ERNANI MAIA A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie para obtenção parcial do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Orientador: Prof. Dr. Carlos Egídio Alonso São Paulo 2005 ERNANI MAIA A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie para obtenção parcial do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Orientador: Prof. Dr. Carlos Egídio Alonso Aprovada em Maio 2005 Banca Examinadora Prof. Dr Luís Antônio Jorge Prof. Dr. Francisco Spadoni Prof. Dr. Carlos Egídico Alonso Maia, Ernani. Orientador: Carlos Egídio Alonso A nova Máquina de Morar: Um hardware de morar?, Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo: 2005 - 142p. 1.Arquitetura. 2. Le Corbusier 3.Máquina de Morar 4. Arquitetura Contemporânea. 5. Arquitetura e Realidade Virual 6.Telemática 7. Avanços Tecnológicos A vida é aquilo que acontece enquanto pensamos em outra coisa. O. Wilde AGRADECIMENTOS Em memória de meu Pai grande incentivador deste trabalho e responsável por todas as minhas vitórias no passado e ambições para o futuro. À Érika Eiko, minha mulher, pelo amor e compreensão. Ao meu orientador Prof. Dr. Carlos Alonso pela competência em me deixar progredir sem imposições autoritárias e idiossincráticas e pelos cafés durante as orientações. À Arquiteta Evelise Grunow e Arquiteta Tatiane Santa Rosa pelas contribuições multidisciplinares. Além de todos aqueles os quais importunei obrigando-os a ouvir meus devaneios sobre arquitetura e telemática. RESUMO O presente trabalho tem como tema a comparação entre dois importantes períodos históricos da arquitetura, que são a era industrial e a era informacional, em que vivemos. Cronologicamente, trata-se, em primeiro lugar, do advento da industrialização entre os séculos XIX e XX e, posteriormente, do advento da era telemática na virada do século XXI, em que pesam o enorme desenvolvimento e especialização do uso integrado de tecnologias computacionais e de sistemas de comunicação mundiais. A forma de comparação é ao mesmo tempo contextual e pontual. Pontual porque configura-se a partir do recorte da produção de um dos mais importantes entusiastas da arquitetura moderna da era industrial, o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, e, com relação ao período atual, a partir da análise das novas ferramentas criativas e operacionais à disposição do exercício da arquitetura. E contextual porque tais análises parciais são fundamentadas em conceitos urbanos, tecnológicos, culturais, econômicos e sociais de cada um de seus períodos. O termo de tal comparação será, então, delineado a partir do recorte da arquitetura residencial desses dois períodos e universos pontuais, ou seja, a partir da análise das formulações de Le Corbusier sobre os chamados Estabelecimentos Humanos, em que ocupa papel fundamental o programa da moradia moderna, e sobre o sistema de proporção espacial que denominou Modulor. No caso da arquitetura contemporânea, o recorte será estabelecido a partir da análise das novas possibilidades da arquitetura da casa tendo em vista conceitos como realidade virtual, simulação, entre outros, disponíveis à atuação dos arquitetos da era informacional. 1.Arquitetura. 2. Le Corbusier 3.Máquina de Morar 4. Arquitetura Contemporânea. 5. Arquitetura e Realidade Virual 6.Telemática 7. Avanços Tecnológicos ABSTRACT The following work compares two imporant historic phases of Architecture. The Industrial Age and the Age of Information, which we’re living on. Firstly it’s analysed the industrialization period, between the XIX and XX centuries and after, The Telematic Age, at the turn of the XXI century, when the use of computer tecnologies and international systems communications prevails. The comparision between these two phases is, at the same time, contextual and specific. The last mentioned, because it configures a panoramic view of one of the most important characters of Modern Architecture at Industrial Age, the architect Le Corbusier. About the present situation, this work analyses the new creative and operational tools to the exercise of Architecture. It’s a contextual work because its’ partials analysis are based in urban, tecnological, cultural, economical and social concepts of each historical period. Residential Architecture is the common theme between the analysis of these two periods.The term of such comparison will be, then, delineated from the cutting of the residential architecture concerning those two periods and punctual universes, in other words, from the analysis of Le Corbusier formulations on the so referred to Human Establishments, in which the program of modern home assumes a key role, and on the system of space proportion that he called Modulor. In case of contemporary architecture, the cutting will be set forth from the analysis of the new possibilities concerning home architecture having in view concepts, such as virtual reality, simulation, among others, available for the performance of information-era-related architects. LISTA DE FIGURAS Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura 01.................17 02.................18 03.................21 04.................22 05.................26 06.................27 07.................27 08.................29 09.................32 10.................39 11.................40 12.................42 13.................44 14.................45 15.................46 16.................56 17.................68 18.................68 19.................68 20.................78 21.................78 22.................80 23.................80 24.................87 25.................87 26.................88 27.................92 28.................92 Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura Figura 29.................93 30.................94 31.................99 32...............104 33...............104 34...............105 35...............105 36...............106 37...............110 38...............110 39...............110 40...............114 41...............117 42...............120 43...............120 44...............124 45...............128 SUMÁRIO 1. 2. 3. 4. 5. Resumo. Abstract. Sumário. Introdução PARTE I – Le Corbusier e a Máquina de Morar. 5.1. A condição “pré-moderna” e o florecimento de um espírito novo. 5.2. A casa moderna. 5.3. Le Corbusier e a evolução do pensamento purista. 5.4. A importância do legado Corbusieriano. 5.5. Le Corbusier e a máquina de morar. 6. PARTE II – Novas possibilidades na produção arquitetônica residencial. 6.1. Introdução: As novas possibilidades e condições na prática da arquitetura 6.2. Alternativas ao Moderno 6.3. O espaço coletivo e individual na era das tecnologias telemáticas 6.4. Panorama da Arquitetura Contemporânea 6.5. Fundamentação para as novas ferramentas arquitetônicas 6.6 – A aplicação da ferramenta computacional na Arquitetura 6.7 – O programa habitacional contemporâneo sob a perspectiva das novas ferramentas arquitetônicas digitais 7. Conclusão. 8. Bibliografia. .................06 .................07 .................09 .................10 .................16 .................18 .................34 .................37 .................48 .................62 .................71 .................72 .................76 .................83 .................92 .................96 ................100 ................115 ................129 ................138 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? 4. Introdução 10 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? As mudanças que os avanços das tecnologias telemáticas1 propiciam à produção e representação arquitetônica e, conseqüentemente, à sociedade contemporânea, derivam, entre outros fatores, da utilização dos computadores pessoais associados a logicionárias2 cada vez mais avançadas e competentes. Assim, seja pelo advento da globalização econômica, pela maciça utilização mundial de computadores pessoais, mediados por redes virtuais, ou ainda pela inexorável afirmação do capitalismo em todo o mundo, o fato é que a sociedade hoje não mais pode ser considerada igual à sociedade de apenas dez anos atrás. Tais mudanças sociais são comparáveis às alterações ocorridas após a revolução industrial, assim como ao advento invenção da imprensa, dos métodos modernos de anestesias, das técnicas de arado, entre tantos outros acontecimentos que marcaram a evolução da humanidade. Ou seja, são mudanças substancias, originárias do desenvolvimento de novas ferramentas tecnológicas que servem ao relacionamento entre o homem e seu meio. No entanto, a velocidade das transformações atuais é fato inédito na história da humanidade, de forma que a justaposição, no tempo e no espaço, da inebriante tecnologia da informação que a fundamenta, particularize o momento atual no quadro evolutivo humano. Neste sentido, o conceito de evolução está vinculado à descoberta e invenção de novas ferramentas, desde as mais sofisticadas até as mais rudimentares, dentre as quais pode-se destacar as conquistas tecnológicas do 1 Telemática: Ciência que trat Logicionaria: Parte de Um sistema eletrônico, de um instrumento, de um microcomputador ou computador, constituída de informações, algoritimos e procedimentos contidos em seu sistema de memória e armazenamento secundário. É a logicionaria que determina a operação de todos os subsistemas de computador, de terminando seu modo de operação e o caráter das operações realizadas. Em inglês Software.(ZUFFO, 1997). 2 11 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? homem moderno. Independente da natureza de tais descobertas e ferramentas, o que se pode afirmar é que sua apropriação pela sociedade no decorrer da história altera profundamente não só os modelos comportamentais, mas também as próprias instituições sociais. A tecnologia afeta, assim, também as condições sociais, políticas e psicológicas de toda a sociedade em que está inserida, sobretudo porque é freqüentemente definida por forças sócio-econômicas dominantes. Assim, como outras ferramentas do passado, as novas ferramentas da evolução telemática parecem condicionar a forma como entendemos o mundo e o lugar e que nele ocupamos. Trata-se, portanto, de algo que extrapola a finalidade específica de um meio pragmático, o que equivale a dizer que os computadores têm superado a materialidade de uma peça inerte de metal e plástico. Como expressa James Steele (2001), “[...] o computador é um componente virtual da reconstrução real e simbólica do mundo que temos entre as mãos. Também é a manifestação mais potente da habilidade do homem no uso da tecnologia para dominar a natureza”. Tal reflexão é interessante, na medida em que explicita a íntima relação entre tecnologia e comportamentos sociais, e, conseqüentemente o enorme potencial da primeira em ocasionar consideráveis mudanças no meio ambiente e nos modos de apropriação do território. Ou seja, as tecnologias parecem exercer, historicamente, uma influência 12 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? dicotômica sobre a humanidade, já que, embora tragam implícita a idéia evolutiva, de grandes benefícios sobretudo aos meios produtivos, por outro lado são também importantes instrumentos simbólicos. O que equivale a dizer que a tecnologia pode transformar o desenvolvimento psicológico, tanto individual quanto coletivo, e, assim, servir a conotações autoritárias. De qualquer forma, a revolução industrial é sem dúvida o ponto de partida da configuração epistemológica em que vivemos, ou seja, e conforme veremos adiante, desde a invenção das máquinas industriais e da descoberta de diversas fontes de energia, o mundo mudou consideravelmente. E isto inclui também as transformações dos meios de produção, da ciência, dos costumes e modos de espacialização no território, assim como as novas compreensões espaciais e temporais, entre outros. Em relação ao binômio espaço / tempo, que fundamenta a discussão arquitetônica em qualquer fase da civilização, a revolução industrial foi caracterizada por uma percepção cíclica, mecânica e racional, tanto com relação à percepção do espaço como do tempo. Assim, com a evolução das navegações e os avanços anteriores dos métodos cartográficos, o espaço passou a ser percebido por uma configuração bem definida, da mesma forma em que o tempo também sofreria influências da medição cronometrada dos relógios mecânicos, que passaram a ser instalados em todas as partes das cidades industriais. Também o advento das novas formas de transporte alteraria a relação 13 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? entre o espaço e o tempo na era industrial, já que as noções de velocidade e distâncias conquistariam novas conotações. E entende-se aqui velocidade não só de deslocamentos físicos, mas também do fluxo tecnológico e científico, cada vez mais dinâmico desde o advento industrial, sobretudo a partir do momento em que a ele se conjugaram os meios telemáticos e as redes mundiais de interatividade. Estas iminentes alterações, originadas especialmente pela utilização dos novos avanços informacionais, parecem clamar também por uma nova abordagem no contexto arquitetônico. Ou seja, embora o debate sociológico se mostre vanguardista, a exemplo de interessantes publicações de Paul Virilio, Pierre Lévy ou Manuel Castells, no campo da arquitetura, contudo, a realidade é outra. Talvez o temor de certa associação “futurologista” ou a excessiva preocupação historicista de muitas universidades brasileiras, sejam fatores contrários à discussão mais ampla do tema. Nos Estados Unidos, por exemplo, conforme cita James Steele (2002), aspirantes aos cursos de arquitetura e design procuram as universidades que tenham em seu quadro docente professores que se destacam na discussão acerca das interfaces entre tecnologia da informação e arquitetura, entre tecnologia da informação e design, a exemplo do professor Willian Mitchell, do Massachussets Institut Tecnology, que é considerado um dos precursores da discussão da arquitetura e do urbanismo no novo panorama tecnológico contemporâneo. 14 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? A proposta de Mitchell é decifrar este novo fenômeno através da análise de suas possíveis conseqüências no panorama atual da arquitetura. Como destaca Steele (2001, p.08): “[...] um grande debate épico que acompanhou a revolução industrial, eloqüentemente conduzido por Jonh Ruskin, William Morris e Thomas Carlyle, mudou a direção da arquitetura do século XX”. Pode-se dizer que os fenômenos sociais, econômicos e produtivos da revolução industrial embasaram a atuação de Le Corbusier, que participou como agente modificador do que denominava estabelecimentos humanos também através de sua obra teórica. Assim, é lícito afirmar que Le Corbusier participou na plenitude de uma revolução velada e abstrata, talvez ainda em voga, que surgiu em meados dos século XVIII e ficou conhecida como revolução industrial, de forma a configurar paradigmas arquitetônicos para as gerações que o sucederiam. A proposta do presente trabalho é, então, traçar um panorama contextual da atuação de Le Corbusier, de forma a compreender seus conceitos de moradia ideal ao novo homem industrial. E, de forma análoga, analisar as tecnologias telemáticas e de realidade virtual que caracterizam nossa era, com o intuito de indagar se a moradia contemporânea necessita de um novo modelo ou, ao contrário, se a máquina de morar de Corbusier ainda pode ser considerada um paradigma válido. 15 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? 5. Parte I - Le Corbusier e a Máquina de Morar 16 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Figura 01 - Casa Dom-ino. Fonte:http://www.ruf.rice. edu/ Acessado em: 14 abr. 2004. 17 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? 5.1 A condição “pré-moderna” e o florescimento de um espírito novo. O desenvolvimento da moderna vanguarda arquitetônica e, conseqüentemente, das casas modernas, pode ser compreendido como a extensão lógica da revolução industrial. As mudanças ocorridas nas cidades, nos transportes, nas utilidades e infra-estrutura públicas, assim como na economia fomentada pelas indústrias, contribuíram, entre outros aspectos, para o surgimento das habitações modernas. Com a revolução industrial, a humanidade passou a transferir para as máquinas o enfadonho trabalho cotidiano, apesar de gerar com isto outras rotinas não menos desgastantes, isto afetou definitivamente as relações sociais através não só dos objetos que invadiram a vida diária, ou das transformações na hierarquia familiar e social. As evoluções técnicas passaram a atingir a humanidade com intensidade infinitamente superior a sua evolução até então, pois até as pequenas coisas do cotidiano passaram por sensíveis processos de transformação. O homem viu sua força e capacidade produtiva multiplicadas pelos motores e por outros adventos industriais, isto levou a humanidade a um repentino salto Figura 02 - Ilustração de operários ingleses. Revolução Industrial. Fonte: http://www.learnhistory. org.uk/cpp/1750gal.htm. Acessado em: 20 jun. 2004. na qualidade de vida, nas formas de captar e produzir riquezas, embora, por outro lado, tenha-se também ampliado as misérias, mazelas e desigualdades sociais. 18 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? A partir da emergência da máquina como fator produtivo, a sociedade foi levada a mudanças irreversíveis em todos os sentidos da vida cotidiana, evento que, obviamente, não ocorreu repentinamente. Ao contrário, o processo de transformação foi ritmado pela própria velocidade dos avanços tecnológicos, assim como pela enorme ampliação dos meios de comunicação disponíveis. Quando se refere à primeira geração da sociedade industrial, Le Corbusier (1946, p.10) destaca: “[...] ébria de velocidade e de movimento, dir-se-ia que a sociedade toda se pôs, inconscientemente, a girar em torno de si própria; tal qual avião em parafuso dentro de uma bruma cada vez mais opaca.” Foi neste período que se desenvolveram as teorias econômicas que protagonizam grandes embates ainda em nossos dias, as quais, em certa medida, teriam desencadeado guerras e revoluções durante os anos subseqüentes à sua formulação. De um lado, figurava, então, o capitalismo emergente da própria condição de trocas, lucros e desenvolvimentos, devidamente amparado, nesse sentido, pela produtividade espantosa das recém-criadas máquinas. Elas corresponderam, tanto fisicamente, ou seja em sua estrutura, quanto idealmente, à concepção mecânica da produção em série, e, de certa forma, à idéia de lucros exorbitantes, incondicionais. Por outro lado, falava-se do conceito de igualdade social, da racionalização do capital e, em suma, da intenção de solucionar o já latente problema da classe operária, cada vez mais pobre e fragilizada por péssima qualidade de vida. 19 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Contudo, ainda que surgido como reação às precárias condições urbanas enfrentadas por boa parte da sociedade industrial, este conceito revelou-se um ideal totalizador, sobretudo no sentido de ter justificado a idéia de Estados centralizadores, anti-democráticos. Configurou-se portanto, na era industrial mecanicista, um embate ideológico entre a igualdade de meios, sobretudo os produtivos, e as polaridades econômicas e sociais. Já no campo das ciências, tanto as econômicas, biológicas quanto as sociais, a partir da segunda metade do século XVIII se delineou um período de ampla efervescência, em muito decorrente da própria racionalidade iluminista. Ao descartar dogmas e crenças religiosas como limites científicos, o Iluminismo incentivou a busca pelo desconhecido, o que desencadeou não só uma nova postura científica, mas também social e cultural, o que, de fato, transformaria todos os paradigmas sociais vigentes até então. Neste sentido, Eric Hobsbawm (1977, p.41), importante historiador contemporâneo, escreve: [...] de fato, o “iluminismo”, a convicção no progresso do conhecimento humano, na racionalidade, na riqueza e no controle sobre a natureza – de que estava profundamente imbuído o século XVIII – derivou sua força primordialmente do evidente progresso da produção, do comércio e da racionalidade econômica e científica que se acreditava estar associada a ambos. 20 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? É importante notar que a revolução industrial, apesar de constantemente vinculada ao advento das máquinas e das energias, parece também originária de um contexto delineado já desde os séculos XV e XVI, em que figuram cenários como a organização dos exércitos e das marinhas, a preparação das grandes expedições coloniais, os progressos nas tecnologias da mineração e metalurgia e, entre outros, os novos e amplos alcances empresariais. Todos esses fatores representaram terreno fértil para as raízes da sociedade industrial, o que pode levar, ao início do século XVI, o ponto de partida da revolução industrial. Porém, é recorrente em livros didáticos a classificação da revolução industrial em pelo menos três fases: a primeira delas, caracterizada pela criação de novas tecnologias de produção [como a máquina a vapor, a fiandeira, o processo Cort em metalurgia e, de forma mais geral, a substituição das ferramentas manuais pelas máquinas], teria começado pouco antes dos últimos trinta anos do século XVIII. A segunda, observada aproximadamente 100 anos depois desse período, teria se destacado pelo desenvolvimento da eletricidade, do motor de combustão interna, pela criação de produtos químicos com forte base científica, da eficiente fundição do aço e, ainda, pelo início do desenvolvimento das tecnologias de comunicação [como o telégrafo e a Figura 03 - Casas de operários em New Castle, Inglaterra. Data 1976. Fonte: www. conservationtech.com//xMILLTOWNS/RL-Photographs4x5/England-4x5s.htm. Acessado em 28 mar. 2005. invenção do telefone]. E a terceira, resultante dos enormes avanços dessas tecnologias de comunicação, é conhecida como a revolução informacional. Trata-se, em suma, da era da informática, da microeletrônica, da telemática que será o objeto da segunda parte desse trabalho. 