm uma dança muito importante, têm toda uma tradição na escola né?”. Elizângela fez-me notar o contraste em ser uma baiana e ser uma passista na escola de samba, quase que uma relação de oposição; mesmo ambas sendo de grande importância para as escolas. As Baianas giram na sua dança e utilizam roupas que fazem cobrir todo o seu corpo, sua sensualidade está presente nos giros e gestos “acolhedores”, sempre colocando a mão na cabeça e na altura do peito. Caracterizam-se por terem corpos volumosos, e representam a tradição da escola, muitas são consideradas as “matriarcas do samba” (MEDEIROS, 2004). As passistas por sua vez, chamam a atenção por terem corpos “bem delineados”, sendo este um quesito também valorizado para a escolha nos concursos, e normalmente são jovens meninas, com idade média de vinte anos. A sensualidade de sua dança está na quebra dos quadris e no samba no pé, e utilizam muito brilho nos corpos que são cobertos por pedaços de pequenos pano, muitas vezes desfilam quase semi-nuas na Passarela do Samba. Para D. Uda Gonzaga, as baianas são totalmente diferentes das passistas, pois suas roupas curtas são para mostrar o samba no pé, aí está a característica principal de uma passista. Já as baianas, segundo Uda, não vão mostrar o samba no pé, “mas elas vão mostrar toda a beleza no rodopiar, no erguer os braços, nos turbantes e na mão na cabeça”. Na cidade, uma semana antes do Carnaval, acontece a “Corte do Carnaval”, no qual a chave da cidade é passada ao Rei Momo simbolizando o início da festa carnavalesca, este 52 é acompanhado pela Rainha do Carnaval da cidade, e de duas Princesas. Os quatros títulos são eleitos anualmente, e no dia do evento os eleitos no ano anterior passam a faixa em uma cerimônia realizada no Largo da Alfândega, no centro da cidade. Segundo Elizângela, o reinado de Hermani “Rulk” - o Rei momo de Florianópolis, tem vinte e um anos de reinado, ganhando sempre que a Prefeitura realiza novos concursos. Durante este período são realizados além da Corte da cidade, inúmeros concursos organizados pela Prefeitura, pelos jornais da cidade e pela imprensa em geral, no qual se verifica a circularidade das passistas nos mesmos. O acúmulo de títulos e de experiência faz com tenham prestígio para serem convidadas pela escola para representá-los na Avenida. Neste segundo capítulo do trabalho, apresentei a bateria da escola de samba Copa Lord e a participação das mulheres ritmistas, que tocam principalmente o chocalho no contexto dos instrumentos da Escola. Instrumento este denominado leve em relação a “bateria grande”. Tento mostrar, para além da participação das mulheres, o contexto musical da Copa Lord no desfile e principalmente a partir dos ensaios da bateria, no centro da cidade, período que antecede o desfile de Carnaval. Destaquei as baianas da Escola trazendo o seu contexto histórico no processo de surgimento das escolas de samba no Rio de Janeiro. A ala das baianas hoje é considerada a tradição das escolas, termo muito presente no discurso dos integrantes da Escola. Apresento suas características, roupas e indumentárias, e o seu jeito especial de dançar na Passarela, diferenciando principalmente das passistas da Escola. Ressaltei, mas sem um aprofundamento teórico, a possível comparação entre as baianas das escolas de samba e as mães de santo dos terreiros religiosos afro-brasileiros, e sobre o fato de se tornarem símbolos de brasilidade e do Carnaval brasileiro nas primeiras décadas do século XX. No terceiro momento, apresentei as passistas e os concursos, como estes funcionam na Escola, todo o processo que as envolve para que se tornem destaques, como são eleitas estas posições dentro da Escola, e o que representa cada uma delas no contexto dos desfiles e do Carnaval de Florianópolis. O terceiro capítulo mostrará as narrativas de três gerações de mulheres que fazem parte da história do samba e da escola de samba Copa Lord, mostrando seus diferentes contextos sociais e posições frente ao Carnaval em Florianópolis. 53 Capítulo III - Encontro com três gerações de Mulheres na Copa Lord. Nesta terceira parte do trabalho, apresento três encontros que tive com mulheres de três gerações diferentes envolvidas com o samba e com a escola de samba Embaixada Copa Lord, de Florianópolis. Meu intuito era ouvir um pouco sobre a trajetória delas no samba e na Escola, e compreender como elas começaram a participar de escolas de samba, se já vinham de família tradicional do samba, como conheceram a escola Copa Lord, e sobre sua participação na Escola e nos desfiles de Carnaval. O fato de entrevistar três gerações diferentes não foi proposital, mas contribuiu na medida em que aparecerão no decorrer dos discursos delas, contextos específicos e diferentes momentos do Carnaval em Florianópolis. Sobre a trajetória de mulheres em escolas de samba, pouca referência eu encontrei, com exceção do livro Batuque na Cozinha, do jornalista Alexandre Medeiros, que conta as receitas e histórias das tias da Portela - o que me instigou a relatar as histórias narradas por minhas entrevistadas, ressaltando não só sua participação na escola de samba Copa Lord, mas também suas histórias com o samba e junto a comunidade ligada à Escola. As entrevistas revelaram-me em muitos momentos mais do que suas experiências com o Carnaval, mas fragmentos de suas histórias, o que aparecerá no decorrer de suas narrativas. Fica claro também nas entrevistas o discurso que cada uma tem a respeito das escolas de samba e de suas transformações no decorrer dos anos, assim como a profissionalização de suas funções dentro da mesma. A primeira entrevistada que apresento neste capítulo é Dona Uda Gonzaga, uma líder na comunidade do Monte Serrat, podendo-se dizer a matriarca da comunidade e da escola de samba Copa Lord; sua história de vida está entrelaçada com a comunidade e a Escola de samba. A segunda entrevistada foi Erotildes Helena da Silva, mais conhecida como Nega Tide, considerada a eterna musa do Carnaval da cidade. Tide foi uma das primeiras passistas, e sua família sempre esteve envolvida com o samba e com as escolas de samba na cidade. A terceira e mais jovem entrevistada foi Elizângela Aranha, atual Madrinha da Bateria da Escola e que, segundo me disse, nasceu dentro da Copa, seu pai faz parte do Conselho Deliberativo e sua mãe foi uma grande passista, sendo que sua irmã e 54 sua prima também participam de concursos de passista e de cidadã-samba tanto em Florianópolis quanto em São José, pois sua família é de lá. Estas jovens integrantes, da qual chamo de terceira geração do samba, fazem parte de outro universo carnavalesco, o universo da mídia, dos concursos e do acúmulo de faixas que as prestigiam enquanto destaques no Carnaval e também fora dele, fazendo comerciais e participando de concursos de beleza. As três gerações a que me refiro não estão relacionadas necessariamente a idade quantitativa que elas têm, mas sim ao seu contexto social e aos diferentes contextos do samba e do Carnaval em Florianópolis – a suas idades qualitativas. Seus relatos nos revelam os diferentes lugares que as mulheres ocupam e ocupavam dentro da Escola e nos desfiles, as estratégias utilizadas por elas para poderem estar participando ativamente na diretoria da Escola, a organização nas festas e projetos sociais, e até o que poderíamos chamar das “carreiras femininas” dentro das escolas de samba, como ser uma passista e ser uma baiana, e o contraste entre elas. Apresento a seguir partes de suas histórias narradas nas entrevistas, com intuito de conhecer suas histórias, os diferentes contextos e os seus papéis dentro da Escola Copa Lord. 1. Uma liderança feminina: O encontro com D. Uda Gonzaga “Nasci, me criei, fiz a primeira comunhão, estudei, casei, continuei meus estudos na Universidade, fiquei viúva. Tudo aqui na comunidade. E aqui ainda estou, e só vou sair daqui para ir para onde todo mundo um dia vai”. Maria de Lourdes da Costa Gonzaga, mais conhecida como D. Uda, hoje é considerada a Primeira-Dama da Embaixada Copa Lord65, e também é a coordenadora da ala das baianas. Uda atualmente ocupa o cargo de Presidente do Conselho Deliberativo, e é a diretora da escola de educação básica Lúcia do Livramento, que fica no alto do Morro da 65 Título com o qual D. Uda parece não se sentir muito à vontade, pois ao comentar sobre o mesmo na entrevista riu, e ficou sem graça, parecendo não concordar. Este é um título formal da Escola, eleito pelo Conselho e pela Diretoria, assim como o título de Presidente de Honra de Avez-Vous, um dos fundadores da Escola. 