A experiência patológica do tempo.
Para uma fenomenologia da forma temporal.
por
Irene Borges-Duarte
Universidade de Évora
Esta comunicação nasce de uma convicção e desenvolve, ainda que embrionariamente,
uma hipótese de trabalho. A convicção de que parte tem-se alicerçado no estudo quer de aspectos
da fenomenologia dos afectos, quer de investigações do foro da psicanálise. É a seguinte: a
repetição quotidiana dos comportamentos ritualizados, enquanto expressão da cedência humana
ao mundo da vida, raramente permite encontrar experiências puras, originárias, muito embora
manifeste vivencialmente aspectos de autenticidade. A hipótese de trabalho, surgida dessa
convicção, sobre um fundo de ontologia hermenêutica, basicamente de raíz heideggeriana, é a
seguinte: se queremos encontrar a verdade genuína, isto é, a experiência radical do que é
constitutivo da compreensão humana e dos seus modos, teremos que procurar, no âmbito de
exercício da vida quotidiana, aqueles casos e fenómenos em que, justamente, esses
comportamentos rituais falham e se quebram, de facto, e são como tal Afalha@ percebidos numa
experiência singular e profunda de sofrimento: isto é, quando a frágil linha divisória entre a
normalidade e a patologia se desvanece, pelo menos parcial e temporariamente. Isto não significa
medir o humano pela bitola do Aanormal@ (por deficit ou por superabundância), mas encontrar
na invulgar acuidade de certos instantes vitais - de que todos podemos fazer a experiência, mas a
que habitualmente não estamos abertos, ao contrário daqueles cuja fragilidade os expõe
desamparada e subitamente - o cunho indelével do que poderíamos chamar Aacontecimento
fundador@ ou, talvez mais brandamente, experiência inicial.
O que, em seguida, procurarei transmitir é o modo como uma tal experiência do tempo
pode ser - pode ter sido e voltar a ser - possível e em que situações poderia ser - ou é recuperável.
Se, por outro lado, o tempo - como dizia Heidegger, não longe de Kant - é Ao como@ (o
modo de ser e de conhecer) do que é, o acesso à experiência originária do tempo determinaria, de
alguma forma, a própria configuração da nossa relação à realidade. Não pretendemos, portanto,
1
tratar de expor o Aconceito@ de tempo - constructo ideativo com base nessa experiência inicial mas tentar auscultar como chegamos, em geral, a poder ter conceito(s) do que o tempo seja.
Nesse contexto, a fronteira entre o Anormal@ e o Apatológico@, no seu poder quebrar-se, poderia
revelar-se, justamente, como aquilo a que vamos chamar a possível Afigura da origem@, isto é,
como a configuração originária do tempo (ou do tempo originário) enquanto o Acomo@ da
própria possibilidade da experiência.
O nosso trajecto tem, assim, 4 momentos: primeiramente, a análise daquilo em que possa
consistir a experiência do tempo, tomando como ponto de partida um caso singular e a etimologia
do termo; em 21 lugar, a exploração, com essa base, da hipótese de que Ao tempo@ nasce da
experiência de corte, seja como ruptura (subjectiva: corpórea ou psicológica), seja como
fraccionamento (objectivo, Afísico@) e, em definitiva, como uma separação, para o que referirei
certos aspectos da Psicanálise; em 31 lugar, a auscultação de como o carácter doentio de certas
maneiras de viver o tempo podem revelar, enquando exibição de uma falta ou de um vazio, a sua
situação de nascimento e, portanto, de possível recuperação; finalmente, numa conclusão breve e
aberta, a consideração do tempo como índice da duplicidade da condição humana.
1. A vivência originária do tempo.
Vou começar com uma história: um caso real, recolhido numa clínica suiça, há poucos
anos. Um camponês, muito jovem e de poucas luzes, foi um dia encontrado pelos seus
companheiros em estado quase catatónico, estático mas trémulo, sem fala, nem mostras de
reconhecer ninguém. Assustados com comportamento tão insólito, em quem conheciam bem, os
companheiros levaram-no ao hospital, onde trataram de reanimá-lo pelos procedimentos
habituais, ante os sintomas de possível ataque, provavelmente epilético, ou acidente traumático
de algum tipo. Quando, finalmente, houve resposta orgânica positiva e, lentamente, o rapaz
recuperou consciência e fala, não recordava nada que pudesse ser causa do seu estado, excepto,
segundo disse, que Asentira, repente, que o tempo tinha parado, que as árvores eram como flores
de gelo, que as ondas do mar tinham cristalizado e que mesmo os relógios só continuavam a
funcionar porque se lhes tinha dado corda de manhã.@1
1
Conheço o episódio clínico por narração directa de um elemento do pessoal da entidade hospitalar em
questão. Reproduzo, por isso, as palavras exactas que foram registadas no seu idioma original:.ADie Bäume sind
wie Eisblumen, die Wellen des Meeres sind erstarrt, und die Uhren gehen nur noch, weil sie heute morgen
2
É manifesta aqui a separação entre o conceito vulgar de tempo, registado na referência aos
relógios e na alusão aos gelos, certamente invernais, e aquilo a que chamei a experiência
propriamente dita do tempo. É nesta que se detém, como em reverberações de um instante, a
vivência da cristalização da própria vida e da natureza, num uníssono suspenso, em que tudo se
anula e em que só essa anulação - desgarradora, tremebunda - permanece. Um grito surdo e
cortado ante o súbito nada.
