REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. IV
Nº 8
FEVEREIRO/2013
A ESTÉTICA DO FEIO NA PROSA
POÉTICA DE CRUZ E SOUSA
Profª Drª Eliane de Alcântara Teixeira1
http://lattes.cnpq.br/6343168720295275
RESUMO – Este ensaio trata da estética do feio na poesia em prosa de Cruz e Sousa, em
seu livro Missal (1893). Procura mostrar como o poeta concebe um novo conceito de
beleza, concebido como uma forma de provocar um efeito de dissonância e estranhamento
no leitor, por meio do grotesco.
PALAVRAS-CHAVE – Poesia em prosa, feio, grotesco.
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ABSTRACT – This essay deals with the aesthetics of the ugly in Cruz e Sousa poetry in
prose, in his book Missal (1893). Seeks to show how the poet conceives a new concept of
beauty, designed as a way to cause an effect of unfamiliarity and dissonance in the reader,
through the grotesque.
KEYWORDS – Poetry in prose, ugly, grotesque.
Missal, composto de 43 textos em prosa, surgiu pela primeira vez em 1893,
juntamente com Broquéis, livro de poesias, publicado pelo editor Fernando Magalhães, no
Rio de Janeiro. Já antes em Tropos e fantasias (1885), e em textos dispersos, Cruz e Sousa
experimenta, ainda que de modo muito tímido, uma tendência que vai se cristalizar em
Missal, livro organizado pelo autor em vida e cuja pecualiaridade advém de uma tendência
bastante comum dentro do movimento simbolista, que era a do experimentalismo em
prosa. Essa tendência já havia se manifestado na obra de autores por quem Cruz e Sousa
tinha muito admiração: lembramos aqui Baudelaire, com seu livro Petits poèmes en
prose, (que depois seria intitulado Le Spleen de Paris), publicado em revistas desde 1861
e João Barreira, autor de Gouaches (1892). Tanto no autor catarinense quanto no poeta
francês e no prosador português, verifica-se a feliz simbiose entre a prosa e a poesia, de
maneira que o fluxo das palavras e as notações realísticas sirvam de suporte para evocar
estados de alma diferenciados ou mesmo para reflexões de caráter filosófico e estético.
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Doutora pela USP, professora Titular da UNIBR (São Sebastião) e do Middlebury College.
Eliane de Alcântara Teixeira
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Neste ensaio, vamos tratar da questão da prosa poética de Cruz e Sousa, mas nos
concentrando num tópico que parece se constituir numa espécie de ponto nevrálgico de
grande parte da obra do autor catarinense. É a questão do feio, tratado de maneira mais
específica no texto intitulado “Psicologia do Feio”. Contudo, antes de fazer a leitura crítica
desse poema, cremos que valeria a pena tecer algumas considerações sobre o que se
entende pelo gênero conhecido por “prosa poética”, das quais Cruz e Sousa se serve para
compor o livro Missal e deixar sua marca profunda de poeta.
A prosa poética, segundo Massaud Moisés (1997, p. 26),
se definiria como o texto literário em que se realizasse o nexo íntimo
entre as duas formas de expressão, a do “eu” e a do “não-eu”. Longe de
ser pacífico, o encontro é marcado por uma tensão, de que o texto extrai
toda a sua força comunicativa. No binômio, o substantivo é
representado pela prosa, ou a expressão do “não-eu”, ao passo que a
poesia funciona como um qualificativo.
Chamamos a atenção para dois aspectos: a fusão dos gêneros poesia e prosa, de
maneira tão íntima, que provoca uma “tensão” no interior do texto, de onde vem a força
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expressiva e dramática. O prosaico mostra-se no caráter narrativo, descritivo e dissertativo
do texto, contudo, verifica-se que, nas três manifestações do gênero, há uma forte presença
do subjetivo. A prosa poética, enquanto texto narrativo, entre muitíssimos exemplos, tem
seu caso mais notório no romance Às avessas, de Huysmans. Nesse romance, a história
narrada, o enredo, serve apenas de suporte para a evocação dos estados de espírito, da
estesia da neurótica personagem central, o nobre Des Esseintes, que se fecha em seu
mundo de ficção e beleza artística, para fazer do mundo sua representação. Os fatos
servem de suporte para que o anti-herói desenvolva uma espécie de ioga dos sentidos,
aguçando ao máximo as sensações.