55 Caixa. Poder-se-ia dizer que Uda é a matriarca da comunidade Monte Serrat e da comunidade copalordense, o que ficará mais claro a seguir. D. Uda é nascida no Monte Serrat, cresceu, casou e hoje trabalha lá, participa da igreja e esta sempre envolvida com projetos sociais na comunidade. Sua família já residia na comunidade, onde Uda conheceu seu marido, Armandino Gonzaga, carnavalesco66 típico da cidade. Armandino era da escola Protegidos da Princesa e depois foi para a Copa Lord onde a conheceu. Armandino Gonzaga entrou na Escola de Samba em 1963 e ficou 18 anos na Presidência da Escola. Percebi que D. Uda se emociona ao lembrar dele. Mas fala com orgulho de como ele vivia para a Copa Lord, “respirava” a Escola, “ele até dormia lá”, disse-me ela. Armandino Gonzaga foi um dos responsáveis pela construção da sede da Escola, o que proporcionou uma maior integração entre os moradores da comunidade do Monte Serrat e a participação das mulheres na Escola, principalmente quanto às festividades e à parte social. Com a construção da sede, um grupo de dez mulheres, esposas dos diretores, criou o “grêmio feminino”, através do qual puderam ter uma maior interação e participação na Escola de samba. O grêmio feminino foi uma estratégia para a participação feminina, pois até então esta se dava em número reduzido. Segundo Uda, era muito comum a participação de mulheres solteiras na Escola, e a construção da sede foi uma maneira de toda a família participar, tanto nos desfiles quanto interagindo com a comunidade. Na sua fala, Uda sempre remete à relação de família que se encontrava e se encontra dentro da Copa Lord, “Hoje agente vê a escola de samba como um grupo, uma comunidade carnavalesca, a comunidade do samba. São famílias que se integram dentro da escola. Cada um que ali estava era também como um membro da família (...)”. D. Uda não participava da Escola de samba antes de conhecer seu marido, pois seu pai não gostava, considerava que era mal visto que uma jovem participasse da escola. Após se casar com Armandino, é que Uda nunca mais parou de se envolver com a Escola de samba. Sua casa era palco para as produções das fantasias e adereços para os desfiles, tanto o grupo de mulheres quanto os diretores se reuniam para ajudar a bordar as fantasias. Ao 66 O carnavalesco aqui não significa a função ou o trabalho do criador do enredo, e sim aquele que sempre participa do Carnaval e das escolas de samba da cidade. 56 perguntar a Uda onde as mulheres estavam nos desfiles antigamente, ela me respondeu rindo: “Ah... Eu não sei, só sei que na minha casa tinha um monte...”, se referindo às reuniões de mulheres que aconteciam em sua casa. Sua casa, desde que se casou, é praticamente ao lado da sede da Escola, separada apenas por um terreno baldio, que também é dela. Diz ela: “Pois é, não tinha como não ser próximo da sede”, referindo-se à paixão de seu falecido marido pela Escola. Hoje Uda mora com sua mãe, D. Angelina, que tive o prazer de conhecer. Conheci também Graça, a moça que trabalha em sua casa, e que é também uma das baianas da Escola. D. Uda, após o falecimento precoce de seu marido, em 1978, não deixou de participar da Escola, e foi por duas vezes a Presidente, sendo até hoje a única mulher que presidiu a Copa Lord. É formada em Administração e em Pedagogia, e os anos de estudo foram, segundo ela, os dois momentos em que esteve mais afastada da comunidade. Logo depois de formada, em 1963, foi trabalhar na escola básica da comunidade, onde está até hoje. Uda disse-me que logo se aposentaria, mas que não pararia de trabalhar com alfabetização e com projetos sociais para a comunidade do Monte Serrat. Para D. Uda, as duas escolas, tanto a básica como a escola de samba, têm grande importância para a comunidade, as duas são referência no Monte Serrat para a cidade de Florianópolis; “A escola Copa Lord faz parte da vida da comunidade Monte Serrat, assim como a escola básica”. Segundo Uda, se referindo à escola básica, “a nossa escola é diferente, pois ela é muito importante para a comunidade”. Tudo o que na comunidade acontece, desde chamados médicos até a realização de velórios, é para Dona Uda que recorrem; segundo ela, a escola básica “não é só o pedagógico... é o pedagógico da vida, né?”. D. Uda é uma mulher cem por cento para a comunidade; está todo o dia da semana, de manhã e à tarde na escola básica, trabalhando com as crianças. No período da noite algumas vezes tem reunião na Copa Lord, aos sábados de manhã dá aula de catequese na igreja, à tarde trabalha com alfabetização de adultos, e também auxilia nos projetos sociais realizados na sede da Copa Lord. Segundo Avez-Vous, em seu livro: “Uda é dessas pessoas que vivem para o seu semelhante, sempre sorridente, despertando admiração e simpatia” (BLUMENBERG, 2005: 127). Essa realmente é a impressão que fica ao conhecê-la. 57 Um relato no meu diário de campo ilustra as palavras de Avez-Vous sobre Uda Gonzaga, a partir de um de nossos encontros, a caminho da apresentação dos protótipos da Escola67 para o desfile de 2007: “Estávamos a caminho da festa e ao entramos no táxi, o taxista cumprimentou Uda pelo seu nome, e continuou a falar que estava muito feliz em pegá-la - quando ele parou o carro na frente da casa dela e a chamou pelo nome, pensei que sempre a atendesse. D. Uda, após uns minutos em silêncio, perguntou de onde ele a conhecia, e ele falou olhando em seus olhos: ‘Você é um anjo, quem não te conhece aqui?’. Fiquei realmente arrepiada em ouvir suas palavras, e percebi o quanto D. Uda era especial para aquela comunidade. Disse ainda que nunca mais a tinha pegado, mas que daquela vez tivera sorte. Ele explicou que antigamente, há um bom tempo, ele sempre a pegava no centro da cidade, e D. Uda brincou dizendo que não devia ser tanto tempo assim, todos riram, e continuamos a seguir para o teatro” (Diário de Campo). Sua liderança, receptividade e acolhimento para com os outros e a comunidade é o que faz Uda ser considerada uma matriarca no Monte Serrat, o que se evidencia em uma passagem de sua entrevista: “Eu me criei aqui e considero todos filhos, irmãos e namorados... Fiquei viúva, casei com a comunidade, com as escolas, e não tive tempo para mim mesma. Mas olhando para os outros, vejo eles crescerem, continuarem seus estudos, e isso é muito bom”. D.Uda coordena, além da ala das baianas no Carnaval, a ala da comunidade - duas no total de vinte alas no desfile, e a ala das crianças. Fez questão de enfatizar que as alas da comunidade passaram a ser obrigatórias na Escola, e que ninguém pagava nada para desfilar. D. Uda nos remete as transformações ocorridas com a profissionalização e a expansão do desfiles das escolas de samba no Carnaval em Florianópolis. Antigamente, segundo Uda, uma turma se reunia na sua casa para bordar e fazer os adereços, e que os homens, entre eles o seu marido, aprenderam a bordar para ajudar na costura e passavam a noite voluntariamente trabalhando. Hoje o trabalho da comunidade está se desintegrando, mas ela disse que se precisasse de trabalho voluntário, ele aconteceria. D. Uda me disse que 67 A apresentação dos protótipos aconteceu no dia 07 de novembro de 2006, em São José. Neste dia, tinha visitado D. Uda para conhecê-la e explicar minha pesquisa, e quando estava me despedindo, pois estava ficando tarde, fui surpreendida pelo convite de acompanhá-las na festa, D. Uda disse que teria um convite, e que era sobre Carnaval, se referindo ao meu trabalho e que deveria ir, logo, o convite foi aceito. Os protótipos são a apresentação da fantasia de cada ala para os integrantes da Escola e autoridades da cidade, como no caso o Prefeito de São José, pois o enredo de 2007 seria uma homenagem a cidade. 