21 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Cada período trouxe consigo uma vastidão de novos produtos que, entre outros fatores, propiciaram a mudança na polarização das riquezas e do poder internacionais, assumindo posições de destaque aqueles países e elites que se tornaram aptos a comandar o novo sistema produtivo, em decorrência da rápida e abrangente apropriação dos avanços tecnológicos. Aliás, esta parece mesmo uma constante na história da humanidade, ou seja, civilizações que conseguem dominar novas tecnologias, sobretudo, aquelas voltadas à atividades de dominação, como a guerra, tornam-se supremacias militares, econômicas e intelectuais. A complexidade e desdobramentos de cada fase do período industrial testemunham a relevância da era mecanicista na história da humanidade. Domenico de Masi, combativo sociólogo italiano de nossos tempos, quando aborda o período industrial, afirma enfaticamente: [...] com o nascimento da indústria iniciou-se um dos maiores empreendimentos da espécie humana, comparável à invenção da agricultura há dez mil anos, à criação da democracia, à invenção do direito internacional e do império global na Roma de Augusto. (MASI, 2000, p. 126). Embora tamanho êxito, sabe-se também que a revolução industrial fez muitas vítimas, como exemplificam as condições desumanas de trabalho vivenciadas nas fábricas e cidades pela própria classe operária. Segundo Figura 04 - Uma roda de fiar podia fazer às vezes de mil fusos. Em cima uma cena tradicional de casa de campo. Em baixo, (maquinas de fiar algodão 1835). Hobsbawm (1977), aos pobres que se encontravam à margem da sociedade 22 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? burguesa restavam apenas três possibilidades: lutar para se tornarem burgueses, aceitar as condições de opressão, ou se rebelar. Esta terceira possibilidade foi seguida por muitos, desencadeando revoluções, como a ocorrida na França em 1789, a chamada Revolução Francesa, e várias outras revoluções posteriores, culminando com a Revolução Russa, de 1917. Porém, ainda que as origens da revolução industrial remontem, na análise dos historiadores, à segunda metade do século XVIII, o ideário de Le Corbusier, e das discussões desse trabalho sobre a moradia moderna, só se estabeleceu cerca de duzentos anos depois, ou seja, na primeira metade do século XX. Isso porque foi neste período, a partir de 1900, que efetivamente se desenvolveram as habitações modernas, em muito vinculadas às possibilidades de conforto originadas pelos avanços nos sistemas de aquecimento para regiões de clima temperado, de refrigeração, de combate ao fogo, assim como pelo desenvolvimento de novos materiais, como o concreto e o aço, além dos fundamentais sistemas de saneamento básico. Neste sentido, como vimos a revolução industrial foi gradualmente e definitivamente mudando a sociedade e sua maneira de habitar e de se apropriar do território, transformando conseqüentemente o curso dos acontecimentos históricos, primeiro na Inglaterra e posteriormente em quase todo o mundo. Segundo Leonardo Benevolo (1976) os principais fatores que influenciaram as alterações ocorridas nas cidades foram o aumento da população devido à diminuição do índice de mortalidade, o aumento significativo dos bens e 23 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? contemporânea. Segundo Benevolo (1994, p.21 e 22): A associação entre a indústria e a cidade depressa se consolidou: nas novas cidades, que se desenvolveram fora do sistema tradicional dos burgos e freguesias, empresários e operários podiam fugir aos vínculos anacrônicos do sistema corporativo isabelino; os empresários contavam com uma reserva de mão-de-obra sempre abundante e substituível, enquanto os operários, se bem que cruelmente explorados pelos novos patrões, encontravam na cidade uma maior variedade de escolha e uma possibilidade de reconhecer-se como classe, de se organizarem em defesa dos interesses comuns. A situação das cidades pode ser considerada como termômetro do grau de alterações que a sociedade sofreu nos anos contemporâneos à revolução industrial. E foi no contexto de uma sociedade já familiarizada com as irreversíveis condições sociais e urbanas de seu tempo, que floresceram as teorias de Le Corbusier, balizadoras do presente trabalho. Para ilustrar o desenvolvimento desta sociedade, e das alterações em seu modo de espacializar-se no território, Le Corbusier (1943, p. 9/10) escreveu: 24 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? dos serviços produzidos pela agricultura e pelas indústrias [sobretudo em virtude do progresso tecnológico e do desenvolvimento econômico], e, por fim, a redistribuição dos habitantes no território em conseqüência do aumento demográfico e das transformações nos meios de produção [os operários , antes campesinos, se tornaram assalariados e se transferiram para junto das fábricas, formando aglomerações que originaram novas cidades], o desenvolvimento dos meios de comunicação, que permitiu o salto da mobilidade tanto humana quanto de produtos. A velocidade destas transformações afetou o equilíbrio mundial, principalmente por sempre desencadearem outras transformações, cada vez mais profundas e mais rápidas. É patente a aceleração do ritmo evolutivo da humanidade. Antes de 1850, nenhuma sociedade poderia ser descrita como predominantemente urbana e, em 1900, apenas a Grã Bretanha atingia essa condição. Passados pouco mais de 100 anos, atualmente podemos considerar que todas as nações industriais são altamente urbanizadas e, em todo o mundo, indiscriminadamente, o processo de urbanização continua acelerado. Neste sentido, Leonardo Benevolo observa a respeito das cidades da era industrial: “[...] um edifício não mais poderia ser considerado uma edificação estável, incorporada ao terreno, mas um manufaturado provisório, que poderia ser substituído mais tarde por outro manufaturado.” (BENEVOLO, 1976, p.552). É provável então, que esta seja a origem da sensação de efemeridade 25 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Uma ruptura brutal, única nos anais da história, acaba de destacar, em três quartos de século, toda a vida social do Ocidente de seu quadro relativamente tradicional e notavelmente concorde com a geografia. A causa desta ruptura – seu explosivo – é a intervenção súbita, em uma vida ritmada, até então, pelo andar do cavalo, da velocidade na produção e no transporte das pessoas e das coisas. Com seu aparecimento as grandes cidades explodem ou se congestionam, o campo se despovoa, as províncias são violadas no âmago de sua intimidade. Os dois estabelecimentos humanos tradicionais (a cidade e a aldeia) atravessam, então, uma crise terrível. Nossas cidades crescem sem forma, indefinidamente. A cidade, organismo urbano coerente, desaparece; a aldeia organismo rural coerente, traz os estigmas de uma decadência acelerada: colocada em inopinado contato com a grande cidade, é desequilibrada e desertada. Pouco menos de um século antes de Le Corbusier, a França, com a política econômica de Luis Napoleão, entre 1848 e 1870, já estimulara empresários particulares a contribuírem com a reorganização da cidade de Figura 05 – Napoleão III. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/ Napoleon_III. Acessado em 10 nov. 2004. Paris, que sofria na época com os problemas causados pela inexorável revolução industrial. Iniciativas como a reorganização do sistema ferroviário, a reconstrução do centro da cidade, a edificação de novos portos, os empréstimos do governo às industrias, o encorajamento de novas linhas de crédito para a indústria e para a agricultura, a reforma radical das tarifas, a realização de duas grandes exposições internacionais em Paris, contribuíram, assim, para a promoção do 26 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? crescimento industrial francês durante o período de Luis Napoleão. O imperador era auxiliado por administradores competentes, sobretudo pelo Barão Haussman. Além disso, Napoleão III compreendeu a importância das comunicações na promoção do desenvolvimento industrial e resolveu equipar a França com um sistema de caminhos de ferro eficiente. No entanto, não podemos nos esquecer que alguns dos pontos fundamentais estabelecidos pela gestão do Barão Haussman, sobretudo na condição de prefeito de Paris, foram a expulsão dos pobres do centro de Paris e a substituição das ruas tortuosas medievais por longas avenidas, em suma, iniciativas para o que se denominou de embelezamento da cidade. Estas mudanças foram conhecidas como “estratégia de classe”. Porém, todas estas alterações nas cidades foram acompanhadas também Figura 06 – Esquema dos grandes trabalhos de Haussmann em Paris: em preto as novas ruas, em tracejado quadriculado os novos bairros, em tracejado horizontal os dois grandes parques periféricos: o Bois de Boulogne (à esquerda) e o Bois de Vincennes (à direita). por transformações na célula habitacional, de modo a ocasionarem mudanças significativas no modo de habitar. A velocidade da máquina, as particularidades produtivas, comportamentais e culturais capitalistas, enfim, as novas condições de tempo e espaço do homem moderno, trouxeram consigo novas condicionantes espaciais para a arquitetura e para o urbanismo. E sobre a casa, pode-se dizer que é nela que o homem procura expressar sua condição epistemológica, seus costumes e hábitos tão intimamente ligados ao ambiente social em que vive, ou seja, pode-se considerar a moradia também como espelho de quem a habita. E, assim, além do novo contexto urbano, das modernas fábricas e das promissoras estradas de ferro, a revolução industrial apresentou ao mundo Figura 07 – A demolição de parte do Quartier Latin na reconstrução de Paris. 27 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? também uma nova forma de habitar: os cortiços. A fábrica era o núcleo dos aglomerados urbanos e, portanto, toda a vida da sociedade tornou-se subordinada a ela. Era ela, entre outros, o agente de transformação da paisagem natural, com suas chaminés lançando fumaça negra pelo céu das cidades e resíduos poluidores pelos rios, o mesmo acontecendo com as locomotivas e as estradas de ferro, que além da poluição, cicatrizavam e segregavam o território com seus intrínsecos trilhos. Às habitações restavam apenas os espaços intersticiais, como as áreas ociosas entre as fábricas, os galpões e os pátios ferroviários. Outras vezes, eram construídas ainda junto à grandes indústrias, fossem elas siderúrgicas, fábricas de tintas, gasômetros ou de cortes ferroviários. Segundo Lewis Mumford (1961, p.501): “[...] dia após dia, o mau cheiro dos dejetos, o negro vômito das chaminés e o ruído das máquinas martelantes ou rechinantes, acompanhavam a rotina doméstica”. Na cidade industrial, que crescia com base em fundações antigas, os trabalhadores foram inicialmente acomodados em velhas casas familiares, transformadas então em alojamentos para aluguel. Nestas casas, cada quarto se transformava em uma unidade de habitação, às vezes até para mais de uma família. Com essa situação, somada aos dejetos das indústrias e das ferrovias, as cidades tornaram-se bem pouco higiênicas, e passaram a sofrer sérios problemas de saneamento básico, já que as infra-estruturas de água e esgoto 28 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? ou não existiam, ou eram insuficientes. Este panorama nada favorável do primeiro momento urbanoindustrial, originário da nova forma e organização do trabalho, se apresentou como grande desafio aos planejadores das cidades. Não tardou, portanto, o aparecimento de novas idéias que sinalizavam a melhoria das condições urbanas das cidades industriais, cenário em que surgiram: Charles Fourier e seus falanstérios; Tony Garnier e sua cidade Industrial; Ebenezer Haward e a cidade jardim, Le Corbusier e a cidade radiosa; entre outros, explicitados por Françoise Choay (1965). É pertinente salientar que, no panorama apresentado nesta breve análise da situação das cidades entre os séculos XVIII e XIX, e que perdurou ainda até o período entre guerras, no século XX, embora os países europeus pouco a pouco tenham conseguido equacionar seus problemas sanitários e urbanísticos, cenário em que se destaca, por exemplo, o Barão Hausmman e as grandes transformações de Paris, nos demais países, sobretudo os subdesenvolvidos ou marginais no quadro de equilíbrio de forças da era industrial, pouco foi feito em relação à melhoria das condições de vida de seus moradores. No entanto, se o foco da primeira parte do presente estudo é conhecer o contexto em que Le Corbusier idealizou sua concepção ideal de moradia, Figura 08 – Plano da Cidade Industrial de Tony Garnier. Fonte: http://www.ctv.es/USERS/ jbrarq/images/ Acessado em 12 jan. 2005. torna-se, portanto, imprescindível voltar às condições habitacionais do cenário europeu industrial. Neste sentido, Lewis Mumford escreve que: 29 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? A época da invenção e da produção em massa quase não atingiu a casa do trabalhador ou as suas comodidades, até o fim do século XIX. Introduziuse o encanamento de ferro; assim também a privada aperfeiçoada; finalmente, a iluminação e o fogão a gás, a banheira com encanamento de água e drenos fixos; uma rede de distribuição coletiva de água, com água corrente ao alcance de todas as casas, e um sistema coletivo de esgotos. Todos esses melhoramentos, pouco a pouco, passaram a ficar ao alcance dos grupos econômicos médios e superiores, a partir de 1830; dentro de uma geração, a contar da sua introdução chegaram mesmo a transformar-se em necessidades para a classe média. Mas, em ponto algum, durante a fase paleotécnica, tais melhoramentos chegaram a estar ao alcance da massa da população. O problema para o construtor, era alcançar um nível módico de decência sem essas novas comodidades dispendiosas. (MUMFORD, 1961, p.504). Como se vê, a urbanização e a moradia da cidade industrial pareciam, sobretudo no primeiro século da revolução da máquina, sofrer diversos males, o que fez surgir, já nas primeiras décadas do século XX, idéias revolucionárias a respeito de formas de habitar e urbanizar as cidades. Amparadas pelo amadurecimento da sociedade industrial, que efetivamente se conscientizara das mudanças ocorridas em seu cotidiano, essas idéias prosperaram, então, para o estabelecimento do chamado ideário Moderno, tanto nas artes quanto nas ciências, que é a origem do que convencionou se denominar Movimento 30 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Moderno. Com ele, surgem várias propostas, vários movimentos, sobretudo europeus, que propunham o diálogo entre as tecnologias industriais e a arquitetura, entre os quais, e talvez o mais importante, figura Walter Gropius e a escola alemã Bauhaus. É neste contexto que foi lançada a base sociológica da habitação mínima, voltada à população das cidades industriais, derivada da abrangente análise das mudanças ocorridas nos núcleos familiares europeus. A idéia era padronizar a sociedade através de seus núcleos familiares. O objetivo era descobrir o programa mínimo habitacional, o que equivaleria a ajustar o cotidiano e as necessidades humanas a partir da macro escala do comércio e da economia mundial. E, entre outros reflexões, o que se concluiu foi que o adensamento populacional, ou seja, que o desenvolvimento do grande edifício de apartamentos, ofereceria vantagens essenciais às cidades, sobretudo no sentido de se viabilizar economicamente a moradia da classe operária. Por outro lado, o que se propôs, tal qual Le Corbusier, foi a construção de casas em série, ou seja, moradias racionalizadas, pré-fabricadas, de forma análoga ao princípio dos produtos industrializados que desempenhavam o papel de grande ícone da revolução industrial. Porém, foram os edifícios institucionais, e não os habitacionais, que primeiramente concretizaram na arquitetura os dogmas do modernismo. Assim, os pavilhões de exposição, as estações ferroviárias, as pontes e monumentos, como o Palácio de Cristal, a Torre Eiffel e a Galeria das Máquinas, que, entre 31 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? outros, tiveram a habilidade de exemplificar o trunfo da arquitetura moderna desde a passagem entre os séculos XIX e XX. Nesse sentido, essas edificações e monumentos é que funcionaram como os grandes projetos simbólicos do período. A partir de então, a emergência de uma nova realidade arquitetônica, e o desenvolvimento da indústria, passaram a influenciar cada vez mais experiências práticas e teóricas, não só as de Le Corbusier, mas também, como no exemplo anterior, as de Tony Garnier, idealizador da cidade industrial [Cité Industrielle – 1909]. Impulsionada pela otimização nos métodos de produção, especialmente pelas idéias de Henry Ford (1909), a economia no mundo capitalista foi gradualmente conquistando espaço. Ford, por exemplo, ajudou a introduzir o automóvel inclusive nas culturas populares, colaborando portanto, ainda que gradualmente, para o desenvolvimento dos subúrbios descentralizados. Este fator possibilitava, por sua vez, a baixa densidade da ocupação territorial e, conseqüentemente, um passo em favor do anseio da sociedade pela residência unifamiliar. Por outro lado, a exploração de novos materiais, como o aço e o Figura 09 – Henry Ford e o Model T Fonte: http://www.aaca.org/ publications/rummagebox/2003/ fall03/ford.jpg. Acessado em 12 mar. 2005. concreto, possibilitaram o desenvolvimento de tipologias novas para os espaços arquitetônicos, inclusive na forma de habitar. Em síntese, os elementos arquitetônicos estandardizados, com sua estética formal inusitada, racional, abriram, entre outros, a possibilidade de apropriação da iluminação natural e 32 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? da aeração pela arquitetura. A máxima da racionalidade construtiva e projetual, sobretudo em termos da estrutura independente, foi anunciada aos quatro cantos através da célebre frase de Le Corbusier, a forma segue a função, pregando, assim, o abandono dos adornos superficiais em detrimento da concentração nas necessidades reais do homem moderno. Esta analogia, porém, entre a ciência funcionalista e a arquitetura racional, por vezes gerou manifestações arquitetônicas sem caráter estético, portanto, fria e distante dos anseios do habitat ideal, ainda que a casa idealizada pela vanguarda moderna tenha se tornado um dos símbolos da mudança estética e social. Os modernistas lutaram para contribuir significativamente com o desenvolvimento da nova sociedade, porém, com algumas exceções, ficaram limitados a um círculo restrito de intelectuais, artistas e homens de negócios burgueses que, conseqüentemente, não atingiram na plenitude os sistemas sócio-econômicos populares. 33 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? 5.2 - A Casa Moderna Neste trabalho, a análise das proposições de Le Corbusier para a habitação ideal de seu tempo tem dois objetivos precisos. Em primeiro lugar, a idéia é situá-las cronológica e tecnologicamente na história da arquitetura e, por outro lado, a intenção é buscar elementos, subsídios teóricos, para a análise da habitação contemporânea face às novas transformações tecnológicas, que será delineada na segunda etapa da pesquisa. Podemos citar três contribuições fundamentais da moderna vanguarda arquitetônica à história da arquitetura. São elas: a idéia de conforto ambiental, a experimentação de novos materiais e técnicas construtivas e, por fim, a criação de um estilo arquitetônico revolucionário. Conforto ambiental no sentido da ampla preocupação com aspectos climáticos, entre os quais destacam-se a idéia geral de salubridade das edificações através da incorporação da aeração e da insolação como elementos projetuais; a liberdade de materiais e de métodos construtivos enquanto a extrema proximidade dos arquitetos modernos em relação às tecnologias emergentes, fato que possibilitou o rompimento com padrões estilísticos e construtivos históricos; e estilo revolucionário como junção desses fatores principais. E, de maneira complementar, um dos principais feitos de Le Corbusier foi integrar o legado clássico arquitetônico às novas tecnologias de seu tempo, 34 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? interpretando, assim, os anseios da sociedade que emergia no início do século XX. Além dele, arquitetos renomados à época, como Gropius, Mies, Neutra, Wright, Lucio Costa, entre outros, adotaram também o pressuposto de que vivia-se uma nova era, caracterizada principalmente pela proliferação das máquinas e pelo intenso processo de urbanização. Para eles, era unânime a convicção de que a sociedade não mais poderia viver nos moldes anteriores à revolução industrial. Pelo contrário, estes arquitetos buscavam estabelecer uma nova expressão da sociedade através da moradia a ela idealizada, traduzindo, assim, através da arquitetura, toda uma expressão epistemológica da sociedade industrial. A divulgação e a proliferação das idéias destes arquitetos sobre o que se denominou a casa ideal foi possível, entre outras circunstâncias, pelas grandes exibições internacionais ocorridas nas décadas iniciais do século XX. Entre elas, figuram as chamadas Exposições Internacionais, como a Exposição Internacional de Artes Modernas e Industriais de Paris, de 1925; a Exposição Weissenhofsiedlung Housing, em Stuttgart, 1926; a Exposição de Arquitetura Moderna de Nova Iorque, em 1932; a Progress Century em Chicago, 1933; e a Futurama (Feira do Mundo), também em Nova Iorque, em 1939. Por outro lado, fatores como a disponibilidade de bens produzidos em grande escala, novos meios de transporte, experimentação nas artes plásticas [exemplificada pelos alcances do cubismo], e o amadurecimento das teorias científicas, influenciavam, em conjunto e ainda que indiretamente, também os 35 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? projetos arquitetônicos da casa moderna. Também os conceitos de racionalização e de padronização foram rapidamente exportados do campo do capitalismo industrial para a arquitetura que, embora inicialmente contestasse tal concepção econômica liberal, posteriormente se viu deslumbrada pelo novo cenário de produtos estandardizados. Assim, através de mecanismos projetuais, a vanguarda arquitetônica do período procurou colocar-se em sintonia com os processos produtivos vigentes em sua época, o que tornou a casa produzida em grande escala, tal qual um automóvel ou uma geladeira, um dos grandes desafios para os arquitetos modernos. Economicamente, os cidadãos de classe média passaram a participar ativamente do cenário cultural industrial, e a eles é que se direcionaram os pressupostos, inclusive estilísticos, da nova arquitetura. De saída, portanto, foi configurado certo problema de identidade, e de aceitação, por parte das camadas mais pobres da sociedade, o que equivale a dizer que, embora o modernismo arquitetônico tenha sido imposto às classes menos favorecidas economicamente, suas referências culturais eram as da classe média intelectual. Como exemplo, vale destacar que os projetos residenciais de Le Corbusier tiveram como clientes cientistas, engenheiros, intelectuais, enfim, membros da classe social ávida por se firmar culturalmente. 36 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? 5.3 - Le Corbusier e a evolução do pensamento purista. Charles Edouard Jeanneret, conhecido desde 1923 pelo pseudônimo de Le Corbusier, nasceu em La Chaux-de-Fonds, na Suíça, em 1987, e entrou para a história como o arquiteto que mais influenciou o urbanismo, a arquitetura e os embates teóricos destas disciplinas ao longo de todo o século XX. Seu desempenho, neste sentido, superou o de outros importantes arquitetos de sua época, principalmente pela consistência das publicações e projetos de Le Corbusier, sempre orientados por sedutores e inovadores conceitos teóricos. Para ele, a arquitetura poderia simplesmente ser entendida como o “o jogo sábio, correto e magnífico de volumes aglomerados sob a luz” (CORBUSIER, 1923), formulação que demonstra sua preocupação não só com a racionalidade projetual, mas também com a forma, com a linguagem e a estética arquitetônicas. Sua preocupação constante foi com a apropriação plena dos elementos tecnológicos pela arquitetura, o que tornou recorrente em suas publicações a referência ao trabalho de engenheiros. Para ele, a visão e a compreensão desses profissionais em relação às potencialidades de sua época havia antecedido a dos arquitetos, fato que Corbusier demonstrava em seus trabalhos, muitas vezes até de forma provocativa, através de ilustrações de aviões, navios e leis produzidos eficientemente pelo intermédio dos engenheiros. 37 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Além disso, como já mencionado anteriormente nesse trabalho, era o ideal do homem novo que fundamentava as teorias não só da arquitetura, mas de toda a vanguarda moderna. Nascido das transformações sociais, políticas e produtivas da revolução industrial, esse homem se viu aglomerado em cidades e desvinculado do urbanismo e da arquitetura de seu entorno, sobretudo no que diz respeito à forma de habitar. A esse respeito, Josep Maria Montaner, importante crítico do Modernismo, discorre: O Movimento Moderno, impulsionado por uma visão positiva e psicológica ao mesmo tempo, pensa a arquitetura em função de um homem ideal, puro, perfeito, genético, total. Um homem ético e moralmente completo, de costumes puritanos, de uma funcionalidade espartana, capaz de viver em espaços totalmente racionalizados, perfeitos, transparentes, configurados segundo formas simples. O modulor de Le Corbusier (1942) constituiria uma explicação tardia deste usuário idealizado. Segundo Le Corbusier, todos os homens tem o mesmo organismo, as mesmas funções e necessidades. (MONTANER, 2001 p. 18). A afirmativa de Montaner sobre o significado do Modulor é, contudo, discutível. Principalmente porque as proposições contidas em sua conceituação, assim como em todo o ideário de Le Corbusier, não colocaram explicitamente tal análise simplista e, de certa forma inclusive fascista, sobre a visão de mundo do ideário moderno. Ao contrário, as propostas Corbusierianas estão muito mais ligadas a estandardização dos métodos construtivos e à metodologia projetual, e o próprio Modulor deve ser entendido como uma ferramenta de projeto, 38 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? como destacava Le Corbusier, universal. Esta metodologia, portanto, poderia ser empregada também por outros arquitetos, de maneira a estabelecer, através da proporção áurea, certos parâmetros ergonômicos, matemáticos e sobretudo arquitetônicos para o desenvolvimento do projeto. Após o término dos estudos no curso de artes e ofícios, em 1913, Le Corbusier abre seu escritório em La Chaux-de Fonds. A partir de então, em companhia de seu amigo engenheiro, Max du Bois, começam, entre outros, os estudos que levariam a conceitos muito interessantes como a “Maison Dom-Ino”, que de certa forma se tornaria a base conceitual para seus projetos residenciais posteriores. Em outubro de 1916, Corbusier muda-se definitivamente para Paris e conhece, através de Auguste Perret, o pintor Amédée Ozenfant. Com ele, Corbusier desenvolveria a chamada estética mecânica do purismo que, baseada na filosofia neoplatônica, abrangia todas as disciplinas das artes plásticas, da pintura, do design de produtos, passando inclusive pela arquitetura. A divulgação plena dessas teorias estéticas ocorreu com a publicação, em 1920, de seu artigo Le Purisme, junto à quarta edição da revista de L’Espirit Nouveau. Essa publicação, que atingiu 28 edições, se tornou Figura 10 – Maison Dom-ino. Fonte: http://www. fondationlecorbusier.asso.fr/ fondationlc.htm. Acessado em 25 abr. 2005. o grande instrumento de difusão das idéias de Le Corbusier, já que os artigos nela publicados tornaram-se a base de suas publicações posteriores, como em sua primeira obra teórica, Vers une Architecture, publicada em 1923. 