ERNANI MAIA
A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie para obtenção
parcial do título de Mestre em Arquitetura e
Urbanismo.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Egídio Alonso
São Paulo
2005
ERNANI MAIA
A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie para obtenção
parcial do título de Mestre em Arquitetura e
Urbanismo.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Egídio Alonso
Aprovada em Maio 2005
Banca Examinadora
Prof. Dr Luís Antônio Jorge
Prof. Dr. Francisco Spadoni
Prof. Dr. Carlos Egídico Alonso
Maia, Ernani.
Orientador: Carlos Egídio Alonso
A nova Máquina de Morar: Um hardware de morar?, Universidade
Presbiteriana Mackenzie. São Paulo: 2005 - 142p.
1.Arquitetura. 2. Le Corbusier 3.Máquina de Morar 4. Arquitetura
Contemporânea. 5. Arquitetura e Realidade Virual 6.Telemática 7.
Avanços Tecnológicos
A vida é aquilo que acontece
enquanto pensamos em outra coisa.
O. Wilde
AGRADECIMENTOS
Em memória de meu Pai grande incentivador deste trabalho e responsável por todas as minhas
vitórias no passado e ambições para o futuro.
À Érika Eiko, minha mulher, pelo amor e compreensão.
Ao meu orientador Prof. Dr. Carlos Alonso pela competência em me deixar progredir sem
imposições autoritárias e idiossincráticas e pelos cafés durante as orientações.
À Arquiteta Evelise Grunow e Arquiteta Tatiane Santa Rosa pelas contribuições multidisciplinares.
Além de todos aqueles os quais importunei obrigando-os a ouvir meus devaneios sobre
arquitetura e telemática.
RESUMO
O presente trabalho tem como tema a comparação entre dois importantes
períodos históricos da arquitetura, que são a era industrial e a era informacional,
em que vivemos. Cronologicamente, trata-se, em primeiro lugar, do advento da
industrialização entre os séculos XIX e XX e, posteriormente, do advento da era
telemática na virada do século XXI, em que pesam o enorme desenvolvimento
e especialização do uso integrado de tecnologias computacionais e de sistemas
de comunicação mundiais.
A forma de comparação é ao mesmo tempo contextual e pontual. Pontual
porque configura-se a partir do recorte da produção de um dos mais importantes
entusiastas da arquitetura moderna da era industrial, o arquiteto franco-suíço
Le Corbusier, e, com relação ao período atual, a partir da análise das novas
ferramentas criativas e operacionais à disposição do exercício da arquitetura.
E contextual porque tais análises parciais são fundamentadas em conceitos
urbanos, tecnológicos, culturais, econômicos e sociais de cada um de seus
períodos.
O termo de tal comparação será, então, delineado a partir do recorte da
arquitetura residencial desses dois períodos e universos pontuais, ou seja,
a partir da análise das formulações de Le Corbusier sobre os chamados
Estabelecimentos Humanos, em que ocupa papel fundamental o programa da
moradia moderna, e sobre o sistema de proporção espacial que denominou
Modulor. No caso da arquitetura contemporânea, o recorte será estabelecido
a partir da análise das novas possibilidades da arquitetura da casa tendo em
vista conceitos como realidade virtual, simulação, entre outros, disponíveis à
atuação dos arquitetos da era informacional.
1.Arquitetura. 2. Le Corbusier 3.Máquina de Morar 4. Arquitetura
Contemporânea. 5. Arquitetura e Realidade Virual 6.Telemática 7. Avanços
Tecnológicos
ABSTRACT
The following work compares two imporant historic phases of Architecture. The
Industrial Age and the Age of Information, which we’re living on.
Firstly it’s analysed the industrialization period, between the XIX and XX
centuries and after, The Telematic Age, at the turn of the XXI century, when
the use of computer tecnologies and international systems communications
prevails.
The comparision between these two phases is, at the same time, contextual
and specific. The last mentioned, because it configures a panoramic view of
one of the most important characters of Modern Architecture at Industrial Age,
the architect Le Corbusier.
About the present situation, this work analyses the new creative and operational
tools to the exercise of Architecture. It’s a contextual work because its’ partials
analysis are based in urban, tecnological, cultural, economical and social
concepts of each historical period.
Residential Architecture is the common theme between the analysis of these
two periods.The term of such comparison will be, then, delineated from the
cutting of the residential architecture concerning those two periods and punctual
universes, in other words, from the analysis of Le Corbusier formulations on
the so referred to Human Establishments, in which the program of modern
home assumes a key role, and on the system of space proportion that he called
Modulor. In case of contemporary architecture, the cutting will be set forth
from the analysis of the new possibilities concerning home architecture having
in view concepts, such as virtual reality, simulation, among others, available for
the performance of information-era-related architects.
LISTA DE FIGURAS
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01.................17
02.................18
03.................21
04.................22
05.................26
06.................27
07.................27
08.................29
09.................32
10.................39
11.................40
12.................42
13.................44
14.................45
15.................46
16.................56
17.................68
18.................68
19.................68
20.................78
21.................78
22.................80
23.................80
24.................87
25.................87
26.................88
27.................92
28.................92
Figura
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Figura
Figura
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Figura
29.................93
30.................94
31.................99
32...............104
33...............104
34...............105
35...............105
36...............106
37...............110
38...............110
39...............110
40...............114
41...............117
42...............120
43...............120
44...............124
45...............128
SUMÁRIO
1.
2.
3.
4.
5.
Resumo.
Abstract.
Sumário.
Introdução
PARTE I – Le Corbusier e a Máquina de Morar.
5.1. A condição “pré-moderna” e o florecimento
de um espírito novo.
5.2. A casa moderna.
5.3. Le Corbusier e a evolução do pensamento
purista.
5.4. A importância do legado Corbusieriano.
5.5. Le Corbusier e a máquina de morar.
6. PARTE II – Novas possibilidades na produção arquitetônica
residencial.
6.1. Introdução: As novas possibilidades e
condições na prática da arquitetura
6.2. Alternativas ao Moderno
6.3. O espaço coletivo e individual na era das
tecnologias telemáticas
6.4. Panorama da Arquitetura Contemporânea
6.5. Fundamentação para as novas ferramentas
arquitetônicas
6.6 – A aplicação da ferramenta computacional
na Arquitetura
6.7 – O programa habitacional contemporâneo
sob a perspectiva das novas ferramentas
arquitetônicas digitais
7. Conclusão.
8. Bibliografia.
.................06
.................07
.................09
.................10
.................16
.................18
.................34
.................37
.................48
.................62
.................71
.................72
.................76
.................83
.................92
.................96
................100
................115
................129
................138
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
4. Introdução
10
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
As mudanças que os avanços das tecnologias telemáticas1 propiciam à
produção e representação arquitetônica e, conseqüentemente,
à sociedade
contemporânea, derivam, entre outros fatores, da utilização dos computadores
pessoais associados a logicionárias2 cada vez mais avançadas e competentes.
Assim, seja pelo advento da globalização econômica, pela maciça
utilização mundial de computadores pessoais, mediados por redes virtuais, ou
ainda pela inexorável afirmação do capitalismo em todo o mundo, o fato é que
a sociedade hoje não mais pode ser considerada igual à sociedade de apenas
dez anos atrás.
Tais mudanças sociais são comparáveis às alterações ocorridas após
a revolução
industrial, assim como ao advento invenção da imprensa, dos
métodos modernos de anestesias, das técnicas de arado, entre tantos outros
acontecimentos que marcaram a evolução da humanidade. Ou seja, são
mudanças substancias, originárias do desenvolvimento de novas ferramentas
tecnológicas que servem ao relacionamento entre o homem e seu meio.
No entanto, a velocidade das transformações atuais é fato inédito na história da
humanidade, de forma que a justaposição, no tempo e no espaço, da inebriante
tecnologia da informação que a fundamenta, particularize o momento atual no
quadro evolutivo humano.
Neste sentido, o conceito de evolução está vinculado à descoberta e
invenção de novas ferramentas, desde as mais sofisticadas até as mais
rudimentares, dentre as quais pode-se destacar as conquistas tecnológicas do
1
Telemática: Ciência que trat
Logicionaria: Parte de Um sistema eletrônico, de um instrumento, de um microcomputador ou computador, constituída de informações, algoritimos e procedimentos contidos em
seu sistema de memória e armazenamento secundário. É a logicionaria que determina a operação de todos os subsistemas de computador, de terminando seu modo de operação e o
caráter das operações realizadas. Em inglês Software.(ZUFFO, 1997).
2
11
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DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
homem moderno.
Independente da natureza de tais descobertas e ferramentas, o que se
pode afirmar é que sua apropriação pela sociedade no decorrer da história altera
profundamente não só os modelos comportamentais, mas também as próprias
instituições sociais. A tecnologia afeta, assim, também as condições sociais,
políticas e psicológicas de toda a sociedade em que está inserida, sobretudo
porque é freqüentemente definida por forças sócio-econômicas dominantes.
Assim, como outras ferramentas do passado, as novas ferramentas da
evolução telemática parecem condicionar a forma como entendemos o mundo
e o lugar e que nele ocupamos. Trata-se, portanto, de algo que extrapola a
finalidade específica de um meio pragmático, o que equivale a dizer que os
computadores têm superado a materialidade de uma peça inerte de metal e
plástico.
Como expressa James Steele (2001), “[...] o computador é um componente
virtual da reconstrução real e simbólica do mundo que temos entre as mãos.
Também é a manifestação mais potente da habilidade do homem no uso da
tecnologia para dominar a natureza”.
Tal reflexão é interessante, na medida em que explicita a íntima relação
entre tecnologia e comportamentos sociais, e, conseqüentemente o enorme
potencial da primeira em ocasionar consideráveis mudanças no meio ambiente
e nos modos de apropriação do território.
Ou seja, as tecnologias parecem exercer, historicamente, uma influência
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UM
HARDWARE DE MORAR?
dicotômica sobre a humanidade, já que, embora tragam implícita a idéia
evolutiva, de grandes benefícios sobretudo aos meios produtivos, por outro lado
são também importantes instrumentos simbólicos. O que equivale a dizer que
a tecnologia pode transformar o desenvolvimento psicológico, tanto individual
quanto coletivo, e, assim, servir a conotações autoritárias.
De qualquer forma, a revolução industrial é sem dúvida o ponto de
partida da configuração epistemológica em que vivemos, ou seja, e conforme
veremos adiante, desde a invenção das máquinas industriais e da descoberta
de diversas fontes de energia, o mundo mudou consideravelmente. E isto inclui
também as transformações dos meios de produção, da ciência, dos costumes
e modos de espacialização no território, assim como as novas compreensões
espaciais e temporais, entre outros.
Em relação ao binômio espaço / tempo, que fundamenta a discussão
arquitetônica em qualquer fase da civilização, a revolução industrial foi
caracterizada por uma percepção cíclica, mecânica e racional, tanto com relação
à percepção do espaço como do tempo.
Assim, com a evolução das navegações e os avanços anteriores dos
métodos cartográficos, o espaço passou a ser percebido por uma configuração
bem definida, da mesma forma em que o tempo também sofreria influências da
medição cronometrada dos relógios mecânicos, que passaram a ser instalados
em todas as partes das cidades industriais.
Também o advento das novas formas de transporte alteraria a relação
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DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
entre o espaço e o tempo na era industrial, já que as noções de velocidade e
distâncias conquistariam novas conotações. E entende-se aqui velocidade não
só de deslocamentos físicos, mas também do fluxo tecnológico e científico, cada
vez mais dinâmico desde o advento industrial, sobretudo a partir do momento
em que a ele se conjugaram os meios telemáticos e as redes mundiais de
interatividade.
Estas iminentes alterações, originadas especialmente pela utilização
dos novos avanços informacionais, parecem clamar também por uma nova
abordagem no contexto arquitetônico. Ou seja, embora o debate sociológico se
mostre vanguardista, a exemplo de interessantes publicações de Paul Virilio,
Pierre Lévy ou Manuel Castells, no campo da arquitetura, contudo, a realidade
é outra.
Talvez o temor de certa associação “futurologista” ou a excessiva
preocupação historicista de muitas universidades brasileiras, sejam fatores
contrários à discussão mais ampla do tema. Nos Estados Unidos, por exemplo,
conforme cita James Steele (2002), aspirantes aos cursos de arquitetura e design
procuram as universidades que tenham em seu quadro docente professores que
se destacam na discussão acerca das interfaces entre tecnologia da informação
e arquitetura, entre tecnologia da informação e design, a exemplo do professor
Willian Mitchell, do Massachussets Institut Tecnology, que é considerado um
dos precursores da discussão da arquitetura e do urbanismo no novo panorama
tecnológico contemporâneo.
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DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
A proposta de Mitchell é decifrar este novo fenômeno através da análise
de suas possíveis conseqüências no panorama atual da arquitetura. Como
destaca Steele (2001, p.08): “[...] um grande debate épico que acompanhou
a revolução industrial, eloqüentemente conduzido por Jonh Ruskin, William
Morris e Thomas Carlyle, mudou a direção da arquitetura do século XX”.
Pode-se dizer que os fenômenos sociais, econômicos e produtivos da
revolução industrial embasaram a atuação de Le Corbusier, que
participou
como agente modificador do que denominava estabelecimentos humanos
também através de sua obra teórica.
Assim, é lícito afirmar que Le Corbusier participou na plenitude de uma
revolução velada e abstrata, talvez ainda em voga, que surgiu em meados dos
século XVIII e ficou conhecida como revolução industrial, de forma a configurar
paradigmas arquitetônicos para as gerações que o sucederiam.
A proposta do presente trabalho é, então, traçar um panorama contextual
da atuação de Le Corbusier, de forma a compreender seus conceitos de moradia
ideal ao novo homem industrial. E, de forma análoga, analisar as tecnologias
telemáticas e de realidade virtual que caracterizam nossa era, com o intuito
de indagar se a moradia contemporânea necessita de um novo modelo ou, ao
contrário, se a máquina de morar de Corbusier ainda pode ser considerada um
paradigma válido.
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HARDWARE DE MORAR?
5. Parte I - Le Corbusier e a Máquina de Morar
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DE MORAR:
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HARDWARE DE MORAR?
Figura 01 - Casa Dom-ino.
Fonte:http://www.ruf.rice.
edu/ Acessado em: 14 abr.
2004.
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DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
5.1 A condição “pré-moderna” e o florescimento de um espírito novo.
O
desenvolvimento
da
moderna
vanguarda
arquitetônica
e,
conseqüentemente, das casas modernas, pode ser compreendido como a
extensão lógica da revolução industrial. As mudanças ocorridas nas cidades,
nos transportes, nas utilidades e infra-estrutura públicas, assim como na
economia fomentada pelas indústrias, contribuíram, entre outros aspectos,
para o surgimento das habitações modernas.
Com a revolução industrial, a humanidade passou a transferir para as
máquinas o enfadonho trabalho cotidiano, apesar de gerar com isto outras
rotinas não menos desgastantes, isto afetou definitivamente as relações sociais
através não só dos objetos que invadiram a vida diária, ou das transformações
na hierarquia familiar e social. As evoluções técnicas passaram a atingir a
humanidade com intensidade infinitamente superior a sua evolução até então,
pois até as pequenas coisas do cotidiano passaram por sensíveis processos de
transformação.
O homem viu sua força e capacidade produtiva multiplicadas pelos motores
e por outros adventos industriais, isto levou a humanidade a um repentino salto
Figura 02 - Ilustração de operários
ingleses. Revolução Industrial.
Fonte: http://www.learnhistory.
org.uk/cpp/1750gal.htm.
Acessado em: 20 jun. 2004.
na qualidade de vida, nas formas de captar e produzir riquezas, embora, por
outro lado, tenha-se também ampliado as misérias, mazelas e desigualdades
sociais.
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HARDWARE DE MORAR?
A partir da emergência da máquina como fator produtivo, a sociedade foi
levada a mudanças irreversíveis em todos os sentidos da vida cotidiana, evento
que, obviamente, não ocorreu repentinamente. Ao contrário, o processo de
transformação foi ritmado pela própria velocidade dos avanços tecnológicos,
assim como pela enorme ampliação dos meios de comunicação disponíveis.
Quando se refere à primeira geração da sociedade industrial, Le Corbusier
(1946, p.10) destaca: “[...] ébria de velocidade e de movimento, dir-se-ia que
a sociedade toda se pôs, inconscientemente, a girar em torno de si própria; tal
qual avião em parafuso dentro de uma bruma cada vez mais opaca.”
Foi neste período que se desenvolveram as teorias econômicas que
protagonizam grandes embates ainda em nossos dias, as quais, em certa medida,
teriam desencadeado guerras e revoluções durante os anos subseqüentes
à sua formulação. De um lado, figurava, então, o capitalismo emergente da
própria condição de trocas, lucros e desenvolvimentos, devidamente amparado,
nesse sentido, pela produtividade espantosa das recém-criadas máquinas.
Elas corresponderam, tanto fisicamente, ou seja em sua estrutura, quanto
idealmente, à concepção mecânica da produção em série, e, de certa forma, à
idéia de lucros exorbitantes, incondicionais.
Por outro lado, falava-se do conceito de igualdade social, da racionalização
do capital e, em suma, da intenção de solucionar o já latente problema da
classe operária, cada vez mais pobre e fragilizada por péssima qualidade de
vida.
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UM
HARDWARE DE MORAR?
Contudo, ainda que surgido como reação às precárias condições urbanas
enfrentadas por boa parte da sociedade industrial, este conceito revelou-se
um ideal totalizador, sobretudo no sentido de ter justificado a idéia de Estados
centralizadores, anti-democráticos. Configurou-se portanto, na era industrial
mecanicista, um embate ideológico entre a igualdade de meios, sobretudo os
produtivos, e as polaridades econômicas e sociais.
Já no campo das ciências, tanto as econômicas, biológicas quanto as
sociais, a partir da segunda metade do século XVIII se delineou um período de
ampla efervescência, em muito decorrente da própria racionalidade iluminista.
Ao descartar dogmas e crenças religiosas como limites científicos, o Iluminismo
incentivou a busca pelo desconhecido, o que desencadeou não só uma nova
postura científica, mas também social e cultural, o que, de fato, transformaria
todos os paradigmas sociais vigentes até então.