58 tem mais ou menos umas dez pessoas da comunidade trabalhando para o desfile de 2007, utilizando a escola básica (que neste período fica vazia, pois as crianças entram em férias), e também a sede da Copa Lord. Segundo Alexandre Medeiros em Batuque na Cozinha, o samba no Rio de Janeiro nasceu em regime matriarcado, principalmente por causa dos encontros nas casas das famosas “tias baianas” no centro do Rio. D. Uda diz que em Florianópolis não se utiliza categoria de “tia” ao se referir às mulheres mais velhas das escolas de samba, e elas nem sempre estão associadas às festas e aos banquetes realizados em suas casas. Como vimos, a Copa Lord realizava festas na sede da escola, e que se tornaram muito conhecidas, mas não eram as baianas que cozinhavam, com exceção de D. Mariazinha, que segundo Uda era a “típica baiana”. Além de Mariazinha, Nega Tide, Dona Lourdes e Bibina, também revezavam na cozinha, fazendo mocotó, dobradinha, feijoada, carne assada, entre outras delícias, o que hoje já não acontece mais. Nas festas que freqüentei, não observei nenhuma comida (inclusive em uma das festas eu e Rodrigo saímos para procurar algo para comer), mas eram sempre regadas a muita cerveja. Ao conversar com alguns integrantes, entre eles o Carlos Raulino, eles me disseram que aqui, em Florianópolis, não havia esta “tradição” nas casas das “matriarcas do samba”, e que o surgimento da escola Copa Lord estava ligado a uma reunião de amigos após uma “pelada” de futebol. No livro Batuque na Cozinha, duas das quatro tias da Portela entrevistadas, ainda realizam as tradicionais festas com roda de samba e feijoada, mas segundo Alexandre (2004), “existe o receio de que a linha de resistência dessas mulheres de forte personalidade, senhoras dos terreiros, esteja por um triz” (MEDEIROS, 2004). Tia Eunice, uma das entrevistadas por ele, se questionava com a falta de mulheres mais velhas para ocupar estes lugares, de forte presença feminina, como as baianas e as pastoras do samba, as mulheres que cantam os sambas enredos. 59 2. Nega Tide: A eterna passista do Carnaval de Florianópolis “O Carnaval sempre me deu tudo, graças a Deus”. Erotildes Helena da Silva, mais conhecida como Nega Tide, é considerada a eterna musa do Carnaval de Florianópolis, sendo uma das primeiras mulheres a ser a cidadãsamba na cidade. Tide já foi também a Madrinha da Bateria da Escola, e participou nos desfiles, na ala da Velha Guarda e Diretoria e como destaque nos carros alegóricos. Hoje Tide comanda a ala dos Amigos da Copa68 e circula pelas demais alas “levantando o astral da galera” na Passarela e nas arquibancadas. Tide também é conhecida por sair nos blocos da cidade, como o famoso bloco do Berbigão do Boca69, onde é destaque há onze anos. Nega Tide era antiga moradora do Morro do Céu70, perto do bairro Agronômica, em Florianópolis. Nascida e criada no Morro e no berço de uma família tradicional do samba, era esperado o futuro que lhe aguardava no carnaval da cidade. Sua família foi fundadora da escola de samba Protegidos da Princesa, a primeira escola em que saiu como cidadãsamba, em 1965 com apenas quinze anos. Tão jovem, segundo ela, porque durante os ensaios estava sempre sambando e chamava a atenção. Quando a primeira cidadã-samba da escola, a Lelela não pode mais sair, pois tinha se mudado para o Rio de Janeiro, Tide foi convidada a sair como cidadã e ganhou em primeiro lugar. A partir daí, segundo Tide: “não tinha para mais ninguém”, foi cidadã-samba de todas as escolas por que passou, “O que eu concorri com neguinha do Rio, elas vinham para me derrubar, tu visse?”. Tide participou também das escolas Império do Samba e a Filhos do Continente, e só em 1969 foi para a Embaixada Copa Lord, onde está até hoje. Na Copa Lord, Tide ganhou seis vezes o título de cidadã-samba. Segundo ela, nessa época não existia a Madrinha da Bateria nem o cidadão-samba, apenas a cidadã e a Rainha da Escola. Outro ponto que chama a atenção é que não havia concursos para estes cargos, as meninas eram eleitas pela Escola. Tide disse que estar na frente da bateria era só para a cidadã e a Rainha da escola, e que se tinha todo um cuidado da Escola para ninguém estar 68 Esta ala foi criada em 1985, formada por pessoas da comunidade e fora dela com o intuito de arrecadar fundos, e “visavam potencializar as iniciativas da Escola de Samba no sentido de promover a ‘Copa Empresa’, ou seja, a autonomia financeira da agremiação” (TRAMONTE, 1996: 165). 69 O Berbigão do Boca é um conhecido Bloco de Carnaval de Florianópolis. 70 Atualmente Tide mora no Bairro Nova Trento, ao lado do Morro do céu. 60 no espaço que era delas, caso uma ala avançasse. Hoje, segundo Tide, está muito mudado, pois ficam muitas pessoas na frente da bateria e isso não deveria acontecer, para poder destacar o samba no pé da cidadã e da Madrinha. Sobre a diferença do figurino, Tide disse que suas roupas cobriam o corpo, “na nossa época não se mostrava [o corpo] (...), acho que eu fui a primeira a sair com a saia aberta, na lateral”. E Nega Tide não foi só nesse ponto inovadora, em 1979 foi a primeira mulher a desfilar grávida em Florianópolis, com oito meses de gravidez. Ao perguntar se estava com a barriga de fora, foi enfática ao responder que não, “Tudo coberto, com um vestido longo muito bonito, com as cores da Copa (...)”. Observei nos dois desfiles de que participei que Tide usava roupas que cobriam o seu corpo, no desfile de 2006 estava com vestido longo branco, e no desfile de 2007 usava um macacão de lycra. Tide continua sendo uma grande passista na Escola, e respeitada no Carnaval da cidade. O fato de não sair na ala das passistas ou estar na frente da bateria, não faz com que tenha menos destaque. Tide é reconhecida por onde passa na Passarela do Samba, e por isso circula entre as alas. Observa-se também que mesmo com o fato de não usar roupas curtas não deixa de se valorizar o samba no pé que Tide ainda mantém, com os seus 51 anos de história com o samba. Tide já desfilou em outros locais na Avenida do Samba, mas não se identificou, o seu lugar mesmo é de passista destaque na Copa e também no Carnaval na cidade. Chamou-me a atenção quando Tide ao se referir ao seu único filho me disse: “mulher sambista para ter muito filho não dá né?”. Nega Tide teve seu filho, segundo ela “muito tarde”, com 35 anos e pareceu-me um pouco perplexa ao contar que a Rainha e a Madrinha do Carnaval deste ano de Florianópolis estariam grávidas com menos de vinte anos e que deveria ter substitutas. Observei em uma nota do jornal Hora de Santa Catarina71, que este ano – 2007, foram criadas duas suplentes para caso a Rainha e as Princesas não poderem cumprir sua agenda. Coincidentemente ou não, parece-me que ouviram as indagações de Tide sobre o concurso. Chamou-me atenção o fato de que ser uma passista é ter uma carreira dentro da escola de samba, e que para tal é necessário dedicação e cuidados com o corpo, como no caso o fato de ter menos filhos. 