39 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Considerado ainda em nossos dias como uma das mais significativas referências teóricas sobre a arquitetura moderna, este primeiro livro de Le Corbusier foi buscar no classicismo antigo a elaboração de paradigmas arquitetônicos, já que, segundo o autor, a arquitetura antiga teria elaborado, com sua lógica racional, um modelo estandardizado da arquitetura, cujo equivalente Corbusier buscava na idade da máquina. Lançado em 1923, Vers une architecture foi quem trouxe renome internacional a Le Corbusier, e é também, segundo o importante historiador da arquitetura moderna, Kenneth Frampton (1997), provavelmente a mais influente obra literária da arquitetura moderna. Conforme Frampton (1997, p.223): Esse texto – que, em forma de livro, teve seu crédito apropriado por Le Corbusier – articulava o dualismo conceitual em torno do qual sua obra viria a desenvolver-se: “por um lado, a necessidade imperiosa de atender às exigências funcionais através da forma empírica, e, por outro, o impulso de usar elementos abstratos de modo a atingir os sentidos e nutrir o intelecto. Figura 11– Vers Une Architecture. Fonte: www. fondationlecorbusier.asso. fr/fondationlc.htm. Acessado em 10 fev. 2005. Reyner Banham (1960, p.333/334) relata em Teoria e Projeto na Primeira Era da Máquina, as três características importantes dos novos tempos, sob o ponto de vista dos puristas: Economia: O passo da presente civilização seu futuro, seu caráter, dependem de descobertas esperadas, de novas fórmulas que provoquem 40 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? mecanismos cada vez mais econômicos, que nos permitam usar a energia de maneiras mais eficientes, dando assim a nossas potencialidades, e conseqüentemente a nossas mentes, uma liberdade superior e ambições mais elevadas; A separação de técnica e estética: A mecanização desviou de nossas mãos todo trabalho de exatidão e qualidade, e delegou-o à máquina. Nossa situação fica, assim, mais clara: de um lado, o conhecimento do outro, a questão plástica permanece intocada. (...) A mecanização, tendo resolvido os problemas da tecnologia, deixa intacto o problema da arte. Recusar-se a reconhecer o passo que foi dado é impedir o progresso da arte em direção a seus fins mais puros e adequados; A predominância da geometria simples: Se vamos trabalhar internamente... o escritório é quadrado, a escrivaninha é quadrada e cúbica, e tudo sobre ela forma ângulos retos (o papel, os envelopes, as cestas de correspondências com sua tela ondulada geométrica, os arquivos, as pastas, os fichários etc.) ... as horas de nossos dias são gastas em meio a um espetáculo geométrico, nossos olhos sujeitam-se constantemente a formas que são quase só geometria. Estes conceitos do chamado “purismo”, marcaram definitivamente todo pensamento de Le Corbusier durante, ao menos, os vinte anos subseqüentes de sua trajetória profissional. Nos seus primeiros anos em Paris, ele produziu muitas pinturas e textos, as quais tiveram fundamental contribuição ao seu amadurecimento como arquiteto e teórico da arquitetura. Além dessas 41 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? atividades, Le Corbusier trabalhou ainda em uma fábrica de tijolos e de materiais de construção até que seu primo, Pierre Jeanneret, em 1922, o convidou à sociedade em um escritório, onde ele pode retomar suas idéias sobre metodologias construtivas da conhecida casa “Dom-Ino”. Nela, são bem nítidas a concepção e conotação ideológica de Le Corbusier sobre a casa estandardizada, em que se destaca a defesa da racionalização dos métodos construtivos. Em suma, a idéia principal era que a estrutura de pilares e vigas propiciasse a livre conformação de volumes e plantas, tal qual em um jogo de dominó. Com isso, pode-se dizer que estava lançado o conceito da máquina de morar. A concretização de seus conceitos, contudo, ocorreu primeiramente na Maison Citrohan, apresentada por Le Corbusier em 1922, durante o denominado Salon d’Automne, em Paris. De fato, esta casa parece antecipar, pela presença dos pilotis, da cobertura plana e pela racionalização das aberturas e fechamentos, a idéia dos cinco pontos da nova arquitetura, que viria a ser apresentada apenas em 1926. O próprio nome Citrohan teria sido uma brincadeira, se não uma provocação, na medida em que remetia à marca de uma indústria francesa de automóveis produzidos em série. Assim, a idéia era de uma casa estandardizada, um bem que pudesse ser fabricado repetidamente. Figura 12 – Maison Citrohan. Fonte: http://www.fondationlecorbusier. asso.fr/fondationlc.htm Acessado em 10 abr. 2005. Neste momento, Le Corbusier (1923) enfatizava: “Quando uma época possui a planta de uma habitação, é sua evolução social que se fixou e existe um equilíbrio. Não chegamos a esse ponto”. Assim, o conceito da “Casa Dom- 42 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Ino”, e de seu protótipo, a Casa Citrohan, traduziam a explícita e incessante busca de Le Corbusier pelo equilíbrio entre a sociedade e a habitação, entre os novos costumes e suas espacializações sociais. Em síntese, segundo Le Corbusier: “A vida moderna pede, espera uma nova planta, para a casa e para a cidade. (CORBUSIER, 1923). A partir do conceito dos cinco pontos essenciais da nova arquitetura Les 5 points d ‘une architecture novelle – Le Corbusier desenvolve uma série de casas entre os anos de 1926 a 1930, entre elas a Maison Cook, a Ville Meyer, a Ville Garches e a Ville Savoye. Todas estas casas eram baseadas em uma sintaxe bem definida, obedecendo, portanto, aos tais cinco pontos arquitetônicos: estrutura principal elevada sobre pilotis; planta livre obtida pela separação entre os elementos estruturais e as vedações internas; fachada livre, resultante, no plano vertical, dos conceitos usados em planta; janelas longas e horizontais que permitiam a inter-relação entre o externo e o interno; e o conceito da laje jardim, que supostamente compensava o terreno ocupado pela construção e o reproduzia na cobertura. Em 1927, Le Cobusier amplia seus horizontes com o projeto que desenvolveu para o concurso internacional da sede da Liga das Nações, em Genebra, quando criou seu primeiro projeto para uma grande estrutura pública. Segundo Frampton (1997), baseando-se na comparação entre a arquitetura e a pintura produzida por Le Corbusier neste período, o projeto representa o clímax e o momento de crise da primeira fase da carreira do suíço, e, assim, o 43 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? apogeu e o início do declínio de seu período purista. Para Frampton (1997), o projeto para a Liga das Nações denotou uma certa inflexão na obra de Le Corbusier, não só do ponto de vista plástico mas também ideológico, principalmente pela introdução da idéia de monumentalidade, que irá questionar todo o engajamento socialista presente em sua arquitetura até então. Esta mudança pode ser observada também ao compararmos seus projetos urbanos para a cidade da era da máquina. Assim, confrontando suas idéias para a Ville Contemporaine, de 1922, e a Ville Radieuse, de 1930, notamse mudanças significativas, sobretudo em relação ao abandono da idéia de um modelo urbano centralizado e a conseqüente concepção linear de cidade, dividida em usos, em zonas específicas. Ao longo da década de 30, a idéia de monumentalidade foi marcante na obra de Corbusier, embora ele não tivesse abandonado a intenção de “reinventar” as formas de habitar da sociedade da máquina, sempre tendo como elemento referencial a comparação entre a estética do engenheiro e a do arquiteto. Nesse sentido, Corbusier pregava que o arquiteto deveria refletir sobre os contornos da forma, de maneira a diferenciar-se pela ergonomia em Figura 13 – Le Corbusier e a Ville Radieuse. Fonte: http://www.fondationlecorbusier. asso.fr/fondationlc.htm. Acessado em 20 abr. 2005. relação à estética do engenheiro. Assim, Le Corbusier continuou a pregar que a indústria deveria, com sua elevada capacidade de produção em série, alterar definitivamente as técnicas e as metodologias das construções. Neste período é possível identificar a coesão entre a prática e seu discurso teórico, sobretudo através do exame dos apartamentos do edifício Clarté, em 44 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Genebra, do Pavillon Suisse na Cité Universitaire, do Edifício do Exército da Salvação e de seus apartamentos da Porte Molitor. Nesses trabalhos, identificase a fachada modular do tipo panverre, em vidro e aço, que correspondia à busca pela estética estandardizada da era da máquina. Contudo, sobre o período da década de 1930, Frampton (1997) afirma que Le Corbusier começava a perder a fé no inevitável triunfo da era da máquina: Pouco depois de 1933, começou a reagir contra a produção racionalizada da machine à habiter, embora não se saiba ao certo se o terá feito por desilusão com a técnica moderna enquanto tal ou por desespero diante de um mundo arrebentado pela depressão econômica e pela reação política. (FRAMPTON, 1997, p.221). A partir de então, sua obra parece ter-se deslocado definitivamente para uma arquitetura mais solta, mais distante das doutrinas de sua primeira fase purista. Começam-se a esboçar em suas criações expressões formais mais livres, e técnicas primitivas, outrora completamente abandonadas, voltam à pauta de seus projetos. Tal inflexão é delineada primeiramente na Casa Errazuriz Figura 14 – Pavillon Suisse na Cité Universitaire. Fonte: http://www. fondationlecorbusier.asso.fr/fondationlc. htm. Acessado em 20 abr. 2005. (1930), em que foram empregados materiais como a madeira, a pedra e o telhado, e posteriormente também no Pavillon dês Temps (1937). Nestas obras, contudo, apesar das alusões ao vernáculo e da sensibilidade em relação ao contexto paisagístico e local, pode-se ainda identificar claramente a preocupação com a exploração das tecnologias avançadas, como o uso do 45 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? concreto armado, dos painéis de vidro e dos cabos de aço como elementos estruturais. Esta nova junção entre os elementos técnicos avançados e o vernáculo, se estenderia, então, a toda a trajetória de Le Corbusier. Seus exemplos clássicos são a Capela Ronchamp (1950) e o mosteiro dominicano de La Tourette (1960), em que Corbusier recorre à uma espécie de bricolage, de justaposição entre materiais aparentemente contrastantes, o que se tornaria característica fundamental de seu estilo a partir de então. Apesar da consistência projetual, desde esse momento em diante a obra de Corbusier perderia a unidade, o amparo dos preceitos da vanguarda Figura 15 – Chapelle Notre Dame du Haut. Fonte: http://www. fondationlecorbusier.asso.fr/fondationlc. htm. Acessado em 10 mar. 2005. moderna, e seguiria, então, caminhos diversificados, por vezes incongruentes. Vale, portanto, comparar as criações de Ronchamp e de Chandigarh, em que Corbusier deixa de lado as doutrinas teóricas da década de 1920, e a arquitetura brutalista, baseada na extrema funcionalidade, racionalidade e nas implicações do Modulor, a exemplo da Unite d’ Habitation em Marselha de 1947-1952. Tal dualismo estético e conceitual na obra de Le Corbusier culmina com a criação de Chandigarh, na Índia, onde os elementos plásticos se apresentam de forma exuberante, icônica, formalmente comprometidos com a estética do lugar, não universal. A idéia era afirmar, explicitar através da arquitetura, a apropriação das tecnologias emergentes de modo a transmitir a imagem de modernidade e prosperidade, um formalismo que se contrapunha ao brutalismo, ao uso do concreto armado enquanto estrutura e acabamento. 46 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Esta aparente incongruência presente na obra de Le Corbusier após a década de 1930, é o que efetivamente demonstra sua preocupação com a dinâmica das questões políticas, sociais e culturais, que precisam ser repensadas constantemente, tendo-se, contudo certas bases projetuais de que um idealizador jamais deve se desvencilhar. É na primeira fase de seu ideário, contudo, que este trabalho pretende fundamentar-se para refletir sobre a moradia ideal para sociedade da máquina, já que nele é que floresceram as idéias de Le Corbusier sobre o que denominou de a máquina de morar. O objetivo, portanto, é contrapor o presente, a era informacional, às concepções teóricas iniciais de Le Corbusier. 5.4 - A importância do legado Corbusieriano Da mesma forma que o cubismo transformou os conceitos de arte ao tornar a pintura um objeto artístico não só por sua carga simbólica, mas também por sua própria condição material, Le Corbusier também procurou transformar a arquitetura em um modo de expressão social, deslocando-a de seu caráter puramente figurativo. Assim, ao afirmar a casa como uma “máquina de morar”, 47 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? a intenção de Corbusier não era equiparar a arquitetura à ciência ou à indústria, mas, ao contrário, adotá-las como modelo para uma arquitetura que deveria emocionar pela eficácia, pelos condicionantes inerentes à sua realização. “Porém, a analogia feita por Le Corbusier entre um edifício e uma máquina era mais do que uma metáfora poética; era fundamentada na suposição de uma identidade ontológica entre ciência e arte”. (COLQUHOUN, 2004, p.161/162). Como se a arquitetura e a ciência de certa forma tivessem a mesma natureza, e por isso, deveriam dialogar incessantemente, de modo que a técnica deveria sempre servir de base às suposições artísticas e intelectuais. Arquitetura, tecnologia, o real e a representação deveriam, portanto, corresponder à mesma finalidade. A arquitetura, como uma arte, não mais possuía a tarefa de criar significados por meio de signos incorporados às superfícies dos edifícios. O significado da arquitetura agora era imanente às puras formas que a nova tecnologia possibilitava. (COLQUHOUN, 2004, p.161/162). Com esta afirmação de Colquhoun, pode-se entender a arquitetura, segundo o discurso de Le Corbusier, como disciplina inerente à ciência e à tecnologia emergentes da revolução industrial, onde a idéia do adorno não mais fazia sentido para um mundo de base epistemológica completamente diferente do mundo vitoriano ou clássico. A arquitetura deveria, então, retratar a nova sociedade de sua época. O discurso Corbusieriano do período entre guerras, publicado nos artigos 48 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? de L´Espirit Nouveau, oscilou constantemente entre dois pólos aparentemente dicotômicos: o pensamento clássico do século XVII e o ideário, em certa medida Marxista, que amparava os preceitos da vanguarda moderna. Assim, acreditavase que a tecnologia representava ao mesmo tempo um meio construtivo e uma forma de expressividade artística. Foi, assim, através da analogia entre o engenheiro e o arquiteto, que Le Corbusier delineou seu ideário nas publicações da época. As diferenças entre eles, acreditava Corbusier, restringiam-se à metodologia projetual, o que o incentivou a adotar o discurso comparativo para defender a união entre a arquitetura e a tecnologia, e o arquiteto enquanto profissional apto a transformar técnica em arte. Pode-se dizer até que a relação entre a expressão criativa e o mundo tecnocrático, objetivo e racional, permaneceu constante em toda a obra de Corbusier. Assim, para ele a tecnologia desempenhava papel determinante enquanto condição de liberdade artística, mas, ao mesmo tempo, cada vez mais distante das utopias sociais por se colocar à disposição de políticas autoritárias. Com relação às influências classicistas, Le Corbusier as expõe sistematicamente na obra Vers une Architecture (1923) através dos três parâmetros projetuais: volume, superfície e planta. Segundo ele: é o volume que estabelece a experiência dos sólidos sobre a luz; a superfície que limita o volume; e a representação das plantas que constitui a disposição das funções 49 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? na arquitetura. Podemos dizer que as casas da década de 1920 de Le Corbusier são coerentes com seu discurso teórico. Nelas, e nos artigos de L´Espirit Nouveau, Corbusier estabelece os fundamentos de sua estética arquitetônica, o que transforma as residências que concebeu para a classe média intelectual em laboratório experimental de seu ideário. Foi através delas que se desenvolveram os conceitos das casas em série, da arquitetura modular, com custos reduzidos, e os subsídios às posteriores Unidades de Habitação multifamiliares e multifuncionais. É importante salientar, contudo, que Le Corbusier não defendia a padronização integral da habitação à exemplo dos alemães do movimento moderno e da Bauhaus. Em sua análise, ela deveria restringir-se a elementos específicos, estandardizados, restritos ao domínio da arquitetura. Ainda assim, o elo entre a arquitetura e as técnicas industriais perde força, para Le Corbusier, quando ele parece perceber o desinteresse dos governos ou dos industriais pela produção de conjuntos habitacionais. Aos poucos, portanto, sua obra parece abandonar o racionalismo platônico, presente até meados da década de 30, e a retomar os ideais vitalistas e regionalistas de seu começo profissional na cidade natal La Chaux-de-Fonds. Este movimento de inflexão pode ser exemplificado com as casas que criou no Chile, em 1930 (Residência Errazuriz), e com a Ville Le Sexttant, em Mathes, 1935, onde parece se aproximar das influências vernáculas e se 50 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? distanciar dos dogmas modernistas. Há uma tentativa – em Cap. Martin, Ronchamp, La Tourette, e nos edifícios em Chandigarh e Ahmedabad, na Índia – de desenvolver idéias a partir de uma tradição “mediterrânea” generalizada, de tipologias antigas ou mitológicas, ou simplesmente do genius loci. (COLQUHOUN, 2004, p.175). Com os artigos de L´Espirit Nouveau e as experiências das casas da década de 1920, Le Corbusier tomava como referência estilística e conceitual os sistemas proporcionais e de superfícies reguladoras, mas, a partir da publicação de O Modulor, sua obra adquiriu a regularidade matemática subjacente às formas. Este, que margeou toda obra de Le Corbusier, parece ter sido também sua maior experiência teórica. Assim, o que se depreende de seu ideário é a intenção de adotar na arquitetura o pensamento lógico, racional e disciplinador, enfim, de estabelecer, seja através da proporção áurea, da dicotomia entre moderno e clássico, um controle projetual tão rígido quanto os empregados por Alberti ou Palladio. Desta forma, acreditava ele, é que se poderia criar uma arquitetura singular, integrada à nova sociedade no contexto das tecnologias mecânicas do século XX. A matemática é o magistral edifício imaginado pelo homem para compreender o Universo. Nela encontra-se o absoluto e o infinito, o apreensível e o não apreensível, e está rodeada de altos muros 51 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? diante dos quais pode-se passar e de novo passar sem proveito nenhum. Neles às vezes abres-se uma porta, entra-se e aí se está no lugar onde se encontram os deuses e as chaves dos grandes sistemas. Estas portas são as portas dos milagres, e franqueada uma delas, já não é o homem que atua, porém o Universo que se manifesta e diante dele desenrolam-se os prodigiosos tecidos das combinações sem limites. Estais no país dos números. Deixai-vos permanecer nele, maravilhados diante de tanta luz intensamente espalhada. (CORBUSIER, 1953, p. 69). Segundo Jonh Summerson (1994, p. 116): [...] nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial Le Corbusier criou o sistema que se chamou “Modulor”. Modulor é uma palavra composta a partir de module, ou seja, unidade de medida, e section d´or ou secção de ouro: a divisão de uma reta de tal modo que o segmento menor está para o maior assim como o segmento maior está para o todo. O Modulor é um sistema de proporcionamento do espaço arquitetônico baseado neste critério geométrico, e oferece toda uma gama de dimensões. As dimensões medianas relacionadas com o corpo humano; as dimensões extremas aplicam-se, por um lado, aos detalhes diminutos dos instrumentos de precisão e, por outro lado, à escala dos grandes projetos de planejamento. 52 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? O Modulor tinha como subtítulo “Ensaios sobre uma medida harmônica à escala humana e aplicável universalmente à Arquitetura e à Mecânica”. Le Corbusier pretendia, assim, e de forma extremamente ambiciosa, estabelecer parâmetros universais para a prática da arquitetura através de ensaios geométricos, de exemplos matemáticos. No entanto, Summerson questiona se realmente O Modulor seria um dogma a ser aplicado por outros arquitetos ou, ao contrário, uma metodologia de caráter pessoal: Na minha opinião, a verdadeira razão de ser desses sistemas é que aqueles que os utilizam (e que são, em geral, os próprios autores) necessitam deles: existem mentes muito férteis e criativas que necessitam da disciplina dura e inexorável de tais sistemas para corrigir e, ao mesmo tempo, estimular sua inventividade. O destino desses sistemas parece confirmar isto - em geral, não sobrevivem a seus usuários e o próximo indivíduo de gênio inventa seu próprio sistema. (SUMMERSON, 1994, p.116). O fato é que o Modulor colocou em discussão um conceito bastante debatido e universal: a questão da padronização de medidas e de proporções. A esse respeito, Corbusier identificava na Revolução Francesa o início do processo de modernização dos até então complicados cálculos de pés e polegadas. Naquela época, portanto, a criação de uma unidade de medida despersonalizada e abstrata, o metro, que é em definição a décima milionésima parte do quadrante 53 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? do meridiano terrestre, correspondia ao triunfo da crença laica em poder conquistar o mundo através da ciência e do cálculo. Ainda assim, Le Corbusier identificava certa carência de medida, ou de sistema proporcional, que correspondesse aos anseios mundiais por racionalidade, simplicidade na ordenação do cálculo e por adequação à escala humana. Por outro lado, desde o início do século XX observava nas obras de arquitetura o que viria a denominar de “o ângulo reto dirigindo a composição”. Posteriormente, durante os anos da ocupação da França durante a Segunda Guerra Mundial, Corbusier foi convidado a integrar o AFNOR, órgão encarregado de auxiliar a reconstrução do país, juntamente com industriais, engenheiros e arquitetos. Sobre os anseios daquele grupo, ele proferiu: O AFNOR propõe normatizar os objetos das construções e seu método é simplista: simples aritmética aplicada aos usos e utensílios dos arquitetos, engenheiros e industriais. Parece-me arbitrário e pobre. As árvores, por exemplo, com seu tronco, seus ramos, suas folhas e nervuras, me afirmam que as leis de crescimento e combinação podem e devem ser mais ricas e sutis. Um laço geométrico tem de intervir nestas coisas e sonho instalar nas obras que mais tarde cobrirão o país, um enredado de proporções traçado sobre o muro ou apoiado nele, feito com ferros laminados e soldados, que será a regra da obra, o modelo que inicia a série ilimitada das combinações e das proporções. O pedreiro, o carpinteiro e o serralheiro irão ai escolher as medidas para seus trabalhos, os 54 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? quais, diversos e diferenciados, serão testemunhos da harmonia. Tal é o meu sonho. (CORBUSIER, 1953, p.34). Em 1943, Le Corbusier propõe a seu assistente Hanning a seguinte tarefa: [...] tome um homem com o braço levantado com 2,20 metros de altura, inscreva-o em dois quadrados superpostos de 1,10 metros, coloqueo a cavalo sobre os dois quadrados e um terceiro quadrado resultante lhe dará uma solução. O lugar do ângulo reto deve poder ajudá-lo a colocar o terceiro quadrado. Com este entedado, regido por um homem instalado no seu interior, estou seguro que chegará a uma série de medidas que poderão colocar de acordo a estatura humana (o braço levantado) e a Matemática. (CORBUSIER, 1953, p.35). Estas poucas linhas continham o cerne do que se transformaria no Modulor, embora naquele momento correspondessem ainda a simples intuição. Em sua primeira versão, o estudo teve como base a estatura média do homem francês, 1,75 metros, de onde Corbusier definiu: [...] o Modulor é um aparato de medida fundamentado na estatura humana e na matemática. Um homem com o braço levantado dá os pontos determinantes de ocupação do espaço: o pé, o plexo solar, a 55 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? cabeça e a ponta dos dedos com o braço levantado – três intervalos que definem uma série de secções áureas de Fibonacci: e ainda por outra parte, a matemática, que oferece a variação mais imediata e significativa de um valor: o simples, o dobro e as duas secções áureas. (CORBUSIER, 1953, p. 52). Essa regra de proporções2 combina-se, assim, através do ponto das duas séries de segmentos áureos, que ele chamou de “vermelha” e “azul”, com a estatura humana nos seus principais pontos de ocupação do