Quanto à descrição, impregnada pela subjetividade poética, também tem presença
marcante em Às avessas, mas a objetividade dela é contaminada pelas idiossincrasias do
sujeito que faz dos objetos mera extensão de si. É o que acontece nesta descrição de flores
feita pela personagem, cuja objetividade cede terreno para a expressão da subjetividade
mórbida:
Os jardineiros trouxeram ainda novas variedades; ostentavam, desta vez,
a aparência de pele artificial sulcada de veias falsas; em sua maioria, como
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que roídas de sífilis e lepras, mostravam carnes lívidas, marmoreadas de
roséolas, adamascadas de dartros; umas afetavam o tom rosa vivo das
cicatrizes que se fecham ou o acastanhado das crostas que se formam;
outras estavam inflamadas por cautérios, soerguidas por queimaduras;
outras, ainda, mostravam epidermes pilosas, cavadas de úlceras e
repuxadas por cancros; algumas, por fim, pareciam cobertas de curativos,
untadas de banha negra mercurial, de unguentos verdes de beladona,
picadas de grãos de poeira, de micas jaldes de iodofórmio em pó
(HUYSMANS, 1987, p. 122).
Em Missal, de Cruz e Sousa, não se pode falar de narração, mas a descrição é
abundante, como, por exemplo, em “Paisagem de luar”:
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Na nitidez do ar fio, de finas vibrações de cristal, as estrelas
crepitam... Há um rendilhamento, uma lavoragem de pedrarias claras, em
fios sutis de cintilações palpitantes, na alva estrada esmaltada da ViaLáctea. Uma serenidade de maio adormecido entre frouxéis de verdura
cai do veludo do firmamento, torna a noite mais solitária e profunda.
O Mar, pontilhado dos astros, faísca, fosforece e rutila, agitando o
dorso glauco.
E, de leve, de manso, um clarão branco, lânguido, lívido, vem
subindo dos montes, escorrendo fluido nas folhagens, que prateiam-se
logo, como se fabuloso artista invisível as prateasse e as polisse.
A lua cheia transborda em rio de neve na paisagem, e, no mar, há
pouco apenas fagulhante da inação das estrelas, a lua jorra do alto
(CRUZ E SOUSA, 2008, p. 341).
Pode-se dizer, como Massaud Moisés (1997, p. 26), que “as marcas identificadoras”
da aproximação entre prosa e poesia “encontram-se na musicalidade da frase”, o que é bem
patente no texto em pauta. Observe-se a presença das aliterações na primeira frase,
formadas pelos encontros consonantais “tr”, “br”, “cr” que mimetizam o som das
“vibrações dos cristais” e, ao mesmo tempo, sugerem a imagem de renda que vem adiante.
O mesmo se pode dizer das aliterações formadas pelas dentais na frase seguinte. Mas
chamarámos a atenção também para o imagismo a marcar as frases: em “rendilhamentos”,
“lavoragem de pedrarias claras”, “veludo do firmamento” e na figura do artista que pinta a
paisagem de prata. Como se verifica, a descrição serve apenas de suporte para a estesia do
sujeito, que só se enuncia indiretamente por meio do acúmulo de aliterações, do acúmulo
de sensações visuais e do intenso metaforismo, que faz da paisagem como que uma
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extensão de sua alma. A objetividade, que, de modo geral, é marca registrada da descrição, é
bastante atenuada.