Neste sentido, Eric Hobsbawm (1977, p.41), importante historiador
contemporâneo, escreve:
[...] de fato, o “iluminismo”, a convicção
no progresso do conhecimento humano, na
racionalidade, na riqueza e no controle sobre a
natureza – de que estava profundamente imbuído
o século XVIII – derivou sua força primordialmente
do evidente progresso da produção, do comércio
e da racionalidade econômica e científica que se
acreditava estar associada a ambos.
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HARDWARE DE MORAR?
É importante notar que a revolução industrial, apesar de constantemente
vinculada ao advento das máquinas e das energias, parece também originária
de um contexto delineado já desde os séculos XV e XVI, em que figuram cenários
como a organização dos exércitos e das marinhas, a preparação das grandes
expedições coloniais, os progressos nas tecnologias da mineração e metalurgia
e, entre outros, os novos e amplos alcances empresariais. Todos esses fatores
representaram terreno fértil para as raízes da sociedade industrial, o que pode
levar, ao início do século XVI, o ponto de partida da revolução industrial.
Porém, é recorrente em livros didáticos a classificação da revolução
industrial em pelo menos três fases: a primeira delas, caracterizada pela
criação de novas tecnologias de produção [como a máquina a vapor, a
fiandeira, o processo Cort em metalurgia e, de forma mais geral, a substituição
das ferramentas manuais pelas máquinas], teria começado pouco antes dos
últimos trinta anos do século XVIII. A segunda, observada aproximadamente
100 anos depois desse período, teria se destacado pelo desenvolvimento da
eletricidade, do motor de combustão interna, pela criação de produtos químicos
com forte base científica, da eficiente fundição do aço e, ainda, pelo início
do desenvolvimento das tecnologias de comunicação [como o telégrafo e a
Figura 03 - Casas de operários
em New Castle, Inglaterra.
Data
1976.
Fonte:
www.
conservationtech.com//xMILLTOWNS/RL-Photographs4x5/England-4x5s.htm. Acessado
em 28 mar. 2005.
invenção do telefone]. E a terceira, resultante dos enormes avanços dessas
tecnologias de comunicação, é conhecida como a revolução informacional.
Trata-se, em suma, da era da informática, da microeletrônica, da telemática
que será o objeto da segunda parte desse trabalho.
21
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DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Cada período trouxe consigo uma vastidão de novos produtos que, entre
outros fatores, propiciaram a mudança na polarização das riquezas e do poder
internacionais, assumindo posições de destaque aqueles países e elites que
se tornaram aptos a comandar o novo sistema produtivo, em decorrência da
rápida e abrangente apropriação dos avanços tecnológicos. Aliás, esta parece
mesmo uma constante na história da humanidade, ou seja, civilizações que
conseguem dominar novas tecnologias, sobretudo, aquelas voltadas à atividades
de dominação, como a guerra, tornam-se supremacias militares, econômicas e
intelectuais.
A complexidade e desdobramentos de cada fase do período industrial
testemunham a relevância da era mecanicista na história da humanidade.
Domenico de Masi, combativo sociólogo italiano de nossos tempos, quando
aborda o período industrial, afirma enfaticamente:
[...] com o nascimento da indústria iniciou-se um
dos maiores empreendimentos da espécie humana,
comparável à invenção da agricultura há dez mil
anos, à criação da democracia, à invenção do
direito internacional e do império global na Roma
de Augusto. (MASI, 2000, p. 126).
Embora tamanho êxito, sabe-se também que a revolução industrial
fez muitas vítimas, como exemplificam as condições desumanas de trabalho
vivenciadas nas fábricas e cidades pela própria classe operária. Segundo
Figura 04 - Uma roda de fiar podia
fazer às vezes de mil fusos. Em
cima uma cena tradicional de casa
de campo. Em baixo, (maquinas
de fiar algodão 1835).
Hobsbawm (1977), aos pobres que se encontravam à margem da sociedade
22
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
burguesa restavam apenas três possibilidades: lutar para se tornarem burgueses,
aceitar as condições de opressão, ou se rebelar. Esta terceira possibilidade foi
seguida por muitos, desencadeando revoluções, como a ocorrida na França em
1789, a chamada Revolução Francesa, e várias outras revoluções posteriores,
culminando com a Revolução Russa, de 1917.
Porém, ainda que as origens da revolução industrial remontem, na
análise dos historiadores, à segunda metade do século XVIII, o ideário de Le
Corbusier, e das discussões desse trabalho sobre a moradia moderna, só se
estabeleceu cerca de duzentos anos depois, ou seja, na primeira metade do
século XX. Isso porque foi neste período, a partir de 1900, que efetivamente se
desenvolveram as habitações modernas, em muito vinculadas às possibilidades
de conforto originadas pelos avanços nos sistemas de aquecimento para
regiões de clima temperado, de refrigeração, de combate ao fogo, assim como
pelo desenvolvimento de novos materiais, como o concreto e o aço, além dos
fundamentais sistemas de saneamento básico.
Neste sentido, como vimos a revolução industrial foi gradualmente e
definitivamente mudando a sociedade e sua maneira de habitar e de se apropriar
do território, transformando conseqüentemente o curso dos acontecimentos
históricos, primeiro na Inglaterra e posteriormente em quase todo o mundo.
Segundo Leonardo Benevolo (1976) os principais fatores que influenciaram
as alterações ocorridas nas cidades foram o aumento da população devido
à diminuição do índice de mortalidade, o aumento significativo dos bens e
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
contemporânea. Segundo Benevolo (1994, p.21 e 22):
A associação entre a indústria e a cidade
depressa se consolidou: nas novas cidades, que
se desenvolveram fora do sistema tradicional
dos burgos e freguesias, empresários e operários
podiam fugir aos vínculos anacrônicos do sistema
corporativo isabelino; os empresários contavam com
uma reserva de mão-de-obra sempre abundante
e substituível, enquanto os operários, se bem
que cruelmente explorados pelos novos patrões,
encontravam na cidade uma maior variedade de
escolha e uma possibilidade de reconhecer-se
como classe, de se organizarem em defesa dos
interesses comuns.
A situação das cidades pode ser considerada como termômetro do grau
de alterações que a sociedade sofreu nos anos contemporâneos à revolução
industrial. E foi no contexto de uma sociedade já familiarizada com as irreversíveis
condições sociais e urbanas de seu tempo, que floresceram as teorias de Le
Corbusier, balizadoras do presente trabalho.
Para ilustrar o desenvolvimento desta sociedade, e das alterações em seu
modo de espacializar-se no território, Le Corbusier (1943, p. 9/10) escreveu:
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
dos serviços produzidos pela agricultura e pelas indústrias [sobretudo em
virtude do progresso tecnológico e do desenvolvimento econômico], e, por
fim, a redistribuição dos habitantes no território em conseqüência do aumento
demográfico e das transformações nos meios de produção [os operários , antes
campesinos, se tornaram assalariados e se transferiram para junto das fábricas,
formando aglomerações que originaram novas cidades], o desenvolvimento
dos meios de comunicação, que permitiu o salto da mobilidade tanto humana
quanto de produtos. A velocidade destas transformações afetou o equilíbrio
mundial, principalmente por sempre desencadearem outras transformações,
cada vez mais profundas e mais rápidas.
É patente a aceleração do ritmo evolutivo da humanidade. Antes de 1850,
nenhuma sociedade poderia ser descrita como predominantemente urbana e,
em 1900, apenas a Grã Bretanha atingia essa condição. Passados pouco mais de
100 anos, atualmente podemos considerar que todas as nações industriais são
altamente urbanizadas e, em todo o mundo, indiscriminadamente, o processo
de urbanização continua acelerado.
Neste sentido, Leonardo Benevolo observa a respeito das cidades da era
industrial: “[...] um edifício não mais poderia ser considerado uma edificação
estável, incorporada ao terreno, mas um manufaturado provisório, que poderia
ser substituído mais tarde por outro manufaturado.” (BENEVOLO, 1976,
p.552).
É provável então, que esta seja a origem da sensação de efemeridade
25
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Uma ruptura brutal, única nos anais da história,
acaba de destacar, em três quartos de século,
toda a vida social do Ocidente de seu quadro
relativamente tradicional e notavelmente concorde
com a geografia. A causa desta ruptura – seu
explosivo – é a intervenção súbita, em uma vida
ritmada, até então, pelo andar do cavalo, da
velocidade na produção e no transporte das pessoas
e das coisas. Com seu aparecimento as grandes
cidades explodem ou se congestionam, o campo se
despovoa, as províncias são violadas no âmago de
sua intimidade. Os dois estabelecimentos humanos
tradicionais (a cidade e a aldeia) atravessam,
então, uma crise terrível. Nossas cidades crescem
sem forma, indefinidamente. A cidade, organismo
urbano coerente, desaparece; a aldeia organismo
rural coerente, traz os estigmas de uma decadência
acelerada: colocada em inopinado contato com a
grande cidade, é desequilibrada e desertada.
Pouco menos de um século antes de Le Corbusier, a França, com
a política econômica de Luis Napoleão, entre 1848 e 1870, já estimulara
empresários particulares a contribuírem com a reorganização da cidade de
Figura 05 – Napoleão III. Fonte:
http://en.wikipedia.org/wiki/
Napoleon_III. Acessado em 10 nov.
2004.
Paris, que sofria na época com os problemas causados pela inexorável revolução
industrial. Iniciativas como a reorganização do sistema ferroviário, a reconstrução
do centro da cidade, a edificação de novos portos, os empréstimos do governo
às industrias, o encorajamento de novas linhas de crédito para a indústria e
para a agricultura, a reforma radical das tarifas, a realização de duas grandes
exposições internacionais em Paris, contribuíram, assim, para a promoção do
26
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
crescimento industrial francês durante o período de Luis Napoleão.
O imperador era auxiliado por administradores competentes, sobretudo
pelo Barão Haussman. Além disso, Napoleão III compreendeu a importância das
comunicações na promoção do desenvolvimento industrial e resolveu equipar a
França com um sistema de caminhos de ferro eficiente.
No entanto, não podemos nos esquecer que alguns dos pontos
fundamentais estabelecidos pela gestão do Barão Haussman, sobretudo na
condição de prefeito de Paris, foram a expulsão dos pobres do centro de Paris
e a substituição das ruas tortuosas medievais por longas avenidas, em suma,
iniciativas para o que se denominou de embelezamento da cidade. Estas
mudanças foram conhecidas como “estratégia de classe”.
Porém, todas estas alterações nas cidades foram acompanhadas também
Figura 06 – Esquema dos grandes
trabalhos de Haussmann em Paris:
em preto as novas ruas, em tracejado
quadriculado os novos bairros, em
tracejado horizontal os dois grandes
parques periféricos: o Bois de Boulogne
(à esquerda) e o Bois de Vincennes (à
direita).
por transformações na célula habitacional, de modo a ocasionarem mudanças
significativas no modo de habitar. A velocidade da máquina, as particularidades
produtivas, comportamentais e culturais capitalistas, enfim, as novas condições
de tempo e espaço do homem moderno, trouxeram consigo novas condicionantes
espaciais para a arquitetura e para o urbanismo. E sobre a casa, pode-se dizer
que é nela que o homem procura expressar sua condição epistemológica, seus
costumes e hábitos tão intimamente ligados ao ambiente social em que vive, ou
seja, pode-se considerar a moradia também como espelho de quem a habita.
E, assim, além do novo contexto urbano, das modernas fábricas e das
promissoras estradas de ferro, a revolução industrial apresentou ao mundo
Figura 07 – A demolição de parte do
Quartier Latin na reconstrução de Paris.
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
também uma nova forma de habitar: os cortiços. A fábrica era o núcleo
dos aglomerados urbanos e, portanto, toda a vida da sociedade tornou-se
subordinada a ela.
Era ela, entre outros, o agente de transformação da paisagem natural,
com suas chaminés lançando fumaça negra pelo céu das cidades e resíduos
poluidores pelos rios, o mesmo acontecendo com as locomotivas e as estradas
de ferro, que além da poluição, cicatrizavam e segregavam o território com
seus intrínsecos trilhos.
Às habitações restavam apenas os espaços intersticiais, como as áreas
ociosas entre as fábricas, os galpões e os pátios ferroviários. Outras vezes, eram
construídas ainda junto à grandes indústrias, fossem elas siderúrgicas, fábricas
de tintas, gasômetros ou de cortes ferroviários. Segundo Lewis Mumford (1961,
p.501): “[...] dia após dia, o mau cheiro dos dejetos, o negro vômito das
chaminés e o ruído das máquinas martelantes ou rechinantes, acompanhavam
a rotina doméstica”.
Na cidade industrial, que crescia com base em fundações antigas, os
trabalhadores foram inicialmente acomodados
em velhas casas familiares,
transformadas então em alojamentos para aluguel. Nestas casas, cada quarto
se transformava em uma unidade de habitação, às vezes até para mais de uma
família. Com essa situação, somada aos dejetos das indústrias e das ferrovias,
as cidades tornaram-se bem pouco higiênicas, e passaram a sofrer sérios
problemas de saneamento básico, já que as infra-estruturas de água e esgoto
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
ou não existiam, ou eram insuficientes.
Este panorama nada favorável do primeiro momento urbanoindustrial, originário da nova forma e organização do trabalho, se apresentou
como grande desafio aos planejadores das cidades. Não tardou, portanto,
o aparecimento de novas idéias que sinalizavam a melhoria das condições
urbanas das cidades industriais, cenário em que surgiram: Charles Fourier e
seus falanstérios; Tony Garnier e sua cidade Industrial; Ebenezer Haward e a
cidade jardim, Le Corbusier e a cidade radiosa; entre outros, explicitados por
Françoise Choay (1965).
É pertinente salientar que, no panorama apresentado nesta breve análise
da situação das cidades entre os séculos XVIII e XIX, e que perdurou ainda
até o período entre guerras, no século XX, embora os países europeus pouco a
pouco tenham conseguido equacionar seus problemas sanitários e urbanísticos,
cenário em que se destaca, por exemplo, o Barão Hausmman e as grandes
transformações de Paris, nos demais países, sobretudo os subdesenvolvidos ou
marginais no quadro de equilíbrio de forças da era industrial, pouco foi feito em
relação à melhoria das condições de vida de seus moradores.
No entanto, se o foco da primeira parte do presente estudo é conhecer
o contexto em que Le Corbusier idealizou sua concepção ideal de moradia,
Figura 08 – Plano da Cidade
Industrial de Tony Garnier.
Fonte: http://www.ctv.es/USERS/
jbrarq/images/
Acessado em 12 jan. 2005.
torna-se, portanto, imprescindível voltar às condições habitacionais do cenário
europeu industrial. Neste sentido, Lewis Mumford escreve que:
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
A época da invenção e da produção em massa
quase não atingiu a casa do trabalhador ou as suas
comodidades, até o fim do século XIX. Introduziuse o encanamento de ferro; assim também a
privada aperfeiçoada; finalmente, a iluminação e o
fogão a gás, a banheira com encanamento de água
e drenos fixos; uma rede de distribuição coletiva
de água, com água corrente ao alcance de todas
as casas, e um sistema coletivo de esgotos. Todos
esses melhoramentos, pouco a pouco, passaram
a ficar ao alcance dos grupos econômicos médios
e superiores, a partir de 1830; dentro de uma
geração, a contar da sua introdução chegaram
mesmo a transformar-se em necessidades para
a classe média. Mas, em ponto algum, durante a
fase paleotécnica, tais melhoramentos chegaram
a estar ao alcance da massa da população. O
problema para o construtor, era alcançar um nível
módico de decência sem essas novas comodidades
dispendiosas. (MUMFORD, 1961, p.504).
Como se vê, a urbanização e a moradia da cidade industrial pareciam,
sobretudo no primeiro século da revolução da máquina, sofrer diversos males,
o que fez surgir, já nas primeiras décadas do século XX, idéias revolucionárias
a respeito de formas de habitar e urbanizar as cidades. Amparadas pelo
amadurecimento da sociedade industrial, que efetivamente se conscientizara
das mudanças ocorridas em seu cotidiano, essas idéias prosperaram, então,
para o estabelecimento do chamado ideário Moderno, tanto nas artes quanto
nas ciências, que é a origem do que convencionou se denominar Movimento
30
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Moderno.
Com ele, surgem várias propostas, vários movimentos, sobretudo
europeus, que propunham o diálogo entre as tecnologias industriais e a
arquitetura, entre os quais, e talvez o mais importante, figura Walter Gropius
e a escola alemã Bauhaus. É neste contexto que foi lançada a base sociológica
da habitação mínima, voltada à população das cidades industriais, derivada da
abrangente análise das mudanças ocorridas nos núcleos familiares europeus.
A idéia era padronizar a sociedade através de seus núcleos familiares.
O objetivo era descobrir o programa mínimo habitacional, o que equivaleria
a ajustar o cotidiano e as necessidades humanas a partir da macro escala do
comércio e da economia mundial. E, entre outros reflexões, o que se concluiu
foi que o adensamento populacional, ou seja, que o desenvolvimento do grande
edifício de apartamentos, ofereceria vantagens essenciais às cidades, sobretudo
no sentido de se viabilizar economicamente a moradia da classe operária.
Por outro lado, o que se propôs, tal qual Le Corbusier, foi a construção
de casas em série, ou seja, moradias racionalizadas, pré-fabricadas, de forma
análoga ao princípio dos produtos industrializados que desempenhavam o papel
de grande ícone da revolução industrial.
Porém, foram os edifícios institucionais, e não os habitacionais, que
primeiramente concretizaram na arquitetura os dogmas do modernismo. Assim,
os pavilhões de exposição, as estações ferroviárias, as pontes e monumentos,
como o Palácio de Cristal, a Torre Eiffel e a Galeria das Máquinas, que, entre
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
outros, tiveram a habilidade de exemplificar o trunfo da arquitetura moderna
desde a passagem entre os séculos XIX e XX. Nesse sentido, essas edificações
e monumentos é que funcionaram como os grandes projetos simbólicos do
período.