Pode ser esta a imagem inicial do tempo?
Se é certo que o dar nome (às coisas, à vivência da relação humana com as coisas) é a
actividade linguística mais originária, a etimologia deveria servir, pelo menos, de indício do que
possa ser a experiência do tempo.
Na palavra Atempo@ soa ainda límpido o latim tempus: tempo, porque momento ou
período de tempo e a respectiva sucessão de momentos ou períodos. Na designação ouvimos,
pois, a experiência de um todo, não tanto enquanto tal todo, mas enquanto um continuum de
partes ou fracções, de diferente duração. Em tempus ouvimos, de facto, a fractura, o resultado da
acção de cortar que corresponde ao seu étimo grego: τέµvω, cortar, separar, talhar, fender.
Esta etimologia encontra paralelismo no alto alemão zit e no anglo-saxão tid de que
derivam, respectivamente, Zeit (tempo) e tide (maré, que em alemão se diz Gezeiten),
significando originariamente algo Aseparado@, Aque se separa@, Aà parte@: o resultado, portanto,
da acção de Apartir@ (teilen), Arasgar@, Afender@ mas também Aceifar@, presente na raíz indogermânica dati- ou díti-h2.
A experiência primeva do tempo parece ser, portanto, a de um corte, a de uma separação
ou divisão. Que se parte e separa no tempo?
2.
Da vivência ao conceito: a experiência do tempo.
Fende-se, em primeiro lugar, a suposta continuidade originária: a da duração indefinida e
aufgezogen worden sind.@
2
Ver DUDEN, 1963, 778
3
alheia à sua própria consciência. Vejamos: se, ocupados com algo, não atendemos ao estar
ocupados, mas apenas àquilo em que nos ocupamos - por exemplo, ao pintar um quadro,
simplesmente pintamos o que vemos e queremos pintar, sem que nos desfaleça a inspiração e o
ímpeto; ou se, ao fazer as compras habituais de abastecimento doméstico, atendemos àquilo que
sabemos que temos que comprar - não nos apercebemos do tempo, que, contudo, decorre e
terminará por aparecer quando o cansaço vença o pintor e o faça olhar o pintado, agora, como
Aaquilo que está pintado@, isto, parado e fixo no espaço-tempo da imagem produzida; ou quando
a lenta fila da caixa do supermercado obrigue a dona (ou o dono) de casa impaciente a olhar o
relógio e a desesperar-se, por pensar que se atrasa. Imersos na acção de pintar ou de fazer
compras, o pintor e a dona de casa não sentem o tempo, que contudo passa, indiferente e amorfo.
A ocupação criativa do primeiro e a performance rotineira da segunda duram sem consciência de
duração, até que a continuidade da acção se rompa: o quadro, no seu estado actual, recorda a
acção que se deteve, por cansaço, talvez, e sugere, talvez, o recomeço, logo ou amanhã, da tarefa
projectada de o terminar; a arrecadação ordenada das compras recorda, talvez, o esforço feito e
transforma-se em alívio, assegurando a programação do decurso da semana. É o corte na
continuidade da acção que torna presente o transcurso do tempo e os seus diferentes momentos:
o agora, o antes e o depois; o tempo do pintar e o tempo do cansaço; o tempo do procurar e o
tempo da fila de espera; o tempo de projectar e o tempo de aguardar.
Este Acorte@ deve, pois, entender-se no sentido de uma cisão ou fenda que, introduzida
pelo olhar, destaca como linha divisória o agora do que Aestava a ser@ e Ajá não@ é,
convertendo-se em esboço prístino do tempo, isto é, da diferenciação de momentos. Mas o
inexorável trânsito do Aagora@ a Ajá não@ - ou seja, o fluxo do tempo assim surgido - indica
claramente um sentido ou direcção projectiva, correspondente ao Aainda não@. O Ajá não@ e o
Aainda não@ podem ser, de forma derivada, cortados em multíplices Aantes@ e Adepois@,
estilhaços de tempo, susceptíveis de ser medidos e ordenados, segundo o ritmo pautado já não
pelo instante inicial da fractura, mas pela pura lógica do cálculo, que acaba de Atalhar@ o
conceito de tempo.
É o relógio que mede todos estes estilhaços com a rotunda eficácia de um mecanismo
infalível. Mede-os, além do mais, pela mesma e única bitola: expressa a continuidade e a
discontinuidade mediante um procedimento tecnicamente reproduzível e exacto. Há que dar
corda aos velhos relógios mecânicos, mudar a pilha, no caso dos mais recentes, mas o mostrador
4
mostra com igual transparência o inexorável percurso dos ponteiros dos relógios analógicos ou a
segura sucessão dos dígitos nos que eliminam a antiga e feliz metáfora espacial, como expressão
do tempo. E, em ambos os casos, o continuum exibe-se a si mesmo tecnicamente como sequência
de cortes e de parcelas, metricamente idênticos e socialmente fiáveis. O pintor prescinde, talvez,
do relógio, porque o tempo, que ele mede, não lhe interessa. Mas não se esquecerá, certamente,
de o consultar para estar a tempo na inauguração da sua nova exposição, ou de encarregar alguém
da galeria que o faça por ele. A dona de casa, e mais nos tempos que correm, não se esquecerá,
decididamente, de usar relógio e de organizar a sua vida, mesmo sem querer, na sua dependência.
O relógio pauta a partilha intersubjectiva do tempo objectivamente mensurável.