Já a dissertação aparece de maneira evidente em “Psicologia do Feio”, em que o
poeta, por meio da prosa poética, trata de questões de estética. Contudo, como não poderia
deixar de ser, os filosofemas ou as disquisições reflexivas comparecem contaminadas pela
emoção do sujeito. Desse modo, em vez de as palavras serem transparentes, tornam-se
opacas. Via de regra, num texto de Estética ou de Filosofia, a exemplo dos de um Platão,
de um Aristóteles, de um Kant, a linguagem é apenas um meio para elaborar conceitos. Já
em “Psicologia do Feio”, a linguagem tem um fim em si mesma, e o que acontece é que as
abundantes aliterações, assonâncias, redundâncias sonoras, o forte imagismo, fazem que as
palavras não sirvam apenas para traduzir conceitos, pois elas acabam tendo peso, densidade
e forma. Sendo assim, a abstração que, em geral, é a base dos textos filosóficos ou estéticos,
cede lugar uma concretização. A começar que, em Cruz e Sousa (2008, p. 314), o seu texto
concretiza uma categoria abstrata, o feio em si. Personificado, comparece como verdadeira
entidade:
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As tuas feições, duras, secas, quase imobilizadas em pedra, puxadas,
arrepanhadas num momo, como a confluência interior dos desesperos e
das torturas, abrem-se rebeladamente num sarcasmo, ao qual às vezes
uma gesticulação epilética, nevrótica, clownesca, faz impetuosa brotar a
gargalhada das turbas, enquanto tua voz coaxa, grasna, numa deprecação
da morte, com ásperas e surdas variabilidades ventríloquas de tons.
A teoria estética que se depreende do texto, em vez, portanto, de comparecer ao longo de
uma reflexão, comparece, pelo contrário, por meio da metaforização, da alegorização, de
uma linguagem essencialmente musical. Assim, por exemplo, chamamos a atenção para um
trecho em que, ao tentar caracterizar as estranhas vestes da entidade do Feio, o poeta
recorre à sobreposição de imagens. Numa primeira instância, lembram uma mortalha: “as
abas compridas e esfrangalhadas duma veste que te fica em rugas, em pregas encolhidas de
largura nesse teu corpo esquelético, e que parece a mortalha dalgum hirto cadáver que
houvesse enterrado (...)”. Numa segunda instância, o mover da mortalha “sob o chicote
elétrico do vento”, transmuda-se em criaturas mitologias, as “fúrias”. E, mais adiante,
“Lembram as asas de um grande morcego, monstro, imensas e membranosas, causando
asco nauseante e enchendo tudo duma sinistra treva lugubremente cortada de arrepios e
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esvoaçamentos medonhos” (CRUZ E SOUSA, 2008, p. 314-315). Sonoramente, vale a
pena acentuar a presença maciça das nasais, consoantes mais “macias”, a mimetizar o
veludo das asas de um morcego, que contrastam com as vibrantes, mais duras, em
“lembram”, “membranosas”, “sinistra treva lugubremente”. Assim se nota que Cruz e
Sousa, ao tentar compor um retrato concreto do Feio, elevado à sua quintessência e, por
isso mesmo, causador do “horror”, apela tanto para o visual quanto para o sonoro.
Contudo, como o Feio é evocado e só existe enquanto especulação, o poeta é obrigado a
fazer aproximações dessa entidade por meio do acúmulo de imagens. Assim, o Feio não
redunda num conceito claro, objetivo, mas é atraído para a esfera do sujeito, constituindose mais propriamente numa extensão dele. É sua representação e, como tal, padece de
objetividade.
Depois do esforço em tentar caracterizar o Feio em cinco parágrafos, o narrador
esboça descritivamente duas paisagens, uma, sob o sol, e outra sob os gelos. Na primeira
delas, há referência a tudo que é primaveril e belo:
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Árvores frondentes e undiflavadas de sol, onde os pássaros cantem; rios
gorgolejantes de cristais sonoros; vivos e iluminados vergéis em flor;
campos verdes, afogados na verdura tenra, como estofos de veludos e
sedas rutilosas e orientais (...) (CRUZ E SOUSA, 2008, p. 315).