A partir de então, a emergência de uma nova realidade arquitetônica, e o
desenvolvimento da indústria, passaram a influenciar cada vez mais experiências
práticas e teóricas, não só as de Le Corbusier, mas também, como no exemplo
anterior, as de Tony Garnier, idealizador da cidade industrial [Cité Industrielle
– 1909].
Impulsionada pela otimização nos métodos de produção, especialmente
pelas idéias de Henry Ford (1909), a economia no mundo capitalista foi
gradualmente conquistando espaço. Ford, por exemplo, ajudou a introduzir o
automóvel inclusive nas culturas populares, colaborando portanto, ainda que
gradualmente, para o desenvolvimento dos subúrbios descentralizados. Este
fator possibilitava, por sua vez, a baixa densidade da ocupação territorial e,
conseqüentemente, um passo em favor do anseio da sociedade pela residência
unifamiliar.
Por outro lado, a exploração de novos materiais, como o aço e o
Figura 09 – Henry Ford e o Model T
Fonte: http://www.aaca.org/
publications/rummagebox/2003/
fall03/ford.jpg. Acessado em 12
mar. 2005.
concreto, possibilitaram o desenvolvimento de tipologias novas para os
espaços arquitetônicos, inclusive na forma de habitar. Em síntese, os elementos
arquitetônicos estandardizados, com sua estética formal inusitada, racional,
abriram, entre outros, a possibilidade de apropriação da iluminação natural e
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
da aeração pela arquitetura. A máxima da racionalidade construtiva e projetual,
sobretudo em termos da estrutura independente, foi anunciada aos quatro cantos
através da célebre frase de Le Corbusier, a forma segue a função, pregando,
assim, o abandono dos adornos superficiais em detrimento da concentração
nas necessidades reais do homem moderno.
Esta analogia, porém, entre a ciência funcionalista e a arquitetura racional,
por vezes gerou manifestações arquitetônicas sem caráter estético, portanto,
fria e distante dos anseios do habitat ideal, ainda que a casa idealizada pela
vanguarda moderna tenha se tornado um dos símbolos da mudança estética
e social. Os modernistas lutaram para contribuir significativamente com o
desenvolvimento da nova sociedade, porém, com algumas exceções, ficaram
limitados a um círculo restrito de intelectuais, artistas e homens de negócios
burgueses que, conseqüentemente, não atingiram na plenitude os sistemas
sócio-econômicos populares.
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
5.2 - A Casa Moderna
Neste trabalho, a análise das proposições de Le Corbusier para a habitação
ideal de seu tempo tem dois objetivos precisos. Em primeiro lugar, a idéia
é situá-las cronológica e tecnologicamente na história da arquitetura e, por
outro lado, a intenção é buscar elementos, subsídios teóricos, para a análise da
habitação contemporânea face às novas transformações tecnológicas, que será
delineada na segunda etapa da pesquisa.
Podemos citar três contribuições fundamentais da moderna vanguarda
arquitetônica à história da arquitetura. São elas: a idéia de conforto ambiental,
a experimentação de novos materiais e técnicas construtivas e, por fim, a
criação de um estilo arquitetônico revolucionário.
Conforto ambiental no sentido da ampla preocupação com aspectos
climáticos, entre os quais destacam-se a idéia geral de salubridade das
edificações através da incorporação da aeração e da insolação como elementos
projetuais; a liberdade de materiais e de métodos construtivos enquanto a
extrema proximidade dos arquitetos modernos em relação às tecnologias
emergentes, fato que possibilitou o rompimento com padrões estilísticos e
construtivos históricos; e estilo revolucionário como junção desses fatores
principais.
E, de maneira complementar, um dos principais feitos de Le Corbusier
foi integrar o legado clássico arquitetônico às novas tecnologias de seu tempo,
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
interpretando, assim, os anseios da sociedade que emergia no início do século
XX. Além dele, arquitetos renomados à época, como Gropius, Mies, Neutra,
Wright, Lucio Costa, entre outros, adotaram também o pressuposto de que
vivia-se uma nova era, caracterizada principalmente pela proliferação das
máquinas e pelo intenso processo de urbanização.
Para eles, era unânime a convicção de que a sociedade não mais poderia
viver nos moldes anteriores à revolução industrial. Pelo contrário, estes
arquitetos buscavam estabelecer uma nova expressão da sociedade através da
moradia a ela idealizada, traduzindo, assim, através da arquitetura, toda uma
expressão epistemológica da sociedade industrial.
A divulgação e a proliferação das idéias destes arquitetos sobre o que
se denominou a casa ideal foi possível, entre outras circunstâncias, pelas
grandes exibições internacionais ocorridas nas décadas iniciais do século XX.
Entre elas, figuram as chamadas Exposições Internacionais, como a Exposição
Internacional de Artes Modernas e Industriais de Paris, de 1925; a Exposição
Weissenhofsiedlung Housing, em Stuttgart, 1926; a Exposição de Arquitetura
Moderna de Nova Iorque, em 1932; a Progress Century em Chicago, 1933; e a
Futurama (Feira do Mundo), também em Nova Iorque, em 1939.
Por outro lado, fatores como a disponibilidade de bens produzidos em
grande escala, novos meios de transporte, experimentação nas artes plásticas
[exemplificada pelos alcances do cubismo], e o amadurecimento das teorias
científicas, influenciavam, em conjunto e ainda que indiretamente, também os
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
projetos arquitetônicos da casa moderna.
Também os conceitos de racionalização e de padronização foram rapidamente
exportados do campo do capitalismo industrial para a arquitetura que, embora
inicialmente contestasse tal concepção econômica liberal, posteriormente se viu
deslumbrada pelo novo cenário de produtos estandardizados. Assim, através
de mecanismos projetuais, a vanguarda arquitetônica do período procurou
colocar-se em sintonia com os processos produtivos vigentes em sua época, o
que tornou a casa produzida em grande escala, tal qual um automóvel ou uma
geladeira, um dos grandes desafios para os arquitetos modernos.
Economicamente, os cidadãos de classe média passaram a participar
ativamente do cenário cultural industrial, e a eles é que se direcionaram os
pressupostos, inclusive estilísticos, da nova arquitetura. De saída, portanto,
foi configurado certo problema de identidade, e de aceitação, por parte das
camadas mais pobres da sociedade, o que equivale a dizer que, embora o
modernismo arquitetônico tenha sido imposto às classes menos favorecidas
economicamente, suas referências culturais eram as da classe média intelectual.
Como exemplo, vale destacar que os projetos residenciais de Le Corbusier
tiveram como clientes cientistas, engenheiros, intelectuais, enfim, membros da
classe social ávida por se firmar culturalmente.
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
5.3 - Le Corbusier e a evolução do pensamento purista.
Charles Edouard Jeanneret, conhecido desde 1923 pelo pseudônimo de
Le Corbusier, nasceu em La Chaux-de-Fonds, na Suíça, em 1987, e entrou para
a história como o arquiteto que mais influenciou o urbanismo, a arquitetura e
os embates teóricos destas disciplinas ao longo de todo o século XX.
Seu desempenho, neste sentido, superou o de outros importantes arquitetos de
sua época, principalmente pela consistência das publicações e projetos de Le
Corbusier, sempre orientados por sedutores e inovadores conceitos teóricos.
Para ele, a arquitetura poderia simplesmente ser entendida como
o “o jogo sábio, correto e magnífico de volumes aglomerados sob a luz”
(CORBUSIER, 1923), formulação que demonstra sua preocupação não só com
a racionalidade projetual, mas também com a forma, com a linguagem e a
estética arquitetônicas.
Sua preocupação constante foi com a apropriação plena dos elementos
tecnológicos pela arquitetura, o que tornou recorrente em suas publicações a
referência ao trabalho de engenheiros. Para ele, a visão e a compreensão desses
profissionais em relação às potencialidades de sua época havia antecedido a
dos arquitetos, fato que Corbusier demonstrava em seus trabalhos, muitas
vezes até de forma provocativa, através de ilustrações de aviões, navios e leis
produzidos eficientemente pelo intermédio dos engenheiros.
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Além disso, como já mencionado anteriormente nesse trabalho, era o
ideal do homem novo que fundamentava as teorias não só da arquitetura, mas
de toda a vanguarda moderna. Nascido das transformações sociais, políticas e
produtivas da revolução industrial, esse homem se viu aglomerado em cidades
e desvinculado do urbanismo e da arquitetura de seu entorno, sobretudo no
que diz respeito à forma de habitar. A esse respeito, Josep Maria Montaner,
importante crítico do Modernismo, discorre:
O Movimento Moderno, impulsionado por uma visão positiva
e psicológica ao mesmo tempo, pensa a arquitetura em
função de um homem ideal, puro, perfeito, genético, total.
Um homem ético e moralmente completo, de costumes
puritanos, de uma funcionalidade espartana, capaz de
viver em espaços totalmente racionalizados, perfeitos,
transparentes, configurados segundo formas simples. O
modulor de Le Corbusier (1942) constituiria uma explicação
tardia deste usuário idealizado. Segundo Le Corbusier, todos
os homens tem o mesmo organismo, as mesmas funções e
necessidades. (MONTANER, 2001 p. 18).
A afirmativa de Montaner sobre o significado do Modulor é, contudo,
discutível. Principalmente porque as proposições contidas em sua conceituação,
assim como em todo o ideário de Le Corbusier, não colocaram explicitamente tal
análise simplista e, de certa forma inclusive fascista, sobre a visão de mundo do
ideário moderno. Ao contrário, as propostas Corbusierianas estão muito mais
ligadas a estandardização dos métodos construtivos e à metodologia projetual,
e o próprio Modulor
deve ser entendido como uma ferramenta de projeto,
38
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
como destacava Le Corbusier, universal. Esta metodologia, portanto, poderia
ser empregada também por outros arquitetos, de maneira a estabelecer, através
da proporção áurea, certos parâmetros ergonômicos, matemáticos e sobretudo
arquitetônicos para o desenvolvimento do projeto.
Após o término dos estudos no curso de artes e ofícios, em 1913, Le
Corbusier abre seu escritório em La Chaux-de Fonds. A partir de então, em
companhia de seu amigo engenheiro, Max du Bois, começam, entre
outros, os estudos que levariam a conceitos muito interessantes
como a “Maison Dom-Ino”, que de certa forma se tornaria a base
conceitual para seus projetos residenciais posteriores.
Em outubro de 1916, Corbusier muda-se definitivamente
para Paris e conhece, através de Auguste Perret, o pintor Amédée
Ozenfant. Com ele, Corbusier desenvolveria a chamada estética
mecânica do purismo que, baseada na filosofia neoplatônica,
abrangia todas as disciplinas das artes plásticas, da pintura, do
design de produtos, passando inclusive pela arquitetura.
A divulgação plena dessas teorias estéticas ocorreu com
a publicação, em 1920, de seu artigo Le Purisme, junto à quarta edição da
revista de L’Espirit Nouveau. Essa publicação, que atingiu 28 edições, se tornou
Figura 10 – Maison Dom-ino.
Fonte: http://www.
fondationlecorbusier.asso.fr/
fondationlc.htm. Acessado em 25
abr. 2005.
o grande instrumento de difusão das idéias de Le Corbusier, já que os artigos
nela publicados tornaram-se a base de suas publicações posteriores, como em
sua primeira obra teórica, Vers une Architecture, publicada em 1923.
39
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Considerado ainda em nossos dias como uma das mais significativas
referências teóricas sobre a arquitetura moderna, este primeiro livro de Le
Corbusier foi buscar no classicismo antigo a elaboração de paradigmas
arquitetônicos, já que, segundo o autor, a arquitetura antiga teria elaborado,
com sua lógica racional, um modelo estandardizado da arquitetura, cujo
equivalente Corbusier buscava na idade da máquina. Lançado em 1923, Vers
une architecture foi quem trouxe renome internacional a Le Corbusier, e é
também, segundo o importante historiador da arquitetura moderna, Kenneth
Frampton (1997), provavelmente a mais influente obra literária da arquitetura
moderna. Conforme Frampton (1997, p.223):
Esse texto – que, em forma de livro, teve seu
crédito apropriado por Le Corbusier – articulava
o dualismo conceitual em torno do qual sua obra
viria a desenvolver-se: “por um lado, a necessidade
imperiosa de atender às exigências funcionais
através da forma empírica, e, por outro, o impulso
de usar elementos abstratos de modo a atingir os
sentidos e nutrir o intelecto.
Figura 11– Vers Une
Architecture.
Fonte: www.
fondationlecorbusier.asso.
fr/fondationlc.htm.
Acessado em 10 fev. 2005.
Reyner Banham (1960, p.333/334) relata em Teoria e Projeto na
Primeira Era da Máquina, as três características importantes dos novos
tempos, sob o ponto de vista dos puristas:
Economia: O passo da presente civilização seu
futuro, seu caráter, dependem de descobertas
esperadas, de novas fórmulas que provoquem
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
mecanismos cada vez mais econômicos, que
nos permitam usar a energia de maneiras mais
eficientes, dando assim a nossas potencialidades,
e conseqüentemente a nossas mentes, uma
liberdade superior e ambições mais elevadas;
A separação de técnica e estética: A mecanização
desviou de nossas mãos todo trabalho de exatidão
e qualidade, e delegou-o à máquina. Nossa situação
fica, assim, mais clara: de um lado, o conhecimento
do outro, a questão plástica permanece intocada.
(...) A mecanização, tendo resolvido os problemas
da tecnologia, deixa intacto o problema da arte.
Recusar-se a reconhecer o passo que foi dado é
impedir o progresso da arte em direção a seus fins
mais puros e adequados;
A predominância da geometria simples: Se vamos
trabalhar internamente... o escritório é quadrado,
a escrivaninha é quadrada e cúbica, e tudo sobre
ela forma ângulos retos (o papel, os envelopes, as
cestas de correspondências com sua tela ondulada
geométrica, os arquivos, as pastas, os fichários
etc.) ... as horas de nossos dias são gastas em
meio a um espetáculo geométrico, nossos olhos
sujeitam-se constantemente a formas que são
quase só geometria.
Estes conceitos do chamado “purismo”, marcaram definitivamente todo
pensamento de Le Corbusier durante, ao menos, os vinte anos subseqüentes
de sua trajetória profissional. Nos seus primeiros anos em Paris, ele produziu
muitas pinturas e textos, as quais tiveram fundamental contribuição ao
seu amadurecimento como arquiteto e teórico da arquitetura. Além dessas
41
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
atividades, Le Corbusier trabalhou ainda em uma fábrica de tijolos e de
materiais de construção até que seu primo, Pierre Jeanneret, em 1922, o
convidou à sociedade em um escritório, onde ele pode retomar suas idéias
sobre metodologias construtivas da conhecida casa “Dom-Ino”.
Nela, são bem nítidas a concepção e conotação ideológica de Le Corbusier
sobre a casa estandardizada, em que se destaca a defesa da racionalização dos
métodos construtivos. Em suma, a idéia principal era que a estrutura de pilares
e vigas propiciasse a livre conformação de volumes e plantas, tal qual em um
jogo de dominó. Com isso, pode-se dizer que estava lançado o conceito da
máquina de morar.
A concretização de seus conceitos, contudo, ocorreu primeiramente na
Maison Citrohan, apresentada por Le Corbusier em 1922, durante o denominado
Salon d’Automne, em Paris. De fato, esta casa parece antecipar, pela presença dos
pilotis, da cobertura plana e pela racionalização das aberturas e fechamentos, a
idéia dos cinco pontos da nova arquitetura, que viria a ser apresentada apenas
em 1926. O próprio nome Citrohan teria sido uma brincadeira, se não uma
provocação, na medida em que remetia à marca de uma indústria francesa de
automóveis produzidos em série. Assim, a idéia era de uma casa estandardizada,
um bem que pudesse ser fabricado repetidamente.
Figura 12 – Maison Citrohan.
Fonte: http://www.fondationlecorbusier.
asso.fr/fondationlc.htm
Acessado em 10 abr. 2005.
Neste momento, Le Corbusier (1923) enfatizava: “Quando uma época
possui a planta de uma habitação, é sua evolução social que se fixou e existe
um equilíbrio. Não chegamos a esse ponto”. Assim, o conceito da “Casa Dom-
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Ino”, e de seu protótipo, a Casa Citrohan, traduziam a explícita e incessante
busca de Le Corbusier pelo equilíbrio entre a sociedade e a habitação, entre
os novos costumes e suas espacializações sociais. Em síntese, segundo Le
Corbusier: “A vida moderna pede, espera uma nova planta, para a casa e para
a cidade. (CORBUSIER, 1923).
A partir do conceito dos cinco pontos essenciais da nova arquitetura Les 5 points d ‘une architecture novelle – Le Corbusier desenvolve uma série
de casas entre os anos de 1926 a 1930, entre elas a Maison Cook, a Ville
Meyer, a Ville Garches e a Ville Savoye. Todas estas casas eram baseadas
em uma sintaxe bem definida, obedecendo, portanto, aos tais cinco pontos
arquitetônicos: estrutura principal elevada sobre pilotis; planta livre obtida
pela separação entre os elementos estruturais e as vedações internas; fachada
livre, resultante, no plano vertical, dos conceitos usados em planta; janelas
longas e horizontais que permitiam a inter-relação entre o externo e o interno;
e o conceito da laje jardim, que supostamente compensava o terreno ocupado
pela construção e o reproduzia na cobertura.
Em 1927, Le Cobusier amplia seus horizontes com o projeto que
desenvolveu para o concurso internacional da sede da Liga das Nações, em
Genebra, quando criou seu primeiro projeto para uma grande estrutura pública.
Segundo Frampton (1997), baseando-se na comparação entre a arquitetura e
a pintura produzida por Le Corbusier neste período, o projeto representa o
clímax e o momento de crise da primeira fase da carreira do suíço, e, assim, o
43
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
apogeu e o início do declínio de seu período purista.