A esta impecável medida, matematicamente exacta e fisicamente estável, junta-se, sem a
alterar, a do calendário: registo padrão configurador do mais amplo ciclo de continuidades
sequenciais, constituídas pelos anos e estações. O tempo tecnico-matemático e o tempo cósmico
medem-se pela mesma bitola - apesar dos ligeiros desajustes que o calendário recolhe - e
expressam-se simbolicamente pela mesma imagem: o círculo, que se define no ritmo dos
ponteiros (mesmo quando deles, digitalmente, se abstrai) e no carácter jânico de cada novo ano.
Mas esta imagem circular não faz, contudo, esquecer essa outra, aparentemente contraditória,
mas habitual e pregnante, a que se deu em chamar a flecha do tempo. Ela traduz a inexorável
impossibilidade fáctica de Avoltar atrás@, de recuperar o Atempo perdido@. A infinita repetição
dos idênticos Acortes@ - a que chamei Aestilhaços@ mas poderíamos chamar segundos, horas ou
dias - que o relógio mede, não faz esquecer, portanto, o sentir desesperado do Atempo que
passa@, da Afuga para diante@ que o tempo, enquanto fluxo unidireccional, parece ser. É
interessante notar, neste sentido, a perspectiva de um astrofísico, defendida há uns 10 anos num
Colóquio multidisciplinar sobre este tema, depois publicado3:
Hans Fahr, referindo-se a AO Tempo na Natureza e no Universo@, fala do necessário
recurso ao tempo como unidade de medida -o que constitui o conteúdo "instrumental" do
conceito físico-matemático de tempo- para passar, em seguida a analisar o seu uso específico em
alguns âmbitos da física post-relativista, onde a investigação mais actual denota os limites da
pretensa "objetividade" de tal medida. Defende que a natureza "não tem" tempo. No entanto, é o
tempo que "nos" permite descrevê-la. Esta situação denota a ingerência de uma característica
humana na compreensão dos fenómenos naturais, nomeadamente no que chama a descrição do
3
BAUMGARTNER (Hg.), 1994, 11 ss.
5
"movimento" como fluxo unidireccional (a "flecha do tempo", Zeitpfeil). Este "estar disparado"
para a frente funda-se, em última análise, numa orientação precientífica da própria vontade do
homem4 e vem a revelar-se inservível para compreender os fenómenos de entropía negativa, o
que se traduz teóricamente na formulação de "paradoxos" e "miragens" [Zeitspiegelungen]. A
constatação de fenómenos deste tipo abre a porta à aceitação contextual de uma "reversibilidade"
do tempo - que, embora contrária à expectativa humana, é coerente com a hipótese de um "caos
molecular" - e, portanto, de certo modo, da "a-temporalidade" de certos processos cósmicos.
Não deixa, pois, de ser chocante encontrar num cientista Apuro e duro@ a defesa de que o
modelo unidireccional não expressa propriamente os processos naturais mas as expectativas
vitais humanas, na sua mais directa expressão: o movimento da vontade e dos projectos.
Provisoriamente, poderíamos, então, concluir que a metáfora da Aflecha@ guarda ainda,
desfigurada, a imagem ligada à experiência inicial, pela qual o olhar, detendo-se, se apercebe da
irrecuperabilidade Afísica@ disso que Apassou@ (e portanto se acabou) e procura compensar essa
perda mediante o olhar em frente, que constitui o empenho vital. Neste sentido, nem mesmo o
mais Aobjectivo@ dos conceitos de tempo - o tempo tecnicamente mensurável dos sistemas
físicos, enquanto continuum sequencial - estaria isento de Asubjectividade@.
Os ditos populares e a vulgar loquacidade quotidiana, mas também a mais sublime
literatura não enganam: a experiência do tempo como Aum passar@, muitas vezes ligada a um
saudosismo pessimista dos Atempos passados@ ou à esperança escatológica da Avida eterna@,
guarda sem margem de dúvidas esse cunho da frustração original da expectativa tácita e ingénua
de Aprosseguir@ mas conservando o que, em cada momento, se vive ao agir: em suma, a própria
vida, no seu sentido pleno, a totalidade de todos os fragmentos. De aí que o filósofo Baumgartner
defenda - a título de Asuspeita filosófica@ - que Ana origem do aperceber-se do tempo está a
experiência de algo negativo, de uma perda@5.
Noutro registo, ainda mais radical, mas não longe deste, Heidegger diz - num texto breve
que preludia Ser e Tempo6 - que o tempo, que o próprio Dasein é, e que não constitui um Aquê@,
4
FAHR, AZeit in Natur und Universum@, in BAUMGARTNER (Hg.), 1994,
5
BAUMGARTNER, AZeit und Zeiterfahrung@, in BAUMGARTNER (Hg.), 1994, 190 e 209-210.
6
44.