O parágrafo é marcado pelo brilho e pela intensa sonoridade, que entra em
contraste com o caráter sombrio do Feio, pertencente ao mundo ctônico (referente aos
deuses subterrâneos). Isso se torna visível no neologismo “undiflavadas” (de flava,
referente à cor dourada das espigas de milho, mais “undi” de onda), nos “iluminados
vergéis”, nas “sedas rutilosas”, em que o adjetivo, também um neologismo, derivado de
“rútilo” e/ou “rutilante”, ou vermelho brilhante, serve para acentuar o colorido da
paisagem. Ao lado do cromatismo, o narrador também investe no aspecto sonoro, na
referência ao canto dos pássaros, ao ruído dos rios, cujo som é mimetizado, na linguagem,
por meio da aliteração, construída com o auxílio da palatal “gê”, das alveolares “s” e “r”,
das nasais e da alternância entre vogais abertas e fechadas. Contudo, tal beleza é vedada ao
Feio, pois “não são já para a tua alegria”. E isso decorre do fato de que o Feio representa a
antivida, apresentada, no parágrafo seguinte, como uma paisagem árida e gelada: “os
perpétuos gelos do Volga do Neva para sempre rolam, em densas camadas, sobre o teu
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coração”, o que implica que ele provoque um resfriamento, um congelamento da matéria
vital, devido à sua fealdade.
A partir daí, instaura-se um terceiro movimento do texto, quando, pela primeira
vez, o sujeito se enuncia, não de forma indireta, por intermédio do imagismo, da emoção
que impregna a linguagem, mas de forma direta: “Só eu, numa suprema hora de spleen, de
esgotamento de forças psíquicas, em que me falte extensamente o humor – essa radiosa
bondade hilariante do Espírito – te idolatro e procuro, ó lascivo Feio!”. Essa categoria
estética é idolatrada pelo sujeito somente quando ele é presa do spleen, e, portanto, se
irmana a um grupo muito seleto de almas que cultuam o que é subterrâneo, o que emana de
forças primárias, em tudo, opostas ao apelo dionisíaco da vida sob o sol:
Só as artísticas sensibilidades nervosas, vibráteis, quase feminis podem
amar-te; enquanto que as individualidades ocas, estéreis, áridas duras,
sem vibração sensacional, sem cor, sem luz, sem som e sem aroma,
fugirão para sempre de ti como à repelência asquerosa de um putrefato
(CRUZ E SOUSA, 2008: p. 315).
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Nesse ponto, Cruz e Sousa traça o perfil do artista decadente, cuja sensibilidade é
nervosa, quase feminina e que, desse modo, se opõe aos espíritos despojados da capacidade
de despertar sensações visuais, auditivas e aromáticas. O esforço anterior em caracterizar o
ser do Feio, por parte do sujeito, é a demonstração mais eloquente de tal sensibilidade,
porquanto ele só conseguiu isso, apelando para o imagismo, ao poetizar a linguagem, ao dar
peso e densidade às palavras. Como num ritual encantatório, procurou evocar o Feio e não
propriamente caracterizá-lo de maneira objetiva. Daí vem que, mais uma vez, acentuamos
aqui a diluição da categoria dissertativa do discurso, em prol do poético, o que serve para
caracterizar mais uma vez a essência da prosa poética.
Assim, o Feio transforma-se, ao longo do texto, e ainda que de modo paradoxal,
numa categoria estética, que deve ser evocado pelo sujeito e que o inspira em suas criações.