Para Frampton (1997), o projeto para a Liga das Nações denotou uma certa
inflexão na obra de Le Corbusier, não só do ponto de vista plástico mas também
ideológico, principalmente pela introdução da idéia de monumentalidade, que
irá questionar todo o engajamento socialista presente em sua arquitetura
até então. Esta mudança pode ser observada também ao compararmos seus
projetos urbanos para a cidade da era da máquina. Assim, confrontando suas
idéias para a Ville Contemporaine, de 1922, e a Ville Radieuse, de 1930, notamse mudanças significativas, sobretudo em relação ao abandono da idéia de
um modelo urbano centralizado e a conseqüente concepção linear de cidade,
dividida em usos, em zonas específicas.
Ao longo da década de 30, a idéia de monumentalidade foi marcante
na obra de Corbusier, embora ele não tivesse abandonado a intenção de “reinventar” as formas de habitar da sociedade da máquina, sempre tendo como
elemento referencial a comparação entre a estética do engenheiro e a do
arquiteto. Nesse sentido, Corbusier pregava que o arquiteto deveria refletir
sobre os contornos da forma, de maneira a diferenciar-se pela ergonomia em
Figura 13 – Le Corbusier e a Ville
Radieuse.
Fonte: http://www.fondationlecorbusier.
asso.fr/fondationlc.htm. Acessado em
20 abr. 2005.
relação à estética do engenheiro. Assim, Le Corbusier continuou a pregar que
a indústria deveria, com sua elevada capacidade de produção em série, alterar
definitivamente as técnicas e as metodologias das construções.
Neste período é possível identificar a coesão entre a prática e seu discurso
teórico, sobretudo através do exame dos apartamentos do edifício Clarté, em
44
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Genebra, do Pavillon Suisse na Cité Universitaire, do Edifício do Exército da
Salvação e de seus apartamentos da Porte Molitor. Nesses trabalhos, identificase a fachada modular do tipo panverre, em vidro e aço, que correspondia à
busca pela estética estandardizada da era da máquina.
Contudo, sobre o período da década de 1930, Frampton (1997) afirma que
Le Corbusier começava a perder a fé no inevitável triunfo da era da máquina:
Pouco depois de 1933, começou a reagir contra
a produção racionalizada da machine à habiter,
embora não se saiba ao certo se o terá feito por
desilusão com a técnica moderna enquanto tal ou
por desespero diante de um mundo arrebentado
pela depressão econômica e pela reação política.
(FRAMPTON, 1997, p.221).
A partir de então, sua obra parece ter-se deslocado definitivamente para
uma arquitetura mais solta, mais distante das doutrinas de sua primeira fase
purista. Começam-se a esboçar em suas criações expressões formais mais
livres, e técnicas primitivas, outrora completamente abandonadas, voltam à
pauta de seus projetos. Tal inflexão é delineada primeiramente na Casa Errazuriz
Figura 14 – Pavillon Suisse na Cité
Universitaire. Fonte: http://www.
fondationlecorbusier.asso.fr/fondationlc.
htm. Acessado em 20 abr. 2005.
(1930), em que foram empregados materiais como a madeira, a pedra e o
telhado, e posteriormente também no Pavillon dês Temps (1937).
Nestas obras, contudo, apesar das alusões ao vernáculo e da sensibilidade
em relação ao contexto paisagístico e local, pode-se ainda identificar claramente
a preocupação com a exploração das tecnologias avançadas, como o uso do
45
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
concreto armado, dos painéis de vidro e dos cabos de aço como elementos
estruturais.
Esta nova junção entre os elementos técnicos avançados e o vernáculo, se
estenderia, então, a toda a trajetória de Le Corbusier. Seus exemplos clássicos
são a Capela Ronchamp (1950) e o mosteiro dominicano de La Tourette
(1960), em que Corbusier recorre à uma espécie de bricolage, de justaposição
entre materiais aparentemente contrastantes, o que se tornaria característica
fundamental de seu estilo a partir de então.
Apesar da consistência projetual, desde esse momento em diante a
obra de Corbusier perderia a unidade, o amparo dos preceitos da vanguarda
Figura 15 – Chapelle Notre Dame
du Haut. Fonte: http://www.
fondationlecorbusier.asso.fr/fondationlc.
htm. Acessado em 10 mar. 2005.
moderna, e seguiria, então, caminhos diversificados, por vezes incongruentes.
Vale, portanto, comparar as criações de Ronchamp e de Chandigarh, em que
Corbusier deixa de lado as doutrinas teóricas da década de 1920, e a arquitetura
brutalista, baseada na extrema funcionalidade, racionalidade e nas implicações
do Modulor, a exemplo da Unite d’ Habitation em Marselha de 1947-1952.
Tal dualismo estético e conceitual na obra de Le Corbusier culmina com
a criação de Chandigarh, na Índia, onde os elementos plásticos se apresentam
de forma exuberante, icônica, formalmente comprometidos com a estética do
lugar, não universal. A idéia era afirmar, explicitar através da arquitetura, a
apropriação das tecnologias emergentes de modo a transmitir a imagem de
modernidade e prosperidade, um formalismo que se contrapunha ao brutalismo,
ao uso do concreto armado enquanto estrutura e acabamento.
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Esta aparente incongruência presente na obra de Le Corbusier após
a década de 1930, é o que efetivamente demonstra sua preocupação com
a dinâmica das questões políticas, sociais e culturais, que precisam ser
repensadas constantemente, tendo-se, contudo certas bases projetuais de que
um idealizador jamais deve se desvencilhar.
É na primeira fase de seu ideário, contudo, que este trabalho pretende
fundamentar-se para refletir sobre a moradia ideal para sociedade da máquina,
já que nele é que floresceram as idéias de Le Corbusier sobre o que denominou
de a máquina de morar. O objetivo, portanto, é contrapor o presente, a era
informacional, às concepções teóricas iniciais de Le Corbusier.
5.4 - A importância do legado Corbusieriano
Da mesma forma que o cubismo transformou os conceitos de arte ao
tornar a pintura um objeto artístico não só por sua carga simbólica, mas também
por sua própria condição material, Le Corbusier também procurou transformar
a arquitetura em um modo de expressão social, deslocando-a de seu caráter
puramente figurativo. Assim, ao afirmar a casa como uma “máquina de morar”,
47
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
a intenção de Corbusier não era equiparar a arquitetura à ciência ou à indústria,
mas, ao contrário, adotá-las como modelo para uma arquitetura que deveria
emocionar pela eficácia, pelos condicionantes inerentes à sua realização.
“Porém, a analogia feita por Le Corbusier entre um edifício e uma máquina
era mais do que uma metáfora poética; era fundamentada na suposição de uma
identidade ontológica entre ciência e arte”. (COLQUHOUN, 2004, p.161/162).
Como se a arquitetura e a ciência de certa forma tivessem a mesma natureza,
e por isso, deveriam dialogar incessantemente, de modo que a técnica deveria
sempre servir de base às suposições artísticas e intelectuais. Arquitetura,
tecnologia, o real e a representação deveriam, portanto, corresponder à mesma
finalidade.
A arquitetura, como uma arte, não mais possuía
a tarefa de criar significados por meio de signos
incorporados às superfícies dos edifícios. O
significado da arquitetura agora era imanente às
puras formas que a nova tecnologia possibilitava.
(COLQUHOUN, 2004, p.161/162).
Com esta afirmação de Colquhoun, pode-se entender a arquitetura,
segundo o discurso de Le Corbusier, como disciplina inerente à ciência e à
tecnologia emergentes da revolução industrial, onde a idéia do adorno não
mais fazia sentido para um mundo de base epistemológica completamente
diferente do mundo vitoriano ou clássico. A arquitetura deveria, então, retratar
a nova sociedade de sua época.
O discurso Corbusieriano do período entre guerras, publicado nos artigos
48
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
de L´Espirit Nouveau, oscilou constantemente entre dois pólos aparentemente
dicotômicos: o pensamento clássico do século XVII e o ideário, em certa medida
Marxista, que amparava os preceitos da vanguarda moderna. Assim, acreditavase que a tecnologia representava ao mesmo tempo um meio construtivo e uma
forma de expressividade artística.
Foi, assim, através da analogia entre o engenheiro e o arquiteto, que
Le Corbusier delineou seu ideário nas publicações da época. As diferenças
entre eles, acreditava Corbusier, restringiam-se à metodologia projetual,
o que o incentivou a adotar o discurso comparativo para defender a união
entre a arquitetura e a tecnologia, e o arquiteto enquanto profissional apto a
transformar técnica em arte.
Pode-se dizer até que a relação entre a expressão criativa e o mundo
tecnocrático, objetivo e racional, permaneceu constante em toda a obra de
Corbusier. Assim, para ele a tecnologia desempenhava papel determinante
enquanto condição de liberdade artística, mas, ao mesmo tempo, cada vez
mais distante das utopias sociais por se colocar à disposição de políticas
autoritárias.
Com
relação
às
influências
classicistas,
Le
Corbusier
as
expõe
sistematicamente na obra Vers une Architecture (1923) através dos três
parâmetros projetuais: volume, superfície e planta. Segundo ele: é o volume
que estabelece a experiência dos sólidos sobre a luz; a superfície que limita o
volume; e a representação das plantas que constitui a disposição das funções
49
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
na arquitetura.
Podemos dizer que as casas da década de 1920 de Le Corbusier são
coerentes com seu discurso teórico. Nelas, e nos artigos de L´Espirit Nouveau,
Corbusier estabelece os fundamentos de sua estética arquitetônica, o que
transforma as residências que concebeu para a classe média intelectual em
laboratório experimental de seu ideário. Foi através delas que se desenvolveram
os conceitos das casas em série, da arquitetura modular, com custos reduzidos,
e os subsídios às posteriores Unidades de Habitação multifamiliares e
multifuncionais.
É importante salientar, contudo, que Le Corbusier não defendia a
padronização integral da habitação à exemplo dos alemães do movimento
moderno e da Bauhaus. Em sua análise, ela deveria restringir-se a elementos
específicos, estandardizados, restritos ao domínio da arquitetura.
Ainda assim, o elo entre a arquitetura e as técnicas industriais perde força,
para Le Corbusier, quando ele parece perceber o desinteresse dos governos ou
dos industriais pela produção de conjuntos habitacionais. Aos poucos, portanto,
sua obra parece abandonar o racionalismo platônico, presente até meados da
década de 30, e a retomar os ideais vitalistas e regionalistas de seu começo
profissional na cidade natal La Chaux-de-Fonds.
Este movimento de inflexão pode ser exemplificado com as casas que
criou no Chile, em 1930 (Residência Errazuriz), e com a Ville Le Sexttant,
em Mathes, 1935, onde parece se aproximar das influências vernáculas e se
50
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
distanciar dos dogmas modernistas.
Há uma tentativa – em Cap. Martin, Ronchamp,
La Tourette, e nos edifícios em Chandigarh e
Ahmedabad, na Índia – de desenvolver idéias a partir
de uma tradição “mediterrânea” generalizada, de
tipologias antigas ou mitológicas, ou simplesmente
do genius loci. (COLQUHOUN, 2004, p.175).
Com os artigos de L´Espirit Nouveau e as experiências das casas da
década de 1920, Le Corbusier tomava como referência estilística e conceitual os
sistemas proporcionais e de superfícies reguladoras, mas, a partir da publicação
de O Modulor, sua obra adquiriu a regularidade matemática subjacente às
formas. Este, que margeou toda obra de Le Corbusier, parece ter sido também
sua maior experiência teórica.
Assim, o que se depreende de seu ideário é a intenção de adotar na
arquitetura o pensamento lógico, racional e disciplinador, enfim, de estabelecer,
seja através da proporção áurea, da dicotomia entre moderno e clássico, um
controle projetual tão rígido quanto os empregados por Alberti ou Palladio.
Desta forma, acreditava ele, é que se poderia criar uma arquitetura singular,
integrada à nova sociedade no contexto das tecnologias mecânicas do século
XX.
A matemática é o magistral edifício imaginado
pelo homem para compreender o Universo. Nela
encontra-se o absoluto e o infinito, o apreensível e
o não apreensível, e está rodeada de altos muros
51
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
diante dos quais pode-se passar e de novo passar
sem proveito nenhum. Neles às vezes abres-se
uma porta, entra-se e aí se está no lugar onde
se encontram os deuses e as chaves dos grandes
sistemas. Estas portas são as portas dos milagres,
e franqueada uma delas, já não é o homem
que atua, porém o Universo que se manifesta
e diante dele desenrolam-se os prodigiosos
tecidos das combinações sem limites. Estais no
país dos números. Deixai-vos permanecer nele,
maravilhados diante de tanta luz intensamente
espalhada. (CORBUSIER, 1953, p. 69).
Segundo Jonh Summerson (1994, p. 116):
[...] nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial
Le Corbusier criou o sistema que se chamou
“Modulor”. Modulor é uma palavra composta a
partir de module, ou seja, unidade de medida, e
section d´or ou secção de ouro: a divisão de uma
reta de tal modo que o segmento menor está para
o maior assim como o segmento maior está para o
todo. O Modulor é um sistema de proporcionamento
do espaço arquitetônico baseado neste critério
geométrico, e oferece toda uma gama de dimensões.
As dimensões medianas relacionadas com o corpo
humano; as dimensões extremas aplicam-se, por
um lado, aos detalhes diminutos dos instrumentos
de precisão e, por outro lado, à escala dos grandes
projetos de planejamento.
52
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
O Modulor tinha como subtítulo “Ensaios sobre uma medida harmônica
à escala humana e aplicável universalmente à Arquitetura e à Mecânica”. Le
Corbusier pretendia, assim, e de forma extremamente ambiciosa, estabelecer
parâmetros universais para a prática da arquitetura através de ensaios
geométricos, de exemplos matemáticos.
No entanto, Summerson questiona se realmente O Modulor seria um
dogma a ser aplicado por outros arquitetos ou, ao contrário, uma metodologia
de caráter pessoal:
Na minha opinião, a verdadeira razão de ser desses
sistemas é que aqueles que os utilizam (e que
são, em geral, os próprios autores) necessitam
deles: existem mentes muito férteis e criativas
que necessitam da disciplina dura e inexorável de
tais sistemas para corrigir e, ao mesmo tempo,
estimular sua inventividade. O destino desses
sistemas parece confirmar isto - em geral, não
sobrevivem a seus usuários e o próximo indivíduo de
gênio inventa seu próprio sistema. (SUMMERSON,
1994, p.116).
O fato é que o Modulor colocou em discussão um conceito bastante debatido
e universal: a questão da padronização de medidas e de proporções. A esse
respeito, Corbusier identificava na Revolução Francesa o início do processo de
modernização dos até então complicados cálculos de pés e polegadas. Naquela
época, portanto, a criação de uma unidade de medida despersonalizada e
abstrata, o metro, que é em definição a décima milionésima parte do quadrante
53
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
do meridiano terrestre, correspondia ao triunfo da crença laica em poder
conquistar o mundo através da ciência e do cálculo.
Ainda assim, Le Corbusier identificava certa carência de medida, ou de
sistema proporcional, que correspondesse aos anseios mundiais por racionalidade,
simplicidade na ordenação do cálculo e por adequação à escala humana. Por
outro lado, desde o início do século XX observava nas obras de arquitetura o
que viria a denominar de “o ângulo reto dirigindo a composição”.
Posteriormente, durante os anos da ocupação da França durante a
Segunda Guerra Mundial, Corbusier foi convidado a integrar o AFNOR, órgão
encarregado de auxiliar a reconstrução do país, juntamente com industriais,
engenheiros e arquitetos. Sobre os anseios daquele grupo, ele proferiu:
O AFNOR propõe normatizar os objetos das
construções e seu método é simplista: simples
aritmética aplicada aos usos e utensílios dos
arquitetos, engenheiros e industriais. Parece-me
arbitrário e pobre. As árvores, por exemplo, com
seu tronco, seus ramos, suas folhas e nervuras, me
afirmam que as leis de crescimento e combinação
podem e devem ser mais ricas e sutis. Um laço
geométrico tem de intervir nestas coisas e sonho
instalar nas obras que mais tarde cobrirão o país,
um enredado de proporções traçado sobre o
muro ou apoiado nele, feito com ferros laminados
e soldados, que será a regra da obra, o modelo
que inicia a série ilimitada das combinações e das
proporções. O pedreiro, o carpinteiro e o serralheiro
irão ai escolher as medidas para seus trabalhos, os
54
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
quais, diversos e diferenciados, serão testemunhos
da harmonia. Tal é o meu sonho. (CORBUSIER,
1953, p.34).
Em 1943, Le Corbusier propõe a seu assistente Hanning a seguinte
tarefa:
[...] tome um homem com o braço levantado
com 2,20 metros de altura, inscreva-o em dois
quadrados superpostos de 1,10 metros, coloqueo a cavalo sobre os dois quadrados e um terceiro
quadrado resultante lhe dará uma solução. O lugar
do ângulo reto deve poder ajudá-lo a colocar o
terceiro quadrado. Com este entedado, regido por
um homem instalado no seu interior, estou seguro
que chegará a uma série de medidas que poderão
colocar de acordo a estatura humana (o braço
levantado) e a Matemática. (CORBUSIER, 1953,
p.35).
Estas poucas linhas continham o cerne do que se transformaria no
Modulor, embora naquele momento correspondessem ainda a simples intuição.
Em sua primeira versão, o estudo teve como base a estatura média do homem
francês, 1,75 metros, de onde Corbusier definiu:
[...] o Modulor é um aparato de medida fundamentado
na estatura humana e na matemática. Um homem
com o braço levantado dá os pontos determinantes
de ocupação do espaço: o pé, o plexo solar, a
55
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
cabeça e a ponta dos dedos com o braço levantado
– três intervalos que definem uma série de secções
áureas de Fibonacci: e ainda por outra parte, a
matemática, que oferece a variação mais imediata
e significativa de um valor: o simples, o dobro e as
duas secções áureas. (CORBUSIER, 1953, p. 52).
Essa regra de proporções2 combina-se, assim, através do ponto das duas
séries de segmentos áureos, que ele chamou de “vermelha” e “azul”, com
a estatura humana nos seus principais pontos de ocupação do espaço. Num
momento posterior, a altura padrão do homem foi retificada para seis pés, ou
cerca de 1,83 metros, a estatura média do homem inglês.