71 Do dia 12 de Fevereiro de 2007. 61 Tide disse nunca ter sentido preconceito em relação a ser uma passista, mesmo sabendo que ele existe, pois toda sua família pertencia ao “mundo do samba”. Tide também não tinha problema em entrar em qualquer clube, mesmo nos bailes dos “brancos”. No Baile do Municipal, um baile de Carnaval tradicional na cidade, foi “hous concours” por cinco anos no quesito originalidade, melhor fantasia e a melhor desfilando. Dentro da Copa, Tide disse que já fez parte da Diretoria e do Conselho Deliberativo, e também já desfilou com a Velha Guarda, como destaque em cima de carros alegóricos e foi a primeira Madrinha da bateria. Tide hoje comanda a ala dos amigos da Copa, como destaque e circula entre as alas para “levantar a galera” na Avenida e na arquibancada. Tide levantou uma série de questões sobre as transformações do Carnaval nos últimos anos, e as mudanças ocorridas no morro. O Carnaval de Florianópolis já foi considerado um dos melhores carnavais do país72, e segundo ela hoje ele não é nem o décimo; “o nosso Carnaval está pobre, (...) caiu muito. Da minha época, que eu fiz 50 anos de Carnaval esse ano [2006], (...) aquilo que era Carnaval, hoje não é mais, porque hoje nem fantasia existe, hoje eles botam qualquer coisa, botam um arranjo de cabeça, e vendem como fantasia. Na minha época não (...), nós fazíamos duas fantasias uma para o sábado de Carnaval e outra para a segunda de Carnaval, que era o dia do concurso. Hoje é só para o dia do Carnaval né? Fizeram aquele Elefante Branco lá, a Nego Quirido, ta? Que durante o ano serve para a corrida de carro, e para a exposição de não sei o que, enquanto em nos outros lugares como o Rio do Janeiro e São Paulo as passarelas ficam fechadas e arrumadas para o evento do samba. A Passarela é do samba (...)”. Nota-se que para Nega Tide, e também acredito que para muitos que trabalham nas escolas de samba, a Passarela do samba é “sagrado” e deve ser destinado apenas ao espetáculo do samba, palco para as dramatizações dos desfiles, e é por isso foi construído. Sobre as transformações no Morro, Nega Tide se referiu ao tráfico de drogas, às brigas e às confusões que ali começaram a acontecer, e que acabaram por não mais realizar eventos na sede da Escola, com exceção de algumas reuniões73. 72 Na década de 1950 e 1960 o Carnaval de Florianópolis tinha repercussão nacional, sendo destaque nos jornais da época, como um dos melhores carnavais do país (TRAMONTE, 1996). 73 Tramonte (1996) nos apresenta artigos da época, 1986/87, que nos relata a situação de violência que a comunidade do Monte Serrat enfrentava, e os problemas que decorreram em função desta realidade nos desfiles de carnaval da Copa Lord. (Especificamente no capítulo II, tópico 35: “Afirmar e renovar identidades: uma resposta aos novos tempos difíceis”, p.169). 62 Hoje com a institucionalização das escolas de samba, a Prefeitura e o Governo do Estado as ajudam a realizar os desfiles. Segundo Tide, antigamente os desfiles eram realizados com a ajuda de comerciantes e donos de hotéis, e famílias inteiras participavam da preparação do desfile. Coincidentemente, na entrevista com Beirão observei um discurso semelhante, principalmente sobre a profissionalização do trabalho dentro da Escola. Segundo Beirão hoje “todos são pagos para isso”, antigamente “era um trabalho de comunidade fantástico (...) a comunidade se juntava para colocar a escola na rua, se matavam pela escola (...), hoje é tudo pago”. Segundo Tide, as escolas não deveriam depender só do dinheiro do Governo, elas deveriam realizar festas como acontecia antigamente, ir atrás de fundos para poder expandir os projetos com a comunidade, tirar as crianças das ruas, alugar um local maior para a sede onde se possa fazer cursos e realizar eventos da Escola. Ao perguntar por que ela achava que mudou tanto, disse-me que o Carnaval não é um dia apenas, que as escolas de samba têm que trabalhar o ano inteiro, para quando acabar um carnaval já estar começando o outro, “Eles aqui ficam esperando pelo governo do Estado (...) para quê? Para eles pagarem as dívidas do ano passado”. Segundo Tide, a Escola tinha que envolver mais a comunidade, “antigamente não era assim, né? (...). Antes éramos nós que fazíamos o carnaval, hoje é a sociedade. E quem tem dinheiro nega, sai no Carnaval, e quem não tem, não sai. A comunidade pobre dos nossos Morros não tem dinheiro para pagar, 120, 150, 180 reais por uma fantasia, que não presta, ainda se fosse aproveitar como nós aproveitávamos antes...”. Beirão compartilha também destas idéias, “hoje em dia não, a comunidade quase não tem lugar dentro da escola”, mas segundo Beirão, entre as escolas, a Copa ainda “tem uma comunidade muito forte, bem grande, e que vive Copa Lord. Eu sempre digo em entrevistas que é uma doença a paixão daquela gente pela Copa Lord, é contagiante”. Nega Tide é uma mulher com o samba no pé e que faz parte da história do Carnaval de Florianópolis. Pertence a uma geração em que, para ser uma passista ou um destaque, era preciso ser escolhida pela escola de samba, e participou nos desfiles de Carnaval de rua, que aconteciam na Praça XV de Novembro, no paralelepípedo. Ao perguntá-la o que representava o Carnaval para ela, assim me respondeu: “Ah... Carnaval é minha vida, é tudo. Chega Carnaval eu fico maluca. O Carnaval sempre me deu tudo, graças a Deus”. 63 Tide nunca perdeu o samba no pé, e mesmo não estando na ala das passistas e nem ter virado uma das baianas, é destaque na Passarela e no Carnaval de Florianópolis. Tide se orgulha em dizer que tem 51 anos de história com o samba, e não é a toa o fato de ser conhecida na cidade como “a eterna passista do Carnaval de Florianópolis”. 3. Elizângela Aranha - A Madrinha da Bateria da Escola “É legal, porque em casa eu tenho bolsas de faixas, tenho uma sacola assim, um monte de faixas, vários títulos, de bloco, clube, é legal isso para contar para os meus netinhos...”. Elizângela Aranha é a atual Madrinha da Bateria da Copa Lord, e participou de vários concursos dentro da Escola e no Carnaval da cidade. Em contraponto com a geração de Nega Tide, sua geração, da qual chamarei de terceira geração do samba, esta relacionada com o glamour da mídia, dos comerciais, e do acúmulo de títulos que as fazem ter cada vez mais experiência com o samba, alcançando status no Carnaval da cidade. Elizângela tem vinte e oito anos e faz faculdade de engenharia sanitária e ambiental na Universidade Federal de Santa Catarina. Nasceu em uma família com tradições carnavalescas e desde menina já saia nos Blocos de Carnaval e nas escolas de samba da cidade. Elizângela disse que “nasceu dentro da Copa”, seu pai Nestor hoje faz parte do Conselho Deliberativo e sua mãe Sônia, já falecida, era uma passista da Escola. Sua família sempre saia no Carnaval de Florianópolis e de São José, onde seu pai teve um Bloco. Segundo Elizângela foi sua mãe quem levou seu Nestor para a Copa Lord, que hoje é a sua vida; “E hoje ele não fala em outra coisa, minha casa é carnaval o ano todo, muito dedicado a Escola, ele ama de paixão a Copa Lord”. Os Blocos de Carnaval eram lugares de encontro entre os diversos integrantes de diferentes escolas. Elizângela lembra de menina do pessoal que hoje faz parte da Diretoria e da Velha Guarda da Escola. Elizângela e sua irmã Raquel Aranha aprenderam a sambar em casa com sua mãe, que sempre desfilava nas escolas e nos blocos, e tamanha influência fez com que logo cedo elas ganhassem títulos de Carnaval. Elizângela foi eleita Rainha do Carnaval Mirim de São 64 José aos nove anos de idade, e sua irmã aos cinco anos; “eu ganhei esse concurso de Rainha Mirim, porque eu já participava de escola de samba, sabia sambar e andar na Avenida né?”