Veja-se HEIDEGGER, 1989, 18 (trad. port. de I. Borges-Duarte, 2003, 49). O opúsculo Der Begriff der
Zeit, editado por Hartmut Tietjen em 1989, reproduz a transcrição da célebre conferência de Julho de 1924, em
que Martin Heidegger se propõe desenhar, ante os teólogos de Marburgo, de que Bultmann era principal figura,
a problemática fundamentalmente existencial do tempo, numa clara prefiguração do que será tema central dos
6
mas apenas um Acomo@ - é pura forma de ser do que é - e, no caso primordial e paradigmático do
ser humano que está a ser como vida, esse como, essa maneira de ser, é a da Apossibilidade
consciente, embora indefinida, do Vorbei@, isto é, do seu Atrânsito@: o seu Ater passado@ e Ajá
não ser@, a constância do seu Apassar@ e, afinal, do seu inevitável Apassamento@, que é o Aestar
acabado@ ou morrer. A Aperda@, para utilizar o termo de Baumgartner, que me parece
especialmente feliz, é então a mais extrema: a morte é a minha, o que se separa de mim, chega a
ser a minha própria vida, a totalidade dinâmica do vivido que eu sou. O Acorrer antecipativo para
a própria morte@ - o Aser para ou rumo à morte@, na linguagem heideggeriana um pouco mais
tardia - é a expressão mais pregnante da coincidência instantânea do lance que constitui a vida,
em toda a sua extensão temporal, e o corte que, decepando-a, a talha ou esculpe: a ex-sistência
enquanto estar-a-ser à maneira ex-stática do Dasein.
Permito-me, contudo, discordar, aqui, de Heidegger. Em primeiro lugar, porque a
compreensão do tempo como finitude, a experiência mais originária do tempo tem ela própria
uma génese, marcada pelo momento do nascimento, guardado no mais profundo inconsciente e
em algumas imagens, ecos do big bang original, que cintilam na infância e podem ser
reapropriadas mais tarde. Em segundo lugar, porque a mutilação primordial, que pode dar forma
à temporalidade, não começa por ser a minha própria morte, mas o Amorrer-me@ alguém ou
mesmo alguma coisa. Para o bebé, o desaparecimento do brinquedo com que brinca é
momentaneamente idêntico ao absoluto desamparo de ficar sem mundo: é a sua experiência
possível do Atrânsito@, do Vorbei. A perda dos pais - seja brutal e definitiva ou meramente
passageira, por uma viagem, por exemplo-, é, na suprema racionalidade do inconsciente empenho
vital, igualmente traumática. A perda do vínculo umbilical ao corpo-mundo da mãe - aquilo a que
Otto Rank chamou genialmente Atrauma do nascimento@ -, porque constitui a autêntica
possibilidade de uma individuação efectiva, institui também, de facto, o primeiro esboço do corte
pelo qual o tempo - o meu tempo - surge. Depois, é a morte dos Ameus@ que se converte em
escopo desse Ameu@ tempo: a marca do que, sendo meu, não é meu. A Aminha@ morte - que
todas as religiões tratam de paliar - é só o termo final do que me foi morrendo: a mais extrema
consciência do tempo como finitude em exercício.
Concordo, no entanto, com Heidegger, em que a diuturna realização quotidiana das
'' 25-38 e 46-53 de Ser e Tempo.
7
actividades vitais embota o sentir originário desse punhal que, desde o início, nos fere e
continuaria a doer-nos, se o ser-com os outros no mundo residindo junto dos entes nos não
deixasse ocupados no horizonte baço do dia-a-dia, que nos permite encontrar-nos uns com os
outros e fazer pela vida, deixando que nos perdamos nas coisas e afazeres, pautados pela
inexorabilidade do relógio, sem atender ao tempo total e pleno, que é o da existência inteira. Daí
que só quando o dia-a-dia, por alguma razão, se abate como um castelo de areia, possamos de
novo fazer a experiência radical e total do tempo.
Como diz Vergílio Ferreira:
A...vivemos no tempo do fragmento. Nada é inteiro, consciente,
estruturado nos seus elementos. [...] Um vento de desolação tudo
arrancou, ficaram os restos dispersos do seu passar. E temos imensa
pressa por irmos onde não sabemos, para virmos de novo a donde não
tínhamos partido, não podemos perder tempo como quem o perdeu para
nos realizar uma obra. Comemos ao balcão do nosso frenesim, corremos
no alvoroço do nosso ser em febre, dormimos nos intervalos do estar
sentado no autocarro da nossa velocidade. E lemos então no intervalo de
dormir. Mas toda a vida é feita de farrapos, de bocados, de duas sandes
comidas no snack. Não lemos por inteiro, não pensamos por inteiro, não
somos em nada tudo. Assim, em tudo nos falta o que não houve tempo
de sermos e isso que nos falta é que era tudo. Assim nem a morte nos
será inteira, pelo muito que não vivemos e que portanto não podemos
morrer. Vale-nos que o coveiro o não saiba. E que morramos de todo
para ele.@
3.
7
A recuperabilidade da origem na experiência patológica do tempo.
A vivência banal das horas e do ocupá-las no trabalho ou em actividades de lazer ou
Atempo livre@ não constitui, pois, uma Aexperiência@ no sentido mais autêntico, pois não deixa
aparecer o tempo na sua fenomenologia... a menos que um agudo sentimento da sua evidência
isole e corte essa Avivência banal@. É por isso que só em situações singulares, quase sempre
dolorosas, marcadas por uma especial acuidade perceptiva, às vezes duradoura, ou em casos
boardline, de Agénio@ (artístico, poético ou literário) ou de Aloucura@, aparece com nítidez e
7
FERREIRA, 1992, 123.
8
sobressalto o sempre repentino encontrar-se com o tempo, isto é, com a forma de ser que nós
somos, e o sempre longo sofrê-lo.