O que Le Corbusier almejava era contribuir para a normatização e a
posterior estandardização da arquitetura seriada, racional e eficiente, enfim,
a arquitetura dos elementos pré-fabricados. Mas, por outro lado, objetivava
também evitar o empobrecimento formal derivado da estandardização.
Quando Le Corbusier elege a proporção áurea como estruturadora das
relações entre medidas na arquitetura, sua preocupação é a de acoplar a
referência humana ao traçado de suas próprias obras, em muito guiadas pela
Figura 16 - Modulor Ilustração.
Fonte: http://falcon.jmu.edu
Acessado em 26 mar. 2005.
geometria. Neste sentido, Summerson escreve que Le Corbusier defendia
o Modulor como um sistema que, se amplamente adotado, equacionaria
a tentativa da padronização na indústria, embora, em sua visão, o Modulor
tivesse contribuído especialmente para os projetos do próprio Corbusier.
Estou inclinado a pensar que, como em outras
2
Esse assunto começou há cerca de 2.500 anos, com a busca do modo mais harmonioso e simétrico de dividir um segmento em duas partes. Seria pelo seu ponto
médio? A questão preocupou Euclides (330-275 a.C.), o matemático grego autor de Os Elementos, obra fundamental da geometria. O resultado dessa misteriosa
divisão, simbolizado pela letra grega f (lê-se “fi”) é sempre 1,618034...,que ficou conhecido como razão áurea. A proporção associada a ela foi também estudada
pelo monge Luca Pacioli, de Veneza, no livro De Divina Proportione (Sobre a proporção divina), de 1509. Durante séculos, a secção áurea foi usada por pintores e
arquitetos. Hoje sabemos que f regula também a espiral que aparece na natureza, como na margarida, no girassol, na concha do molusco náutilo. A espiral fornece
56
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
situações semelhantes, a importância real do
Modulor está em que ele é parte da aparelhagem
mental de seu autor e lhe permite realizar
projetos tão originais como a capela Ronchamp
– um edifício de forma tão livre que chega a ser
quase uma escultura abstrata – seguro de seu
completo domínio dos procedimentos racionais.
(SUMMERSON, 1994, p.117).
Assim, destaca-se a extrema simplicidade operacional do Modulor, em que
quadrado, duplo quadrado e secções áureas, se fundem no sistema de razões
geométricas e numéricas. Neste sentido, Albert Einstein teria comentado que
o sistema de Corbusier se tratava da “escala de proporções que torna o mau
difícil e o bom fácil”. (CORBUSIER,1953, p. 55), receptividade favorável também
compartilhada por matemáticos, engenheiros e arquitetos de sua época, tanto
pertencentes do universo acadêmico quanto profissional.
Com o passar dos anos, contudo, o interesse em torno do Modulor
perdeu força, e até o próprio Corbusier parece ter colocado em segundo plano
sua obsessão pelo uso sistemático dos conceitos estabelecidos pelo princípio
matemático e geométrico que criou.
Por outro lado, a questão da moradia era também apontada por Corbusier
como essencial ao equilíbrio de sua época. A sociedade, segundo ele, clamava
pela habitação que traduzisse os novos costumes sociais através da arquitetura,
ou seja, em suas palavras, “[...] quando uma época possui a planta de uma
habitação é sua evolução social que se fixou e existe um equilíbrio. Não
o padrão matemático para o princípio biológico que regula o crescimento da concha: o tamanho aumenta, mas o formato não se altera. A seqüência 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13,
..., correspondente aos lados dos quadrados que montam esssa espiral, é a mesma que o matemático italiano Fibonacci (1180-1250), em seu livro Liber Abbaci, de
1202, calculou para o crescimento das populações de coelhos a partir de um casal. Em 1753, o escocês Robert Simson descobriu que dividindo-se esses números pelos
seus antecessores obtém-se uma seqüência de frações que se aproxima de f. Já está demonstrado que f é o mais mal-aproximado por frações dos números irracionais. O
incrível é que a natur
13/eureca.htm)
57
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
chegamos a esse ponto”. (CORBUSIER, 2002, p. XXV).
Tal ponto de equilíbrio parecia a ele não se referenciar apenas à tradução
espacial e estética da morada ideal, mas também à coerência com que tais
edificações deveriam ser construídas. Em Por Uma Arquitetura, Corbusier
observou: “[...] a arquitetura tem como primeiro dever em uma época de
renovação, operar a revisão dos valores, a revisão dos elementos constitutivos
da casa” (CORBUSIER, 2002, p.159).
A casa em série almejada por Le Corbusier integrava a idéia da máquina
de morar, por sua intensamente análoga à produção dos bens industrializados,
como um automóvel, um avião ou um navio. Uma casa que pudesse atender
não só os anseios da família moderna, mas também os implacáveis interesses
da indústria e do mercado de capital.
A série está baseada sobre a análise e a
experimentação.
A grande indústria deve se ocupar da construção e
estabelecer em série os elementos da casa.
É preciso criar o estado de espírito da série.
O estado de espírito para construir em série.
O estado de espírito de residir em casas em série.
O estado de espírito de conceber casas em série.
(CORBUSIER, 2002, p.159).
Porém, Corbusier alerta que a casa em série deva ser como uma casa
instrumento, bela pela estética dos instrumentos de trabalho da era industrial
mecânica. O arquiteto deveria se apropriar das possibilidades da construção
58
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
em série com toda a expressão que o sentido artístico pode conferir, ou seja, a
estandardização deveria estar nos elementos de composição construtiva e não
na padronização por completo, criando modelos idênticos para serem vendidos
conforme o terreno e o tamanho da família. A possibilidade de casas préfabricadas combinadas com o arranjo idealizado por Le Corbusier das casas
“Dom-Ino” poderiam estabelecer uma emoção tectônica inusitada. Os conceitos
da Casa “Dom-Ino” extraída, tal qual o modulor da matemática com a definição
dos “MINÒS, tal qual fez posteriormente Solomon W. Golomb, com a teoria dos
poliminós”3.
Assim, vale destacar a extrema coerência e entrelaçamento entre os
elementos do ideário Cobusieriano. O Modulor pretendia estabelecer critérios
que facilitassem a racionalização da Casa em Série, que funcionava como uma
das premissas para a concretização da Máquina de Morar, que tem a Maison
Dom-Ino como possibilidade compositiva arquitetônica. Ou seja, embora
freqüentemente estudados de maneira isolada, esses conceitos só se tornam
plenos se entendidos como parte de um conjunto de conceitos extremamente
coerentes entre si.
Tal observação é válida sobretudo quando estudamos a obra de Le Corbusier
até meados dos anos trinta, quando ele ainda acreditava, ou pelo menos queria
fazer acreditar, que a arquitetura era fundamental para a efetivação de uma
nova sociedade.
Assim, a casa em série se inseria nas buscas do pós-guerra por uma
construção barata, rápida, capaz de reconstruir a Europa.
3
No ano de 1954 (posterior ao conceito idealizado por Corbusier da Maison Domino) Solomon W. Golomb, um jovem estudante de engenharia,
de 22 anos, publicou na prestigiosa revista American Mathematical Monthy um artigo intitulado “Tabuleiro de Xadrez e Poliminós”. Este
poderia ter sido mis um daqueles intricados e enfadonhos artigos de matemática que mofariam nas páginas de revistas sem despertar maior
interesse para as gerações futuras, Entretanto quando em 1957 Martin Gardner dedicou um artigo sobre a invenção de Golomb, os poliminós
tornaram-se tão populares que os aficionados em desvendar seus desafios formaram grupos internacionais, gerando congressos, publicações
59
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Num piscar de olhos, se nascesse o estado de
espírito da série, tudo seria preparado rapidamente,
com efeito, em todos os ramos da construção,
a indústria, potente como uma força natural,
exuberante como um rio que rola para seu destino,
tende cada vez mais a transformar os materiais
brutos naturais e a produzir o que se chama
materiais novos. (CORBUSIER, 2002, p.161).
Segundo ele, a indústria, o concreto e o ferro, o cálculo e a inteligência
criativa do arquiteto, tinham efetivamente transformado as organizações
construtivas. A arquitetura estava livre das tradições superficiais do passado, os
métodos de construção tinham sido revolucionados, e “[...] a sociedade deseja
fortemente uma coisa que ela obterá ou não. Tudo está aí, tudo depende do
esforço que se fará e da atenção que se concederá a esses sintomas alarmantes.
Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a revolução.” (CORBUSIER, 2002,
p.205).
Nestes termos, podemos notar na obra de Corbusier a indignação com
a postura conservadora ainda vigente na arquitetura de sua época. Ele foi
um dos primeiros a notar que a sociedade se encontrava em processo de
transformação e que, portanto, necessitava-se de um novo abrigo, compatível
não mais aos costumes campesinos, mas ao emergente estilo de vida urbano
mecanicista. Ou seja, Le Corbusier estava engajado com a construção de um
mundo novo, socialista, igualitário, moderno, conduzido pelo pensamento
e produzindo millhares de problemas e soluções curiosíssimas. Poliminós são objetos geométricos formados por quadrados de mesmo tamanho, unidos lado a lado. Os poliminós
dividem-se em calsses de acordo com o número de quadrados que se usa na configuração: monominó, dominó, triminós, tetraminós, pentaminós, hexaminós e assim por diante. Um
poliminó diferencia-se de outro apenas pela forma, não importa a posição que ocupam no plano. Assim as quatro figuras representam o mesmo triminó L”. www.revistagalileu.com
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
mecânico e racional, tal qual o seu modelo analógico originário da máquina e
da revolução industrial.
Ainda que, com o passar do tempo, o “[...] conteúdo ideológico da
arquitetura de Le Corbusier foi ele mesmo subvertido pelo desenvolvimento
“natural” do capitalismo e sua “recuperação” de vanguarda. Portanto, temos
de ver a arquitetura de Le Corbusier como um fenômeno histórico e desobrigála de seu contexto ideológico original. Seu caráter subversivo faz parte de
sua estética auto-suficiente e continua sendo uma experiência constantemente
renovável, depois de termos visto retroceder a visão de uma sociedade
totalmente renovada da qual ela originalmente fazia parte. A arquitetura de
Le Corbusier pertence a uma “tradição do novo” que agora assumiu seu lugar
em nosso cânone crítico. [...] Le Corbusier ocupou um desses raros momentos
na história em que parecia que a opinião do artista e a do homem de paixões
convergiam para um mito coletivo”. (COLQUHOUN, 2004, p. 181/182).
5.5 - Le Corbusier e a máquina de morar
Embora na contra-corrente da Carta de Atenas (1933), que afirmava o
equipamento multifuncional enquanto mecanismo ideal para a casa moderna,
porém como vimos, os experimentos Corbusierianos sobre a habitação
tiveram início com a Maison Dom-Ino. Assim, entre 1926 a 1930, suas casas
unifamiliares basearam-se na sintaxe do que se convencionou denominar os
cinco pontos essenciais da arquitetura: a estrutura principal elevada sobre
61
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
pilotis; a planta livre obtida pela separação entre os elementos estruturais e as
vedações internas de divisão entre espaços; a fachada livre; as janelas longas
e horizontais, que produziam a liberdade e a inter-relação entre o externo e o
interno; e o conceito da laje jardim.
Por outro lado, ainda que não exista uma publicação específica de
Corbusier sobre a Máquina de Morar, a casa ideal à era da máquina, em toda
sua obra podem ser encontradas citações sobre esse conceito. Assim, em Vers
une architecture (1923), provavelmente a mais importante obra do movimento
moderno na arquitetura, Le Corbusier questiona as formas de habitar da
sociedade industrial, ainda em pleno processo de desenvolvimento, tentando
“reencontrar as bases humanas, a escala humana, a necessidade-tipo, a função
tipo, a emoção tipo”. (CORBUSIER, 1923).
Em clima de efervescência social, pautado por transformações tecnológicas,
sociais e científicas, Le Corbusier clamava, assim, por uma nova planta na
habitação de seu tempo. Comparando de forma provocativa os engenheiros
e os arquitetos, anunciava os primeiros como já engajados na construção
de uma sociedade moderna, altamente tecnológica e “maquinicista”, como
comprovavam os automóveis, navios e aviões que haviam criado.
Em certo momento, Corbusier chega a questionar: “A arte, segundo
Larousse, é a aplicação dos conhecimentos para a realização de uma concepção.
Ora, hoje são os engenheiros que conhecem a maneira de sustentar, de aquecer,
de ventilar, de iluminar. Não é verdade?” (CORBUSIER, 1923, p.7).
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Nestes termos é que Le Corbusier reflete sobre o significado da habitação
e da ação do arquiteto, tomando como base, portanto, a maneira como o
engenheiro encara o desenvolvimento dos aviões por exemplo. Para tanto,
propõe a Máquina de Morar, que tem como característica fundamental a
possibilidade da construção seriada.
Uma grande época começa. Um espírito novo
existe. A indústria, exuberante como um rio que rola
para seu destino, nos traz os novos instrumentos
adaptados a esta época nova animada de espírito
novo.
A lei de economia administra imperativamente
nossos atos e nossos pensamentos. O problema
da casa é um problema de época. O equilíbrio
das sociedades hoje depende dele. A arquitetura
tem como primeiro dever, em uma época de
renovação, operar a revisão dos valores, a revisão
dos elementos constitutivos da casa.
A série está baseada sobre a análise e a
experimentação. A grande indústria deve se ocupar
da construção e estabelecer em série os elementos
da casa.
É preciso criar o estado de espírito da série. O
estado de espírito de residir em casas em série.
O estado de espírito de conceber casas em série.
(CORBUSIER, 1923, p. 32).
A idéia era sintonizar a arquitetura, e as formas de construção, aos
anseios da sociedade industrial. E, sobre a moradia, Corbusier acreditava que
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
tanto o operário quanto o intelectual não mais possuíam o abrigo conveniente
ao seu modo de vida, ainda que de fato esse equipamento correspondesse
à necessidade primordial humana. “A casa foi o indispensável e o primeiro
instrumento que se forjou.” (CORBUSIER, 1923, p.34).
Em Vers une architecture (1923), Le Corbusier enfatiza três aspectos
fundamentais à concepção da arquitetura:
O volume que é o elemento pelo qual nossos
sentidos percebem e medem, sendo plenamente
afetados. A superfície que é o envelope do volume
e que pode anular ou ampliar a sua sensação. A
planta que é a geradora do volume e da superfície
e que é aquilo pelo qual tudo é determinado
irrevogável. (CORBUSIER, 1923, p.9).
Segundo Le Corbusier, o mecanicismo era familiar e positivo ao homem de
sua época. Por isso, ele deveria habitar em uma máquina também, com banhos
quentes, água fria, temperatura personalizada, boas condições de conservação
dos alimentos, de higiene, bela pela proporção, etc.
Proporções estas depreendidas de seus Traçados Reguladores, que
afirmavam a geometria enquanto linguagem humana. Para tanto, Corbusier
evoca e se fundamenta nos modelos clássicos, afirmando que: “o grego, o
egípcio, Michelangelo ou Blondel empregavam os traçados reguladores para
a correção de suas obras e a satisfação de seu sentido artístico e de seu
pensamento matemático.” (CORBUSIER, 1923, p.47).
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Vicent Scully Júnior, importante crítico da arquitetura moderna, escreve
que:
Le Corbusier foi, portanto, capaz de compreender
a arquitetura grega e de evitar uma imitação
não grega dela, precisamente porque percebeu
intuitivamente o que ela pretendia ser e porque
reconheceu que a intenção não era a de abrigar seres
humanos, e sim instigá-los ao reconhecimento dos
fatos em relação aos quais eles próprios deviam
agir. (SCULLY, 1961, p.89).
O que Corbusier pregava era, assim, o emprego das formas puras da
geometria plana, sóbria, sem os adornos e excessos do barroquismo tardio
que, de certa forma, ainda estavam em voga à sua época. Em suma, a casa
ideal para a sociedade da máquina deveria obedecer as seguintes premissas
básicas: planta livre, fachada livre, estrutura independente, panos de vidro ou
aberturas corridas, estar sobre pilotis e teto jardim.
Estas premissas eram, por sua vez, alicerçadas nos quatro conceitos
básicos de habitabilidade presentes em todo o ideário Corbusiano: morar,
trabalhar, cultuar o corpo e o espírito, e circular. Estão aí, a grosso modo, os
conceitos em voga nas teorias sobre a Cidade Moderna, embora Corbusier
enfatizasse a célula habitacional como organismo não constituinte, mas
análogo à cidade, por se tratar da condição mais primitiva e essencial à vida
em sociedade.
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Assim, a Ville Savoye seja talvez a mais paradigmática das casas de
Le Corbusier já que nela encontramos todos os conceitos “corbusierianos’’ de
moradia ideal. Situada em terreno plano, com esplêndida vista sobre o Vale do
rio Sena, no subúrbio de Paris, a Ville Savoye é uma das quatro ville blanches,
as moradias unifamiliares que coroam a investigação de novos meios produtivos
na arquitetura enunciados na Maison Dom-Ino.
Trata-se de um volume prismático, originário de planta quadrada, e elevado
sobre pilotis de forma a possibilitar a mútua visibilidade e circulação entre o
jardim e o espaço edificado. Em seu primeiro piso, concentram-se os espaços
de circulação e as áreas de serviços, que foram recolhidas atrás de uma parede
curva envidraçada que determina o eixo principal da casa. Uma rampa externa
dá acesso ao primeiro e principal andar da moradia, onde estão localizados os
quartos, a sala de estar e um jardim interior parcialmente coberto. O acesso
ao andar seguinte ocorre novamente pela rampa, que continua subindo até o
segundo andar – o terraço – para aí se fechar com uma nova parede curva.
A inclinação da rampa é favorável à subida, o que torna o terraço um espaço
semelhante aos pátios mediterrânicos tradicionais.
Em 1919, Le Corbusier fez uma série de conferências na Argentina,
quando descreveu a Ville Savoye, ainda em construção, da seguinte maneira:
Os visitantes até aqui, voltam-se e tornam a voltar-se
para o interior, perguntando-se como tudo isto acontece e
dificilmente compreendem os motivos daquilo que vêem
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
e sentem. Já não encontram mais nada daquilo que se
convencionou denominar uma “casa”. Sentem-se em outra
coisa inteiramente nova. E... creio que não se entediam!