. Mais tarde, em 1999 foi eleita a Rainha da Copa Lord e participou do concurso da Rainha do Carnaval cidade, foi eleita a primeira Princesa, o mesmo se repetiu em 2001. No ano 2000, fazia parte de um grupo de dança contemporânea e saiu na comissão de frente da Escola. Em 2002 saiu como destaque na bateria, mas não se recordava o título e em 2003 foi eleita a Rainha da Copa, e a Rainha do Carnaval de Florianópolis. Tanto acúmulo de títulos fez com que fosse convidada para ser a Madrinha da Bateria da Escola, sendo este um cargo eleito pela Diretoria, “a Escola me escolheu para ser a Madrinha da Bateria, porque eu estava com experiência suficiente”. O Cargo de Madrinha da Bateria é o único eleito pela escola de samba, não sendo necessário participar de concurso para entrar. Elizângela deixa claro que é preciso ter experiência para obter este título, é preciso muito samba no pé, e que as outras meninas passistas, cidadãs e musas da Escola já sabem que este é um lugar de respeito. As únicas Madrinhas da Bateria que a Copa Lord teve foi Nega Tide e Elizângela Aranha, e não existe um período determinado para estar como Madrinha, a Escola, mais precisamente a Diretoria, é quem determina se a Madrinha esta representando bem a Escola e se continua a representar. Para estas jovens meninas, juntar títulos está relacionado com o acúmulo de experiência com o samba e garante um caminho profissional, o que faz aumentar o prestígio delas em relação ao campo de trabalho. Elizângela trabalha durante o ano com eventos da Escola, como jurada em concursos de dança e beleza, e participa de comerciais de televisão, na cidade e no Estado. Penso que ser passista é uma das “carreiras femininas” dentro das escolas de samba, pois para ser passista você tem que participar dos concursos, estar sempre na escola e nos eventos realizados por ela mostrando o seu samba no pé, e estar participando de concursos no Carnaval da cidade. É necessário ter cuidados com o corpo e como Elizângela diz, ter uma “postura” de palco. Existe todo um conjunto que caracteriza o que é ser uma passista, e para isso é necessário tempo e dedicação. Ao dizer que as passistas e as baianas podem ser consideradas “carreiras femininas” dentro das escolas, me refiro ao fato de as baianas, por exemplo, estarem relacionadas a tradição da Escola, e sempre presentes nos desfiles e em diversos momentos e lugares na Escola. Já as passistas têm um campo de atuação que vai além dos desfiles e da Escola que 65 representa, pois existem na cidade diversos concursos promovidos pela Prefeitura e a mídia em geral, e também porque elas se preparam o ano inteiro para estarem na Passarela representando a Escola, trabalhando. O fato de existir o concurso de cidadão-samba não significa que ele tenha uma carreira profissional como passista, pois não é comum ter concursos no Carnaval para homens passistas. Geralmente acontece o que Nega Tide me disse em sua entrevista, que nos concursos de cidadão-samba é comum a participação de homens que normalmente já fazem dança, como dança de salão, e se interessam em participar do concurso. Mas, as oportunidades de concursos se restringem apenas ao de cidadão-samba da escola de samba e da cidade, pois, como já falado, cada escola faz um concurso que elege quem vai representá-la no desfile, e se eleito o melhor cidadão entre as escolas representa o cidadãosamba da cidade. A constatação de Elizângela e Beirão, de que as passistas querem ser baianas quando ficarem mais velhas, me remete ao fato de os dois lugares serem de grande importância dentro da Escola, e das possibilidades de carreiras que podem ser construídas dentro das escolas de samba, assim como da circularidade entre os diferentes lugares nos desfiles e na escola de samba. Para Elizângela Aranha, que já circulou entre vários lugares nos desfiles da Escola, como na comissão de frente e destaque de carros alegóricos, não estar hoje na frente na bateria me parece ser algo que não está em seus planos, por enquanto, pois ao perguntá-la como é estar na frente da bateria ela me respondeu: “Olha... eu não me vejo em outro lugar na escola, eu já desfilei em carro, na comissão de frente, mas ali a emoção é tanta, é contagiante, na hora tu, assim, passa tão rápido que eu entro como é que fala, em transe. Às vezes as pessoas digo ‘ah eu dei tchau e tu nem me viu’, ‘não eu não vi’, eu não vejo ninguém, sabe, eu estou ali na música, no som, eu entro ali eu piro na hora, eu não consigo enxergar ninguém, eu não consigo, eu não sei nem explicar assim, é muito bom, a adrenalina sobe tanto que é muito bom. No outro dia eu ainda fico anestesiada assim, só ouvindo o som da bateria, do samba”. Fica claro em seu discurso o glamour que sente ao estar na frente da bateria, e por representar um título de grande importância na Escola. Ser uma passista hoje parece cada vez mais estar relacionado ao glamour da mídia, do culto ao corpo belo, as novidades dos 66 brilhos e maquiagens para deixá-las mais belas na Avenida, e também as inovações de suas fantasias que a cada ano surgem novidades (suas fantasias são sempre surpresa para o público e para a própria Escola), e é claro, nunca deixar de ter muito samba no pé. Observo que na trajetória das três gerações de mulheres está presente a influência das relações de parentesco, que fizeram elas estarem participando dos desfiles e da Escola de samba. O que fez D. Uda estar participando da Escola foi a sua relação com seu marido, um sambista típico da cidade, e no discurso de Tide e Elizângela observamos que suas famílias têm tradição com o Carnaval da cidade, que a família de Tide foi fundadora da escola de samba Protegidos da Princesa, e a família de Elizângela sempre estivera presente nos blocos carnavalescos e nos desfiles das escolas de Florianópolis. Nota-se nas suas narrativas as transformações da Escola e do Carnaval na cidade e de como as três trajetórias das mulheres fazem parte do contexto da escola Copa Lord e suas transformações. A partir de suas histórias percebemos as mudanças ocorridas em cada geração, ou seja, nos diferentes contextos históricos da escola de samba, mas também as suas continuidades, como a trajetória comum das passistas a baianas. 67 Capítulo IV - Uma Narrativa Visual do Desfile de Carnaval de 2006, da Escola Embaixada Copa Lord. A idéia de realizar uma narrativa visual do desfile surgiu a partir da leitura do trabalho de dissertação de Marco Aurélio da Silva (2003) sobre o Carnaval GLS em Florianópolis, que contem um ensaio fotográfico do seu campo, e também das ilustrações do trabalho de Cecília Meireles (2003) sobre o samba e as baianas do Rio de Janeiro. Ao fotografar a concentração e o desfile de Carnaval da Escola Copa Lord, tive a intenção de registrar as minhas impressões na Passarela e no aquecimento da Escola, a fim de obter uma narrativa visual do meu olhar sob o desfile, considerando que esta seria a melhor maneira de apresentar o desfile da Escola no trabalho, através das imagens. A narrativa que se apresentará a seguir foi construída a partir da minha trajetória durante o desfile e dos contatos que se realizaram. A fotografia me possibilitou o contato com os integrantes, e de certa forma uma maneira de dialogar com a Escola durante o desfile, já que não estava desfilando. Segundo Carmen Rial, “a fotografia é antes de tudo resultado de uma relação” (RIAL, 1998: 05), sendo este o método utilizado que facilitou o meu entrosamento com os integrantes da Escola durante a concentração e o desfile. Com a máquina fotográfica senti segurança em conversar com as pessoas, e senti que elas, ao me identificarem como fotógrafa, também não hesitavam em ser fotografadas o que facilitou algumas as conversas durante e depois do desfile. As imagens serviram-me em um primeiro momento para a visualização do meu campo (COLLIER J. Apud. RIAL, 1998), e para mostrar os diferentes momentos da Escola antes e durante o desfile, assim como também as disposições das alas. Posteriormente, através de diálogos e entrevistas, as fotografias revelaram-me personagens e integrantes da Escola. Após entender o que significava cada ala pude olhar as fotografias de uma outra maneira. As fotografias ainda possibilitarão ao leitor inúmeras interpretações sobre o que estas imagens revelam do desfile de Carnaval da escola de samba Embaixada Copa Lord, para além de minhas intenções e impressões com as mesmas. 