Mas qual seria o quid do Feio, sua essencialidade? Para determinar isso, Cruz e Sousa (2008:
p. 315) apela para uma imagem construída por meio de um neologismo: “(...) outros
corações que te buscam, outros afetos que te procuram, perdem todo o calor, resfriam
logo, inteiramente ficam gelados já diante da tangibilidade gwimplainesca datua fealdade”. O
substantivo abstrato “tangibilidade”, no seu aspecto mais simples, significa aquilo que tem
“qualidade de tangível” e, no mais complexo, de acordo com o dicionário Michaellis,
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“grau de condensação do fluido perispiritual nas aparições, materializando-as e tornando-as
palpáveis e tangíveis”. Esse significado mais amplo está ligado às teorias espirituais do
Espiritismo e implica, em seu sentido, a materialização dos espíritos. Cruz e Sousa, no caso,
quer se referir à materialização da fealdade do feio, que se torna, como os espíritos,
tangível. Contudo, a manifestação da “tangibilidade” ocorre com o auxílio do adjetivo. O
adjetivo “gwimplainesca” resulta, em seu radical, da transformação de um substantivo próprio
– “Gwynplain” – em comum, a que se acresce o sufixo “esco(a)”, que indica semelhança,
qualidade. A composição do neologismo, obedece, pois, a um princípio muito comum em
língua portuguesa. Mas o importante é decifrar o sentido do radical para se entender a
materialização de uma das manifestações do Feio, enquanto categoria ontológica.
Gwynplain é o nome da personagem principal do romance de Victor Hugo, O homem
que ri, um jovem lorde, desfigurado no nascimento pelos comprachicos, ciganos que mutilam
crianças, para expô-las nos circos. Ele leva uma cicatriz que lhe atravessa toda a face e daí
vem seu apelido de “o homem que ri”. Tornado feio para que seja explorado como atração,
a personagem, contudo, tem a alma pura e o coração generoso. Paradoxal em si,
contraditório na sua essência, constitui o que se poderia chamar de “bela feiúra”. Daí vem
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que o adjetivo derivado de seu nome venha a caracterizar aquilo que é essencial ao Feio,
enquanto categoria estética; algo que causa rejeição pela aparência, mas que atrai por algo
que possui interna e idealmente.
Essa atração pelo feio por parte de Cruz e Sousa, todavia, não é novidade, porque,
de certo modo, já comparecera no Barroco, sob a forma do que se convencionou chamar
de grotesco e é levado às últimas consequências com Baudelaire. No ensaio “Théophile
Gautier”, o crítico e poeta francês escreveu o seguinte: “É um dos privilégios prodigiosos
da Arte que o horrível, artisticamente expresso, se transforma em beleza e que a dor
ritmada e cadenciada preenche o espírito de uma alegria calma” (BAUDELAIRE, 1962: p.
682). Expressar o horrível pela arte conduz, paradoxalmente, ao Belo, de acordo com o
autor de Les fleurs du mal, e isso está bem patente em sua obra. Lembramos aqui, por
exemplo, o poema “Une charogne”, em que o “eu-poético” descreve a carcaça de um animal,
para que sirva de contraponto à imagem de vida, representada pela amada que anda a seu
lado:
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Une Charogne
Rappelez-vous l'objet que nous vîmes, mon âme,
Ce beau matin d'été si doux:
Au détour d'un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux,
Les jambes en l'air, comme une femme lubrique,
Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d'une façon nonchalante et cynique
Son ventre plein d'exhalaisons.
Le soleil rayonnait sur cette pourriture,
Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande Nature
Tout ce qu'ensemble elle avait joint;
Et le ciel regardait la carcasse superbe
Comme une fleur s'épanouir.
La puanteur était si forte, que sur l'herbe
Vous crûtes vous évanouir.
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Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride,
D'où sortaient de noirs bataillons
De larves, qui coulaient comme un épais liquide
Le long de ces vivants haillons (BAUDELAIRE, 1961: p. 34-35).
Na tela de Rembrandt, o grotesco barroco se torna explícito na carcaça do animal,
tal como a carniça de Baudelaire, aberta, a mostrar ao observador aquilo que ele não deseja
ver, mas que é verdadeiro, real. Observe que, como é típico da estética barroca, o fundo
permanece na penumbra quase que absoluta, um foco de luz, mesmo que tênue, ilumina a
carcaça aberta, presa numa espécie de trave, fazendo-a o centro das atenções, mesmo que o
espectador fuja a tal espetáculo de horror. O ambiente é lúgubre, um matadouro ou
açougue. E, em diminuta proporção, a imagem esmaecida de uma mulher que observa por
um vão da janela a cena, cria contraste ou dualismo no conjunto da imagem.