espaço. Num momento posterior, a altura padrão do homem foi retificada para seis pés, ou cerca de 1,83 metros, a estatura média do homem inglês. O que Le Corbusier almejava era contribuir para a normatização e a posterior estandardização da arquitetura seriada, racional e eficiente, enfim, a arquitetura dos elementos pré-fabricados. Mas, por outro lado, objetivava também evitar o empobrecimento formal derivado da estandardização. Quando Le Corbusier elege a proporção áurea como estruturadora das relações entre medidas na arquitetura, sua preocupação é a de acoplar a referência humana ao traçado de suas próprias obras, em muito guiadas pela Figura 16 - Modulor Ilustração. Fonte: http://falcon.jmu.edu Acessado em 26 mar. 2005. geometria. Neste sentido, Summerson escreve que Le Corbusier defendia o Modulor como um sistema que, se amplamente adotado, equacionaria a tentativa da padronização na indústria, embora, em sua visão, o Modulor tivesse contribuído especialmente para os projetos do próprio Corbusier. Estou inclinado a pensar que, como em outras 2 Esse assunto começou há cerca de 2.500 anos, com a busca do modo mais harmonioso e simétrico de dividir um segmento em duas partes. Seria pelo seu ponto médio? A questão preocupou Euclides (330-275 a.C.), o matemático grego autor de Os Elementos, obra fundamental da geometria. O resultado dessa misteriosa divisão, simbolizado pela letra grega f (lê-se “fi”) é sempre 1,618034...,que ficou conhecido como razão áurea. A proporção associada a ela foi também estudada pelo monge Luca Pacioli, de Veneza, no livro De Divina Proportione (Sobre a proporção divina), de 1509. Durante séculos, a secção áurea foi usada por pintores e arquitetos. Hoje sabemos que f regula também a espiral que aparece na natureza, como na margarida, no girassol, na concha do molusco náutilo. A espiral fornece 56 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? situações semelhantes, a importância real do Modulor está em que ele é parte da aparelhagem mental de seu autor e lhe permite realizar projetos tão originais como a capela Ronchamp – um edifício de forma tão livre que chega a ser quase uma escultura abstrata – seguro de seu completo domínio dos procedimentos racionais. (SUMMERSON, 1994, p.117). Assim, destaca-se a extrema simplicidade operacional do Modulor, em que quadrado, duplo quadrado e secções áureas, se fundem no sistema de razões geométricas e numéricas. Neste sentido, Albert Einstein teria comentado que o sistema de Corbusier se tratava da “escala de proporções que torna o mau difícil e o bom fácil”. (CORBUSIER,1953, p. 55), receptividade favorável também compartilhada por matemáticos, engenheiros e arquitetos de sua época, tanto pertencentes do universo acadêmico quanto profissional. Com o passar dos anos, contudo, o interesse em torno do Modulor perdeu força, e até o próprio Corbusier parece ter colocado em segundo plano sua obsessão pelo uso sistemático dos conceitos estabelecidos pelo princípio matemático e geométrico que criou. Por outro lado, a questão da moradia era também apontada por Corbusier como essencial ao equilíbrio de sua época. A sociedade, segundo ele, clamava pela habitação que traduzisse os novos costumes sociais através da arquitetura, ou seja, em suas palavras, “[...] quando uma época possui a planta de uma habitação é sua evolução social que se fixou e existe um equilíbrio. Não o padrão matemático para o princípio biológico que regula o crescimento da concha: o tamanho aumenta, mas o formato não se altera. A seqüência 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, ..., correspondente aos lados dos quadrados que montam esssa espiral, é a mesma que o matemático italiano Fibonacci (1180-1250), em seu livro Liber Abbaci, de 1202, calculou para o crescimento das populações de coelhos a partir de um casal. Em 1753, o escocês Robert Simson descobriu que dividindo-se esses números pelos seus antecessores obtém-se uma seqüência de frações que se aproxima de f. Já está demonstrado que f é o mais mal-aproximado por frações dos números irracionais. O incrível é que a natur 13/eureca.htm) 57 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? chegamos a esse ponto”. (CORBUSIER, 2002, p. XXV). Tal ponto de equilíbrio parecia a ele não se referenciar apenas à tradução espacial e estética da morada ideal, mas também à coerência com que tais edificações deveriam ser construídas. Em Por Uma Arquitetura, Corbusier observou: “[...] a arquitetura tem como primeiro dever em uma época de renovação, operar a revisão dos valores, a revisão dos elementos constitutivos da casa” (CORBUSIER, 2002, p.159). A casa em série almejada por Le Corbusier integrava a idéia da máquina de morar, por sua intensamente análoga à produção dos bens industrializados, como um automóvel, um avião ou um navio. Uma casa que pudesse atender não só os anseios da família moderna, mas também os implacáveis interesses da indústria e do mercado de capital. A série está baseada sobre a análise e a experimentação. A grande indústria deve se ocupar da construção e estabelecer em série os elementos da casa. É preciso criar o estado de espírito da série. O estado de espírito para construir em série. O estado de espírito de residir em casas em série. O estado de espírito de conceber casas em série. (CORBUSIER, 2002, p.159). Porém, Corbusier alerta que a casa em série deva ser como uma casa instrumento, bela pela estética dos instrumentos de trabalho da era industrial mecânica. O arquiteto deveria se apropriar das possibilidades da construção 58 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? em série com toda a expressão que o sentido artístico pode conferir, ou seja, a estandardização deveria estar nos elementos de composição construtiva e não na padronização por completo, criando modelos idênticos para serem vendidos conforme o terreno e o tamanho da família. A possibilidade de casas préfabricadas combinadas com o arranjo idealizado por Le Corbusier das casas “Dom-Ino” poderiam estabelecer uma emoção tectônica inusitada. Os conceitos da Casa “Dom-Ino” extraída, tal qual o modulor da matemática com a definição dos “MINÒS, tal qual fez posteriormente Solomon W. Golomb, com a teoria dos poliminós”3. Assim, vale destacar a extrema coerência e entrelaçamento entre os elementos do ideário Cobusieriano. O Modulor pretendia estabelecer critérios que facilitassem a racionalização da Casa em Série, que funcionava como uma das premissas para a concretização da Máquina de Morar, que tem a Maison Dom-Ino como possibilidade compositiva arquitetônica. Ou seja, embora freqüentemente estudados de maneira isolada, esses conceitos só se tornam plenos se entendidos como parte de um conjunto de conceitos extremamente coerentes entre si. Tal observação é válida sobretudo quando estudamos a obra de Le Corbusier até meados dos anos trinta, quando ele ainda acreditava, ou pelo menos queria fazer acreditar, que a arquitetura era fundamental para a efetivação de uma nova sociedade. Assim, a casa em série se inseria nas buscas do pós-guerra por uma construção barata, rápida, capaz de reconstruir a Europa. 3 No ano de 1954 (posterior ao conceito idealizado por Corbusier da Maison Domino) Solomon W. Golomb, um jovem estudante de engenharia, de 22 anos, publicou na prestigiosa revista American Mathematical Monthy um artigo intitulado “Tabuleiro de Xadrez e Poliminós”. Este poderia ter sido mis um daqueles intricados e enfadonhos artigos de matemática que mofariam nas páginas de revistas sem despertar maior interesse para as gerações futuras, Entretanto quando em 1957 Martin Gardner dedicou um artigo sobre a invenção de Golomb, os poliminós tornaram-se tão populares que os aficionados em desvendar seus desafios formaram grupos internacionais, gerando congressos, publicações 59 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Num piscar de olhos, se nascesse o estado de espírito da série, tudo seria preparado rapidamente, com efeito, em todos os ramos da construção, a indústria, potente como uma força natural, exuberante como um rio que rola para seu destino, tende cada vez mais a transformar os materiais brutos naturais e a produzir o que se chama materiais novos. (CORBUSIER, 2002, p.161). Segundo ele, a indústria, o concreto e o ferro, o cálculo e a inteligência criativa do arquiteto, tinham efetivamente transformado as organizações construtivas. A arquitetura estava livre das tradições superficiais do passado, os métodos de construção tinham sido revolucionados, e “[...] a sociedade deseja fortemente uma coisa que ela obterá ou não. Tudo está aí, tudo depende do esforço que se fará e da atenção que se concederá a esses sintomas alarmantes. Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a revolução.” (CORBUSIER, 2002, p.205). Nestes termos, podemos notar na obra de Corbusier a indignação com a postura conservadora ainda vigente na arquitetura de sua época. Ele foi um dos primeiros a notar que a sociedade se encontrava em processo de transformação e que, portanto, necessitava-se de um novo abrigo, compatível não mais aos costumes campesinos, mas ao emergente estilo de vida urbano mecanicista. Ou seja, Le Corbusier estava engajado com a construção de um mundo novo, socialista, igualitário, moderno, conduzido pelo pensamento e produzindo millhares de problemas e soluções curiosíssimas. Poliminós são objetos geométricos formados por quadrados de mesmo tamanho, unidos lado a lado. Os poliminós dividem-se em calsses de acordo com o número de quadrados que se usa na configuração: monominó, dominó, triminós, tetraminós, pentaminós, hexaminós e assim por diante. Um poliminó diferencia-se de outro apenas pela forma, não importa a posição que ocupam no plano. Assim as quatro figuras representam o mesmo triminó L”. www.revistagalileu.com 60 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? mecânico e racional, tal qual o seu modelo analógico originário da máquina e da revolução industrial. Ainda que, com o passar do tempo, o “[...] conteúdo ideológico da arquitetura de Le Corbusier foi ele mesmo subvertido pelo desenvolvimento “natural” do capitalismo e sua “recuperação” de vanguarda. Portanto, temos de ver a arquitetura de Le Corbusier como um fenômeno histórico e desobrigála de seu contexto ideológico original. Seu caráter subversivo faz parte de sua estética auto-suficiente e continua sendo uma experiência constantemente renovável, depois de termos visto retroceder a visão de uma sociedade totalmente renovada da qual ela originalmente fazia parte. A arquitetura de Le Corbusier pertence a uma “tradição do novo” que agora assumiu seu lugar em nosso cânone crítico. [...] Le Corbusier ocupou um desses raros momentos na história em que parecia que a opinião do artista e a do homem de paixões convergiam para um mito coletivo”. (COLQUHOUN, 2004, p. 181/182). 5.5 - Le Corbusier e a máquina de morar Embora na contra-corrente da Carta de Atenas (1933), que afirmava o equipamento multifuncional enquanto mecanismo ideal para a casa moderna, porém como vimos, os experimentos Corbusierianos sobre a habitação tiveram início com a Maison Dom-Ino. Assim, entre 1926 a 1930, suas casas unifamiliares basearam-se na sintaxe do que se convencionou denominar os cinco pontos essenciais da arquitetura: a estrutura principal elevada sobre 61 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? pilotis; a planta livre obtida pela separação entre os elementos estruturais e as vedações internas de divisão entre espaços; a fachada livre; as janelas longas e horizontais, que produziam a liberdade e a inter-relação entre o externo e o interno; e o conceito da laje jardim. Por outro lado, ainda que não exista uma publicação específica de Corbusier sobre a Máquina de Morar, a casa ideal à era da máquina, em toda sua obra podem ser encontradas citações sobre esse conceito. Assim, em Vers une architecture (1923), provavelmente a mais importante obra do movimento moderno na arquitetura, Le Corbusier questiona as formas de habitar da sociedade industrial, ainda em pleno processo de desenvolvimento, tentando “reencontrar as bases humanas, a escala humana, a necessidade-tipo, a função tipo, a emoção tipo”. (CORBUSIER, 1923). Em clima de efervescência social, pautado por transformações tecnológicas, sociais e científicas, Le Corbusier clamava, assim, por uma nova planta na habitação de seu tempo. Comparando de forma provocativa os engenheiros e os arquitetos, anunciava os primeiros como já engajados na construção de uma sociedade moderna, altamente tecnológica e “maquinicista”, como comprovavam os automóveis, navios e aviões que haviam criado. Em certo momento, Corbusier chega a questionar: “A arte, segundo Larousse, é a aplicação dos conhecimentos para a realização de uma concepção. Ora, hoje são os engenheiros que conhecem a maneira de sustentar, de aquecer, de ventilar, de iluminar. Não é verdade?” (CORBUSIER, 1923, p.7). 62 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Nestes termos é que Le Corbusier reflete sobre o significado da habitação e da ação do arquiteto, tomando como base, portanto, a maneira como o engenheiro encara o desenvolvimento dos aviões por exemplo. Para tanto, propõe a Máquina de Morar, que tem como característica fundamental a possibilidade da construção seriada. Uma grande época começa. Um espírito novo existe. A indústria, exuberante como um rio que rola para seu destino, nos traz os novos instrumentos adaptados a esta época nova animada de espírito novo. A lei de economia administra imperativamente nossos atos e nossos pensamentos. O problema da casa é um problema de época. O equilíbrio das sociedades hoje depende dele. A arquitetura tem como primeiro dever, em uma época de renovação, operar a revisão dos valores, a revisão dos elementos constitutivos da casa. A série está baseada sobre a análise e a experimentação. A grande indústria deve se ocupar da construção e estabelecer em série os elementos da casa. É preciso criar o estado de espírito da série. O estado de espírito de residir em casas em série. O estado de espírito de conceber casas em série. (CORBUSIER, 1923, p. 32). A idéia era sintonizar a arquitetura, e as formas de construção, aos anseios da sociedade industrial. E, sobre a moradia, Corbusier acreditava que 63 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? tanto o operário quanto o intelectual não mais possuíam o abrigo conveniente ao seu modo de vida, ainda que de fato esse equipamento correspondesse à necessidade primordial humana. “A casa foi o indispensável e o primeiro instrumento que se forjou.” (CORBUSIER, 1923, p.34). Em Vers une architecture (1923), Le Corbusier enfatiza três aspectos fundamentais à concepção da arquitetura: O volume que é o elemento pelo qual nossos sentidos percebem e medem, sendo plenamente afetados. A superfície que é o envelope do volume e que pode anular ou ampliar a sua sensação. A planta que é a geradora do volume e da superfície e que é aquilo pelo qual tudo é determinado irrevogável. (CORBUSIER, 1923, p.9). Segundo Le Corbusier, o mecanicismo era familiar e positivo ao homem de sua época. Por isso, ele deveria habitar em uma máquina também, com banhos quentes, água fria, temperatura personalizada, boas condições de conservação dos alimentos, de higiene, bela pela proporção, etc. Proporções estas depreendidas de seus Traçados Reguladores, que afirmavam a geometria enquanto linguagem humana. Para tanto, Corbusier evoca e se fundamenta nos modelos clássicos, afirmando que: “o grego, o egípcio, Michelangelo ou Blondel empregavam os traçados reguladores para a correção de suas obras e a satisfação de seu sentido artístico e de seu pensamento matemático.” (CORBUSIER, 1923, p.47). 64 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Vicent Scully Júnior, importante crítico da arquitetura moderna, escreve que: Le Corbusier foi, portanto, capaz de compreender a arquitetura grega e de evitar uma imitação não grega dela, precisamente porque percebeu intuitivamente o que ela pretendia ser e porque reconheceu que a intenção não era a de abrigar seres humanos, e sim instigá-los ao reconhecimento dos fatos em relação aos quais eles próprios deviam agir. (SCULLY, 1961, p.89). O que Corbusier pregava era, assim, o emprego das formas puras da geometria plana, sóbria, sem os adornos e excessos do barroquismo tardio que, de certa forma, ainda estavam em voga à sua época. Em suma, a casa ideal para a sociedade da máquina deveria obedecer as seguintes premissas básicas: planta livre, fachada livre, estrutura independente, panos de vidro ou aberturas corridas, estar sobre pilotis e teto jardim. Estas premissas eram, por sua vez, alicerçadas nos quatro conceitos básicos de habitabilidade presentes em todo o ideário Corbusiano: morar, trabalhar, cultuar o corpo e o espírito, e circular. Estão aí, a grosso modo, os conceitos em voga nas teorias sobre a Cidade Moderna, embora Corbusier enfatizasse a célula habitacional como organismo não constituinte, mas análogo à cidade, por se tratar da condição mais primitiva e essencial à vida em sociedade. 65 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Assim, a Ville Savoye seja talvez a mais paradigmática das casas de Le Corbusier já que nela encontramos todos os conceitos “corbusierianos’’ de moradia ideal. Situada em terreno plano, com esplêndida vista sobre o Vale do rio Sena, no subúrbio de Paris, a Ville Savoye é uma das quatro ville blanches, as moradias unifamiliares que coroam a investigação de novos meios produtivos na arquitetura enunciados na Maison Dom-Ino. Trata-se de um volume prismático, originário de planta quadrada, e elevado sobre pilotis de forma a possibilitar a mútua visibilidade e circulação entre o jardim e o espaço edificado. Em seu primeiro piso, concentram-se os espaços de circulação e as áreas de serviços, que foram recolhidas atrás de uma parede curva envidraçada que determina o eixo principal da casa. Uma rampa externa dá acesso ao primeiro e principal andar da moradia, onde estão localizados os quartos, a sala de estar e um jardim interior parcialmente coberto. O acesso ao andar seguinte ocorre novamente pela rampa, que continua subindo até o segundo andar – o terraço – para aí se fechar com uma nova parede curva. A inclinação da rampa é favorável à subida, o que torna o terraço um espaço semelhante aos pátios mediterrânicos tradicionais. Em 1919, Le Corbusier fez uma série de conferências na Argentina, quando descreveu a Ville Savoye, ainda em construção, da seguinte maneira: Os visitantes até aqui, voltam-se e tornam a voltar-se para o interior, perguntando-se como tudo isto acontece e dificilmente compreendem os motivos daquilo que vêem 66 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? e sentem. Já não encontram mais nada daquilo que se convencionou denominar uma “casa”. Sentem-se em outra coisa inteiramente nova. E... creio que não se entediam! O local: um gramado vasto e encurvado. A vista principal dá para o Norte e, portanto, opõe-se ao sol. A frente normal estaria portanto do lado contrário. A casa é uma caixa na ar, perfurada em toda a volta, sem interrupção, por uma janela corrida. Não se hesita mais em realizar jogos arquitetônicos com cheios e vazios. A caixa se eleva no meio dos prados, dominando o pomar. Sob a caixa, passando por entre os pilotis, há um caminho para os automóveis, fazendo ida e volta em forma de forquilha, cujo gancho fecha exatamente sob os pilotis, a entrada da casa, o vestíbulo, a garagem, os serviços (lavanderia, rouparia, quartos dos empregados). Os automóveis rodam debaixo da casa, estacionam ou vão embora. Do interior do vestíbulo uma rampa suave conduz, sem que quase se perceba, ao primeiro andar, onde transcorre a vida do morador: recepção, quartos etc. Recebendo vista e luz do contorno regular da caixa, os diferentes cômodos reúnem-se radialmente sobre um jardim suspenso, que ali está como distribuidor de luz e sol. É o jardim suspenso sobre o qual se abrem, com total liberdade, as paredes corrediças de vidro do salão e de vários outros cômodos: assim, o sol penetra em todos os lugares, no próprio coração da casa. Do jardim suspenso, a rampa, que agora é externa, conduz ao teto, ao solário. Este, aliás, liga-se, por meio de três lances de escada de caracol, à adega escavada na terra sob os pilotis. Esta escada de caracol, órgão vertical puro insere-se livremente na composição horizontal. Para terminar, observem o corte: o ar circula por todos os lugares, a luz está em cada ponto, penetra em tudo. A 67 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Figura 17 - Plantas Ville Savoye Fonte: http://falcon.jmu.edu Acessado em 26 mar. 2005. Figura 18 - Ville Savoye Fonte: http://falcon.jmu.edu Acessado em 26 mar. 2005. Figura 19 - Cortes Ville Savoye Fonte: http://falcon.jmu.edu Acessado em 26 mar. 2005. 68 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? circulação proporciona impressões arquitetônicas de uma diversidade que desconcerta todo visitante estrangeiro, diante das liberdades arquitetônicas propiciadas pelas técnicas modernas. As simples pilastras do andar térreo, mediante uma disposição correta, recortam a paisagem com uma regularidade que tem pó efeito suprimir toda noção de “frente” ou “fundo” da casa, de “lateral” da casa. A planta é pura e atende as necessidades mais precisas. Sua disposição é a mais correta possível, na paisagem agreste de Poissy. (CORBUSIER, 2004, p.138/139). Em suma, são nas chamadas casas brancas, e não nos conjuntos multifuncionais preconizados pela Carta de Atenas, que Le Corbusier concentra seus esforços a favor da moradia ideal à sua época. Tais experimentos iniciais são mesmo fundamentais ao desenvolvimento posterior de sua obra arquitetônica e teórica, cenário que explica a extrema importância da Ville Savoye. Ela pode, assim, ser compreendida como a própria materialização da chamada máquina de morar, já que nela Corbusier sintetizara todos os conceitos anteriores, os da Maison Dom-Ino, dos cinco pontos estruturadores, enfim, a edificação representa a materialização, em concreto, aço e vidro, do ideário corbusieriano. Nota-se, ainda, o extremo cuidado com a iluminação natural por toda a casa, com a interação entre as formas, a cor, e o movimento do sol. Na Ville Savoye, portanto, parece materializar-se a velha máxima de que a forma segue a função. A própria forma se torna também função, ainda que simbólica do contexto técnico e artístico da geração de vanguarda moderna. 69 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? 6. Parte 2 - Novas possibilidades na produção arquitetônica residencial 70 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? 71 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? 