De muitos exemplos possíveis desta singular clarividência há que prescindir. Tentarei
centrar-me, pois, num fenómeno que me parece especialmente revelador, pela sua directa
referência ao tempo. Como diz Joseph Brodsky, o tédio “representa o tempo puro e sem diluir no
seu esplendor repetitivo, redundante e monótono.@8 A língua alemã é especialmente hábil para
traduzir a situação afectiva com ele relacionada, porque põe a descoberto directamente a sua
referência temporal: Langeweile é a demora [Weile], o longo momento de monotonia do que
apenas dura. Mas a sua presença na literatura e na vida humana não se dá apenas nesse idioma
nem na sensibilidade nórdica. Fernando Pessoa, consciente de ser sempre Aum convalescente do
Momento@9, dedicou-lhe muitas páginas, umas vezes com essa designação, outras com
designações afins, noutras heteronomias10. Limitar-me-ei aqui ao Livro do Desassossego,
verdadeiro livro de horas do aborrecimento, onde podemos ler:
AO tédio... Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir
sem que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não
queira, com a náusea de não querer.... Sofrer sem sofrimento, querer sem
vontade, pensar sem raciocínio... É como a possessão por um demónio
negativo, um embruxamento por coisa nenhuma.@
8
Ver AIn Praise of boredom@, in BRODSKY, 1995, 109.
9
Veja-se o AOpiário@ de Álvaro de Campos. PESSOA, 2002, 61
11
10
Veja-se, a este propósito, o excelente estudo de Maria Vitalina LEAL DE MATOS, A vivência do tempo
em Fernando Pessoa, Lisboa, Verbo, 1992, muito embora realizado numa perspectiva de crítica literária e não
filosófica. O capítulo dedicado ao tédio (pp. 99-122) pode ver-se como um autêntico índice de textos ortónimos
e heterónimos sobre esta questão, de que só está ausente, justamente, o Livro do Desassossego.
11
PESSOA, 32001, 259. Leia-se integramente, nesta edição, o ' 263, que constitui uma insuperável
9
Com a suprema acuidade e precisão da linguagem poética, alheia à rude abstracção de
uma definição conceptual, o que Pessoa realiza, neste brevíssimo excerto, é uma verdadeira
fenomenologia do tédio, de que quero sublinhar os seguintes aspectos:
O tédio vem descrito, em primeiro lugar, como um fenómeno total ou totalizante da
existência humana, que acapara o pensar, o sentir, o querer e o sofrer numa unidade, amorfa mas
plena. É o todo do ser humano na sua auto-apercepção como um pungente não estar a ser. Tratase, portanto, em segundo lugar, de um fenómeno consciente, muito embora não se revele ao nível
do intelecto e do conceito, mas enquanto compreensão afectiva, auto-afecção e sensibilidade,
através da qual o mundo nos chega: é um Acansaço@, uma Aangústia@, uma Anáusea@. Na
letargia da duração meta-física do cansaço fica detida e retida a ligação imanentemente temporal
entre a iminência ou proximidade do ansiosamente temido e a sua rejeição visceral no distanciarse do repugnante, como vómito. Ambos estes momentos - retensivo e protensivo - exibem, pois,
características claramente extáticas: não vêm definidos como uma simples paragem no indefinido
e monocorde, enquanto mero cansaço, mas como salto para o Aainda não@ e o Ajá não@, à
maneira da Aprojecção@ e Arejeição@ do, afinal, Adejecto@: o próprio tempo, que se separa do
vivido, assim alheado, como se procedesse de estranha imposição externa, de um mecanismo
atroz e implacável que unisse e atravessasse a presença inerte do sujeito, assistente à sua própria
ausência. Por isso, esta radical junção dos sentidos e faculdades é percebida dolorosamente como
uma Apossessão por um demónio@, como um Aembruxamento@: não se está em si, está-se
possuído por outro... que, afinal, não é ninguém nem Acoisa nenhuma@. É, pois, o próprio o que
se separa para aparecer não como outro, como alheio - o que seria objectivá-lo e, nessa medida,
afirmar a própria presença como algo Aem frente de@ - mas como ausente de si, cativo de não
ser. O protagonismo desta descrição fenomenológica é, por isso, partilhado por uma preposição
(Asem@) e pelo pronome reflexo da terceira pessoa (Ase@), indicando que a experiência do tédio
é a da negatividade ou vazio: um nada, que se apossa de quem se sente, ele mesmo ausente de si.
O tempo, que assim aparece, é a forma pura do Aseparar-se de@: o intuir do fosso ou abismo do
Asem@, do não pertencer a, do nada de qualquer vínculo.
fenomenologia do tédio.
10
Uma outra leitura deste nihil poderia ser a que Goethe resumia na auto-descrição que
Mefisto faz de si mesmo no primeiro Fausto: AEu sou o Espírito que sempre nega. E com razão:
tudo o que nasce e vês é digno apenas de morrer outra vez. Melhor seria, pois nada nascer. [...] o
mal - esse é o meu elemento original.@12 A negação, entendida não como momento antitético de
um processo dialéctico, mas como nadificação ontológica do que há, como aniquilação radical,
corresponde, de facto, à leitura tradicional do Adiabólico@, do Aespírito do Mal@: a negatividade
que de nós se apossa, o nada que nos inunda de nada e, portanto, no des-espero, perde13. Mas esse
é o estado em que só pode cair quem de tudo pende e ao todo aspira: Fausto, Aquem, longe de
toda a ilusão, procura só a essência da Natureza@14, a quem a APalavra@ não seduz, nem basta o
Pensamento ou o Sentido, nem sequer a Força que o move, para quem só serve de lema a acção
plena: Ano princípio era o Feito@, o fazer na plenitude do seu factum15. Fausto, que deseja o todo
da natura naturans, é tentado pelo nihilismo da sua negação, rendido à parcialidade da mera
eficácia: Mefistófeles, que diz de si ser Ada força uma parcela que sempre quer o Mal e o Bem
faz nascer dela@, ser Auma parte da parte, que a princípio tudo era, uma parte da treva, que a luz
gera@16. O momento negro da melancolia fáustica, a que a eficácia diabólica procura responder
como meio, é o do obscurecimento do Todo na mecânica partição das partes, a da inanição ante o
perder-se e a perdição, a perda do vínculo à totalidade. Ou, dito de outro modo: a inexorabilidade
do trânsito temporal e da morte. O tédio do criador impotente é a manifestação do desejo latente
e do desgosto ante a realidade depauperada, é o deter-se do tempo, nele prendendo o Tudo que é
Nada.