O local: um gramado vasto e encurvado. A vista principal dá
para o Norte e, portanto, opõe-se ao sol. A frente normal
estaria portanto do lado contrário.
A casa é uma caixa na ar, perfurada em toda a volta, sem
interrupção, por uma janela corrida. Não se hesita mais em
realizar jogos arquitetônicos com cheios e vazios. A caixa se
eleva no meio dos prados, dominando o pomar.
Sob a caixa, passando por entre os pilotis, há um caminho para
os automóveis, fazendo ida e volta em forma de forquilha,
cujo gancho fecha exatamente sob os pilotis, a entrada
da casa, o vestíbulo, a garagem, os serviços (lavanderia,
rouparia, quartos dos empregados). Os automóveis rodam
debaixo da casa, estacionam ou vão embora.
Do interior do vestíbulo uma rampa suave conduz, sem que
quase se perceba, ao primeiro andar, onde transcorre a vida
do morador: recepção, quartos etc. Recebendo vista e luz do
contorno regular da caixa, os diferentes cômodos reúnem-se
radialmente sobre um jardim suspenso, que ali está como
distribuidor de luz e sol.
É o jardim suspenso sobre o qual se abrem, com total
liberdade, as paredes corrediças de vidro do salão e de vários
outros cômodos: assim, o sol penetra em todos os lugares,
no próprio coração da casa.
Do jardim suspenso, a rampa, que agora é externa, conduz
ao teto, ao solário.
Este, aliás, liga-se, por meio de três lances de escada de
caracol, à adega escavada na terra sob os pilotis. Esta
escada de caracol, órgão vertical puro insere-se livremente
na composição horizontal.
Para terminar, observem o corte: o ar circula por todos
os lugares, a luz está em cada ponto, penetra em tudo. A
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
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Figura 17 - Plantas Ville Savoye
Fonte: http://falcon.jmu.edu
Acessado em 26 mar. 2005.
Figura 18 - Ville Savoye
Fonte: http://falcon.jmu.edu
Acessado em 26 mar. 2005.
Figura 19 - Cortes Ville Savoye
Fonte: http://falcon.jmu.edu
Acessado em 26 mar. 2005.
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circulação proporciona impressões arquitetônicas de uma
diversidade que desconcerta todo visitante estrangeiro,
diante das liberdades arquitetônicas propiciadas pelas
técnicas modernas. As simples pilastras do andar térreo,
mediante uma disposição correta, recortam a paisagem com
uma regularidade que tem pó efeito suprimir toda noção de
“frente” ou “fundo” da casa, de “lateral” da casa.
A planta é pura e atende as necessidades mais precisas. Sua
disposição é a mais correta possível, na paisagem agreste de
Poissy. (CORBUSIER, 2004, p.138/139).
Em suma, são nas chamadas casas brancas, e não nos conjuntos
multifuncionais preconizados pela Carta de Atenas, que Le Corbusier concentra
seus esforços a favor da moradia ideal à sua época. Tais experimentos iniciais são
mesmo fundamentais ao desenvolvimento posterior de sua obra arquitetônica
e teórica, cenário que explica a extrema importância da Ville Savoye. Ela pode,
assim, ser compreendida como a própria materialização da chamada máquina
de morar, já que nela Corbusier sintetizara todos os conceitos anteriores, os
da Maison Dom-Ino, dos cinco pontos estruturadores, enfim, a edificação
representa a materialização, em concreto, aço e vidro, do ideário corbusieriano.
Nota-se, ainda, o extremo cuidado com a iluminação natural por toda a casa,
com a interação entre as formas, a cor, e o movimento do sol.
Na Ville Savoye, portanto, parece materializar-se a velha máxima de que
a forma segue a função. A própria forma se torna também função, ainda que
simbólica do contexto técnico e artístico da geração de vanguarda moderna.
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6. Parte 2 - Novas possibilidades na produção
arquitetônica residencial
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6.1 - Introdução: As novas possibilidades e condições
na prática da arquitetura
O argumento da arquitetura moderna, e mais especificamente de um de
seus mais atuantes partidários, o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, baseouse em grande parte na correspondência entre arquitetura e cidade, entre
cidade e sociedade, entre sociedade e tecnologia. Assim, no contexto de tais
encadeamentos, a questão central da vanguarda moderna foi determinar um
vocabulário arquitetônico originário, e ao mesmo tempo representativo, de um
novo conceito de cidade, que naquele momento esteve assinalado por questões
quantitativas e ideológicas, como a explosão urbana, a enorme demanda
habitacional e o planejamento em macro-escala.
Racionalidade, funcionalidade e universalismo constituíram, portanto,
simultaneamente suas metas e respostas frente a uma nova compreensão de
mundo.
E, embora intrinsecamente ligada aos desdobramentos culturais da
denominada era da máquina, tal concepção da arquitetura levando-se em
consideração suas dimensões individual, coletiva e social, não foi um projeto
exclusivamente moderno.
Ao contrário, há mais de cinco séculos, o arquiteto, matemático, pintor
e filósofo italiano, Leon Battista Alberti, já anunciara tal ligação embrionária
entre arquitetura e cidade, atendo-se, sobretudo, a uma das questões centrais
72
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
do meio urbano, ou seja, a da moradia.
Na análise desse importante personagem renascentista, a cidade
poderia, então, ser pensada em termos de uma grande casa, assim como, em
contraponto, a casa nada mais seria do que uma pequena cidade.
Concentrando-se na instigante correspondência entre tais termos, as
proposições iniciais da arquitetura e do urbanismo modernos assumiram, então,
caráter extremamente radical, já que, ao definir a sociedade enquanto sociedade
de massa, hierarquizada, estamental, os arquitetos do período nomearam
a hipótese do universal, tanto em termos estilísticos, quanto construtivos e
comportamentais, como resposta à nova cidade e ao novo homem moderno
que surgia.
Podia-se, portanto, pensar a cidade através de planos-macros, de
sistemas de transportes, de lazer programado, de edifícios e zonas de trabalho
pré-definidas, além de áreas e formas de morar independentes da história, das
características do lugar. E assim, também na via contrária, cada um desses
elementos adquiria simultaneamente funções e papéis previamente definidos,
e supostamente definitivos, em prol da viabilidade e do bem-estar coletivos.
Necessitava-se, em suma, identificar e até mesmo nomear traços
homogêneos, sintéticos, inclusive porque era o poder governamental quem em
boa parte executaria os projetos concebidos pelos arquitetos modernos.
As discussões em torno dos primeiros CIAM desencadearam, portanto,
a crença de que novas cidades, funcionais, deveriam substituir, com todo o
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
radicalismo do termo, as chamadas cidades históricas, consideradas à época
antiquadas e obsoletas. Isso porque se tinha a precisa sensação de que viviase uma nova era, a chamada era industrial.
Os
arquitetos do período moderno presumiram então, e através de
profundo otimismo, que a eficácia do sistema urbano seria capaz de homogeneizar
as demandas dos diversos atores da vida social, incidindo sobretudo em seus
chamados estabelecimentos humanos, conforme abordamos na primeira parte
desse trabalho.
Eficiência, quer de planejamento, de construção, de economia ou
programática, assim como universalismo, sociedade de massa e industrialização,
constituíram, portanto, os argumentos de seus raciocínios e discursos
projetuais.
A abrangência e alcances das proposições arquitetônicas modernas
são ainda presentes em nossas cidades, embora novas questões tenham se
apresentado ao contexto tecnológico, cultural e social que sucederia a era
industrial, ou seja, a era informacional em que vivemos.
Caracterizada pelo potencial comunicativo e criativo das tecnologias
telemáticas, ou seja, aquelas resultantes da crescente conexão mundial entre
computadores pessoais, a chamada era informacional corresponde a uma nova
forma de compreensão e de percepção de mundo. Nela, o que está em jogo
são as infinitas possibilidades tecnológicas [telemáticas e informacionais] do
chamado “ciberespaço”, de forma a, na arquitetura, alterar a relação entre o
74
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
clássico binômio espaço/tempo.
Em lugar da percepção mecânica, cronológica, objetiva e seqüencial da
era da máquina, a era informacional passaria a cotejar a sobreposição entre
tempos diversos, entre os efeitos de fenômenos subjetivos, simbólicos, virtuais,
que conectam as pessoas através de seus computadores.
Essa nova máquina inaugurou a era atual e criou para a arquitetura,
através de uma nova pré-disposição a códigos virtuais, a possibilidade de, por
exemplo, manejar formas complexas através da modelagem tridimensional,
como exemplifica a trajetória do arquiteto canadense Frank O. Gehry.
O cenário é o da globalização, do irrestrito incremento da comunicação
e conectividade virtual entre os membros da sociedade de massa, que fora
conformada no período anterior, da era industrial. Trata-se, em suma, do
desenvolvimento de uma nova ferramenta na história evolutiva da humanidade
e, portanto, de uma nova possibilidade de interação do homem com o meio que
ele habita e transforma continuamente.
Assim, qual a nossa relação com aquele período? O que mudou ao longo
de quase um século desde as formulações iniciais da arquitetura moderna?
A sociedade de que tratava desapareceu ou especializou-se? Seu argumento
tecnológico foi substituído ou atingiu a plenitude? Em que momento, e de que
forma, teriam mudado as regras do jogo? Quais novos horizontes foram abertos
à atuação do arquiteto?
Essas e outras questões constituem a base da segunda parte do presente
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
trabalho. O que se pretende é traçar um paralelo entre a arquitetura, sociedade
e ciências da vida moderna, e a arquitetura, sociedade e ciências da era da
informação, em que vivemos.
O que se procura é, portanto, identificar os pontos de contato, ou quem
sabe de afastamento, entre a concepção arquitetônica de nossos dias e aquela
de nosso passado mais recente, o moderno.
6.2 Alternativas ao moderno
O primeiro momento em que se testou veementemente o projeto
moderno foi aquele posterior à II Guerra Mundial4.Frente ao cenário de cidades
em parte, ou totalmente arrasadas pela destruição, o que se delineava era um
campo aberto à experimentação, à implantação irrestrita da hipótese funcional
do raciocínio moderno. Além disso, a II Guerra originaria também a completa
reordenação política e econômica internacionais.
Conforme observa o arquiteto e filósofo catalão, Ignasi de Solà-Morales,
“[...] nem sequer o chamado urbanismo Stalinista, de caráter historicista e
classicista, seria então capaz de deter um processo que estava ditado pela
racionalidade técnica e pela eficiência produtiva, sem qualquer contraponto no
gosto dos usuários ou das leis de mercado”. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.39).
Ao mesmo tempo em que testemunharam a eficácia e a força do traçado
arquitetônico moderno, esses experimentos, contudo, abriram campo ao
O movimento expressionista pode ainda ser indicado como a primeira alternativa ao estilo internacional do movimento moderno mas, na qualidade de ser a ele
contemporâneo, não se pode afirmar que o expressionismo tivesse colocado em xeque o modernismo. De qualquer forma, os arquitetos expressionistas reuniram-se
em torno da denominada Escola de Amsterdã, na segunda década do século XX, e tiveram forte influência do Manifesto Técnico da Escultura Futurista, publicado76
em 1912 por Boccione. Em síntese, fala-se do “estilo do movimento” em opção ao racionalismo que se instalara, o que faz com que o expressionismo originasse
experimentos arquitetônicos resultantes do binômio função e dinâmica.
4
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
questionamento dos resultados e dos desdobramentos do que até então se
mostrava apenas enquanto uma hipótese otimista de ordenação do mundo
industrial. E, nesse sentido, tais experiências do pós-guerra evidenciariam a
dimensão fortemente esquemática do projeto arquitetônico moderno.
Ou seja, percebeu-se à época que a supremacia do radicalismo moderno
não era tão abrangente e promissora quanto se podia imaginar, o que fez com
que, no próprio contexto dos CIAM, ainda que em seus encontros tardios, o
moderno passasse a ser colocado sob julgamento.
Surge, assim, em 1959, e com a denominação de Team X, um grupo
de arquitetos mais atentos à individualidades e variantes do comportamento
humano do que à leis universais, defensores, portanto, da maior diversidade
de modelos culturais na arquitetura, através do emprego de geometrias mais
complexas e de tipologias mais sofisticadas. Entre eles, se destacam Aldo van
Eyck, Louis Kahn, José Antonio Coderch e George Candilis.
Também em outros locais, como no norte da Europa, o chamado empirismo
nórdico de Alvar Aalto e Arne Jacobsen, entre outros, impôs certas objeções à
crença no coletivo em favor do indivíduo. Neste sentido, observa Solà-Morales:
“[...] atento às condições do lugar, receptivo às tradições locais e da pequena
escala, o desenvolvimento empirista teve a virtude de desativar a agressividade
da planificação, ainda que implicasse às vezes certo caráter pitoresco”. (SOLÀMORALES, 2002, p. 39).
E, assim que transpostos os traumas da grande guerra, potências
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
econômicas ascendentes, como os Estados Unidos, o Japão e certas regiões
da Europa, se encaminhavam ao chamado período expansionista. A década
de sessenta é, portanto, o período de gênese das tecnologias de ponta que
se especializariam absurdamente anos posteriores, como a eletrônica, assim
como da transferência das atividades produtivas primárias e secundárias aos
países de terceiro mundo. É também a época inaugural da grande euforia e
consumismo que viriam caracterizar as sociedades avançadas, e até mesmo
aquelas em fase de desenvolvimento, ao longo da segunda metade do século
XX. Em síntese, o que se delineava eram os contornos de uma nova sociedade
de massa.
Figura 20 - Projeto Living Pod
- Archigram Fonte: http://www.
archigram.net/projects_pages/living_
pod.html. Acessado em 26 mar. 2005.
Conceitos como distinção entre o individual e o coletivo, mobilidade,
fugacidade, poder de decisão do usuário, personalização, mega-estrutura
e cápsulas, dentre outros, passaram, então, a integrar novas propostas
arquitetônicas, como as concebidas pelos chamados metabolistas japoneses,
grupo constituído pelos arquitetos Kenzo Tange, Kisho Kurokawa, Fumihiko Maki
e Kiyonori Kikutake; pelo grupo inglês Archigram, nome da revista editada entre
1961 e 1970 por Peter Cook, Dennis Crompton, Warrem Chalk, David Greene,
Ron Herron e Michael Webb; além de propostas alternativas, direcionadas à
cidades do terceiro mundo. Segundo Solà-Morales, “esses grupos têm em
comum a confiança e a exigência de que é possível e necessário mudar tudo”.
(SOLÀ-MORALES, 2002, p.43).
Figura 21 - Projeto Cuihicle Archigram Fonte: http://www.
archigram.net/projects_pages/
cuishicle_4.html. Acessado em 26 mar.
2005.
Embora igualmente partidários da plena confiança nas possibilidades
78
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
oferecidas
pelos
avanços
tecnológicos,
DE MORAR:
característica
UM
HARDWARE DE MORAR?
que
motivara
os
arquitetos modernos, o que diferencia esses grupos das hipóteses radicais
do modernismo é a proposição de um modo produtivo sintonizado com as
particularidades da economia e da sociedade de consumo, de forma a criar
cidades, e conseqüentemente arquiteturas, mais livres, mais personalizadas,
mais atentas à mudanças.
Em via oposta, delineavam-se ainda propostas urbanas e arquitetônicas
denominadas alternativas. No terceiro mundo, na Ásia, na África e na
América Latina, a industrialização tardia e os anos subseqüentes à grande
guerra desencadearam processos de urbanização de proporções até então
inimagináveis, em que as políticas de moradia, próprias da tradição moderna,
se revelaram absolutamente ineficazes.
Não havia nem recursos e nem tempo suficiente para oferecer moradia
convencional ao enorme contingente de novos cidadãos que desembarcavam
nas grandes cidades, desprovidos tanto de ofício quanto de benefícios sociais.
A autoconstrução apresentava-se, assim, como alternativa desejável e
promissora.
Além disso, os movimentos de contestação do modernismo passaram
ainda pela suavização dos limites entre histórico e moderno, tal qual proposto
pelo arquiteto italiano Aldo Rossi, e, mais recentemente, pelas novas formas
de requalificação urbana de que são exemplares as transformações ocorridas
na cidade de Barcelona, desde a década de 1990.
79
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Vale destacar que, no urbanismo da Barcelona contemporânea, foi
introduzido um importante conceito descrito como metástase urbana, em que
operações pontuais, como a requalificação do desenho urbano de determinadas
praças, de pontos de encontro ou comerciais, assim como a edificação
de arquiteturas simbólicas do poder da metrópole, teriam a capacidade de
desencadear mudanças seqüenciais e qualitativas em seu entorno e, em
conseqüência, em toda a cidade.
Não eram traços estilísticos o que estava em jogo em tais concepções
urbanas e arquitetônicas contestatórias do movimento moderno, mas, ao
contrário, o que se questionava era o equilíbrio entre os domínios público e
Figura 22 - Vila Olímpica - Barcelona
Fonte: Foto do Autor.
privado, entre áreas livres e edificadas, entre as diversas escalas e significados
metropolitanos, como a do pedestre e a do automóvel. Neste sentido, suas
linguagens foram caracterizadas pela extrema variedade, desde o conciso
minimalismo até o mais barroco interesse pelo ornamento.
Em suma, a assimilação do fenômeno metropolitano, ou seja, das
enormes concentrações urbanas, foi a condicionante que orientaria cada uma
dessas novas concepções de cidades e de arquitetura. Não está mais em jogo,
portanto, a cidade tradicional considerada pelo movimento moderno e, assim,
também a arquitetura sofreria mudanças radicais.
Neste sentido, Solà-Morales observa:
Figura 23 - Porto Olímpico e
Barceloneta Fonte: Foto do Autor.
As metrópoles contemporâneas são
descentralizadas, ou seja, carecem de um ponto
80
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
central, histórico, político, e tendem a multiplicar
os coágulos nos que se densificam as atividades e,
assim, as edificações.
Mais do que de arquiteturas, se deveria falar de
conglomerados, nos quais cada peça pensada com
critérios convencionais de desenho não é senão um
elemento de um sistema de prestação de serviços
para o tratamento do qual, contudo, não existe
nem experiência nem métodos adequados à sua
diversidade e mudança contínua.