6.1 - Introdução: As novas possibilidades e condições na prática da arquitetura O argumento da arquitetura moderna, e mais especificamente de um de seus mais atuantes partidários, o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, baseouse em grande parte na correspondência entre arquitetura e cidade, entre cidade e sociedade, entre sociedade e tecnologia. Assim, no contexto de tais encadeamentos, a questão central da vanguarda moderna foi determinar um vocabulário arquitetônico originário, e ao mesmo tempo representativo, de um novo conceito de cidade, que naquele momento esteve assinalado por questões quantitativas e ideológicas, como a explosão urbana, a enorme demanda habitacional e o planejamento em macro-escala. Racionalidade, funcionalidade e universalismo constituíram, portanto, simultaneamente suas metas e respostas frente a uma nova compreensão de mundo. E, embora intrinsecamente ligada aos desdobramentos culturais da denominada era da máquina, tal concepção da arquitetura levando-se em consideração suas dimensões individual, coletiva e social, não foi um projeto exclusivamente moderno. Ao contrário, há mais de cinco séculos, o arquiteto, matemático, pintor e filósofo italiano, Leon Battista Alberti, já anunciara tal ligação embrionária entre arquitetura e cidade, atendo-se, sobretudo, a uma das questões centrais 72 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? do meio urbano, ou seja, a da moradia. Na análise desse importante personagem renascentista, a cidade poderia, então, ser pensada em termos de uma grande casa, assim como, em contraponto, a casa nada mais seria do que uma pequena cidade. Concentrando-se na instigante correspondência entre tais termos, as proposições iniciais da arquitetura e do urbanismo modernos assumiram, então, caráter extremamente radical, já que, ao definir a sociedade enquanto sociedade de massa, hierarquizada, estamental, os arquitetos do período nomearam a hipótese do universal, tanto em termos estilísticos, quanto construtivos e comportamentais, como resposta à nova cidade e ao novo homem moderno que surgia. Podia-se, portanto, pensar a cidade através de planos-macros, de sistemas de transportes, de lazer programado, de edifícios e zonas de trabalho pré-definidas, além de áreas e formas de morar independentes da história, das características do lugar. E assim, também na via contrária, cada um desses elementos adquiria simultaneamente funções e papéis previamente definidos, e supostamente definitivos, em prol da viabilidade e do bem-estar coletivos. Necessitava-se, em suma, identificar e até mesmo nomear traços homogêneos, sintéticos, inclusive porque era o poder governamental quem em boa parte executaria os projetos concebidos pelos arquitetos modernos. As discussões em torno dos primeiros CIAM desencadearam, portanto, a crença de que novas cidades, funcionais, deveriam substituir, com todo o 73 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? radicalismo do termo, as chamadas cidades históricas, consideradas à época antiquadas e obsoletas. Isso porque se tinha a precisa sensação de que viviase uma nova era, a chamada era industrial. Os arquitetos do período moderno presumiram então, e através de profundo otimismo, que a eficácia do sistema urbano seria capaz de homogeneizar as demandas dos diversos atores da vida social, incidindo sobretudo em seus chamados estabelecimentos humanos, conforme abordamos na primeira parte desse trabalho. Eficiência, quer de planejamento, de construção, de economia ou programática, assim como universalismo, sociedade de massa e industrialização, constituíram, portanto, os argumentos de seus raciocínios e discursos projetuais. A abrangência e alcances das proposições arquitetônicas modernas são ainda presentes em nossas cidades, embora novas questões tenham se apresentado ao contexto tecnológico, cultural e social que sucederia a era industrial, ou seja, a era informacional em que vivemos. Caracterizada pelo potencial comunicativo e criativo das tecnologias telemáticas, ou seja, aquelas resultantes da crescente conexão mundial entre computadores pessoais, a chamada era informacional corresponde a uma nova forma de compreensão e de percepção de mundo. Nela, o que está em jogo são as infinitas possibilidades tecnológicas [telemáticas e informacionais] do chamado “ciberespaço”, de forma a, na arquitetura, alterar a relação entre o 74 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? clássico binômio espaço/tempo. Em lugar da percepção mecânica, cronológica, objetiva e seqüencial da era da máquina, a era informacional passaria a cotejar a sobreposição entre tempos diversos, entre os efeitos de fenômenos subjetivos, simbólicos, virtuais, que conectam as pessoas através de seus computadores. Essa nova máquina inaugurou a era atual e criou para a arquitetura, através de uma nova pré-disposição a códigos virtuais, a possibilidade de, por exemplo, manejar formas complexas através da modelagem tridimensional, como exemplifica a trajetória do arquiteto canadense Frank O. Gehry. O cenário é o da globalização, do irrestrito incremento da comunicação e conectividade virtual entre os membros da sociedade de massa, que fora conformada no período anterior, da era industrial. Trata-se, em suma, do desenvolvimento de uma nova ferramenta na história evolutiva da humanidade e, portanto, de uma nova possibilidade de interação do homem com o meio que ele habita e transforma continuamente. Assim, qual a nossa relação com aquele período? O que mudou ao longo de quase um século desde as formulações iniciais da arquitetura moderna? A sociedade de que tratava desapareceu ou especializou-se? Seu argumento tecnológico foi substituído ou atingiu a plenitude? Em que momento, e de que forma, teriam mudado as regras do jogo? Quais novos horizontes foram abertos à atuação do arquiteto? Essas e outras questões constituem a base da segunda parte do presente 75 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? trabalho. O que se pretende é traçar um paralelo entre a arquitetura, sociedade e ciências da vida moderna, e a arquitetura, sociedade e ciências da era da informação, em que vivemos. O que se procura é, portanto, identificar os pontos de contato, ou quem sabe de afastamento, entre a concepção arquitetônica de nossos dias e aquela de nosso passado mais recente, o moderno. 6.2 Alternativas ao moderno O primeiro momento em que se testou veementemente o projeto moderno foi aquele posterior à II Guerra Mundial4.Frente ao cenário de cidades em parte, ou totalmente arrasadas pela destruição, o que se delineava era um campo aberto à experimentação, à implantação irrestrita da hipótese funcional do raciocínio moderno. Além disso, a II Guerra originaria também a completa reordenação política e econômica internacionais. Conforme observa o arquiteto e filósofo catalão, Ignasi de Solà-Morales, “[...] nem sequer o chamado urbanismo Stalinista, de caráter historicista e classicista, seria então capaz de deter um processo que estava ditado pela racionalidade técnica e pela eficiência produtiva, sem qualquer contraponto no gosto dos usuários ou das leis de mercado”. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.39). Ao mesmo tempo em que testemunharam a eficácia e a força do traçado arquitetônico moderno, esses experimentos, contudo, abriram campo ao O movimento expressionista pode ainda ser indicado como a primeira alternativa ao estilo internacional do movimento moderno mas, na qualidade de ser a ele contemporâneo, não se pode afirmar que o expressionismo tivesse colocado em xeque o modernismo. De qualquer forma, os arquitetos expressionistas reuniram-se em torno da denominada Escola de Amsterdã, na segunda década do século XX, e tiveram forte influência do Manifesto Técnico da Escultura Futurista, publicado76 em 1912 por Boccione. Em síntese, fala-se do “estilo do movimento” em opção ao racionalismo que se instalara, o que faz com que o expressionismo originasse experimentos arquitetônicos resultantes do binômio função e dinâmica. 4 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? questionamento dos resultados e dos desdobramentos do que até então se mostrava apenas enquanto uma hipótese otimista de ordenação do mundo industrial. E, nesse sentido, tais experiências do pós-guerra evidenciariam a dimensão fortemente esquemática do projeto arquitetônico moderno. Ou seja, percebeu-se à época que a supremacia do radicalismo moderno não era tão abrangente e promissora quanto se podia imaginar, o que fez com que, no próprio contexto dos CIAM, ainda que em seus encontros tardios, o moderno passasse a ser colocado sob julgamento. Surge, assim, em 1959, e com a denominação de Team X, um grupo de arquitetos mais atentos à individualidades e variantes do comportamento humano do que à leis universais, defensores, portanto, da maior diversidade de modelos culturais na arquitetura, através do emprego de geometrias mais complexas e de tipologias mais sofisticadas. Entre eles, se destacam Aldo van Eyck, Louis Kahn, José Antonio Coderch e George Candilis. Também em outros locais, como no norte da Europa, o chamado empirismo nórdico de Alvar Aalto e Arne Jacobsen, entre outros, impôs certas objeções à crença no coletivo em favor do indivíduo. Neste sentido, observa Solà-Morales: “[...] atento às condições do lugar, receptivo às tradições locais e da pequena escala, o desenvolvimento empirista teve a virtude de desativar a agressividade da planificação, ainda que implicasse às vezes certo caráter pitoresco”. (SOLÀMORALES, 2002, p. 39). E, assim que transpostos os traumas da grande guerra, potências 77 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? econômicas ascendentes, como os Estados Unidos, o Japão e certas regiões da Europa, se encaminhavam ao chamado período expansionista. A década de sessenta é, portanto, o período de gênese das tecnologias de ponta que se especializariam absurdamente anos posteriores, como a eletrônica, assim como da transferência das atividades produtivas primárias e secundárias aos países de terceiro mundo. É também a época inaugural da grande euforia e consumismo que viriam caracterizar as sociedades avançadas, e até mesmo aquelas em fase de desenvolvimento, ao longo da segunda metade do século XX. Em síntese, o que se delineava eram os contornos de uma nova sociedade de massa. Figura 20 - Projeto Living Pod - Archigram Fonte: http://www. archigram.net/projects_pages/living_ pod.html. Acessado em 26 mar. 2005. Conceitos como distinção entre o individual e o coletivo, mobilidade, fugacidade, poder de decisão do usuário, personalização, mega-estrutura e cápsulas, dentre outros, passaram, então, a integrar novas propostas arquitetônicas, como as concebidas pelos chamados metabolistas japoneses, grupo constituído pelos arquitetos Kenzo Tange, Kisho Kurokawa, Fumihiko Maki e Kiyonori Kikutake; pelo grupo inglês Archigram, nome da revista editada entre 1961 e 1970 por Peter Cook, Dennis Crompton, Warrem Chalk, David Greene, Ron Herron e Michael Webb; além de propostas alternativas, direcionadas à cidades do terceiro mundo. Segundo Solà-Morales, “esses grupos têm em comum a confiança e a exigência de que é possível e necessário mudar tudo”. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.43). Figura 21 - Projeto Cuihicle Archigram Fonte: http://www. archigram.net/projects_pages/ cuishicle_4.html. Acessado em 26 mar. 2005. Embora igualmente partidários da plena confiança nas possibilidades 78 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA oferecidas pelos avanços tecnológicos, DE MORAR: característica UM HARDWARE DE MORAR? que motivara os arquitetos modernos, o que diferencia esses grupos das hipóteses radicais do modernismo é a proposição de um modo produtivo sintonizado com as particularidades da economia e da sociedade de consumo, de forma a criar cidades, e conseqüentemente arquiteturas, mais livres, mais personalizadas, mais atentas à mudanças. Em via oposta, delineavam-se ainda propostas urbanas e arquitetônicas denominadas alternativas. No terceiro mundo, na Ásia, na África e na América Latina, a industrialização tardia e os anos subseqüentes à grande guerra desencadearam processos de urbanização de proporções até então inimagináveis, em que as políticas de moradia, próprias da tradição moderna, se revelaram absolutamente ineficazes. Não havia nem recursos e nem tempo suficiente para oferecer moradia convencional ao enorme contingente de novos cidadãos que desembarcavam nas grandes cidades, desprovidos tanto de ofício quanto de benefícios sociais. A autoconstrução apresentava-se, assim, como alternativa desejável e promissora. Além disso, os movimentos de contestação do modernismo passaram ainda pela suavização dos limites entre histórico e moderno, tal qual proposto pelo arquiteto italiano Aldo Rossi, e, mais recentemente, pelas novas formas de requalificação urbana de que são exemplares as transformações ocorridas na cidade de Barcelona, desde a década de 1990. 79 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Vale destacar que, no urbanismo da Barcelona contemporânea, foi introduzido um importante conceito descrito como metástase urbana, em que operações pontuais, como a requalificação do desenho urbano de determinadas praças, de pontos de encontro ou comerciais, assim como a edificação de arquiteturas simbólicas do poder da metrópole, teriam a capacidade de desencadear mudanças seqüenciais e qualitativas em seu entorno e, em conseqüência, em toda a cidade. Não eram traços estilísticos o que estava em jogo em tais concepções urbanas e arquitetônicas contestatórias do movimento moderno, mas, ao contrário, o que se questionava era o equilíbrio entre os domínios público e Figura 22 - Vila Olímpica - Barcelona Fonte: Foto do Autor. privado, entre áreas livres e edificadas, entre as diversas escalas e significados metropolitanos, como a do pedestre e a do automóvel. Neste sentido, suas linguagens foram caracterizadas pela extrema variedade, desde o conciso minimalismo até o mais barroco interesse pelo ornamento. Em suma, a assimilação do fenômeno metropolitano, ou seja, das enormes concentrações urbanas, foi a condicionante que orientaria cada uma dessas novas concepções de cidades e de arquitetura. Não está mais em jogo, portanto, a cidade tradicional considerada pelo movimento moderno e, assim, também a arquitetura sofreria mudanças radicais. Neste sentido, Solà-Morales observa: Figura 23 - Porto Olímpico e Barceloneta Fonte: Foto do Autor. As metrópoles contemporâneas são descentralizadas, ou seja, carecem de um ponto 80 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? central, histórico, político, e tendem a multiplicar os coágulos nos que se densificam as atividades e, assim, as edificações. Mais do que de arquiteturas, se deveria falar de conglomerados, nos quais cada peça pensada com critérios convencionais de desenho não é senão um elemento de um sistema de prestação de serviços para o tratamento do qual, contudo, não existe nem experiência nem métodos adequados à sua diversidade e mudança contínua. Aeroportos, áreas comerciais, áreas esportivas, parques temáticos, nós de trocas de transportes, áreas industriais, centros de negócio, entre outros, são hoje os novos geradores de atividade urbana em torno dos quais a forma das cidades parece se fazer plástica e maleável. As metáforas orgânicas para descrever essas situações se multiplicam, e estamos assistindo nos últimos anos ao verdadeiro retorno da terminologia e da iconologia organicista para visualizar tais fenômenos. Sentimos a acumulação de acontecimentos sobre nós, mas advertimos uma limitada capacidade de assumi-los e dar-lhes respostas. Nos encontramos diante de feitos que colocam em juízo, para a arquitetura, sua capacidade de fazer uma cidade permanentemente ativa, expansiva e cega em seu desprendimento. A metrópole, cidade do tempo presente, se apresenta como novo obscuro objeto de desejo para a arquitetura e os arquitetos. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.51). 81 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Ou, como explica em contraposição Fábio Duarte: Distintamente do mundo industrial, a cidade contemporânea tem o os processos de geração de conhecimento, de produtividade econômica e de ordens políticas e militares transformados pelo paradigma informacional. O produto da tecnologia informacional é a própria informação, potencialmente sendo trabalhada em escala global e em tempo real. São primordialmente os fluxos financeiros voláteis, negociados através das redes informacionais, e não o tráfego de produtos, que dinamizam a economia global. O trânsito de mercadorias, idéias e pessoas no mundo percorria os trilhos férreos, as auto-estradas, as linhas telegráficas; fazia-se a partir de um projeto político internacional que se fortalecia, com o enrijecimento das fronteiras econômicas nacionais, através da criação de taxas aduaneiras e regulamentação de circulação de valores, para a proteção de uma possível propagação de crises econômicas. Se há figuras simbólicas do espaço moderno na passagem para o século XX são os trilhos, as estradas, as alfândegas. A sociedade de fluxos contemporânea dispensa os trilhos assentados no terreno, rompe as barreiras aduaneiras: uma idéia não viaja de um ponto a outro, ela age em todos ao mesmo tempo. Se há uma figura, ela é a rede. (DUARTE, 2002, p.175). 82 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? 6.3 O espaço coletivo e individual na era das tecnologias telemáticas Diversidade, fluidez, fugacidade e individualidade foram, como vimos no capítulo anterior, conceitos incorporados à visões arquitetônicas que se estabeleceram contemporânea ou posteriormente à tradição moderna. Se, em princípio, tais termos corresponderam a uma nova escala e magnitude dos aglomerados urbanos, o advento da chamada era informacional, a que nos deteremos no presente capítulo, transformaria por completo seus desdobramentos tanto nas formas de criação quanto de representação arquitetônicas. Existem alguns conceitos chaves para o entendimento desta nova era globalizada5 , dentre os quais destacam-se os de interatividade e ciberespaço. Segundo Pierre Lèvy, “o termo interatividade em geral ressalta a participação ativa do beneficiário de uma transação de informação. De fato, seria trivial mostrar que um receptor de informação, a menos que esteja morto, nunca é passivo” (LÈVY, 2000, p.79). Já ciberespaço seria melhor compreendido pela sintética definição de “turbulenta zona de trânsito para signos vetorizados” (LÈVY, 1995, p. 49). Ou seja, no contexto da completa mediação das atividades humanas através de tecnologias computacionais6, em suma, dos softwares e da web, tais conceitos não mais se resumiriam à criação tradicional de edifícios e Se não espacialmente, ao menos economicamente. Trata-se da utilização de computadores pessoais associados ao que se denomina logiciárias, ou seja, “parte de um sistema eletrônico, de um instrumento, de um microcomputador, constituída de informações, algoritmos e procedimentos contidos em seu sistema de memória e armazenamento secundário. É a logicionária que determina todas as operações dos subsistemas do computador, determinando seu modo de operação e o caráter das operações realizadas. Em inglês, software”. (ZUFFO, 1997). O avanço de tais sistemas, assim como dos próprios 5 6 83 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? arquiteturas. A introdução da idéia de redes, de fluxos interconectados e sobrepostos, e dos lugares de sua manifestação, transformaria por completo a arquitetura da passagem para o século XXI. A cidade teorizada e planejada pelos modernos no início do século XX, quando se objetivava a racionalização do ambiente urbano enquanto unidade produtiva, não mais existia. Em seu lugar, a cidade informacional passou a se basear em hierarquias bem mais complexas do que as derivadas de processos tradicionais de produção e distribuição de mercadorias. No momento em que esses bens passam a ser também imateriais, como entretenimento, conectividade, qualidade de vida e forças de poder flexíveis, as cidades se tornam aglomerados descentralizados, sem a clara distinção de um núcleo principal, central, não ao menos em todos os níveis e representatividades da vida urbana. Descentralizados, contudo, não implica em isolados. Ao contrário, a maciça conectividade entre pessoas, objetos, serviços e informação, independentemente do grau de desenvolvimento do país, é justamente o traço fundador da era atual. Seja na Paris contemporânea, descrita pelo geógrafo e historiador Marcel Roncayolo, na Los Angeles de que fala o geógrafo norte-americano Edward Soja (apud Solà-Morales, 2002), ou nos países subdesenvolvidos abordados pela holandesa Saskia Sassen (apud Solà-Morales, 2002), as cidades informacionais não podem mais ser pensadas nos mesmos termos e métodos instaurados pelos arquitetos e planejadores modernos. Não se trata mais, portanto, da componentes, são apenas uma das alterações que os novos avanços nas tecnologias ditas telemáticas, ou seja, “a ciência que trata da manipulação e utilização da informação através do uso combinado de computador e meios de telecomunicação” (FERREIRA, 1999), possibilitam à sociedade contemporânea, também denominada de sociedade da informação, infosociedade, sociedade pós-industrial. 84 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? cidade haussmanniana do século XIX. O que equivale a dizer que a contribuição arquitetônica neste novo contexto deve ser completamente redefinida, inovada, tanto em relação aos parâmetros arquitetônicos clássicos, ou seja, à arquitetura enquanto formas de criação de materiais, quanto aos termos de correspondência entre arquitetura e cidade. É necessário entender, como afirma Solà-Morales, “a gravidade da esquizofrenia produzida entre a cultura arquitetônica e a realidade urbana contemporânea”. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.82). Assim, torna-se urgente indagar o lugar, os instrumentos e capacidades de intervenção da arquitetura na trama da cidade informacional, questão a que, segundo proposto por Solà-Morales, podemos nos aproximar pela análise de certas constantes observadas na arquitetura e cidades atuais. A primeira delas refere-se à idéia de mutação, que já no início do século XX motivara o modelo orgânico-evolucionista do norte-americano Frank Lloyd, assim como do inglês Raymond Unwin, que atuou no Brasil através das chamadas cidades-jardim. Por esse modelo, a relação entre as transformações nas cidades e na arquitetura era pensada de forma similar aos movimentos de crescimento e transformação dos seres vivos. Porém, com os desdobramentos do conceito de mutação na área da biologia, ainda no século XIX, passou-se a considerar as mudanças ocasionais, aleatórias, enquanto mecanismos de ruptura e de alteração brusca de processos hereditários. O paralelo em diversas áreas de conhecimento foi, então, a 85 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? introdução de noções como imprevisibilidade, caos e turbulência, através dos quais as cidades se transformariam não por processos evolutivos, mas, ao contrário, por processos de mutações súbitas, autônomas. Não se chegaria, portanto, do planejamento à edificação, como acreditaram os modernos. Solà-Morales explica: Desenhar a mutação, introduzir-se em sua energia centrífuga, deveria comportar a um tempo, o desenho do espaço público e privado, da mobilidade e dos lugares especializados, do organismo global e dos indivíduos. Tudo aponta para a necessidade de morfologias abertas, interativas, nas quais alguns mínimos critérios sejam as únicas leis que organizem o rápido processo pelo qual se passe de um estágio urbano para outro. Mas, esses critérios não podem incidir unicamente no desenho urbano, à margem da edificação, porque essa distinção perde sentido em um processo mutacional. Somente projetos com mecanismos de auto-regulação, de interação e de reajuste durante o próprio processo de realização podem ter sentido em situações dificilmente imagináveis em outros momentos do passado. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.86). A arquitetura da era informacional tem a ver também com a idéia de fluxos, e, mais uma vez, vale aqui destacarmos a mudança de enfoque ocorrida em relação à concepção moderna. Durante os CIAM, o movimento era circunscrito a uma das quatro grandes funções urbanas, ao lado da moradia, do trabalho e do lazer. Mas, na passagem 86 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? para a era informacional, começaram a ser considerados também outros tipos de deslocamentos, ou seja, os fluxos imateriais. Fluxos estes não como os da autopista ou do telefone, mas enquanto justaposição e encadeamento de movimentos informacionais, pelos quais as cidades e arquitetura passam a ser locais nodais, que dão suporte à variados níveis de conexão entre pessoas, serviços e objetos. Ou seja, parece improvável que a arquitetura, neste contexto diversificado, seja pensada como algo estável, estático e contínuo, mas, ao contrário, que ela seja entendida a partir da urgência de mobilidade por dar suporte ao intercâmbio entre redes distintas. Ligada à idéia de fluxos, a cidade contemporânea é também caracterizada por novas formas de trocas, de mercado. Os bens e serviços passam de necessários à desejáveis, e, assim, fundamentam a chamada sociedade de consumo e da informação. Neste sentido, o filósofo alemão Walter Benjamin (apud Solà-Morales, 2002) antevira os espaços comerciais da era informacional como os novos espaços rituais e fetichistas da nossa sociedade. Ou seja, em todo o mundo, os mecanismos de intercâmbio passam a ser carregados de simbolismo, o que Figuras 24 e 25 - H2O Pavilion – Grupo NOX. entrará em choque com a objetividade, com o racionalismo e funcionalismo defendidos pelo movimento moderno. Ainda segundo Solà-Morales: O princípio funcionalista se torna inconsistente no momento em que as necessidades humanas 87 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? se convertem em absolutamente relativas. [...] É necessário ir ao cinema, ter um jardim próprio em que cultivar as flores de que se gosta, dispor de automóveis e deslocar-se com eles para ter comodidade, ver de perto a Gioconda, a Capela Sistina [...]?(SOLÀ-MORALES, 2002, p.98). São perguntas difíceis de responder, supostamente muito mais no mundo ocidental, mas em vias de sê-lo também, embora com matizes distintas, inclusive nos países em desenvolvimento. Em outras palavras, o funcionalismo parte de hipóteses fixas quando, na realidade, as necessidades a que deve responder são e devem ser tais que dinamizem a produção do mercado, fazendo-o fluido, mutante, efêmero. Quais as propostas contemporâneas para esses locais, esses cenários do ritual de consumo, seja ele de bens, de serviços ou de informação? O que SolàMorales denomina de contenedor, pode ser uma loja comercial, um museu, um estádio, um edifício histórico ou locais de entretenimento, é definido espacialmente pela idéia de independência em relação à realidade. Ou seja, são espaços de representação, artificiais, contrários à explícita transparência, separados fisicamente do entorno de forma a negar-lhe permeabilidade, transitividade, conexão imediata. Por isso os tratamentos de superfícies passaram a ser tão importantes para os arquitetos da era informacional, como veremos em outra parte do presente trabalho. Os contenedores são os cenários de distribuição e consumo da era Figura 26 - London City Hall, Foster and Partners. Fonte: http://www. answers.com/topic/foster-and-partners. Acessado em 1 abr. 2005. 