12
Vejam-se os versos 1338-1344 do Fausto (GOETHE, 1998, 52): AIch bin der Geist der stets verneint!Und
das mit Recht; denn alles was entsteht ist wert daß es zu Grunde geht; drum besser wär=s daß nichts entstünde. So ist
denn alles was ihr Sünde, Zerstörung, kurz das Böse nennt, mein eigentliches Element.@ Reproduzo, às vezes
ligeiramente modificada, a versão portuguesa de João Barrento: GOETHE, 1999, 89.
13
Recorde-se a este propósito a conotação medieval da acedia, a negatividade do tédio concebido como
supremo pecado, porque impeditivo de toda a acção e empenho vital. A este sentido irredimível do pecado contra a
positividade da criação opõe-se uma certa demonologia da Amelancolia@, enquanto ante-sala da criatividade, na
valoração moderna do mesmo Ahumor@.
14
GOETHE, 1998, 51; 1999, 89. Versos 1329-1330: A... Der, weit entfernt von allem Schein, nur in der
Wesen Tiefe trachtet@
15
Vejam-se os conhecidos versos 1224-1237, em que Fausto procura traduzir o começo do Evangelho de
São João, num constante aprofundamento do sentido: AIm Anfang war das Wort!@, Aim Anfang war der Sinn!@, Aim
Anfang war die Kraft!@, im Anfang war die Tat!@. GOETHE, 1998, 49; 1999, 84.
16
GOETHE, 1998, 52; 1999, 90. Versos 1349-1350: AIch bin ein Teil des Teils, der Anfang alles war,
ein Teil der Finsternis, die sich das Licht gebar...@
11
Também em Pessoa, de resto, está claramente presente a consciência de que o tédio não é
apatia, mas, pelo contrário, é a firme descoberta do sem-sentido da acção quotidiana, a qual até
pode ser mais ou menos intensa, como transparece nesta outra passagem:
ATrabalho bastante. Cumpro o que os moralistas da acção chamariam o
meu dever social. Cumpro esse dever, ou essa sorte, sem grande esforço
nem notável desinteligência@17.
Eu diria: subentende-se que só o que exige esforço, interessa e vale a pena... apesar do
cansaço, do stress, do spleen, pois conduz à criação e ao novum. Por isso, a Asensação de vácuo@
que Atransborda a alma@ traduz algo assim como um Aestado intermédio... em que nem apetece a
vida nem outra cousa@. Mas esse limbo é também Apoesia surda da alma aflorando aborrecida à
janela que dá para a vida@. O tédio manifesta Aum isolamento de nós em nós mesmos, mas um
isolamento onde o que separa está estagnado como nós, água suja sujando o nosso
desentendimento@ (ibi.). A estagnação - paragem do tempo18 - anula, isola-nos da vida que é a
17
PESSOA, 32001, 260.
18
Veja-se, por contraste, a descrição - não menos fenomenológica - que do tempo enquanto vivência extática
faz Simone WEIL, 1988, 142:AEu existo no tempo, isto é, sempre fora de mim; já não sou o que acabo de ser, ainda
não sou o que vou ser, e, contudo, o que fui, o que serei é mesmo eu. Mas isto que significa? Pois para que eu me
saiba fora do passado, fora do futuro, para que sinta a porta fechada pelos dois lados é preciso ainda que pense o
que fui, o que vou ser. Ora isso não se dá sem mais. Para que a condição do tempo tenha um sentido, não é preciso
apenas que ela se faça sentir como minha, quando dela formo a ideia, mas que ela pese sobre cada um dos actos
pelos que exprimo a minha existência. E assim é. Pois há uma lei com que me deparo, que experiencio ao
experienciar-me a mim mesmo e que por si mesma basta, talvez, para definir a minha condição: a lei pela qual nada
me é imediato. Existir, para mim, é agir, se se toma o termo no seu pleno sentido. Se ajo, vejo que não me basto de
maneira nenhuma. Agir não é, para mim, senão que eu mesmo mude, mude o que sei e o que sinto; mas uma
mudança de mim própria, por mim querida, mas que não me basta querer para a ter. Só posso obtê-la de forma
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nossa, aparta as partes por meio de um vazio que toma posse de tudo, liquefazendo-o em pura
Asujidade@... Mas a percepção dessa Asujidade@ é a que provoca a reviravolta possível, o desejo
do contrário. Daí que, noutro fragmento e com toda a carga poética e de caminho de purificação
que tem o que poderíamos qualificar de uma Anoite mística@, se invoque uma ANossa Senhora
do
Silêncio@:
indirecta. Sofro, desejo, hesito, ignoro: outras tantas maneiras de dizer que o que eu sou não me satisfaz [...], eu
padeço aquilo que sou. E, contudo, tenho poder sobre aquilo que padeço. O que me define é, de algum modo, o agir;
eu existo na medida em que posso.@ Repare-se na presença forte do Aeu@ que se encontra a si, sendo, por contraste,
justamente, com o despojar-se de si do tédio.