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Fig. 1 O boi esfolado, de Rembrandt (1655)
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Em sua época, a tela causou espanto e depois repúdio, à medida que o
Neoclassicismo se aproximava, e os padrões de representação da beleza se iam
modificando. Modernamente, o assunto volta ao interesse, de maneira paródica, por
pintores como Soutine, no movimento expressionista. Nesta tela, o Feio ganha ainda maior
relevância pela forte e expressiva pincelada e da cor alaranjada, que dão à cena sua máxima
expressão do horror.
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Fig. 2 A carne de vaca esfolada, de Chaim Soutine (1925)
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Mas por que artistas dos mais diversos elegem o Feio? A razão está no efeito que ele
causa, bem diferente daquele causado pelo Belo, concebido pela tradição, que visava à
harmonia de formas, ao apolíneo, ao mundo luminoso e colorido. Em seu Journaux intimes,
Baudelaire ainda acrescentou, a respeito do assunto: “Donde se segue que a irregularidade,
quer dizer, o inesperado, a surpresa, o espanto são uma parte essencial e a característica da
beleza”. Em suma: o Belo convencional teria o poder de anestesiar o ser humano, de
provocar nele uma espécie de obnubilação mental, obscurecimento do espírito, do
pensamento, impedindo-o de criar, de sentir em profundidade, de alongar ao máximo as
sensações.
Os decadentistas – os poetas e prosadores do final do século XIX – adotaram duas
posturas paradoxais para combater a desumanização, provocada pela industrialização, pela
degradação das grandes cidades: o culto da Beleza refinada ou o irresistível prazer pela
aristocracia da Feiúra. De acordo com Umberto Eco, em História da feiúra,
a religiosidade à rebours dos decadentes toma o caminho do satanismo,
com adesão a práticas de magia e evocação diabólica, (...) Corbière
identifica-se na feiúra melancólica do sapo, Dostoievski fala do horror
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do rato, Baudelaire descreve o modelo de exaltação do repulsivo que é
“Uma carniça”, Tarchetti escreve um elogio da dentadura estragada,
assim como Rimbaud experimenta frêmitos de prazer ao descrever as
catadoras de piolhos. E, com Proust, podemos ler enfim sobre o fascínio
pela sublime aristocracia da feiúra.
Algo equivalente acontece em Cruz e Sousa, pois o Feio que concebe atrai pela
feiúra em si, pelo desproporcional que, com seu horror, desperta o ser do letargo,
comovendo-o, mesmo que seja por meio dessa mesma fealdade: “Entretanto, eu gosto de
ti, ó Feio! Porque és a escalpelante ironia da Formosura, a sombra da aurora da Carne, o
luto da matéria dourada do sol, a cal fulgurante da sátira sobre a ostentosa podridão da
beleza pintada. Gosto de ti porque negas a infalível, a absoluta correção das Formas perfeitas e
consagradas [os grifos são nossos](...)”.
O Feio impõe-se por meio do contraste, criando oposição com o mundo luminoso
em “escapelante ironia”, “sombra da aurora”, “o luto da matéria dourada do sol” e,
sobretudo, a pá de cal sobre a “ostentosa podridão da beleza pintada”. E mais ainda porque
nega “a absoluta correção das Formas perfeitas”. Ora, são as “Formas perfeitas e
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consagradas” as responsáveis pela anestesia do ser e pela limitação criativa. A propósito da
correção das formas, lembramos aqui um fragmento do romance O quarto de Jacob, de
Virginia Woolf:
- E os gregos, como homens sensatos, jamais se importaram em concluir a parte de
trás das estátuas – disse Jacob, protegendo os olhos com a mão e observando que o
lado que não se enxerga era deixado em estado bruto.
Notou a leve irregularidade das linhas dos degraus, que “o senso artístico dos
gregos preferia a uma precisão matemática”, dizia o livro-guia.