88 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? informacional, os locais da multiplicação das ofertas culturais. Seu princípio é o da representação cultural que deve intermediar os sofisticados mecanismos de distribuição e consumo de nossa sociedade. Outra constante que podemos observar para entender a arquitetura da era informacional refere-se ao surgimento da noção de ambiente enquanto transcendência dos valores físicos, imediatos dos edifícios e de seu entorno. Tal idéia deriva em boa parte da tradição paisagística, pela qual a percepção de valores formais está intrinsecamente associada a valores evocativos, carregados de significados simbólicos e históricos. É o que Solà-Morales define como “forma da ausência”. De forma similar ao que ocorre com os contenedores, tal aproximação se define a partir do isolamento em relação à cidade existente para conferirlhe um outro significado, um espaço de representação. Ou seja, trata-se em boa parte de um movimento cultural de desencanto com a cidade originária do período moderno, o que explica o traço ambíguo, de amor e ódio, de grande parte de grupos artísticos contemporâneos em relação a ela. Referindo-se à expressão francesa terrain-vague, sendo vague tanto no sentido de vazio, livre de atividade, quanto no de vago, sem limites e significados determinados, Solà-Morales escreve: “[...] da mesma forma em que a cultura urbana do século XX desenvolveu os espaços dos parques urbanos como resposta e antídoto à nova cidade industrial, nossa cultura pós-industrial reclama espaços de liberdade, de indefinição e de improdutividade. São eles os 89 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? espaços residuais da cidade”. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.104). Mas, e quanto às habitações? O que mudou na forma de pensar e edificar a moradia dos novos aglomerados urbanos? Existem elementos constantes e característicos da era informacional, identificáveis nas manifestações arquitetônicas atuais desse importante programa humano? Em termos gerais, pode-se dizer que, embora não se compare à magnitude, prioridade e intensidade das formulações modernas sobre o assunto, o tema da habitação humana nas grandes cidades continua sendo, ao menos quantitativamente, o mais importante relacionado à arquitetura e aos arquitetos. Diferentemente do período moderno, em que as formulações teóricas sobre a moradia, como as de Le Corbusier que tratamos na primeira parte do presente trabalho, se baseavam, especialmente no pós-guerra, na responsabilidade direta dos poderes públicos, atualmente houve a diversificação dos eixos que organizam a atividade produtiva das habitações. Por um lado, figura o chamado mercado imobiliário, ou seja, o acesso à casa através da compra, aluguel, leasing ou de qualquer outro mecanismo econômico. Tal procedimento é regulado pelas leis de oferta e da procura, e é caracterizado por uma falsa imagem de possibilidades irrestritas. Ou seja, embora anuncie a opção de escolha frente à incontáveis localizações, tipologias, entre outros, as habitações privadas do mercado imobiliário contemporâneo, seja ela um apartamento, uma casa unifamiliar ou uma unidade condominial, 90 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? apresentam de fato poucas variações essenciais. Por outra parte, embora se verifique certo desinteresse cultural da arquitetura em relação a essa imensa área de produção edificada, fator normalmente anunciado como reação à massiva especulação imobiliária, o desenho da casa persiste como terreno fértil para a experimentação arquitetônica, para a inovação. E, nesse sentido, se destacam quatro programas essenciais: as habitações coletivas especiais, ou seja, casas para situações transitórias, como as criadas para os atletas em competições olímpicas, ou casas para imigrantes, para desabrigados, para quem vive sozinho, entre outros; as habitações com elevada liberdade de criação, ou seja, criadas para o próprio arquiteto, para o artista, para a experimentação neo-vanguardista; a construção alternativa, também tangencial à grande massa da arquitetura residencial comercial, e exemplificável através das iniciativas de auto-construção em contextos sociais e econômicos menos favorecidos; e, por fim, aquele programa vinculado a uma linha de pensamento mais diretamente ligada ao mercado, ou seja, a casa definida a partir da idéia de componentes (móveis, eletrodomésticos, bricolagem, etc.). Sobre esse programa especificamente, Solà-Morales observa: [...] estas novas ofertas surgem como partes decisivas para valores tão importantes como a distribuição dos espaços, a disposição de máquinas que auxiliam o trabalho doméstico ou a definição do caráter simbólico que o usuário quer atribuir a 91 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? sua própria casa como resposta às necessidades de identidade e satisfação estética. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.96). 6.4 Panorama da arquitetura contemporânea Vimos, no capítulo anterior, os principais indícios da transformação das cidades ao longo do século XX através da análise de concepções urbanas que surgiram simultânea e posteriormente ao momento moderno, da cidade industrial. O objetivo foi pesquisar as origens de conceitos, tais como fluxos, Figura 27 - 9o Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza - Metamorph - Exposição Topografia. Fonte: www. vitruvius.com.br. Acessado em: 20 abr. 2005. mutações, representação, mediação, fluidez e individuação, que se tornariam essenciais à arquitetura da era informacional. Da cidade passaremos, então, à arquitetura propriamente dita, de forma a pesquisarmos as principais mudanças em seus métodos de criação e representação em virtude dos conceitos anteriormente citados. Ou seja, se para as cidades a introdução das idéias de mutação e fluidez originou a descrença em sistemas absolutos de planificação, tais como pregados pela vanguarda moderna, para a arquitetura o que mudou foi a compreensão e definição de seus elementos constitutivos. Neste sentido, é sintomático citarmos o tema e textos de apresentação da mais recente mostra de arquitetura da Bienal de Veneza, ocorrida em meados de setembro de 2004. O argumento do curador, Kurt Foster, era de que a arquitetura Figura 28 - 9o Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza - Metamorph - Exposição Transformazione. Fonte: www.vitruvius.com.br. Acessado em: 20 abr. 2005. atravessa momento de profundas transformações, o que o motivou a selecionar 92 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? centenas de projetos e obras concluídas em todos o mundo, representativos de um novo vocabulário projetual. Assim, a mostra denominada Metamorph, era constituída pelas sugestivas seções Transformações, Topografia, Superfícies e Atmosferas. Em síntese, a arquitetura contemporânea deixaria de priorizar a conformação de espaços materiais, conceito que lhe definira desde as formulações vitruvianas de comodidade, firmeza e beleza, elaboradas há vinte e cinco séculos, e passaria, então, a ter que considerar a permanência da fruição desses espaços, além dos eventos a eles vinculados. Ou seja, sob o ponto de vista da tradicional relação espaço/tempo, a arquitetura da era informacional mudaria o foco do primeiro para o segundo domínio. Em outras palavras, o que vivenciamos desde finais do século XX é a passagem da arquitetura firme, estável, sólida, imutável, para uma arquitetura que poderia ser denominada como fluida, líquida. Neste sentido, Solà-Morales assinala: O habitual na arquitetura é, portanto, que sua determinação se faça através de materiais sólidos, o que explica as repetidas considerações materiais e construtivas contidas nos tratados arquitetônicos ocidentais. Arquitetura tem a ver, tradicionalmente, com a idéia de permanência. Mas, o que acontece se tentarmos pensar desde outros extremos desses conceitos tradicionais? É possível pensar uma arquitetura cujo objetivo seja não o de ordenar a dimensão exata, mas o movimento e a duração? (SOLÀ-MORALES, 2002, p.125). Figura 29 - Projeto vencedor do concurso para Plano Urbanístico de Astana, Casaquistão. 1998. Kisho Kurokawa. Fonte: http://home.t-online. de/home/anamande/astana01.jpg. Acessado em 02 out. 2004. 93 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? No início do século XX, o pensador francês Henry Bergson (apud SolàMorales, 2002) tecera considerações sobre os domínios do espaço e do tempo tal qual proposto pela física moderna, ou seja, embora totalmente relacionados, enquanto pólos extremos de uma mesma realidade. Frente à corrente crença de que o espaço constituía o verdadeiro suporte da arquitetura, e que, portanto, o tempo representava a forma de experiência desse espaço, Bergson propôs pioneiramente a necessidade de se considerar como prioritária a experiência da duração, da continuidade e, assim, da diversidade e multiplicidade. Em outros termos, a compreensão da arquitetura não se daria de antemão através da visualização dos limites espaciais constituídos por seu suporte, ou seja, pelos materiais que a conformam. Ao contrário, o que Bergson, e Figura 30 - A TransArquitetura de Marcos NOvak. posteriormente o também filósofo francês Gilles Deleuze (apud Solà-Morales, 2002), irão propor é que a arquitetura, enquanto manifestação da realidade, ou das realidades em que vivemos, seja constituída pelos acontecimentos que se fixam em nossa consciência, abrindo a experiência do espaço e do tempo à acumulação, à multiplicidade e à intuição. Em resumo, deixaria de existir na arquitetura a relação hierárquica entre espaço e tempo, de forma que não só seus suportes materiais determinariam a percepção dos espaços que ela cria, mas também outros fenômenos ligados ao tempo e à idéia de fugacidade. Para exemplificar a questão, vale comparar as diferenças de linguagens 94 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? observadas entre duas manifestações arquitetônicas em voga nos anos sessenta e setenta. São elas o minimalismo e as criações do grupo Fluxus7. Enquanto que para a primeira, fundamentada na filosofia zen, é a busca pela redução e pela essência formal o que está em jogo na arquitetura, para a segunda, um movimento artístico que propôs a interação entre várias formas de manifestação cultural, é, ao contrário, a busca pela acumulação, pela sucessão, pela casualidade o que definiria a finalidade da criação arquitetônica. Para o Fluxus, assim, é o tempo o fio condutor da arquitetura, sendo desnecessários, conseqüentemente, as reduções ou os esquematismos formais. Portanto, a arquitetura líquida poderia ser pensada enquanto a criação de meios e estratégias para manipular os fluxos, a circulação de indivíduos, bens ou de informação, o que se torna mais compreensível ao pensarmos em áreas de troca, como aeroportos, estações marítimas ou ferroviárias. Mas também em outros programas, o que definiria os procedimentos, a essência da arquitetura fluida da era informacional? Embora se trate de uma linguagem ainda em fase de conformação, portanto de difícil definição, algumas chaves se abrem para o entendimento e proposição de seus mecanismos criativos. Uma delas é pensarmos na radical mudança ocorrida nos últimos dez anos em relação à forma de representação arquitetônica. Em vez da tradicional visualização perspectiva, em princípio definida como a tomada de ângulos, de pontos de vista parciais, a experiência da arquitetura, ou seja, do lugar dos 7 Denominação inspirada no pensamento do filósofo pré-socrático Heráclito. Grupo fundado em 1961, principalmente por George Maciunas, tem como participantes arquitetos como Robert Morris, Sol Le Witt, Walter de Maria, etc. (SÒLA-MORALES, 2002, p.130/132) 95 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? fluxos, é necessariamente sinestésica, tem a ver com a interação e a somatória de estímulos. Por isso, como veremos nos próximos capítulos, o extraordinário desenvolvimento das ferramentas de criação e representação arquitetônica através de tecnologias computacionais, adquiriu papel fundamental na constituição do que se denomina arquitetura fluida da era informacional. 6.5 Fundamentação para as novas ferramentas arquitetônicas Priorizar a base material da arquitetura, tal qual as noções vitruvianas que predominaram na cultura ocidental até o século XX, implica pensarmos que suas linguagens, estilos e tipologias derivam essencialmente de formas de manipulação de materiais e técnicas construtivas. Por isso, desde Alberti até Le Corbusier, a prioridade dos arquitetos foi refletir sobre os alcances e possibilidades de aplicação de determinados recursos técnicos, construtivos, pensamento que constitui a própria definição da tão discutida relação entre arquitetura e tecnologia. Porém, é fato que, embora a noção de material seja uma das bases incontestáveis da arquitetura de todos os tempos, essa mesma noção mudou muito desde meados do século XIX, principalmente a partir da busca dos arquitetos modernos em ampliar a transparência das edificações. 96 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Seja através da conexão visual entre o interior e o exterior, do estreitamento de paredes e da eliminação de divisórias internas através da idéia da planta livre, ou seja, da separação ente elementos estruturais e de vedação no sentido de favorecer a fluidez espacial, esses arquitetos modernos teriam, em certo sentido, dado o pontapé inicial no que se pode denominar processo de desmaterialização da arquitetura. Ainda modernos: segundo Solà-Morales, nos pressupostos dos arquitetos [...] estava a semente de uma ambição mais radical: fazer uma arquitetura em que o desenvolvimento tecnológico permitisse passar de espaços fechados por muros, mais ou menos transparentes, ao controle do ambiente através do controle energético. Ou seja, uma arquitetura sem muros necessários para o controle da luz, do clima, do ruído e de toda sorte de radiações. Assim, o projeto moderno deveria consumar sua vontade desmaterializadora. Com adequada iluminação e eletroacústica, um estádio se convertia em uma sala de concertos, um hangar industrial em um teatro. Com circuito interno de televisão poderiam desaparecer os obstáculos, as portas. Com um anúncio luminoso poderiam desaparecer as fachadas dos edifícios. A arquitetura do controle ambiental dissolvia toda materialidade, substituindo-a por efeitos instantaneamente modificáveis. A arquitetura estava nas intenções e nas infra-estruturas tecnológicas necessárias à sua produção. (SOLÀMORALES, 2002, p.40). 97 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Tal noção de imaterialidade, ou seja, da arquitetura que não tem como prioritário o tratamento, a visualização e a ênfase em materiais com suportes físicos no seu sentido tradicional, se desdobraria no entendimento da arquitetura enquanto série de lugares e fenômenos instantâneos. Ou seja, as tecnologias necessárias à sua constituição não mais seriam exclusivamente construtivas, mas, ao contrário, tecnologias informacionais que acondicionam objetos, efeitos e mensagens efêmeras. Assim, podemos introduzir a questão ferramental da arquitetura da era informacional, ou seja, a análise dos desdobramentos dos novos meios computacionais em suas formas de criação e representação, através de alguns elementos básicos por ela manipulados. Embora diversos, tais elementos têm em comum a busca pela desmaterialização de que falamos anteriormente. Ou, conforme os termos do texto de abertura da seção Atmosfera, na mais recente Bienal de Veneza: [...] coisas evasivas e instáveis, fluidas e persuasivas, são de natureza difícil de ser descrita e ainda mais dificilmente de ser definida. Atmosfera é talvez o mais propício termo para ausência de superfícies, para um fenômeno insubstancial e em constante transformação. Como a respiração, a nuvem ou o crepúsculo, a atmosfera está em todos os lugares, embora jamais possa ser compreendida, tocada. As sensibilidades modernas respondem rápida e intuitivamente ao conjunto de mudanças na aparência e caráter das coisas. Há mais considerações para a vida dos edifícios do que mudanças cíclicas do dia e da noite, estações 98 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? do ano ou temperaturas. Iluminação interna e externa; controle da temperatura interna, seu nível de ruídos e sua constante flutuação de atmosfera. Todos os indícios sugerem a vida inconsciente. (KURT FOSTER, 2004). Ou seja, o que está por trás dos intrincados programas computacionais, e de todos os esforços em torno de sua criação, é a necessidade de dar ao arquiteto suportes ferramentais para criar e representar uma arquitetura que seja definida como: espaço informacional, ou seja, aquele capaz de transmitir não exclusivamente dados objetivos mas também ficcionais, simulados; espaço definido e construído pelos efeitos da luz, seja ela natural ou artificial, tal qual as experiências de Toyo Ito ou Jean Nouvel; e espaço da representação, ornamental, em que se destacam os tratamentos de superfície pesquisados pelos arquitetos Herzog & de Meuron. Todas essas noções espaciais têm em comum um novo enfoque de compreensão e de percepção do suporte físico, material, que constitui a arquitetura, de forma a ele incorporar a percepção difusa, entre o visível e o invisível, que caracteriza a sociedade e a cultura contemporâneas. Figura 31 - Estádio para as Olimpíadas de 2008, em Pequim. Herzog & Meuron. Fonte: http://www.ethlife.ethz.ch/ images/stadionpeking-l.jpg. Acessado em 30 mar. 2005. 99 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? 6.6 A aplicação da ferramenta computacional na Arquitetura Embora as formulações conceituais da arquitetura da era informacional não tenham se delineado repentinamente mas, ao contrário, através de várias manifestações culturais e arquitetônicas que surgiram desde o período áureo do movimento moderno no início do século XX, existe um momento instaurador do que viria configurar uma completa revolução na forma de pensar e criar o espaço arquitetônico. Trata-se, em síntese, do momento em que as tecnologias computacionais se tornam a ferramenta necessária ao arquiteto da era informacional para que ele aplique, e explicite, todos aqueles conceitos de que falamos anteriormente, ou seja, a desmaterialização, a somatória de experiências, de informações, de estímulos sensoriais, a autonomia entre as partes, enfim, a individuação da experiência arquitetônica. Antes de esmiuçarmos as características e propriedades de tais tecnologias, propomos a reflexão sobre um dos elementos centrais à atividade do arquiteto, ou seja, a criação e a discussão em torno de imagens. E imagens, aqui, enquanto uma representação do real, ou seja, imagens de representação visual, assim como ditas imagéticas, ou seja, frutos de nossa mente, sem qualquer origem material. Em síntese, tanto para a arquitetura quanto para qualquer outra área 100 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? de criação, é através das imagens que se representam os objetos da criação, ou seja, aquilo que se deseja concretizar. Claro, portanto, que a forma de tal representação, ou seja, que a natureza e magnitude dos processos de formulação de imagens, tem a capacidade de influenciar o entendimento do objeto criado, tanto pelo autor quanto por terceiros. Em outras palavras, no momento mesmo da criação, a visualização do objeto criado pode alterar suas características iniciais, em um processo dinâmico em que interagem a criação, a representação, a compreensão e a intenção. Ou, como explica Ivan Piccoli dos Santos: O arquiteto interage com os elementos que deveriam estruturar o espaço não somente através das representações destes, como é o caso da projetação convencional, mas também através da ação da percepção que o espaço proporciona ao ser moldado e vivenciado. Assim, ao se encontrar dentro do espaço ao mesmo tempo que está sendo projetado, o arquiteto imergindo no espaço, torna-se o agente que correlaciona as sensações às ações necessárias para a modificação de um espaço indicial até obter as condicionantes formais e que antes só apresentava como um todo, dentro do espaço imagético, ou seja, no espaço imaterial do pensamento. (SANTOS, 2000, p.180). Falamos aqui da realidade virtual, ou seja, da simulação do espaço arquitetônico e dos fenômenos a ele ligados, através de um suporte lógico, de 101 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? um programa denominado genericamente de software, que, em síntese, faz interagir a máquina e o usuário. O que procuramos descobrir é porque, embora os computadores já fossem utilizados em escritórios de arquitetura há mais tempo, houve um determinado momento, na virada do século XXI, em que ele provocou uma verdadeira revolução na forma de se projetar e compreender a arquitetura. Assim, seria interessante nos retermos por um instante na questão da linguagem e das hierarquias computacionais. Ou seja, qualquer que seja a finalidade do uso do computador, qualquer que seja a natureza de seu usuário, é necessário o desenvolvimento de uma plataforma de comunicação entre o usuário e a máquina, o software de que falamos há pouco, que é constituído por estruturas sintática e semântica. O software pode interagir com determinadas partes ou com todo o hardware, que são as unidades físicas dos computadores, e as formas de relacionamento entre o usuário e o software podem ainda ser hierarquizadas ou arbitrárias. Em síntese, relacionamento hierarquizado é o que propõem os softwares denominados algorítmicos, ou seja, aqueles baseados em seqüência de ações para se resolver determinado problema, enquanto que relacionamento arbitrário é a base do que viria a se denominar software heurístico ou software paramétrico. A definição de paramétrico deriva da palavra parâmetro, que por sua vez denota todo elemento cuja variação de valor altera a solução de um problema sem alterar-lhe a natureza. 102 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Esta definição transformou completamente a forma de interação entre o arquiteto e o computador, na medida em que opera com a denominada linguagem de objeto orientado. Ou seja, as variáveis, os parâmetros associadas pelo usuário, relacionam-se a determinado objeto que, por sua vez, está relacionado a outros objetos, em infinitas possibilidades de interação imediata entre as partes e o todo. Em síntese, os mais sofisticados softwares paramétricos, de que são exemplos potenciais os sistemas CAD (computer aided design) e CAM (computer aided manufacturing), são capazes de realizar desenhos completamente em terceira dimensão, da qual pode-se extrair as plantas, seções, detalhes ou seleção de materiais e, através da conectividade com outras máquinas, enviá-los diretamente para outros agentes envolvidos na execução do projeto arquitetônico. O arquiteto norte-americano Frank O. Gehry foi um dos pioneiros nesse assunto. Em 1989, o projeto de sua monumental escultura em forma de peixe para as Olimpíadas de Barcelona de 1992, contou com a assistência de um software denominado Catia (Computer AssistedTthree-dimensionalIinteractive Aplication), originalmente desenvolvido para a indústria aeroespacial francesa. Mas, foi o papel decisivo que teve tal software para o projeto não executado do Auditório Disney de Los Angeles, o que revelou a enorme potencialidade do uso do computador para as criações arquitetônicas. Gehry projetara curvas para a sala de concertos através de maquete física e, com o escasso tempo de que dispunha para construir uma maquete 103 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? em escala e revestimento reais e apresentá-la na Bienal de Veneza, na Itália, o arquiteto lançou mão de todas as possibilidades do Catia enquanto software que, ao mesmo tempo em que simula formas tridimensionais, cria também construções geométricas e determina especificações construtivas. Assim, como assinala Fabio Duarte: No projeto do Disney Concert Hall, os computadores do escritório estavam conectados com a indústria de cortes de pedra na Itália. Assim, diretamente dos modelos digitais 3D desenvolvidos no escritório de Gehry, as informações migravam à Itália, sem necessitar sua transposição para pranchas de duas dimensões; os computadores decidiam o melhor modo de cortar as pedras, economizando material” (DUARTE, 1999, p.158). Figura 32 - Disney Concert Hall, Frank Gehry. Fonte: http://www.arcspace. com/architects/gehry/disney2/ Acessado em 01 mar. 2005. O próprio arquiteto é testemunho da passagem da posição cética para a profunda crença no computador enquanto promissora ferramenta de desenho arquitetônico, seja em virtude dos potenciais de simulação e sistematização construtiva de seus softwares, ou então de sua irrestrita potencialidade de interconexão a outros computadores. Gehry, que no início, ainda na fase de concepção do peixe de Barcelona, anunciava sua completa descrença nos computadores enquanto elemento de desenho arquitetônico, passou do escaneamento 3D de maquetes físicas à completa adoção do sistema Catia no projeto que se tornaria um de seus mais importantes, o museu Guggenheim de Figura 33 - Disney Concert Hall, Frank Gehry. Fonte: http://www.arcspace. com/architects/gehry/disney2/ Acessado em 01 mar. 2005. Bilbao, na Espanha. 