Aeroportos, áreas comerciais, áreas esportivas,
parques temáticos, nós de trocas de transportes,
áreas industriais, centros de negócio, entre outros,
são hoje os novos geradores de atividade urbana
em torno dos quais a forma das cidades parece se
fazer plástica e maleável.
As metáforas orgânicas para descrever essas
situações se multiplicam, e estamos assistindo nos
últimos anos ao verdadeiro retorno da terminologia
e da iconologia organicista para visualizar tais
fenômenos.
Sentimos a acumulação de acontecimentos sobre
nós, mas advertimos uma limitada capacidade de
assumi-los e dar-lhes respostas. Nos encontramos
diante de feitos que colocam em juízo, para a
arquitetura, sua capacidade de fazer uma cidade
permanentemente ativa, expansiva e cega em seu
desprendimento.
A metrópole, cidade do tempo presente, se
apresenta como novo obscuro objeto de desejo para
a arquitetura e os arquitetos. (SOLÀ-MORALES,
2002, p.51).
81
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Ou, como explica em contraposição Fábio Duarte:
Distintamente do mundo industrial, a cidade
contemporânea tem o os processos de geração
de conhecimento, de produtividade econômica
e de ordens políticas e militares transformados
pelo paradigma informacional. O produto da
tecnologia informacional é a própria informação,
potencialmente sendo trabalhada em escala global
e em tempo real. São primordialmente os fluxos
financeiros voláteis, negociados através das redes
informacionais, e não o tráfego de produtos,
que dinamizam a economia global. O trânsito de
mercadorias, idéias e pessoas no mundo percorria
os trilhos férreos, as auto-estradas, as linhas
telegráficas; fazia-se a partir de um projeto político
internacional que se fortalecia, com o enrijecimento
das fronteiras econômicas nacionais, através da
criação de taxas aduaneiras e regulamentação
de circulação de valores, para a proteção de uma
possível propagação de crises econômicas. Se há
figuras simbólicas do espaço moderno na passagem
para o século XX são os trilhos, as estradas, as
alfândegas. A sociedade de fluxos contemporânea
dispensa os trilhos assentados no terreno, rompe
as barreiras aduaneiras: uma idéia não viaja de
um ponto a outro, ela age em todos ao mesmo
tempo. Se há uma figura, ela é a rede. (DUARTE,
2002, p.175).
82
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
6.3 O espaço coletivo e individual na era das
tecnologias telemáticas
Diversidade, fluidez, fugacidade e individualidade foram, como vimos
no capítulo anterior, conceitos incorporados à visões arquitetônicas que se
estabeleceram contemporânea ou posteriormente à tradição moderna. Se,
em princípio, tais termos corresponderam a uma nova escala e magnitude
dos aglomerados urbanos, o advento da chamada era informacional, a
que nos deteremos no presente capítulo, transformaria
por completo seus
desdobramentos tanto nas formas de criação quanto de representação
arquitetônicas.
Existem alguns conceitos chaves para o entendimento desta nova era
globalizada5 , dentre os quais destacam-se os de interatividade e ciberespaço.
Segundo Pierre Lèvy, “o termo interatividade em geral ressalta a participação
ativa do beneficiário de uma transação de informação. De fato, seria trivial
mostrar que um receptor de informação, a menos que esteja morto, nunca é
passivo” (LÈVY, 2000, p.79). Já ciberespaço seria melhor compreendido pela
sintética definição de “turbulenta zona de trânsito para signos vetorizados”
(LÈVY, 1995, p. 49).
Ou seja, no contexto da completa mediação das atividades humanas
através de tecnologias computacionais6, em suma, dos softwares e da web,
tais conceitos não mais se resumiriam à criação tradicional de edifícios e
Se não espacialmente, ao menos economicamente.
Trata-se da utilização de computadores pessoais associados ao que se denomina logiciárias, ou seja, “parte de um sistema eletrônico, de
um instrumento, de um microcomputador, constituída de informações, algoritmos e procedimentos contidos em seu sistema de memória e
armazenamento secundário. É a logicionária que determina todas as operações dos subsistemas do computador, determinando seu modo de
operação e o caráter das operações realizadas. Em inglês, software”. (ZUFFO, 1997). O avanço de tais sistemas, assim como dos próprios
5
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
arquiteturas. A introdução da idéia de redes, de fluxos interconectados e
sobrepostos, e dos lugares de sua manifestação, transformaria por completo a
arquitetura da passagem para o século XXI.
A cidade teorizada e planejada pelos modernos no início do século XX,
quando se objetivava a racionalização do ambiente urbano enquanto unidade
produtiva, não mais existia. Em seu lugar, a cidade informacional passou a se
basear em hierarquias bem mais complexas do que as derivadas de processos
tradicionais de produção e distribuição de mercadorias.
No momento em que esses bens passam a ser também imateriais, como
entretenimento, conectividade, qualidade de vida e forças de poder flexíveis, as
cidades se tornam aglomerados descentralizados, sem a clara distinção de um
núcleo principal, central, não ao menos em todos os níveis e representatividades
da vida urbana.
Descentralizados, contudo, não implica em isolados. Ao contrário, a maciça
conectividade entre pessoas, objetos, serviços e informação, independentemente
do grau de desenvolvimento do país, é justamente o traço fundador da era
atual. Seja na Paris contemporânea, descrita pelo geógrafo e historiador Marcel
Roncayolo, na Los Angeles de que fala o geógrafo norte-americano Edward Soja
(apud Solà-Morales, 2002), ou nos países subdesenvolvidos abordados pela
holandesa Saskia Sassen (apud Solà-Morales, 2002), as cidades informacionais
não podem mais ser pensadas nos mesmos termos e métodos instaurados
pelos arquitetos e planejadores modernos. Não se trata mais, portanto, da
componentes, são apenas uma das alterações que os novos avanços nas tecnologias ditas telemáticas, ou seja, “a ciência que trata da
manipulação e utilização da informação através do uso combinado de computador e meios de telecomunicação” (FERREIRA, 1999),
possibilitam à sociedade contemporânea, também denominada de sociedade da informação, infosociedade, sociedade pós-industrial.
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DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
cidade haussmanniana do século XIX.
O que equivale a dizer que a contribuição arquitetônica neste novo contexto
deve ser completamente redefinida, inovada, tanto em relação aos parâmetros
arquitetônicos clássicos, ou seja, à arquitetura enquanto formas de criação de
materiais, quanto aos termos de correspondência entre arquitetura e cidade. É
necessário entender, como afirma Solà-Morales, “a gravidade da esquizofrenia
produzida entre a cultura arquitetônica e a realidade urbana contemporânea”.
(SOLÀ-MORALES, 2002, p.82).
Assim, torna-se urgente indagar o lugar, os instrumentos e capacidades
de intervenção da arquitetura na trama da cidade informacional, questão a
que, segundo proposto por Solà-Morales, podemos nos aproximar pela análise
de certas constantes observadas na arquitetura e cidades atuais.
A primeira delas refere-se à idéia de mutação, que já no início do século
XX motivara o modelo orgânico-evolucionista do norte-americano Frank
Lloyd, assim como do inglês Raymond Unwin, que atuou no Brasil através das
chamadas cidades-jardim. Por esse modelo, a relação entre as transformações
nas cidades e na arquitetura era pensada de forma similar aos movimentos de
crescimento e transformação dos seres vivos.
Porém, com os desdobramentos do conceito de mutação na área da
biologia, ainda no século XIX, passou-se a considerar as mudanças ocasionais,
aleatórias, enquanto mecanismos de ruptura e de alteração brusca de processos
hereditários. O paralelo em diversas áreas de conhecimento foi, então, a
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DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
introdução de noções como imprevisibilidade, caos e turbulência, através dos
quais as cidades se transformariam não por processos evolutivos, mas, ao
contrário, por processos de mutações súbitas, autônomas. Não se chegaria,
portanto, do planejamento à edificação, como acreditaram os modernos.
Solà-Morales explica:
Desenhar a mutação, introduzir-se em sua energia
centrífuga, deveria comportar a um tempo, o
desenho do espaço público e privado, da mobilidade
e dos lugares especializados, do organismo global
e dos indivíduos. Tudo aponta para a necessidade
de morfologias abertas, interativas, nas quais
alguns mínimos critérios sejam as únicas leis que
organizem o rápido processo pelo qual se passe de
um estágio urbano para outro. Mas, esses critérios
não podem incidir unicamente no desenho urbano, à
margem da edificação, porque essa distinção perde
sentido em um processo mutacional. Somente
projetos com mecanismos de auto-regulação, de
interação e de reajuste durante o próprio processo
de realização podem ter sentido em situações
dificilmente imagináveis em outros momentos do
passado. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.86).
A arquitetura da era informacional tem a ver também com a idéia de
fluxos, e, mais uma vez, vale aqui destacarmos a mudança de enfoque ocorrida
em relação à concepção moderna.
Durante os CIAM, o movimento era circunscrito a uma das quatro grandes
funções urbanas, ao lado da moradia, do trabalho e do lazer. Mas, na passagem
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
para a era informacional, começaram a ser considerados também outros tipos
de deslocamentos, ou seja, os fluxos imateriais.
Fluxos estes não como os da autopista ou do telefone, mas enquanto
justaposição e encadeamento de movimentos informacionais, pelos quais as
cidades e arquitetura passam a ser locais nodais, que dão suporte à variados
níveis de conexão entre pessoas, serviços e objetos. Ou seja, parece improvável
que a arquitetura, neste contexto diversificado, seja pensada como algo estável,
estático e contínuo, mas, ao contrário, que ela seja entendida a partir da
urgência de mobilidade por dar suporte ao intercâmbio entre redes distintas.
Ligada à idéia de fluxos, a cidade contemporânea é também caracterizada
por novas formas de trocas, de mercado. Os bens e serviços passam de
necessários à desejáveis, e, assim, fundamentam a chamada sociedade de
consumo e da informação.
Neste sentido, o filósofo alemão Walter Benjamin (apud Solà-Morales,
2002) antevira os espaços comerciais da era informacional como os novos
espaços rituais e fetichistas da nossa sociedade. Ou seja, em todo o mundo,
os mecanismos de intercâmbio passam a ser carregados de simbolismo, o que
Figuras 24 e 25 - H2O Pavilion – Grupo
NOX.
entrará em choque com a objetividade, com o racionalismo e funcionalismo
defendidos pelo movimento moderno.
Ainda segundo Solà-Morales:
O princípio funcionalista se torna inconsistente
no momento em que as necessidades humanas
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
se convertem em absolutamente relativas. [...]
É necessário ir ao cinema, ter um jardim próprio
em que cultivar as flores de que se gosta, dispor
de automóveis e deslocar-se com eles para ter
comodidade, ver de perto a Gioconda, a Capela
Sistina [...]?(SOLÀ-MORALES, 2002, p.98).
São perguntas difíceis de responder, supostamente muito mais no mundo
ocidental, mas em vias de sê-lo também, embora com matizes distintas, inclusive
nos países em desenvolvimento. Em outras palavras, o funcionalismo parte de
hipóteses fixas quando, na realidade, as necessidades a que deve responder
são e devem ser tais que dinamizem a produção do mercado, fazendo-o fluido,
mutante, efêmero.
Quais as propostas contemporâneas para esses locais, esses cenários do
ritual de consumo, seja ele de bens, de serviços ou de informação? O que SolàMorales denomina de contenedor, pode ser uma loja comercial, um museu,
um estádio, um edifício histórico ou locais de entretenimento, é definido
espacialmente pela idéia de independência em relação à realidade.
Ou seja, são espaços de representação, artificiais, contrários à explícita
transparência, separados fisicamente do entorno de forma a negar-lhe
permeabilidade, transitividade, conexão imediata. Por isso os tratamentos
de superfícies passaram a ser tão importantes para os arquitetos da era
informacional, como veremos em outra parte do presente trabalho.
Os contenedores são os cenários de distribuição e consumo da era
Figura 26 - London City Hall, Foster
and Partners. Fonte: http://www.
answers.com/topic/foster-and-partners.
Acessado em 1 abr. 2005.
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
informacional, os locais da multiplicação das ofertas culturais. Seu princípio é
o da representação cultural que deve intermediar os sofisticados mecanismos
de distribuição e consumo de nossa sociedade.
Outra constante que podemos observar para entender a arquitetura da
era informacional refere-se ao surgimento da noção de ambiente enquanto
transcendência dos valores físicos, imediatos dos edifícios e de seu entorno.
Tal idéia deriva em boa parte da tradição paisagística, pela qual a percepção
de valores formais está intrinsecamente associada a valores evocativos,
carregados de significados simbólicos e históricos. É o que Solà-Morales define
como “forma da ausência”.
De forma similar ao que ocorre com os contenedores, tal aproximação
se define a partir do isolamento em relação à cidade existente para conferirlhe um outro significado, um espaço de representação. Ou seja, trata-se em
boa parte de um movimento cultural de desencanto com a cidade originária do
período moderno, o que explica o traço ambíguo, de amor e ódio, de grande
parte de grupos artísticos contemporâneos em relação a ela.
Referindo-se à expressão francesa terrain-vague, sendo vague tanto
no sentido de vazio, livre de atividade, quanto no de vago, sem limites e
significados determinados, Solà-Morales escreve: “[...] da mesma forma em
que a cultura urbana do século XX desenvolveu os espaços dos parques urbanos
como resposta e antídoto à nova cidade industrial, nossa cultura pós-industrial
reclama espaços de liberdade, de indefinição e de improdutividade. São eles os
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
espaços residuais da cidade”. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.104).
Mas, e quanto às habitações? O que mudou na forma de pensar e edificar
a moradia dos novos aglomerados urbanos? Existem elementos constantes
e característicos da era informacional, identificáveis nas manifestações
arquitetônicas atuais desse importante programa humano?
Em termos gerais, pode-se dizer que, embora não se compare à
magnitude, prioridade e intensidade das formulações modernas sobre o
assunto, o tema da habitação humana nas grandes cidades continua sendo, ao
menos quantitativamente, o mais importante relacionado à arquitetura e aos
arquitetos.
Diferentemente do período moderno, em que as formulações teóricas sobre
a moradia, como as de Le Corbusier que tratamos na primeira parte do presente
trabalho, se baseavam, especialmente no pós-guerra, na responsabilidade
direta dos poderes públicos, atualmente houve a diversificação dos eixos que
organizam a atividade produtiva das habitações.
Por um lado, figura o chamado mercado imobiliário, ou seja, o acesso
à casa através da compra, aluguel, leasing ou de qualquer outro mecanismo
econômico. Tal procedimento é regulado pelas leis de oferta e da procura, e
é caracterizado por uma falsa imagem de possibilidades irrestritas. Ou seja,
embora anuncie a opção de escolha frente à incontáveis localizações, tipologias,
entre outros, as habitações privadas do mercado imobiliário contemporâneo,
seja ela um apartamento, uma casa unifamiliar ou uma unidade condominial,
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
apresentam de fato poucas variações essenciais.
Por outra parte, embora se verifique certo desinteresse cultural da
arquitetura em relação a essa imensa área de produção edificada, fator
normalmente anunciado como reação à massiva especulação imobiliária,
o desenho da casa persiste como terreno fértil para a experimentação
arquitetônica, para a inovação.
E, nesse sentido, se destacam quatro programas essenciais: as habitações
coletivas especiais, ou seja, casas para situações transitórias, como as criadas
para os atletas em competições olímpicas, ou casas para imigrantes, para
desabrigados, para quem vive sozinho, entre outros; as habitações com elevada
liberdade de criação, ou seja, criadas para o próprio arquiteto, para o artista,
para a experimentação neo-vanguardista; a construção alternativa, também
tangencial à grande massa da arquitetura residencial comercial, e exemplificável
através das iniciativas de auto-construção em contextos sociais e econômicos
menos favorecidos; e, por fim, aquele programa vinculado a uma linha de
pensamento mais diretamente ligada ao mercado, ou seja, a casa definida a
partir da idéia de componentes (móveis, eletrodomésticos, bricolagem, etc.).
Sobre esse programa especificamente, Solà-Morales observa:
[...] estas novas ofertas surgem como partes
decisivas para valores tão importantes como a
distribuição dos espaços, a disposição de máquinas
que auxiliam o trabalho doméstico ou a definição
do caráter simbólico que o usuário quer atribuir a
91
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
sua própria casa como resposta às necessidades de
identidade e satisfação estética. (SOLÀ-MORALES,
2002, p.96).
6.4 Panorama da arquitetura contemporânea
Vimos, no capítulo anterior, os principais indícios da transformação das
cidades ao longo do século XX através da análise de concepções urbanas
que surgiram simultânea e posteriormente ao momento moderno, da cidade
industrial. O objetivo foi pesquisar as origens de conceitos, tais como fluxos,
Figura 27 - 9o Bienal Internacional de
Arquitetura de Veneza - Metamorph
- Exposição Topografia. Fonte: www.
vitruvius.com.br. Acessado em: 20 abr.
2005.
mutações, representação, mediação, fluidez e individuação, que se tornariam
essenciais à arquitetura da era informacional.
Da cidade passaremos, então, à arquitetura propriamente dita, de
forma a pesquisarmos as principais mudanças em seus métodos de criação e
representação em virtude dos conceitos anteriormente citados.
Ou seja, se para as cidades a introdução das idéias de mutação e fluidez
originou a descrença em sistemas absolutos de planificação, tais como pregados
pela vanguarda moderna, para a arquitetura o que mudou foi a compreensão
e definição de seus elementos constitutivos.
Neste sentido, é sintomático citarmos o tema e textos de apresentação da
mais recente mostra de arquitetura da Bienal de Veneza, ocorrida em meados de
setembro de 2004. O argumento do curador, Kurt Foster, era de que a arquitetura
Figura 28 - 9o Bienal Internacional de
Arquitetura de Veneza - Metamorph
- Exposição Transformazione. Fonte:
www.vitruvius.com.br. Acessado em:
20 abr. 2005.
atravessa momento de profundas transformações, o que o motivou a selecionar
92
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
centenas de projetos e obras concluídas em todos o mundo, representativos de
um novo vocabulário projetual. Assim, a mostra denominada Metamorph, era
constituída pelas sugestivas seções Transformações, Topografia, Superfícies e
Atmosferas.