68 O enredo apresentado no desfile de 2006 pela Escola foi “Sexta-feira... Lua Cheia? Cruz credo... Não fala bobagem! Tem cheiro de bruxa no ar”, e se revelará através das imagens por mim registradas suas diversas formas de representação plástica e visual do desfile. Para a realização do ensaio fotográfico, foi necessário enviar junto à escola Copa Lord, uma carta com o motivo da pesquisa assinado pelo departamento de Antropologia a SETUR – Secretaria de Turismo de Florianópolis, explicando o motivo para acompanhar a Escola na Avenida. Durante todo o desfile foi obrigatório o uso do crachá, o que me identificou como parte da equipe de apoio da Escola. “A sirene deu seu primeiro sinal, mais duas vezes e estaríamos entrando. Posicionei-me na lateral esquerda da Avenida para que não atrapalhasse ninguém durante o desfile. Fogos de artifícios explodiam no céu iluminando a “Nego Quirido”; ao microfone era anunciada a chegada da escola de samba Embaixada Copa Lord. O público estava de pé eufórico para o ver o espetáculo começar. O samba-enredo era puxado sem nenhum acompanhamento de instrumentos da bateria, apenas ao som do cavaquinho. Dado o último sinal da sirene é a hora da entrada da Copa ao som explosivo da bateria da Escola de samba; a emoção era contagiante. Assim começa o espetáculo na Passarela Nego Quirido. Música, cores, dança, arte, fazia uma noite muito agradável. Todos estavam alegres e torcendo para que sua escola realizasse um bom desfile.” (Diário de Campo). 69 1. A Bateria da Escola se aquecendo – “Pássaros Noturnos”. 2. Ala Pré-História na Concentração. 70 3. Integrantes da Comissão de frente no Aquecimento. 4. Destaques na frente da Bateria no Aquecimento. 71 5. Velha Guarda ao passar na Passarela para se encontrar com a Escola minutos antes do desfile. 6. Fogos de artifício iluminam a “Nego Quirido”. 72 7. Comissão de frente começa a se apresentar na Avenida. Ao fundo o carro Abre-Alas. 8. Puxadores do carro Abre-Alas. 73 9. Ala Agricultura. 10. Primeiro Casal de Mestre-sala e Porta Bandeira. 74 11. Destaques na frente da Bateria e a Bateria. 12. Mulheres Ritmistas no Chocalho. 13. Cidadão e Cidadã-samba – Seu Lidinho e Gianne. 75 14. Carro de Som – O Puxador do samba e os intérpretes. 15. A intérprete do samba. 16. Ala dos Passistas Mirins. 76 17. Ala dos Passistas Mirins. 18. Nega Tide e a Ala das Musas. 19. Ala Roma Cristã. 77 20. Ala Roma Pagã. 21.22. Casais da escola de Mestre-sala e Porta Bandeira. 78 23. Ala Bula Papal. 24. 2°Carro: “Malleus Maleficarum”. 25. Ala Coreografada – “Travessia”. 79 26. Ala das crianças – “Flora dos Trópicos”. 27. Ala Lua Cheia. 28.29. Ala das Baianas – “Metamorfose”. 80 30. Ala da Velha Guarda e da Diretoria. 31. Ala coreografada – Grupo Dino. 32. 3°Carro: “Paraíso Tropical”. 81 33.34. Bateria saindo do recuo – local onde fica quando a Escola passa na Passarela. 35. Escola comemorando na área de dispersão. 82 “E assim foi uma excelente festa. Terminado o desfile da Copa Lord sai exausta, tanto de emoção como também do trabalho realizado. Afinal, tamanha alegria não me fez esquecer que ali estava acontecendo o meu campo, minhas observações, registros e anotações. Saímos, eu e Rodrigo, enquanto a última escola entrava na Passarela do 74 Samba, a Consulado . A caminho do carro, enquanto atravessávamos a Avenida da Concentração, chamou-me atenção a quantidade de fantasias na rua, largadas por foliões. Eram cabeças, arames, pedaços das fantasias em geral. Cena que com certeza não representa o significado que elas têm na Passarela do Samba. As fantasias que ali estavam tinham acabado de fazer parte do grande espetáculo, tamanha expectativa para vê-las no desfile e nada significavam fora dele, ou ainda, nada representam sem seus atores, sem os foliões que ali lhe deram vida” (Diário de Campo). O desfile da escola Copa Lord ficou classificado em terceiro lugar no Carnaval de 2006, e em segundo lugar no Carnaval de 2007, com uma diferença de um ponto com a escola campeã, a Consulado. No desfile de Carnaval deste ano também participei na Escola, mas desta vez na experiência de ser uma foliã. Saí na ala coreografada, na ala das Lavadeiras, e participei dos ensaios duas semanas antes do desfile, que aconteceram no Instituto Estadual de Educação. Estar como foliã foi uma nova experiência na Passarela Nego Quirido, chegamos uma hora antes do horário em que a Escola desfilaria, a meia noite. A ansiedade era presente na expectativa de entrar na Passarela do Samba, agora dançando e não como fotógrafa. Ao fotografar o desfile do ano passado, vi toda a Escola passar por mim, e eu caminhava junto a ela. Ao dançar, não pude ver o desfile da Copa, apenas algumas fantasias na concentração da Escola. Não vi, por exemplo, as baianas, as passistas, os carros, ou a ala das crianças. Toda a ansiedade em estar como uma integrante da Escola também era compartilhada com as meninas da minha ala, o que não aconteceu enquanto fotografava o desfile de 2006. Mas se me perguntassem hoje qual é a sensação de estar na Passarela do 74 O famoso Bloco do Consulado surgiu em 1977 e era formado por funcionários da ELETROSUL. Nesta época era muito comum os “Blocos de Empresas” no Carnaval de Florianópolis, como do Consulado, que em 1986 se tornaria o Grêmio Recreativo Escola de Samba Consulado, uma das grandes escolas de samba de Florianópolis (TRAMONTE, 1996). 83 Samba? Tomo emprestada as palavras de Nega Tide: é indescritível, “se tu sai um ano, não quer mais parar!”. Na descoberta do que é e como funciona uma escola de samba de Florianópolis, percebo-me como uma grande foliã, torcendo agora pela minha escola, a Escola de Samba Embaixada Copa Lord! 84 Considerações Finais As escolas de samba desde o seu surgimento constituem em um espaço representativo de sociabilidade e encontros de diferentes grupos sociais. Considerando a escola Copa Lord um espaço de representação social e político, constituído por diferentes etnias, gerações, classes sociais e gênero, é possível pensá-lo como um espaço significativo para compreender as relações que lá se estabelecem, e assim compreender os espaços que as mulheres ocupam dentro da Escola e nos desfiles de Carnaval. Apresento a escola de samba Embaixada Copa Lord a partir da descrição de minha participação e observação na concentração do desfile da Escola na Passarela Nego Quirido. As informações foram trazidas conforme descrevia o cenário, trazendo relatos e informações das reuniões e entrevistas que presenciei e realizei. Trago a reflexão sobre a compreensão da escola de samba como um espaço de mediação cultural, que é fundamental para pensá-la desde o seu surgimento à sua expansão, principalmente