104 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA Segundo James Steele: A aproximação de Gehry, tal como se manifesta em Bilbao, está muito distante de considerar o moderno como um estilo mas, contudo, nos mostra a essência material do que significa ser moderno. Resultado de aplicar uma tecnologia especializada, da qual o arquiteto é o responsável por introduzir na profissão, (...), o Guggenheim de Bilbao está adiante de seu tempo, como o estava em finais dos anos cinqüenta a espetacular espiral de concreto de Frank Lloyd Wright no Guggenheim nova-iorquino. (STEELE, 2001, p.133). E, continua Steele: A importância da maioridade da aplicação Catia por parte de Gehry e sua equipe de projetos e produção em Bilbao, vai muito além da possibilidade de manipular e documentar as formas complexas dos primeiros desenhos e maquetes da proposta, e habilitar finalmente sua construção. O diretor do escritório de Gehry, Jim Glymph, [...] sustenta que o que difere o Catia de outros sistemas é que ele utiliza equações polinômicas, de modo que, em lugar de definir só a situação dos pontos no espaço, como fazem a maior parte dos sistemas, a aplicação Catia é também capaz de definir com uma equação qualquer superfície, o que implica que se consulta um ponto concreto dessa superfície, com Catia o pode conhecer. (STEELE, 2001, p.129). DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Figura 34 -Aplicação do CATIA no projeto do Guggenheim de Bilbao. Frank Gehry. Fonte: STEELE, J. Architecture y Revoución Digital. p.132. Figura 35 - Guggenheim, Bilbao. Frank Gehry. Fonte:http://www.digischool. nl/ckv1/architectuur/gehri1.htm Acessado em 01 mar. 2005. 105 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Neste sentido, é patente a inflexão ocorrida na obra de Frank Gehry após a apropriação dos meios computacionais em seu método projetual. Assim, quando se comparam seus trabalhos e ensaios anteriores ao uso de tais ferramentas com os atuais, nota-se com clareza um salto qualitativo impressionante, pelo menos no que diz respeito aos aspectos formais que caracterizam a sua produção arquitetônica. Ainda que a experiência de Gehry se relacione a um software específico, a que nem todos os arquitetos ou escritórios de arquitetura têm acesso, a realidade virtual propriamente dita tornou-se, desde finais do século XX, um instrumento de desenho bem familiar à profissão. Uma das hipóteses para checarmos os possíveis caminhos da arquitetura contemporânea é, portanto, compreendermos como se estruturam os mecanismos da realidade virtual, analisarmos seu vocabulário. E, neste sentido, pode-se dizer que existem duas técnicas principais de projetação, que se denominam topologias operativas e proto-arquitetura. Foi o arquiteto catalão Alejandro Zaera, sócio da iraniana Farshid Moussavi no escritório londrino FOA (Foreign Office Architects), quem primeiro sugeriu a denominação topologia operativa. Dentro de um esquema de representação de superfícies através de malha de pontos conhecidos [tanto em termos de suas propriedades materiais quanto de sua localização no espaço], denominada wireframe, o que Zaera propõe é que a obtenção de resultados espaciais deriva da manipulação de tais nós. Portanto, ao se manusear cada um dos nós Figura 36 - Perspectiva Projeto Metz Pompidou Merkezi - FOA. 1992. Fonte: http://www.arkitera.com/proje/ pompidou/foa.htm. Acessado em 25 fev. 2005 106 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? do wireframe, à exemplo de um escultor, determina-se o volume, as formas arquitetônicas. Neste cenário, a geometria euclidiana dá lugar a uma geometria flexível para a constituição da linguagem arquitetônica. Já proto-arquitetura, ou seja, arquitetura de protótipos, é o nome do procedimento que possibilita a experimentação de espaços virtuais através da imersão, através de imagens em escala e resoluções reais, além de permitir alterações no projeto durante o próprio processo de experimentação. Neste sentido, conclui Piccoli dos Santos: Podemos concluir que as ações programáticas, ou seja, as relações que determinam a produção dos espaços arquitetônicos a partir da utilização da Realidade Virtual, refletem uma retomada de uma ideologia que não se desenvolveu até meados da década de noventa, em decorrência da ausência de tecnologias de construção e de representação capazes de traduzir ao mundo das percepções humanas, todas as variáveis contidas nos processos de projetação sugeridos por Gaudi, por Boccione e por Kiesler. [...] Assim, se na arquitetura moderna a forma segue a função, podemos dizer que na Arquitetura por Simulação, quer seja o suporte fios e saquinhos, a malha de ferro das estruturas de concreto, a tela de arame das maquetes de Kiesler, ou a utilização de aparatos digitais, quer se voltem à materialização concreta ou à materialidade experimental da mídia digital, a ação é que acaba por gerar a forma destes novos espaços arquitetônicos. (SANTOS, 2000, p.191). 107 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Em qualquer dos casos, pode-se dizer que da realidade virtual, que transformou a forma de experiência espacial do homem, é o traço distintivo da nova era, telemática, informacional. Ela decorre de um novo estágio evolutivo na história da humanidade, ou seja, através da criação e aperfeiçoamento de uma nova tecnologia, a computacional, o homem tornou possível o convívio e a apreensão dos espaços denominados virtuais. Eles derivam da aplicação de algumas ferramentas tecnológicas principais, que estão agrupadas principalmente no âmbito da computação gráfica, da multimídia8 e hipermídia9. Trata-se de uma nova interface de comunicação, assim como fora, em menor escala e alcances, a criação do telefone e da televisão. Enquanto ferramenta de comunicação, pode-se dizer que a realidade virtual é multidisciplinar, ou seja, diz respeito a diversas áreas, embora seu foco sejam as novas possibilidades de desenvolvimento de ambientes virtuais. A conjugação entre realidade virtual e comunicação deriva de diversos fatores, entre os quais do denominado design de interfaces, que conecta diversos meios de comunicação, da criação de novos canais sensoriais para a circulação da informação, assim como da própria midiatização da comunicação, seja ela entre pessoas ou entre pessoas e máquinas. Se o sistema de comunicação é definido através de funções combinadas em uma interface dominante, assim como por seus canais de transmissão e infra-estrutura organizacional, os elementos de design de mundos virtuais são 8 Multimídia: Combinação de diversos formatos de apresentação de informações, como textos, imagens, sons, vídeos, animações, etc., em um único sistema. (FERREIRA, 1999). 9 Hipermídia: Conjunto de informações apresentadas na forma de textos, gráficos, sons, vídeos e outros tipos de dados, e organizadas segundo o modelo associativo e de remissões, próprio do hipertexto. (FERREIRA, 1999). 108 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? por outro lado a plataforma, os dispositivos interativos, as ferramentas de sistemas logicionários e, fundamentalmente, o próprio usuário. Experiências com realidade virtual parecem dominadas por informações arquitetônicas, embora sejam essencialmente imateriais. Portanto, qual seria a natureza da utilização desse novo meio de comunicação pelos arquitetos? A produção de espaços, simultaneamente habitados e transformáveis, poderia revelar uma nova espacialidade? Por sua vez, a transmissão dessa nova espacialidade configuraria uma forma inédita, particular à nossa era, de intercâmbio de informações? E de que forma esses novos fatores transformariam significativamente nosso modo de habitar? Para boa parcela dos pesquisadores ligados ao estudo da informática, o uso da expressão Realidade Virtual tem se limitado a designações de natureza tecnológica, restringindo o conceito à combinação entre a noção de ambientes eletronicamente simulados e a necessidade de dispositivos auxiliares que lhes tornem acessíveis. Assim, a realidade virtual pode ser definida enquanto simulações eletrônicas de ambientes imateriais, experimentadas através de acessórios especiais, como capacetes e roupas “plugadas”, que permitem ao usuário final interagir em situações tridimensionais realísticas. Trata-se, portanto, de um mundo alternativo, preenchido com imagens geradas por computador que respondem aos movimentos humanos. Melhor seria, talvez, definir a realidade virtual a partir de conceitos 109 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? filosóficos, de forma a estabelecer como foco a experiência humana desses espaços, em detrimento das particularidades tecnológicas do hardware que a origina. Assim, um breve olhar sobre os pioneiros da pesquisa de Realidade Virtual aponta tendências diversas de desenvolvimento. Mas derivam de Jaron Lanier (HEIM,1993, p.116), os cinco conceitos que têm guiado boa parte das pesquisas sobre o assunto. O primeiro deles é o da simulação, que indica a vontade de criar o mundo virtual formalmente semelhante à realidade concreta. A simulação, obviamente, demanda profundo conhecimento dos gráficos de computação e dos sistemas de som tridimensionais, cada vez mais evoluídos, por parte do designer. O segundo conceito é o da interação, que se refere ao grau em que os usuários podem influenciar a forma ou o conteúdo do ambiente midiatizado. Alguns vêem realidade virtual em qualquer representação eletrônica que lhes permita certo grau de interação, como, por exemplo, limpar a lixeira de um computador pessoal. Porém a interação, como a entendemos, pressupõe obrigatoriamente a intervenção, a troca, e o envolvimento ativo do usuário. Isto inclui, por exemplo, a relação possível entre pessoas desconhecidas através do contato pelo telefone ou pela Internet. O terceiro conceito, denominado imersão, permite a ilusão de habitar mundos virtuais, e está relacionado à invenção de dispositivos específicos, como capacetes, sistema de acústica tridimensional e luvas. A imersão completa, Figuras 37, 38, 39 - Imagens imersivas da CAVERNA Digital do Núcleo de Realidade Virtual do LSI (Laboratório de Sistemas Integráveis), vinculado à Escola Politécnica da USP.Desenvolvido por pesquisadores do LSIEPUSP, esse sistema é conhecido nos Estados Unidos como Cave (Cave Automatic Virtual Environment) e na Europa como Cube. 110 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? conhecida como imersão de corpo inteiro, demanda procedimentos mais complexos, como a criação de um espaço em torno do corpo, uma cápsula, e sensores capazes de reproduzir sensações de toque, peso, calor etc. A chamada “Telepresença”, o quarto conceito, pressupõe que estar presente em um lugar, de forma remota, significa também estar nele virtualmente. O atendimento médico à distância e a teleconferência são bons exemplos de aplicação deste conceito. E o quinto conceito refere-se à possibilidade de comunicações em redes, através da conectividade entre diferentes mundos virtuais, em que pressupõese, portanto, a presença de ao menos duas pessoas. Auxiliada pelas técnicas de realidade virtual, tal forma comunicação permite também aos usuários compartilharem eventos e abstrações, que não necessariamente utilizam como suporte palavras ou referências reais. Mas afinal, o que podemos considerar como virtual? Pierre Lévy, importante pesquisador das alterações sociais causadas pelo impacto das novas tecnologias, lembra que a palavra virtual vem o latim vitualis, de virtus, que significa força, poder. O que reforça a idéia de que o virtual não se contrapõe ao real, como o falso ou imaginário, mas, como acredita Lévy, “é, ao contrário, uma maneira de ser fecundo e poderoso, que enriquece os processos de criação, abre novos futuros, cava poços de sentidos sob a planura da presença física imediata” (LEVY, 1995). O processo que visa efetivar a presença à distância, ou telepresença, 111 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? que é o conceito mais transcende dos referidos anteriormente, sob o ponto de vista perceptivo, inicia-se com a ligação de órgãos sensoriais do usuário aos dispositivos de saída do computador. Estes dispositivos são controlados e guiados para um ou mais computadores com o fim de gerar uma simulação convincente à visão, ao tato e à audição, de um outro ambiente, o virtual. Neste sentido, efetivar a presença à distancia é mais uma destinação que um objetivo. Uma destinação a um lugar psicológico, a uma locação virtual. Já segundo Anja Pratschke (2002), os sistemas de realidade virtual podem ser classificados em quatro tipos, dependendo dos níveis de telepresença que eles viabilizem: Sistema de janela; a tela do computador provê uma janela ou um portal para um mundo virtual tridimensional e interativo. Computadores pessoais são freqüentemente usados, e os usuários equipam-se, às vezes, de óculos 3D para obter efeitos estereoscópios. Sistema de Espelho; os usuários olham para uma tela de projeção e vêem uma imagem deles mesmos movendo-se em um mundo virtual. Usa-se um equipamento de vídeo para gravar as imagens do corpo do usuário. Um computador sobrepõe esta imagem em um fundo gráfico. A imagem deles mesmos espelha, na tela, seus movimentos concretos, fato que explica o nome Sistema de Espelho. Sistema auxiliado por Veículo; os usuários entram no que viria a ser um veículo (por exemplo, tanque, avião, cápsula espacial, etc) e opera controles que simulam movimento no mundo virtual. O mundo 112 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? é freqüentemente projetado em telas. Os veículos podem incluir plataformas móveis que ajudam a simular movimento físico. Sistema de “Caverna”; os usuários entram em uma sala ou cômodo onde encontram-se rodeados por grandes telas nas quais projeta-se uma cena virtual quase contínua. Óculos 3D são usados, às vezes, para potencializar o sentido de espaços. Classificando-se os sistemas em função da relação que mantêm com a realidade concreta, podemos citar: Sistemas Virtuais Imersivos; Os usuários equipamse com dispositivos que imergem completamente um certo número de sentidos em estímulos gerados por computador. Os capacetes estereoscópios constituem um elemento central deste sistema. Sistemas de realidade Aumentada; os usuários equipam-se de capacetes que sobrepõe objetos virtuais tridimensionais a cenas do mundo concreto. (PRATSCHKE, 2002, p.62). Do ponto de vista técnico, o desenvolvimento de um sistema de realidade virtual é uma tarefa complexa que envolve, basicamente, um suporte de comunicação em rede, a criação de ambientes virtuais, a consideração da possível atuação dos usuários e a criação de personagens gerados por computador. Seus elementos essenciais são os dispositivos de entrada, tais como visuais, auriculares, táteis, nasais e orais, que, através da cinemática, traduzem os movimentos corpóreos para a linguagem computacional, e, por outro lado, o software de realidade virtual que cria ou recria o ambiente virtual. 113 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? A aplicação final do conceito de realidade virtual pode servir a um meio de comunicação de múltiplos interesses, como uma combinação de televisão e telefone, por exemplo, envolvendo suavemente nossos sentidos. Em livros técnicos encontra-se a descrição de realidade virtual como a etapa seguinte e lógica dentro da história dos meios de comunicação. Com isso, parece que todas as aplicações no campo da realidade virtual podem ser consideradas como eventos comunicativos, já que envolvem a comunicação entre usuário e computador, assim como entre os próprios usuários. Enfim, nota-se que a contribuição da arquitetura é fundamental à criação dos mundos virtuais, sobretudo porque se faz necessária a criação de um simulacro dos ambientes tangíveis. Por outra análise, é possível também que a realidade virtual amplie a compreensão tradicional da arquitetura, configurando novas formas de diálogo entre a atividade profissional e o mundo concreto. Conseqüentemente, é provável que se estabeleçam novos paradigmas referentes aos modos de se habitar com o auxilio da realidade virtual, tais quais já propõem alguns arquitetos, como Marcos Novak e o grupo NOX. Figura 40 - A TransArquitetura de Marcos NOvak. 114 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? 6.7 O programa habitacional contemporâneo sob a perspectiva das novas ferramentas arquitetônicas digitais Vimos, nos capítulos anteriores, que os enormes avanços das ferramentas computacionais arquitetônicas criaram a completa transformação das referências espaciais em voga há vinte e cinco séculos na arquitetura, ou seja, desencadearam o questionamento ou relativização de parâmetros como a ação da gravidade e a linha do horizonte, em detrimento de uma nova linguagem espacial. Assim, a realidade virtual, que viria substituir a experiência real do espaço edificado, seria estruturada por referências exclusivamente matemáticas, imagéticas e simbólicas. Neste cenário, as formas de interação entre usuário e máquina adquiriram papel fundamental, e até transformador, das demandas humanas e profissionais pela configuração de novos espaços e, em função do aumento irrestrito da quantidade e diversidade de informações disponíveis, inclusive visuais, tornouse urgente pensar na qualidade de tais interfaces10. Retomando, por outro lado, a especialização do programa habitacional contemporâneo tal qual proposta por Ignasi de Solà-Morales, análise citada anteriormente neste trabalho, definem-se dois grupos programáticos principais. O primeiro deles pertence ao chamado mercado imobiliário, de que não 10 Conforme Pierre Lèvy, “em termos de interfaces há duas linhas paralelas de pesquisas e desenvolvimento em andamento. Uma delas visa a imersão através dos cinco sentidos em mundos virtuais cada vez mais realistas (...). Nesta abordagem das interfaces, o humano é convidado a passar para o outro plano da tela e a interagir de forma sensório-motora com modelos digitais. Em outra direção de pesquisa, chamada de realidade ampliada, nosso ambiente físico natural é coalhado de sensores, câmeras, projetores de vídeo, módulos115 inteligentes, que se comunicam e estão conectados a nosso serviço. Não estamos mais nos relacionando com um computador por meio de uma interface, e sim executamos diversas tarefas em um ambi , 2000: 38) ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? trataremos aqui, que, embora responsável por boa parte dos projetos atuais no Brasil e exterior, se caracteriza pela grande homogeneidade das soluções arquitetônicas. Em outro extremo, definem-se programas em que há maior grau de interação entre a arquitetura e o usuário final, como as moradias para grupos específicos, tais como terceira idade, temporários e imigrantes; assim como as habitações de conotação artística, a exemplo das tão divulgadas casas de arquiteto; ou ainda as moradias em que os componentes, tais como equipamentos e peças de mobiliário, se tornam elementos articuladores do programa e determinantes das características espaciais. É importante salientar que, ao analisarmos a produção arquitetônica residencial de Le Corbusier, especialmente as de sua primeira fase, como as chamadas casas brancas, percebe-se que seu público alvo se restringia, neste caso, a uma elite intelectual ou a uma burguesia emergente que se tentava se afirmar como classe de um estamento velado no início do século XX. Abordaremos esse segundo grupo programático, tal qual abordamos na primeira parte do presente trabalho, quando tratamos do ideário moderno representado pela produção de Le Corbusier, sobretudo porque ele é definido por um aspecto central na arquitetura e na própria sociedade da era informacional, ou seja, pela possibilidade de customização, de individualização. Assim, com exceção aos edifícios ditos tecnológicos ou inteligentes, é nesse grupo que se pode testar ao extremo as possibilidades de simulação virtual, conexão pela 116 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? web e interatividade do computador com o usuário. Também ele corresponde à nova atmosfera tecnológica e social que emergiu com a era informacional. Ou seja, passaram a integrar os projetos arquitetônicos, tanto pelos arquitetos quanto por seus interlocutores, a sensibilidade em relação a novos materiais, a diferentes padrões e organizações sociais, processos relacionados por sua vez à irrestrita conectividade através de computadores. Assim, pode-se dizer que a característica principal da sociedade contemporânea é sua enorme habilidade em manipular informações, o que diferencia a relação entre os diversos agentes do espaço arquitetônico. Ou seja, assim como os programas paramétricos de criação tridimensional e de visualização virtual se tornaram poderosas ferramentas de trabalho para os arquitetos, representaram também a ampliação da capacidade de compreensão e de interação dos arquitetos e seus interlocutores com os espaços projetados. Complementarmente a este fato, também as estruturas sociais e familiares sofreram enormes transformações, tornaram-se mais complexas na passagem para a era atual. De forma genérica, os casamentos são mais tardios do que há alguns anos atrás, as famílias são menores, com menos filhos, sem contar na grande parcela de habitações voltadas a solteiros, situações que Figura 41- Torre BATC - HAMZAH y YEANG. Fonte: STEELE, J. Architectura y Revolución digital. pág. 41. demandam soluções diversas de habitação. Assim, solicitações mais complexas e diversificadas de moradia exigem, conseqüentemente, um novo tipo de ação, de atitude e projeto arquitetônicos. 117 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Em sua tese de mestrado no Massachusetts Institute of Technology, em 2000, Gregory Demchak afirma que: [...] a casa pós-industrial será um sistema de partes que existem dentro de um sistema de relacionamentos e de um complexo arranjo de variáveis que são conectados através de dados matriciais. A casa será o produto de uma linguagem coerente: a expressão de relações arquitetônicas e de variáveis definidas pelo usuário [...]. O desafio, então é propor um vocabulário arquitetônico para a construção de casas e, a partir desse vocabulário, discernir um grupo de variáveis que possibilitem ao cliente rapidamente customizar o seu meioambiente. (DEMCHAK, 2000, p.72). Vale se ater por um instante à definição de dados matriciais acima citada. Segundo Fábio Duarte, as matrizes são: [...] entendidas como a organização de paradigmas de várias disciplinas que formam uma predisposição para a apreensão, compreensão e construção do mundo. Elas não são o seu modelo, a sua fôrma: são suas matrizes, que o constituem e por ele são constituídos. (DUARTE, 2002, p.14). Assim, o que Demchak aborda é a natureza e a diversidade dos elementos integrantes da habitação virtual, ou seja aquela construída hipoteticamente através dos softwares computacionais, de forma a questionar-se acerca de seus elementos constitutivos e características de interação com o usuário. E 118 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? vale lembrar que, o meio-ambiente virtual, modelado pelo computador, passou a ser organizado por um cenário de regras lógicas que definem os limites dos ajustes possíveis. Neste sentido, existem três elementos-chaves envolvidos no projeto de residências com assistência virtual. São eles: a plataforma de comunicação com o usuário; os modelos paramétricos, que podem ser editados; e um sistema pré-fabricado de construção que comporte alterações customizadas ainda na linha de montagem. O primeiro deles é o terreno em que são lançadas as solicitações, os desejos e as preferências do usuário, através de uma interface computacional que priorize a interação intuitiva. Ou seja, embora os softwares de modelagem 3D e de realidade virtual derivem de um complexo sistema de conhecimento matemático e arquitetônico, a única informação que o cliente deverá dominar é o procedimento e a possibilidade de adicionar dados, de ajustar rápida e facilmente as variáveis dos projetos ainda na fase de concepção. Neste sentido, o que Demchak enfatiza é que: [...] a interface corresponderá ao lado do cliente no processo de desenho e o lugar aonde as variáveis serão ajustadas e opções exploradas. O programa de recepção usará essas definições do cliente para definir vocabulários espaciais e estéticos que, então, irão gerar modelos paramétricos [...]. Da definição das alturas e larguras de um ambiente, à especificação dos equipamentos do escritório, as ferramentas de desenho atuarão como o mediador 119 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? primário de informações relativas ao desenho e à construção de novas casas [...]