Já entre os gregos, deduz-se pelo fragmento, notava-se essa tendência em provocar
o espectador pelo irregular e pelo repúdio da absoluta correção das formas. Em Cruz
Sousa, tal se dá pelo culto do disforme e do feio, agora, entendido, como a nova categoria
estética.
Só para finalizar este ensaio, trouxemos à luz duas telas, uma de Alexandre Cabanel
(1823-1889), em que há absoluta correção de Formas, bem ao gosto da pintura acadêmica,
e outra, de Edward Munch (1863-1944), em que o feio, o horrível visa a provocar intensa
comoção no contemplador.
A tela do primeiro:
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Fig. 3 Nascimento de Vênus, de Cabanel (1863)
Vemos o esforço do artista em compor sua tela, apenas para proporcionar ao
espectador o deleite do Belo. As formas arredondadas, a ausência de pêlos pubianos e a cor
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rosa suave da pele da Vênus, que paira sobre o oceano, e o movimento das ondas,
harmoniosamente provocam uma sensação de calma. Cabanel causa um sentimento de
pura estesia, graças ao equilíbrio, à perfeição das formas, à beleza clássica da deusa, que se
posiciona rente à água, cercada por anjinhos róseos, tendo ao fundo imagens de um céu
cristalino, a prometer as alegrias do Olimpo. Não é à toa que esta tela tenha provocado
tanto frisson entre a burguesia e a nobreza dos meados do século XIX, a ponto de o
Imperador Napoleão III, que, se metendo a crítico de arte, tanto condenara os
impressionistas, tê-la adquirida no Salão onde a tela havia sido exposta...
Já Munch é aqui representado pela seguinte tela:
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Fig. 4 O grito, de Munch (1893)
A placidez das cores é substituída pelos tons escuros, sombrios, pela propositada
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deformação da paisagem, reduzida a alguns poucos elementos. Em vez de expressar deleite,
serenidade, a tela expressa a dor e figura é também deformada, fugindo, assim, aos padrões
da mimese, tão cara aos pintores tradicionais. Mais ainda, o sentimento de dor acaba por se
projetar para além da figura, contaminando todo o espaço circundante, que se torna
igualmente doloroso, a lembrar Schopenhauer, para quem “viver é sofrer”.
Em suma, se se considerarem os padrões de mimese, de correção de formas, a tela
de Munch seria considerada feia, enquanto a de Cabanel, bela, mas, se considerarmos os
efeitos sobre o espectador, estes valores se invertem. A primeira se dirige tão só ao prazer
dos olhos, a segunda tem, além do apelo visual, um apelo musical, devido à imagem das
ondas coloridas que se propagam, em linhas concêntricas, a partir da boca da figura sofrida.
Sendo assim, enquanto o pintor francês anestesia, não provocando nada em nosso ser
profundo, o pintor norueguês como que nos tira da letargia, com a imagem dessa dor que
parece contaminar todo o universo. E isso não é pouco, se considerarmos que uma das
funções da arte é a de libertar o homem do marasmo, da mesmice, da letargia, causando-lhe
forte comoção. Mesmo que seja por meio da deformação propositada do real, com a
assunção do Feio.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUDELAIRE, Charles. Journaux intimes. Paris: José Corti, 1949.
____________________. Les fleurs du mal. Paris: Garnier, 1961.
____________________. Curiosithés esthétiques, l’art romantique e autres oeuvres
critiques. Paris: Garnier, 1962.
CRUZ E SOUSA, João da. Prosa, Obra completa (2 Vols.). Jaraguá do Sul: Avenida,
2008.
ECO, Umberto. História da feiúra. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 352.
HUYSMANS, Joris Karl. Às avessas. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix,
1987.
MOISÉS, Massaud. A criação literária (Prosa II, 15ª ed., rev. e aum.) São Paulo:
Cultrix, 1997.
WOOLF, Virginia. O quarto de Jacob (Tradução de Lya Luft). Rio de Janeiro: Nova
20
Fronteira, 1980, p. 172.
Eliane de Alcântara Teixeira
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