a partir de 1960. O papel do carnavalesco também é compreendido como mediador cultural na medida em que transpõe na linguagem carnavalesca, portanto popular, histórias, lendas e mitos clássicos, e também por não fazer parte da comunidade da escola. O carnavalesco é fundamental no processo de criação do desfile, sendo o desfile, o resultado final do trabalho coletivo da Escola. Visto a expansão das escolas de samba para além do desfile de Carnaval, é fundamental compreender o seu funcionamento interno, e o que representa a sede da Escola para a comunidade em que está inserida, no caso o Monte Serrat. A sede já foi palco de muitas festas, encontros, reuniões, projetos para a comunidade e almoços organizados pelas mulheres. Hoje a Escola apenas a utiliza para algumas reuniões e produção de adereços para o Carnaval, fazendo a maior parte de suas reuniões e festas em locais alugados para eventos. Apresento o grêmio feminino, criado por um grupo de mulheres da Copa Lord, o qual foi fundamental para a participação e interação delas com a Escola, principalmente na organização das festividades e de projetos sociais. Encontrei no discurso de minhas entrevistadas dois diferentes conceitos de comunidade, um para a comunidade em que a Copa Lord surgiu e mantém a sua sede, o 85 Monte Serrat, e outro para a comunidade “copalordense” que está relacionada a todos que participam e estão envolvidos com a Escola na cidade, mas não residem no bairro. Questões como: o que demarca estas diferentes comunidades, de que maneira elas se relacionam, em que espaços elas coincidem, e como participam nos desfiles e na Escola de samba, poderiam ser pontos a serem explorados futuramente. Pensar no “carnaval-espetáculo” (Prass, 2004) é compreendê-lo para além dos quatro dias de festa. A escola de samba possui uma organização interna e burocrática, no qual se tem a Diretoria, a Presidência e o Conselho Administrativo que são responsáveis pelo funcionamento da escola durante o ano. A Escola realiza shows e eventos na cidade e nos municípios aos redores, com a participação da Velha Guarda Show, a Bateria Show e a Corte do Carnaval, composta por Mestre-sala e Porta Bandeira, casal de Cidadão-samba e as Passistas da Escola. A bateria de uma escola de samba é por vezes considerada a tradição da escola, e como visto nos estudos de Goldwasser (1975) e Prass (2004), uma ala de participação em sua maioria masculina. A participação das mulheres ritmistas é pequena, e elas tocam principalmente o chocalho no contexto dos instrumentos da Escola, instrumento este denominado “leve” em relação à “bateria grande”, aos instrumentos “pesados”, que também é composta por instrumentos com peso mensurável leve. A participação feminina na bateria é considerada um dado inédito, para uma realidade em que até pouco tempo não era bem vista (Tramonte, 1996). Tento mostrar que cada vez há um número maior de mulheres ritmistas na bateria, mesmo sendo elas consideradas exceção, e para além da participação das mulheres, apresento o contexto musical da Copa Lord, no desfile e principalmente a partir dos ensaios da bateria no centro da cidade, no período que antecede o desfile de Carnaval. Apresento o contexto histórico das baianas no processo do surgimento das escolas de samba no Rio de Janeiro e que hoje a ala das baianas é considerada a tradição das escolas, termo muito presente no discurso dos integrantes da Copa Lord. Apresento suas características, roupas e indumentárias, e o seu jeito especial de dançar na Passarela - o giro, diferenciando principalmente das passistas da Escola. Chamou-me a atenção a relação quase de oposição entre as baianas e as passistas, e a afirmação de algumas passistas de quererem “terminar” como baiana, como se fosse o último estágio da carreira feminina nas 86 escolas de samba. Ambas são consideradas, assim como a bateria da Escola, de grande importância pelo discurso nativo dentro da Escola, como se hierarquicamente tivessem a mesma importância na Passarela, pois são alas obrigatórias nos desfiles. Vale lembrar que os lugares apontados pelos integrantes de maior destaque na Passarela do Samba não são as alas pagas, e sim as alas financiadas pela Escola. Percebe-se que hierarquicamente existem dois tipos de cidadania dentro das escolas de samba, os lugares de grande destaque como, por exemplo, as Passistas, as Baianas e os Ritmistas da Bateria, que muitas vezes tem acesso por concursos, entrevistas e pela experiência com o samba, e o que poderíamos dizer de cidadania mais comum, de acesso aos que pagam para estarem nas mais diversas alas nos desfiles. Esta relação hierárquica de participação na Escola poderia ser também um ponto a ser explorado futuramente. Ressaltei, mas sem um aprofundamento teórico, a possível comparação entre as baianas das escolas de samba e as mães de santo dos terreiros religiosos afro-brasileiros, o que pode ser uma questão para realizar uma nova pesquisa, visto não ter encontrado nenhum autor que fizesse tal relação. Reflito sobre o fato das baianas tornarem-se símbolos de brasilidade e do Carnaval brasileiro nas primeiras décadas do século XX, o que é fundamental para entender tamanha importância e “tradição” que elas têm hoje nas escolas de samba. Apresento as passistas e os demais concursos, como estes funcionam na Escola, todo o processo que as envolve para que se tornem destaques, como são eleitas estas posições dentro da Escola, e o que cada uma delas representa no contexto dos desfiles e do Carnaval de Florianópolis. As faixas utilizadas pelas passistas - assim como pela Corte, simbolizam a conquista do título, seja na Escola ou nos concurso na cidade, e as fazem ter maior prestígio entre elas, com que ganhem experiência, ampliando assim também o seu campo profissional, trabalhando para além do Carnaval. As passistas expandem seu campo de trabalho para além dos desfiles, pois se apresentam nas festas organizadas pela Escola, participam de comerciais e de outros concursos pela cidade, como o concurso “Garota Verão” e o concurso “Miss Florianópolis”, atuando também como juradas em alguns concursos, tornando-se assim definitivamente uma carreira feminina da escola de samba. As passistas, apesar de serem jovens meninas, mantêm o que poderia se chamar de tradição no “samba no pé”. É 87 necessário ter experiência com o samba, ao qual normalmente já estão envolvidas desde crianças, com tradições carnavalescas na família. Após escrever e reler o trabalho, eu refleti sobre a diferença do samba da mulher e do homem passista, há um conjunto de símbolos que são dialogados na dança entre eles, seja nos ensaios, na Passarela ou nos encontros da Escola, como uma relação de reverência e sensualidade. Há nesse entrosamento da dança uma cordialidade e elegância que transcende o que muitos colocariam como a vulgaridade da mulher do samba, relacionada com o aspecto midiático do Carnaval, como o fato de elas estarem semi-nuas na Passarela. No terceiro capítulo apresentei os encontros que tive com mulheres de três gerações diferentes envolvidas com o samba e com a escola de samba Embaixada Copa Lord, de Florianópolis, e tentei compreender como elas começaram a participar de escolas de samba, se já vinham de família tradicional do samba, de como conheceram a escola Copa Lord, e sobre sua participação na Escola e nos desfiles de Carnaval. Observei em suas narrativas algumas transformações da Escola e do Carnaval na cidade e também como as três trajetórias das mulheres entrevistadas fazem parte do contexto da escola Copa Lord e suas transformações. A partir de suas histórias percebemos as mudanças ocorridas em suas gerações, nos diferentes contextos