. A classe emergente de consumidores instruídos tem mais controle sobre as formas como a tecnologia é manipulada e desenhada. (DEMCHAK, 2000, p.72). Assim, inserida em uma sociedade em que tudo é passível de consumo, também a casa, poderá ser, à exemplo de um carro ou da alta-costura, comercializada como um símbolo de estilo de vida e, portanto, deverá ter a habilidade de ser receptiva à várias conotações pessoais e estilísticas. Ou seja, em substituição ao raciocínio extremamente funcionalista, a sociedade informacional enfatiza o estilo pessoal, a imagem e a qualidade de vida. Figura 42 - Maison T, Jakob + Macfarlane, La Garenne-Colombes, França. Fonte: KRAUEL, J. Casas Inovação e Design. pág. 167. Ou seja, as possibilidades da nova era demandariam ferramentas de desenho baseadas na interatividade, na web, o que ampliaria o foco da atividade do arquiteto à exponenciação do conceito de prestação de serviços de arquitetura, no caso, à procura por uma nova casa. No que diz respeito ao sistema construtivo e, portanto, às categorias ou gramáticas formais que constituem os softwares de desenho arquitetônico, Demchak identifica dois grupos principais. Ou seja, de um lado figuram os elementos classificáveis entre internos ou externos e, de outro, aqueles que podem ser considerados suportes [a estrutura ou o envoltório] ou elementos destacáveis, periféricos [aqueles que podem ser modificados]. Em qualquer dos casos, o desafio imposto ao projeto da casa contemporânea Figura 43 - Maison T, Jakob + Macfarlane, La Garenne-Colombes, França. Fonte: KRAUEL, J. Casas Inovação e Design. pág.167. 120 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? é tornar os elementos industriais, fabricados em série, receptivos à solicitações customizadas, individuais. A diferença estaria na conexão entre setores da indústria, como acabamentos e tipos de cortes de peças, por exemplo, diretamente ao software de desenho através da web. Ou seja, a interação do arquiteto e do usuário dos serviços de arquitetura com esses elementos materiais, industrializados, se daria ainda na etapa de desenho, durante o processo de modelagem 3D. Através do que se denomina gramática da forma, em síntese de um sistema de elementos que a definem e que é baseado em parâmetros arquitetônicos, ambientais, tecnológicos, funcionais, estéticos e econômicos, a arquitetura poderia influenciar e determinar variações no próprio processo de fabricação de elementos construtivos. Em síntese, o desafio produtivo da arquitetura residencial da era informacional seria explorar ao máximo as potencialidades da pré-fabricação customizada, o que corresponde não somente a uma nova forma de construção, mas também da própria utilização dessas moradias. Embora a customização não seja um atributo inerente ao processo industrial, deve sê-lo em um sistema integrado ao contexto pós-industrial, no qual se delinearia, portanto, o que podemos denominar de customização em massa. Com isso, podemos traçar uma analogia, mesmo que superficial, entre as idéias Corbusierianas de casas em série, construídas com elementos estandardizados, tal qual a concepção produtiva da era da máquina, e a discussão proposta por Demchak. Com ele, configuram-se novos condicionantes 121 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? que complementam os anseios do velho mestre. Através de softwares, de sistemas integrados e interconectados, ou seja, de suportes tecnológicos, seria otimizada, portanto, a relação entre arquiteto, cliente e produção, sem, contudo, ocasionar a pasteurização produtiva da arquitetura. Trata-se da demanda por flexibilidade que, conforme vimos em capítulos anteriores, identifica a passagem da sociedade e arquitetura modernas para as atividades da era informacional. Ou seja, as novas casas teriam o desafio de favorecer contínuas transformações, quer pela ação dos seus moradores atuais ou pelas demandas de futuros habitantes. A hipótese apontada por Demchak em sua tese refere-se aos já citados conceitos de suporte e elementos periféricos enquanto sistemas materiais, concretos, das habitações. Em sua análise: Toda casa será dotada de um envelope estrutural dentro do qual módulos internos conectáveis serão organizados para criar quartos, depósitos, divisões, escritórios e passagens de serviço. Todas as paredes internas serão ao mesmo tempo adaptáveis e flexíveis; aonde adaptabilidade implica a habilidade de transformação espacial em conjunto com mudanças fundamentais no modo de vida, e flexibilidade implica a habilidade dos objetos de serem movidos ou acomodados a novas demandas. Um exemplo de uso flexível pode ser a conversão de um local de trabalho em um ambiente de entretenimento, através da rotação de uma 122 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? unidade modular [...]. Ao distinguirmos a casa entre suportes e unidades destacáveis nós estamos radicalmente nos afastando das práticas convencionais de construção de moradias. (DEMCHAK, 2000. p.89). Assim, as unidades destacáveis de que trata Demchak referem-se à unidades modulares independentes, plantas-tipo de pequenas dimensões que são intercambiáveis e interconectáveis no interior da residência. Em outro sentido, a flexibilidade pode incidir também na aparência das superfícies que envolvem, interna e externamente as construções, o que nos leva novamente à questão da interação entre os programas paramétricos de desenho e a produção industrial customizada. Está idéia coloca em cheque fundamentalmente um dos marcos do ideário Corbusieriano, preconizado na célebre frase “A forma segue a função”. Ou seja, com os conceitos de fluidez e flexibilidade aliados aos mecanismos de realidade virtual, pode-se chegar a conclusão de que, através do domínio de tais elementos e conceitos, “ A forma segue o momento” e “A função segue o instante ou a necessidade”. De qualquer forma, ainda que tais possibilidades e processos dependam de um nível de desenvolvimento e aparato tecnológico compatíveis com sua realização, o que se propõe aqui não é discutirmos as polaridades, distribuição ou exemplos específicos de países ou de cidades, ou ainda de setores delas, 123 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? habilitados a adotarem integralmente as novas possibilidades tecnológicas da arquitetura da era informacional. O objetivo, ao contrário, é identificar nas hipóteses da moradia contemporânea, elementos relacionados às mudanças tecnológicas, sociais e culturais de que tratamos nas páginas anteriores do presente trabalho. Ou seja, identificar em conceitos atuais de habitação, os lugares e elementos da individuação, das atmosferas recriadas, da interação e superposição de fenômenos informacionais, sejam eles de entretenimento, funcionais ou de conforto ambiental. Em suma, a intenção é traçarmos o paralelo entre as novas possibilidades arquitetônicas para o programa habitacional e a nova sensibilidade do homem da era informacional. E, neste sentido, vale ressaltarmos que, tanto na visão do norte-americano Gregory Demchak, quanto na classificação programática do catalão Ignasi de Solà-Morales, assim como em manifestações esparsas de outros arquitetos em todo o mundo, é a potencial capacidade de customização, de flexibilidade, de individuação da moradia, o traço distintivo da era atual. Ainda que as formas de efetivação de tal programa sejam ainda, em boa parte, apenas possibilidades almejadas por todos os agentes envolvidos no processo de criação e execução arquitetônicas. Não podemos deixar de lado também, as possibilidades de automação do Figura 44 - Eric Owen Moss: Umbrella, Los Angeles. Fonte: STEELE, J. Arquitectura y Revolución Digital, p. 184. ambiente habitacional, sobretudo se imaginarmos que segundo muitos 124 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? o teletrabalho substituirá os escritórios e pode se tornar a saída para os congestionamentos das grandes cidades contemporâneas. A renomada e quase totalizadora dos mercados de softwares no mundo a Microsoft trabalha com um projeto chamado Microsoft Home, também conhecida como Casa Bill Gates, o que nada mais é do que um laboratório ou um protótipo de uma casa digital. Segundo o jornalista Ethevaldo Siqueira que visitou o protótipo idealizado pela Microsoft podemos ter um panorama das possibilidades já factíveis para o emprego da telemática no cotidiano residencial e muito possivelmente influenciando na concepção do projeto pelo arquiteto que deverá atentar para tais possibilidades: Logo à entrada, um painel com os meios de identificação biométrica do visitante, que utilizaremos na próxima década: leitor de íris, monitor sensível ao toque dos dedos, decodificador de impressões digitais e o mais sofisticado desses recursos, o sistema de reconhecimento de fisionomia. Um sistema de TV, embutido na parede, quase invisível, com câmera e microfones, possibilita o diálogo e a identificação, mostrando a imagem do visitante. (...) Tudo na casa se conecta e tem seu comando central numa plataforma Windows, com rede híbrida, isto é, associando uma infra-estrutura de cabo com redes sem fio (Wi-Fi e Bluetooth). Essa plataforma é, na realidade, um exemplo perfeito de tecnologia de computação embutida. Com ela, os equipamentos passam a ter capacidade de processamento, armazenamento de dados e comunicação. E tudo funciona como se fosse uma 125 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? rede de computadores, com software distribuído por todos os cômodos e equipamentos. Além da computação embutida que controla as principais funções gerais da casa – como comunicação, segurança e monitoramento de energia e temperatura – há computadores espalhados em toda a residência, com destaque para os Tablet PCs, ou seja, notebooks com comunicação sem fio, iguais aos que nossos senadores acabam de ganhar. Em cada cômodo há câmeras e microfones, embora a privacidade possa ser sempre garantida por que está no aposento. Para acionar ou controlar cada equipamento ou sistema, basta falar, dando-lhe a ordem. Por ser mais fácil de usar, o comando de voz é o sistema de controle mais adotado, embora não seja o único na casa da Microsoft. A comunicação integra todos os meios da forma mais completa possível, interconectando telefone, computador, Internet e televisão. Assim, a família pode atender a chamadas telefônicas – internas, externas ou celulares – em qualquer terminal, esteja onde estiver, no quarto na sala, na cozinha, no banheiro, na sala de lazer ou no escritório. E cada morador pode fazer consultas a sistemas de controle interno ou comunicar-se com o mundo em busca da informação de que precisa, via internet de banda larga. A sala de lazer é uma festa. Nas paredes, as maiores telas de cristal líquido e plasma. Tudo que está nos computadores pode ser acessado e projetado em qualquer dessas telas. Se o dono gosta de artes plásticas ou quer enriquecer ainda mais o visual, pode transformar qualquer sala numa 126 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? galeria virtual de esculturas e quadros favoritos. E, com a holografia, terá estátuas virtuais em cada canto da sala. Num grande servidor, especial para o entretenimento, estão armazenadas todas as músicas, filmes, shows vídeos, fotos e programas de televisão da família, que podem igualmente ser acessado e exibidos em qualquer dos telões e displays da casa. (SIQUEIRA, 2004, p.47/48). Através desta descrição simplista e sem grandes especificações técnicas tanto do ponto de vista informacional como arquitetural, pode-se imaginar as incríveis possibilidades que se abrirão nos próximos anos para o emprego das tecnologias telemáticas nos projetos arquitetônicos residenciais. No entanto através das ilustrações e registros fotográficos deste ambicioso projeto da Microsoft notamos que não há um rompimento brutal com o programa ou a decoração da chamada Microsoft Home, segundo Siqueira “... há uma transição suave entre o tradicional e o futurista”. (SIQUEIRA, 2004, p.50). Talvez por uma resistência aos costumes antigos absorvidos dos períodos Renascentistas pelos projetos de vanguarda moderna e que só mesmo as próximas gerações poderão responder se conseguirão se desvencilhar de muitos hábitos antigos contidos no cerne das sociedades ao longo do tempo. Na era medieval o homem se abrigou para se proteger das intempéries e dos ataque de animais, hoje continuamos usando a casa como abrigo e proteção das intempéries e da violência que assola, especialmente as grandes cidades, com o chamado teletrabalho, e com os problemas explícitos no ambiente externo e hostil das metrópoles, o homem 127 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? parece se voltar cada vez mais para talvez sua primeira invenção: a casa. Com isso, devemos cada vez mais discutir as novas possibilidades para o programa habitacional contemporâneo, de modo tal qual os modernos, traduzir através do primeiro estabelecimento humano, a mudança social que ocorre em nossos dias de forma implacável e voraz, onde o tempo parece ter se despregado do espaço e parafraseando o mestre Le Corbusier parece que a sociedade se encontra como em sua época de inquietação: “Ébria de velocidade e de movimento, dir-se-ia que a sociedade toda se pôs, inconscientemente, a girar em torno de si própria; tal qual avião em parafuso dentro de uma bruma cada vez mais opaca”. (CORBUSIER, 1946, p.10). Figura 45 - Ilustração Liquid Architecture. Fonte: http://www. liquidarchitecture.info/. Acessado em 18 set. 2004. 128 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? 7. Conclusão: (A nova máquina de morar, um hardware de morar?) 129 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? O presente trabalho é estruturado em duas partes distintas. Na primeira delas, abordam-se as cidades, a sociedade, a cultura, e a tecnologia da era industrial, de modo a entender em quais bases se estruturou a arquitetura para o novo homem que emergia das conquistas tecnológicas nos campos da mecânica e, posteriormente, da eletromecânica, exemplificada especialmente pelas obras residenciais da primeira fase do provavelmente mais transcendente dos arquitetos do século XX: Le Corbusier. Na segunda, através dos mesmos elementos, o cenário delineado foi o da chamada era informacional, ou pós-industrial, de que as tão alardeadas habilidades de computadores e seus programas de desenho tornaram-se elementos simbólicos na produção arquitetônica e nas demais áreas da vida humana. A questão que se propôs enfrentar foi investigar a herança do projeto arquitetônico modernista na atuação profissional de nossos dias, ou seja, através de um programa específico, no caso o habitacional, indagar se o estilo e as conquistas modernas estariam fadados à superação ou ao completo triunfo. Isso porque, como vimos na primeira parte, o argumento da vanguarda moderna foi basicamente de natureza tecnológica. Ou seja, através da manipulação criativa das novas possibilidades de construção industrial, propôsse um desenho universal para ordenar e projetar as edificações, assim como a cidade e seus elementos constitutivos. Por tal razão, para exemplificar tais argumentas de uma geração, 130 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? discorreu-se sobre o arquiteto franco-suíço Le Corbusier como objeto da primeira etapa do trabalho, ou seja, ateve-se a seus projetos e proposições teóricas, especialmente do chamado momento purista de seu ideário, por ser ele e, sobretudo nesta fase, um dos mais atuantes e partidários arquitetos do estilo internacional moderno. E o recorte habitacional, ou seja, a análise do que Le Corbusier viria a denominar como a Máquina de Morar, foi estabelecido mediante os termos do recorte que se teceria e na segunda etapa do trabalho. Assim, na medida em que se compara universalismo e individuação, esta última enquanto qualidade fundamental da era informacional em que vivemos, nada mais apropriado do que testar um programa extremo, ou seja, o da habitação. Isso porque, em última análise, ainda que em moradias coletivas, multifamiliares, a casa é, em princípio, o lugar do indivíduo. E o que se percebe, e que se pode concluir, é que embora aparentemente divergentes, a relação entre os dois momentos estudados é paradoxal, pois a arquitetura das eras industrial e pós-industrial guardam semelhanças conceituais e lingüísticas de extrema relevância. Ou seja, embora seus discursos sejam antagônicos, conforme exemplificam as dicotomias universal versus individual, estável versus fugas, material versus desmaterialização, entre outros, a arquitetura contemporânea se apoderou de determinadas conquistas e conceitos originários do modernismo, dando a elas novas possibilidades através das inéditas conquistas ferramentais nos processos 131 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? criativos arquitetônicos. Abordou-se aqui, portanto, o quão relevante são as idéias de transparência, desmaterialização, continuidade visual, entre outras, para a linguagem tecnológica da arquitetura contemporânea. Neste sentido, Demchak observa ainda que: [...] muitas das intenções da arquitetura moderna ainda estão na ordem do dia, embora tenha emergido uma nova atmosfera social e tecnológica. Sensibilidade a novos materiais, a padrões sociais diversificados, e à nova tecnologia foram fundamentais à linguagem modernista, e também o serão para este novo contexto de conectividade através dos computadores e do novo papel que a residência pós-industrial deverá desempenhar. (DEMCHAK, 2000, p.90). Em certo sentido, portanto, as principais mudanças da era informacional para a arquitetura referem-se à evolução e desdobramentos das tecnologias, no caso computacionais, mas, seja na habitação ou em qualquer outro programa, o que prevalece é a idéia de liberdade projetual instaurada pelo movimento moderno. Liberdade esta que, para os modernos, significou independência entre estrutura e fechamentos, de dimensionamento dos espaços, através do Modulor de Le Corbusier, de luminosidade e interação visual entre as partes da edificação, assim como conectividade entre o interior e o exterior do ambiente 132 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? construído. Os modernos reconheceram a liberdade inerente ao projeto tirando vantagem de novos sistemas estruturais. Para os pós-industriais ou informacionais, persiste a demanda por liberdade, embora o conceito tenha se estendido para binômios que extrapolam a nossa realidade imediata. Ou seja, o conceito de liberdade da era informacional arquitetônica tem a ver com os domínios da realidade virtual e do ciberespaço. Portanto, as relações entre o moderno e a arquitetura hodierna são ao mesmo tempo de ruptura e continuidade, de especialização, dependendo do ponto de vista que se adote. Com relação às casas propriamente ditas, consideramos que seja relevante transcrever a seguinte observação de Gregory Demchak, que reforça nossa conclusão do presente trabalho: A casa pós-industrial irá incorporar conceitos de arquitetura aberta tal qual pregados pelos modernistas, mas entenderão essa idéia através do desenvolvimento de sistemas adaptáveis e flexíveis de componentes internos. Em contraste com o Estilo Internacional, que favoreceu as delgadas divisões entre espaços, suas propostas pedem por unidades densas, ou seja, dos módulos conectáveis, ainda que em princípio elas sejam contrárias à arquitetura aberta. A extensão dos princípios modernos é também estabelecida em comparação ao sistema produtivo adotado, ou seja, o uso do processo industrial não é só considerado adequado, mas também essencial tanto ao projeto 133 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? moderno quanto ao pós-industrial. (DEMCHAK, 2000, p.90). O movimento moderno, e especialmente Le Corbusier, só são reconhecidamente revolucionários pela aproximação das disciplinas arquitetônica, sociológica e artística com a técnica e as ciências exatas, através da apropriação e do domínio das técnicas construtivas e das possibilidades tecnológicas oriundas do desenvolvimento industrial. Assim, aliando os fatores econômicos e sociais, a vanguarda moderna de certa forma reinventou as formas de construir, de habitar e de se compreender o espaço, o que correspondeu à nova postura epistemológica do homem novo, emergente da era da máquina. No entanto, principalmente Corbusier não se desvinculou do legado clássico, na medida em que “transcodificou” o vocabulário formal e sintático das proporções e formas dos espaços tradicionais através, basicamente, da apropriação dos conceitos da geometria euclidiana e dos ensinamentos clássicos. Com isso, a associação da ruptura social transformada em estilo com a apropriação e o resgate do legado clássico e renascentista, fez da arquitetura de vanguarda moderna uma revolução que ao mesmo tempo rompeu com conceitos pré-estabelecidos e enraizados, como os excessos formais do barroco e outros estilos vigentes à época, mas também resgatou os conceitos clássicos da arquitetura, de forma a estabelecer, no caso de Le Corbusier, os chamados traçados regularizadores e posteriormente o conceito do Modulor, baseados na 134 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? proporção áurea e na geometria euclidiana. O mesmo pode-se dizer da arquitetura contemporânea, que enfrenta uma mudança na sociedade em seus diversos modos de expressão e inter-relação cultural, social e econômica, especialmente pelos avanços nos campos da telemática, eletrônica e de outros disciplinas. A arquitetura de nossa época vive em momento de reflexão, sobretudo acerca de sua condição epistemológica. Há perguntas éticas, científicas, teológicas sendo formuladas e, na medida em que a ciência avança com a ajuda dos computadores e demais possibilidades telemáticas, novas questões se estabelecem, como no campo da reprodução humana, da genética e da biotecnologia. O homem parece estar em um momento de reflexão, principalmente por haver uma dissociação no novo panorama mundial com o tradicional binômio espaço-tempo, sobretudo em virtude dos novos meios de comunicação. Como visto anteriormente no presente trabalho, abrem-se, no campo da arquitetura, novas perspectivas através dos avanços tecnológicos, da realidade virtual e dos novos programas computacionais, cada vez mais potentes e de simples interface. O horizonte da arquitetura hodierna é, portanto, marcado pela possibilidade de criação de formas inusitadas, pela conectividade através da rede mundial de computadores, assim como pelas possíveis interações da criação com os novos meios de execução e de interface com o cliente. Porém, alguns conceitos do ideário moderno devem ser tratados como 135 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? um legado importante, de modo a tentar transformá-los para uma nova realidade. Quando Le Corbusier afirmava que a casa deveria ser uma “Máquina de Morar”, ele estava clamando por um aprimoramento das noções de se conceber a arquitetura residencial, de modo a se apropriar das novas tecnologias construtivas, das novas possibilidades representacionais, e principalmente integrada aos novos costumes da sociedade que florescia da máquina. A arquitetura moderna só atingiu seu estado revolucionário na medida em que soube se apropriar das novas tecnologias de sua época, aproximandose, assim, das ciências exatas ao mesmo tempo em que impunha um estilo novo, representativo por sua vez de uma nova sociedade, de uma nova forma de ver o mundo. O que houve, contudo, principalmente após a década de 70, é que ao mesmo tempo em que se configurava uma nova forma de concepção arquitetônica, os projetos permaneciam baseados em métodos construtivos arcaicos, dispendiosos, ou seja, defasados em relação às tecnologias imateriais que lhes possibilitariam o arrojo formal e construtivo através de conceitos como geometria topológica dentre outros aqui apresentados.. Contudo, será que devemos procurar uma nova arquitetura para nossa sociedade, já que, conforme Le Corbusier: “Quando uma época possui a planta de uma habitação, é sua evolução social que se fixou e existe um equilíbrio” (CORBUSIER, 1923). Ou seja, os conceitos do ideário moderno não conquistariam sua plenitude a partir dos vorazes progressos tecnológicos hodiernos? Em 136 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? conseqüência, a casa contemporânea, parafraseando a célebre afirmação do velho mestre, não deveria apenas se transformar em um “HARDWARE DE MORAR”? 137 ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? 8. Bibliografia ARANTES, Otília. O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo: Editora da USP, 2000. ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1992. ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo: Editora Ática, 2001. BANHAM, R. Teoria e projeto na primeira era da máquina. São Paulo: Perspectiva, 2003. BENEVOLO, Leonardo. A história da cidade. São Paulo: Perspectiva, 1976. BENEVOLO, Leonardo. As origens da urbanística moderna. Lisboa: Editora Presença, 1994. BOESIGER, Willy. Le Corbusier. 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