13
A... Senhora das Horas que passam, Madona das águas estagnadas e das
algas mortas, Deusa Tutelar dos desertos abertos e das paisagens negras
de rochedos estéreis - livra-me da minha mocidade. Consoladora dos que
não têm consolação, Lágrima dos que nunca choram, Hora que nunca
soa - livra-me da alegria e da felicidade. [...] Lírio fanando à tarde, Cofre
de rosas murchas, Silêncio entre prece e prece - enche-me de nojo de
viver, de ódio de ser são, de desprezo por ser jovem..[...] Esplendor do
nada, nome do Abismo, sossego do Além... Virgem eterna antes dos
deuses e dos pais dos deuses, e dos pais dos pais dos deuses, infecunda
de todos os mundos, estéril de todas as almas... A ti são oferecidos os
dias e os seres; os astros são votos no teu tempo, e o cansaço dos deuses
volta ao teu regaço como a ave ao ninho que não sabe como fez. Que do
auge da angústia se aviste o dia, e, se nenhum dia se aviste, que seja esse
o dia que se aviste!@19.
A reiteração do negativo já não pode aumentar em intensidade, porque se dilui na pura
negatividade de um singular inferno: a desconsolada esterilidade do intervalo indefinido, o
cansaço da criação adiada para dia nenhum, Aesplendor do nada@ e Aabismo@das horas, dos dias
que a angústia, impretérita, faz nunca presente. O tédio é, portanto, o tempo sem tempo do
monocordicamente repetido:
Aprocissões interminavelmente a mesma... A20
É a morte de toda a energia vital, amargamente percebida:
Afel de inércia@, Asono de ser, sem remédio@21
É a completa anulação do mundo, padecida como que de longe, mas não menos intensamente:
Alamúria e longínqua paixão de não estar no mundo@22
19
PESSOA,32001, 459 e 460
20
PESSOA, 1988, 113.
21
PESSOA, 32001, 260 e 1970, 123.
22
PESSOA, 1988, 112.
14
e de mim mesmo, desvanecido em sombra:
AHá muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me
distingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse
praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter
consciência. [...] Há muito tempo que não sou eu.@23
23
PESSOA, 32001, 156-157.
15
E, contudo, esta separação da vida, do mundo, da própria subjectividade... tudo isto é
percebido com a Apaixão@ thanática de uma ânsia desesperada de nirvana, Asossego do Além@.
Talvez, por isso, seja ainda melhor expressão dessa complexa anulação do todo o termo,
riquíssimo em português, de nojo, acima recolhida pelo próprio Pessoa. Uma breve consulta ao
Dicionário traz-nos todo o poder da palavra, nas suas múltiplas matizações de sentido.
Procedente do occitano antigo, enojar, derivado, por sua vez do latim inodiare (de in odio esse,
ser odiado)24, nojo guarda um amplo leque de significações: náusea, repugnância (física e moral),
aborrecimento, tédio, grande desgosto, profunda tristeza e mágoa, luto25. Daí a íntima referência
deste fenómeno ao da melancolia, quer no contexto histórico da medicina dos Aquatro humores@,
quer nos seus aspectos psiquiátricos mais actuais, que, no entanto, ficam, enquanto tal, fora do
alcance desta comunicação, centrada na questão do tempo.
Mas o tédio é, então, o desgosto do presente inerte, o luto antecipado da minha morte que
tarda, a repugnância por não se ter sido sequer quem se foi, a funda mágoa pelo Aestar perdido
no tempo como um momento em que se não pensa em nada@26, porque nada vale a pena. Neste
sentido, este fenómeno da compreensão sentinte ou afectiva do ser humano, em que se manifesta
uma experiência singular da realidade, pode ser considerado numa dupla perspectiva:
Por um lado, a patologia da experiência do tempo, aqui questionada, sem constituir um
apartamento total da realidade, à maneira de uma psicose grave, com as suas respectivas formas
de delírio e encerramento na loucura, exibe, contudo, pela cisão entre o pleno e o vazio, uma
outra forma de ver o real, consistindo a distorsão em considerar perverso o quotidiano e,
portanto, em encontrar nele o sem-sentido. É esse desenho da fronteira que, justamente, institui
quer a possibilidade da decisão de refúgio na doença, nos casos de depressão profunda, quer de
salto à produtividade fáustica. Tem, por isso, sentido falar da sua Aforça crítica@, como diz o
filósofo norueguês Svendsen, num livro recente, considerando que o Apassar da fronteira
pressupõe ter dela tido consciência@27, reflectindo, pois, de certo modo, o que poderíamos
chamar uma Ainstância crítica@ ante a mediocridade da vivência do quotidiano. É a extrema
24
COROMINAS, 1973, 253.
25
MALACA CASTELEIRO (Coord.), 2001, 2608.
26
PESSOA,
27
SVENDSEN, 2002, 45.
1988, 113. Sublinhado por mim.