da escola de samba Embaixada Copa Lord, como por exemplo, as diferenças de significado em ser uma passista para Nega Tide e todo o aspecto glamouroso da mídia presente na geração das jovens meninas, como a geração de Elizângela Aranha. Observa-se também a relação de parentesco muito presente em seus discursos, no qual as famílias de Tide e Elizângela sempre fizeram parte da história do samba e do Carnaval em Florianópolis, e elas cresceram participando de desfiles e blocos carnavalescos, e também a relação de Uda e seu marido Armandino Gonzaga, que após seu falecimento, Uda nunca mais deixou de estar com a comunidade da Copa Lord. No quarto e último capítulo apresentei uma narrativa visual do meu olhar do aquecimento e do desfile da Copa Lord em 2006 na Passarela do Samba, considerando que esta seria a melhor maneira de apresentar o desfile da Escola no trabalho, através da fotografia. A narrativa foi construída a partir da minha trajetória durante o desfile e dos contatos que realizei durante o mesmo. Considerando a fotografia em primeira instância resultado de uma relação, ela me possibilitou o contato com os integrantes, e de certa forma uma maneira de dialogar com a Escola durante o desfile, já que não estava desfilando. 88 Talvez esta facilidade encontrada esteja diretamente ligada com a relação entre o Carnaval de hoje e a mídia. Pensei que em outros contextos, festas e rituais não tivesse encontrado tamanha receptividade, como já foi o caso da fotografia não ser aceita em outros grupos culturais. As escolas de samba de Florianópolis recriam o modelo de festa criada pelo Rio de Janeiro, o berço das escolas de samba, mas mantém suas especificidades. Impossível não fazer analogias com o que a produção acadêmica sobre as escolas do Rio descreve, e também não marcar as diferenças encontradas no Carnaval de Florianópolis, no caso, na Escola de Samba Embaixada Copa Lord. Vimos, por exemplo, que o surgimento da Madrinha da Bateria em Florianópolis é recente, e sua origem está no Rio, onde é um lugar bem disputado entre as meninas, mas que o concurso de cidadã-samba é característico daqui, sendo um dos primeiros lugares das passistas em Florianópolis. Vimos também que as baianas não necessariamente são senhoras da comunidade, e também que a ala dos compositores considerada uma ala tradicional nas escolas de samba do Rio, foi criada apenas 2006 na escola Copa Lord. Talvez tamanha influência das escolas do Rio não esteja só ligada ao fato de elas surgirem lá, mas também, pois no momento em que as escolas começavam a surgir em Florianópolis, o Rio de Janeiro ainda era a capital do Brasil, sendo o modelo cultural que determinaria a “brasilidade” no país. Ao apresentar a escola de samba Embaixada Copa Lord a partir de minha experiência em campo, e do diálogo com integrantes da Escola, sobretudo as mulheres, observei que a participação delas acontece nos mais diversos lugares na Escola e nos desfiles, ainda que em alguns lugares não seja tão comum a sua presença, como a bateria da Escola. Observei que nem todas as baianas são necessariamente senhoras da comunidade do Monte Serrat, percebendo os diferentes sentidos do termo comunidade. As senhoras da Copa Lord - as baianas e as pastoras do samba, estão relacionadas à tradição da Escola, mas não necessariamente estão ligadas ao contexto do surgimento da escola Copa Lord nas narrativas contadas por eles. Elas fazem parte de muitas histórias do samba e no processo de construção da Escola e sua sede em Florianópolis. Suas trajetórias fazem parte dos diferentes contextos da escola Copa Lord e suas transformações. A partir de suas histórias percebemos as mudanças ocorridas em cada geração, mas também as suas continuidades, como foi possível perceber a trajetória comum das passistas a baianas da Escola. 89 “Copa Lord, A Embaixada do Samba” “Esta é a famosa Copa, Orgulho da família sambista, É o paraíso do artista, Quem desconhece a vida interna, E sua tradição, Não faz idéia De sua boa organização. A sua diretoria Não mede esforços pró-melhoramentos, Seu quadro social, a mola-mestra De memoráveis acontecimentos. Tem a hegemonia do samba, E dia a dia, Cresce o seu cabedal. Quando chega o seu carnaval, Surge a tradição tão bela, Copa Lord, Copa Lord, Pede passagem para brilhar na passarela”. (Composição: Avez-Vous e Milton Rosa) 90 Anexos Anexo 1 - Samba-enredo da Escola Copa Lord no Carnaval de 2006 “Sexta-feira... lua cheia? Cruz credo... não fala bobagem! Tem cheiro de bruxa no ar”. Compositores: Celinho da Copa Lord, Edu Aguiar e Januário Ó grande mãe natureza Deusa da beleza e da criação Rege com seus mistérios A fertilidade e a sabedoria Luzes trevas noite e dia Um banquete pra bruxaria Na chama da Inquisição Sob calor do fogo ardiam Druidas, feiticeiros julgados como mal Tornando em cinzas o saber universal Pássaro noturno voa Abre as asas em harmonia Foge da tirania Vem pra Ilha da Magia Voa, Voa, Voa...Voa com feitiçaria No bailar dos ventos voa Vem pra Ilha da Magia Noite linda lua cheia A magia esta no ar (BIS) Entidades feiticeiras Reunidas no grande sabá Ilha que exala o aroma da sedução 91 Que embriaga e encanta nosso coração Semeando o feitiço da transformação Ilha tua grande beleza a flora traduz O teu mar de riqueza estampado reluz Um lindo poema, amor e paixão Jardim de delícias fonte de Inspiração Valeu meu povo vamos sorrir Nosso sorriso é o que importa Sou Copa Lord e sou feliz Do jeito que a bruxa gosta 92 Anexo 2 - Quadro de disposição da organização das alas do desfile da Copa Lord de 2006. Cronograma de Desfile Posição N° Ala Figura Detalhe 01 Comissão de Frente 02 1° Carro Abre-Alas 03 01 Pré-História 100 pessoas 04 02 Agricultura 100 pessoas 05 03 Roda do Ano 100 pessoas 06 1°Casal de Mestre-Sala e Porta Bandeira 07 04 Celtas/Druídas 100 pessoas 08 05 Gregos 100 pessoas Cidadã e Cidadão-samba – Madrinha da Bateria – Destaque da Bateria 09 06 Bateria – Pássaros Noturnos 180 pessoas 10 07 Roma Cristã 100 pessoas 11 Passistas/Musas 30 pessoas 12 08 Roma Pagã 100 pessoas 13 09 Dominicanos 100 pessoas 14 10 Templários 100 pessoas 15 2°Casal de Mestre-Sala e Porta Bandeira 16 11 Bula Papal 100 pessoas 17 12 Ala Teatral 25 pessoas 18 2°Carro Malleus Maleficarum 19 13 Travessia - Coreografada 25 pessoas 20 14 Jardim das Delícias 100 pessoas 21 15 Festim Bruxólico 100 pessoas 22 Escola de Mestre-Sala e Porta 5 casais Bandeira 23 16 Flora dos Trópicos 100 crianças Passistas Mirins 24 17 Lua Cheia 100 pessoas 25 18 Metamorfose – Ala das Baianas 50 pessoas 26 Velha Guarda e Diretoria 27 19 Grande Sabath 28 20 Grupo Dino – Ala UFSC 30 pessoas coreografada 29 3°Carro Paraíso Tropical 30 Amigos do Copa 93 Anexo 3 – Fotos da final do concurso do samba-enredo para o Carnaval de 2007, no Clube Primeiro de Junho em São José, no dia 08 de outubro de 2006. As Pastoras do Samba. Seu Lidinho no reco-reco. Velha Guarda Show. 94 Imagem de cima da festa. Ala dos Compositores. Mestre-sala e Porta Bandeira. 95 Bibliografia AMADO, Jorge. O país do Carnaval. 52ªed. Rio de Janeiro: Record, 2004. BIRMAN, Patrícia. Fazer estilo criando gêneros. Possessão e diferenças de gênero em terreiros de Umbanda e Candomblé do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Editora UERJ, 1995. BLUMENBERG, Abelardo Henrique. Quem vem lá? A história da Copa Lord. Florianópolis: Editora Garapuvu, 2005. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003. CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996. CASCAES, Franklin. O fantástico na Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1992. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. 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