16
sensibilidade à Afalta@, de quem experimenta o tédio, que o habilita, justamente, a poder
procurar-se a si mesmo e dar sentido ao seu agir. Mas, dessa maneira, por outro lado, o tédio
revela, assim, ser uma experiência pura do tempo enquanto forma de toda a experiência,
enquanto mera forma vazia de todo o sentido. E, nesse caso, poderíamos ter encontrado nele - de
acordo com a hipótese inicialmente formulada - um fenómeno em que se dá uma possível
recuperação imanente do que, inicialmente, chamámos Aacontecimento fundador@ e Afigura da
origem@: a marca do corte primevo, o tempo como talha e possibilidade de qualquer singular
enquanto todo.
Haveria, sem dúvida, que aprofundar a investigação no sentido de encontrar no tédio os
seus diferentes graus e matizes, tarefa que, contudo, já não tem cabimento nos limites relativos
desta comunicação, a que trabalhos futuros darão continuidade. Mas devo distinguir, pelo
menos, o que se poderia chamar a mera Amaçada@ - resultante de uma situação enfadonha, de
uma actividade desinteressante qualquer, provocando bocejos e olhares furtivos para o relógio daquilo de que aqui estivemos a falar: o tédio propriamente dito, a experiência do estar preso ao
tempo longo e vazio da existência fragmentada. A primeira situação é superficial e resolve-se
sem grandes espaventos, abandonando a sala. Mas é à segunda, que não tem expressão imediata,
porque é íntima e profunda - Heidegger chamou-lhe tiefe Langeweile, tédio profundo, e
descreveu-a como uma Anévoa silenciosa@ - a que eu tenho vindo a chamar uma possível
Afigura@ tardia do Acorte@ original. Mais que uma vivência, âmbito por excelência do
transitório, torna-se uma atitude, que exprime a experiência profunda do Anada vale a pena@,
patologicamente próxima do que a tradição e a psiquiatria chamaram melancolia. É, no entanto,
esta experiência da Apenúria essencial no todo@28 que Heidegger considera, em 1929, poder ser
Grundstimmung do pensar filosófico, porque o seu peso revelaria todo o peso da ausência, o
nihilismo da existência inautêntica, presa às coisas e em situações, numa sôfrega busca de
novidades, para se entreteter e Anão perder tempo@. A mais pura inautenticidade seria não o
vácuo brumoso do tédio, que permite reencontrar o todo perdido, mas a fuga infinita a querer
encontrá-lo, a ver o próprio reflexo nessas águas mortas. Impróprio seria, só, o permanecer
agarrado ao mero e sucessivo fragmento.
28
Veja-se HEIDEGGER, 1983, 242-243. Veja-se igualmente, a este propósito, o importante estudo de
Klaus HELD, AGrundbestimmung und Zeitkritik bei Heidegger@, in PAPENFUSS u. PÖGGELER (Hg.), 1991, 31-56.
17
4
Conclusão: da experiência do corte à da duplicidade.
A experiência do corte, seja na sua vivência inicial, seja na de alguns extremos em que o
desassossego dorido ou pungente a recupera, deriva na de uma duplicidade. Esta traduzir-se-ia
no exercício de uma via paralela: por um lado, a assistência ao Apassar@ do que, passando-se no
tempo, Apassa@ e cuja passagem é susceptível de ser medida por lanços ou estádios, que nos
ordenam a vida por fora; por outro, o próprio existir enquanto Aum passar@, Acomo tempo@
exercido e em exercício, ou seja, como um Aestar a ser em cada instante@(e, portanto, unitária e
totalmente) o Apassar@, sendo já de antemão o que ainda não é e, contudo, deveras já não é. O
todo, assim compreendido, é sempre Ainstante@ inicial, eterno reinício. A parte, o segundo, é
indefinidamente processo, sem fim nem princípio: mera sucessão.
A este duplo perfil da existência humana - o estar a ser Aex-sistindoA (produzindo e
sendo tempo), e o estar a ser Aa-sistindo@ e deixando-se levar pelo tempo - duplicidade, que só o
fino e álgido corte da experiência pura do tempo desenha, poderia corresponder o nome que lhe
deu Heidegger: Dasein. Mas eu quero, hoje, terminar noutro registo, com Jorge Luis Borges:
ASomos algo mutante e algo permanente. Somos algo essencialmente
misterioso. [...] Para ser quem sou, não é necessário que recorde, por
exemplo, que vivi em Palermo, em Adrogué, em Genebra, em Espanha.
Ao mesmo tempo, tenho que sentir que não sou o que fui nesses lugares,
que sou outro. É esse problema que nunca poderemos resolver: o
problema da identidade mutante. [...] a ideia do permanente no fugaz.
[...] Quando São Paulo disse >Morro em cada dia=, essa sua expressão
não era patética. A verdade é que morremos cada dia e que nascemos
cada dia. Estamos continuamente a nascer e a morrer. O problema do
tempo toca-nos, por isso, mais que os outros problemas metafísicos.
Porque os outros são abstractos. O do tempo é o nosso problema.@
29
O tempo é o nosso problema porque captá-lo é fazer a vivência entre-cortada que é marca
da nossa impossível identidade: a existência enquanto Todo que, em cada instante, se fragmenta,
e a assistência aos fragmentos como Atodos@ parcelares que se sucedem; ou seja, afinal, a
29
BORGES, 1998, 98-99.
18
experiência formal da nossa própria duplicidade.
Bibliografia:
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A experiência patológica do tempo. Para uma