Em síntese, a arquitetura contemporânea deixaria de priorizar a
conformação de espaços materiais, conceito que lhe definira desde as
formulações vitruvianas de comodidade, firmeza e beleza, elaboradas há vinte
e cinco séculos, e passaria, então, a ter que considerar a permanência da fruição
desses espaços, além dos eventos a eles vinculados. Ou seja, sob o ponto de
vista da tradicional relação espaço/tempo, a arquitetura da era informacional
mudaria o foco do primeiro para o segundo domínio.
Em outras palavras, o que vivenciamos desde finais do século XX é a
passagem da arquitetura firme, estável, sólida, imutável, para uma arquitetura
que poderia ser denominada como fluida, líquida.
Neste sentido, Solà-Morales assinala:
O habitual na arquitetura é, portanto, que sua
determinação se faça através de materiais sólidos,
o que explica as repetidas considerações materiais
e construtivas contidas nos tratados arquitetônicos
ocidentais. Arquitetura tem a ver, tradicionalmente,
com a idéia de permanência. Mas, o que acontece
se tentarmos pensar desde outros extremos desses
conceitos tradicionais? É possível pensar uma
arquitetura cujo objetivo seja não o de ordenar a
dimensão exata, mas o movimento e a duração?
(SOLÀ-MORALES, 2002, p.125).
Figura 29 - Projeto vencedor do
concurso para Plano Urbanístico de
Astana, Casaquistão. 1998. Kisho
Kurokawa. Fonte: http://home.t-online.
de/home/anamande/astana01.jpg.
Acessado em 02 out. 2004.
93
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
No início do século XX, o pensador francês Henry Bergson (apud SolàMorales, 2002) tecera considerações sobre os domínios do espaço e do tempo
tal qual proposto pela física moderna, ou seja, embora totalmente relacionados,
enquanto pólos extremos de uma mesma realidade. Frente à corrente crença de
que o espaço constituía o verdadeiro suporte da arquitetura, e que, portanto,
o tempo representava a forma de experiência desse espaço, Bergson propôs
pioneiramente a necessidade de se considerar como prioritária a experiência
da duração, da continuidade e, assim, da diversidade e multiplicidade.
Em outros termos, a compreensão da arquitetura não se daria de antemão
através da visualização dos limites espaciais constituídos por seu suporte,
ou seja, pelos materiais que a conformam. Ao contrário, o que Bergson, e
Figura 30 - A TransArquitetura de
Marcos NOvak.
posteriormente o também filósofo francês Gilles Deleuze (apud Solà-Morales,
2002), irão propor é que a arquitetura, enquanto manifestação da realidade,
ou das realidades em que vivemos, seja constituída pelos acontecimentos que
se fixam em nossa consciência, abrindo a experiência do espaço e do tempo à
acumulação, à multiplicidade e à intuição.
Em resumo, deixaria de existir na arquitetura a relação hierárquica entre
espaço e tempo, de forma que não só seus suportes materiais determinariam
a percepção dos espaços que ela cria, mas também outros fenômenos ligados
ao tempo e à idéia de fugacidade.
Para exemplificar a questão, vale comparar as diferenças de linguagens
94
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
observadas entre duas manifestações arquitetônicas em voga nos anos
sessenta e setenta. São elas o minimalismo e as criações do grupo Fluxus7.
Enquanto que para a primeira, fundamentada na filosofia zen, é a busca pela
redução e pela essência formal o que está em jogo na arquitetura, para a
segunda, um movimento artístico que propôs a interação entre várias formas de
manifestação cultural, é, ao contrário, a busca pela acumulação, pela sucessão,
pela casualidade o que definiria a finalidade da criação arquitetônica. Para o
Fluxus, assim, é o tempo o fio condutor da arquitetura, sendo desnecessários,
conseqüentemente, as reduções ou os esquematismos formais.
Portanto, a arquitetura líquida poderia ser pensada enquanto a criação
de meios e estratégias para manipular os fluxos, a circulação de indivíduos,
bens ou de informação, o que se torna mais compreensível ao pensarmos em
áreas de troca, como aeroportos, estações marítimas ou ferroviárias.
Mas também em outros programas, o que definiria os procedimentos, a
essência da arquitetura fluida da era informacional? Embora se trate de uma
linguagem ainda em fase de conformação, portanto de difícil definição, algumas
chaves se abrem para o entendimento e proposição de seus mecanismos
criativos.
Uma delas é pensarmos na radical mudança ocorrida nos últimos dez
anos em relação à forma de representação arquitetônica. Em vez da tradicional
visualização perspectiva, em princípio definida como a tomada de ângulos, de
pontos de vista parciais, a experiência da arquitetura, ou seja, do lugar dos
7
Denominação inspirada no pensamento do filósofo pré-socrático Heráclito. Grupo fundado em 1961, principalmente por George Maciunas, tem como participantes
arquitetos como Robert Morris, Sol Le Witt, Walter de Maria, etc. (SÒLA-MORALES, 2002, p.130/132)
95
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
fluxos, é necessariamente sinestésica, tem a ver com a interação e a somatória
de estímulos.
Por isso, como veremos nos próximos capítulos, o extraordinário
desenvolvimento das ferramentas de criação e representação arquitetônica
através de tecnologias computacionais, adquiriu papel fundamental na
constituição do que se denomina arquitetura fluida da era informacional.
6.5 Fundamentação para as novas ferramentas
arquitetônicas
Priorizar a base material da arquitetura, tal qual as noções vitruvianas
que predominaram na cultura ocidental até o século XX, implica pensarmos
que suas linguagens, estilos e tipologias derivam essencialmente de formas
de manipulação de materiais e técnicas construtivas. Por isso, desde Alberti
até Le Corbusier, a prioridade dos arquitetos foi refletir sobre os alcances e
possibilidades de aplicação de determinados recursos técnicos, construtivos,
pensamento que constitui a própria definição da tão discutida relação entre
arquitetura e tecnologia.
Porém, é fato que, embora a noção de material seja uma das bases
incontestáveis da arquitetura de todos os tempos, essa mesma noção mudou
muito desde meados do século XIX, principalmente a partir da busca dos
arquitetos modernos em ampliar a transparência das edificações.
96
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Seja através da conexão visual entre o interior e o exterior, do
estreitamento de paredes e da eliminação de divisórias internas através da
idéia da planta livre, ou seja, da separação ente elementos estruturais e de
vedação no sentido de favorecer a fluidez espacial, esses arquitetos modernos
teriam, em certo sentido, dado o pontapé inicial no que se pode denominar
processo de desmaterialização da arquitetura.
Ainda
modernos:
segundo
Solà-Morales,
nos
pressupostos
dos
arquitetos
[...] estava a semente de uma ambição mais radical:
fazer uma arquitetura em que o desenvolvimento
tecnológico permitisse passar de espaços fechados
por muros, mais ou menos transparentes, ao
controle do ambiente através do controle energético.
Ou seja, uma arquitetura sem muros necessários
para o controle da luz, do clima, do ruído e de
toda sorte de radiações. Assim, o projeto moderno
deveria consumar sua vontade desmaterializadora.
Com adequada iluminação e eletroacústica, um
estádio se convertia em uma sala de concertos,
um hangar industrial em um teatro. Com circuito
interno de televisão poderiam desaparecer os
obstáculos, as portas. Com um anúncio luminoso
poderiam desaparecer as fachadas dos edifícios.
A arquitetura do controle ambiental dissolvia
toda materialidade, substituindo-a por efeitos
instantaneamente modificáveis. A arquitetura
estava nas intenções e nas infra-estruturas
tecnológicas necessárias à sua produção. (SOLÀMORALES, 2002, p.40).
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Tal noção de imaterialidade, ou seja, da arquitetura que não tem como
prioritário o tratamento, a visualização e a ênfase em materiais com suportes
físicos no seu sentido tradicional, se desdobraria no entendimento da arquitetura
enquanto série de lugares e fenômenos instantâneos. Ou seja, as tecnologias
necessárias à sua constituição não mais seriam exclusivamente construtivas,
mas, ao contrário, tecnologias informacionais que acondicionam objetos, efeitos
e mensagens efêmeras.
Assim, podemos introduzir a questão ferramental da arquitetura da
era informacional, ou seja, a análise dos desdobramentos dos novos meios
computacionais em suas formas de criação e representação, através de alguns
elementos básicos por ela manipulados. Embora diversos, tais elementos têm
em comum a busca pela desmaterialização de que falamos anteriormente.
Ou, conforme os termos do texto de abertura da seção Atmosfera, na
mais recente Bienal de Veneza:
[...] coisas evasivas e instáveis, fluidas e
persuasivas, são de natureza difícil de ser descrita
e ainda mais dificilmente de ser definida. Atmosfera
é talvez o mais propício termo para ausência de
superfícies, para um fenômeno insubstancial e
em constante transformação. Como a respiração,
a nuvem ou o crepúsculo, a atmosfera está em
todos os lugares, embora jamais possa ser
compreendida, tocada. As sensibilidades modernas
respondem rápida e intuitivamente ao conjunto de
mudanças na aparência e caráter das coisas. Há
mais considerações para a vida dos edifícios do
que mudanças cíclicas do dia e da noite, estações
98
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
do ano ou temperaturas. Iluminação interna e
externa; controle da temperatura interna, seu nível
de ruídos e sua constante flutuação de atmosfera.
Todos os indícios sugerem a vida inconsciente.
(KURT FOSTER, 2004).
Ou seja, o que está por trás dos intrincados programas computacionais,
e de todos os esforços em torno de sua criação, é a necessidade de dar ao
arquiteto suportes ferramentais para criar e representar uma arquitetura que
seja definida como: espaço informacional, ou seja, aquele capaz de transmitir
não exclusivamente dados objetivos mas também ficcionais, simulados; espaço
definido e construído pelos efeitos da luz, seja ela natural ou artificial, tal
qual as experiências de Toyo Ito ou Jean Nouvel; e espaço da representação,
ornamental, em que se destacam os tratamentos de superfície pesquisados
pelos arquitetos Herzog & de Meuron.
Todas essas noções espaciais têm em comum um novo enfoque de
compreensão e de percepção do suporte físico, material, que constitui a
arquitetura, de forma a ele incorporar a percepção difusa, entre o visível e o
invisível, que caracteriza a sociedade e a cultura contemporâneas.
Figura 31 - Estádio para as Olimpíadas
de 2008, em Pequim. Herzog & Meuron.
Fonte: http://www.ethlife.ethz.ch/
images/stadionpeking-l.jpg. Acessado
em 30 mar. 2005.
99
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
6.6 A aplicação da ferramenta computacional na
Arquitetura
Embora as formulações conceituais da arquitetura da era informacional
não tenham se delineado repentinamente mas, ao contrário, através de várias
manifestações culturais e arquitetônicas que surgiram desde o período áureo
do movimento moderno no início do século XX, existe um momento instaurador
do que viria configurar uma completa revolução na forma de pensar e criar o
espaço arquitetônico.
Trata-se, em síntese, do momento em que as tecnologias computacionais
se tornam a ferramenta necessária ao arquiteto da era informacional para que
ele aplique, e explicite, todos aqueles conceitos de que falamos anteriormente,
ou seja, a desmaterialização, a somatória de experiências, de informações, de
estímulos sensoriais, a autonomia entre as partes, enfim, a individuação da
experiência arquitetônica.
Antes de esmiuçarmos as características e propriedades de tais
tecnologias, propomos a reflexão sobre um dos elementos centrais à atividade
do arquiteto, ou seja, a criação e a discussão em torno de imagens. E imagens,
aqui, enquanto uma representação do real, ou seja, imagens de representação
visual, assim como ditas imagéticas, ou seja, frutos de nossa mente, sem
qualquer origem material.
Em síntese, tanto para a arquitetura quanto para qualquer outra área
100
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
de criação, é através das imagens que se representam os objetos da criação,
ou seja, aquilo que se deseja concretizar. Claro, portanto, que a forma de
tal representação, ou seja, que a natureza e magnitude dos processos de
formulação de imagens, tem a capacidade de influenciar o entendimento do
objeto criado, tanto pelo autor quanto por terceiros.
Em outras palavras, no momento mesmo da criação, a visualização do
objeto criado pode alterar suas características iniciais, em um processo dinâmico
em que interagem a criação, a representação, a compreensão e a intenção. Ou,
como explica Ivan Piccoli dos Santos:
O arquiteto interage com os elementos que
deveriam estruturar o espaço não somente através
das representações destes, como é o caso da
projetação convencional, mas também através da
ação da percepção que o espaço proporciona ao
ser moldado e vivenciado.
Assim, ao se encontrar dentro do espaço ao
mesmo tempo que está sendo projetado, o
arquiteto imergindo no espaço, torna-se o
agente que correlaciona as sensações às ações
necessárias para a modificação de um espaço
indicial até obter as condicionantes formais e que
antes só apresentava como um todo, dentro do
espaço imagético, ou seja, no espaço imaterial do
pensamento. (SANTOS, 2000, p.180).
Falamos aqui da realidade virtual, ou seja, da simulação do espaço
arquitetônico e dos fenômenos a ele ligados, através de um suporte lógico, de
101
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
um programa denominado genericamente de software, que, em síntese, faz
interagir a máquina e o usuário. O que procuramos descobrir é porque, embora
os computadores já fossem utilizados em escritórios de arquitetura há mais
tempo, houve um determinado momento, na virada do século XXI, em que ele
provocou uma verdadeira revolução na forma de se projetar e compreender a
arquitetura.
Assim, seria interessante nos retermos por um instante na questão da
linguagem e das hierarquias computacionais. Ou seja, qualquer que seja a
finalidade do uso do computador, qualquer que seja a natureza de seu usuário,
é necessário o desenvolvimento de uma plataforma de comunicação entre o
usuário e a máquina, o software de que falamos há pouco, que é constituído
por estruturas sintática e semântica.
O software pode interagir com determinadas partes ou com todo o
hardware, que são as unidades físicas dos computadores, e as formas de
relacionamento entre o usuário e o software podem ainda ser hierarquizadas
ou arbitrárias. Em síntese, relacionamento hierarquizado é o que propõem os
softwares denominados algorítmicos, ou seja, aqueles baseados em seqüência
de ações para se resolver determinado problema, enquanto que relacionamento
arbitrário é a base do que viria a se denominar software heurístico ou software
paramétrico. A definição de paramétrico deriva da palavra parâmetro, que por
sua vez denota todo elemento cuja variação de valor altera a solução de um
problema sem alterar-lhe a natureza.
102
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Esta definição transformou completamente a forma de interação entre
o arquiteto e o computador, na medida em que opera com a denominada
linguagem de objeto orientado. Ou seja, as variáveis, os parâmetros
associadas pelo usuário, relacionam-se a determinado objeto que, por sua
vez, está relacionado a outros objetos, em infinitas possibilidades de interação
imediata entre as partes e o todo. Em síntese, os mais sofisticados softwares
paramétricos, de que são exemplos potenciais os sistemas CAD (computer
aided design) e CAM (computer aided manufacturing), são capazes de realizar
desenhos completamente em terceira dimensão, da qual pode-se extrair as
plantas, seções, detalhes ou seleção de materiais e, através da conectividade
com outras máquinas, enviá-los diretamente para outros agentes envolvidos
na execução do projeto arquitetônico.
O arquiteto norte-americano Frank O. Gehry foi um dos pioneiros nesse
assunto. Em 1989, o projeto de sua monumental escultura em forma de peixe
para as Olimpíadas de Barcelona de 1992, contou com a assistência de um
software denominado Catia (Computer AssistedTthree-dimensionalIinteractive
Aplication), originalmente desenvolvido para a indústria aeroespacial francesa.
Mas, foi o papel decisivo que teve tal software para o projeto não executado
do Auditório Disney de Los Angeles, o que revelou a enorme potencialidade do
uso do computador para as criações arquitetônicas.
Gehry projetara curvas para a sala de concertos através de maquete
física e, com o escasso tempo de que dispunha para construir uma maquete
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em escala e revestimento reais e apresentá-la na Bienal de Veneza, na Itália,
o arquiteto lançou mão de todas as possibilidades do Catia enquanto software
que, ao mesmo tempo em que simula formas tridimensionais, cria também
construções geométricas e determina especificações construtivas. Assim, como
assinala Fabio Duarte:
No projeto do Disney Concert Hall, os computadores
do escritório estavam conectados com a indústria
de cortes de pedra na Itália. Assim, diretamente
dos modelos digitais 3D desenvolvidos no escritório
de Gehry, as informações migravam à Itália, sem
necessitar sua transposição para pranchas de duas
dimensões; os computadores decidiam o melhor
modo de cortar as pedras, economizando material”
(DUARTE, 1999, p.158).
Figura 32 - Disney Concert Hall, Frank
Gehry. Fonte: http://www.arcspace.
com/architects/gehry/disney2/
Acessado em 01 mar. 2005.
O próprio arquiteto é testemunho da passagem da posição cética para a
profunda crença no computador enquanto promissora ferramenta de desenho
arquitetônico, seja em virtude dos potenciais de simulação e sistematização
construtiva de seus softwares, ou então de sua irrestrita potencialidade de
interconexão a outros computadores. Gehry, que no início, ainda na fase
de concepção do peixe de Barcelona, anunciava sua completa descrença
nos computadores enquanto elemento de desenho arquitetônico, passou do
escaneamento 3D de maquetes físicas à completa adoção do sistema Catia no
projeto que se tornaria um de seus mais importantes, o museu Guggenheim de
Figura 33 - Disney Concert Hall, Frank
Gehry. Fonte: http://www.arcspace.
com/architects/gehry/disney2/
Acessado em 01 mar. 2005.
Bilbao, na Espanha.
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
Segundo James Steele:
A aproximação de Gehry, tal como se manifesta
em Bilbao, está muito distante de considerar o
moderno como um estilo mas, contudo, nos mostra
a essência material do que significa ser moderno.
Resultado de aplicar uma tecnologia especializada,
da qual o arquiteto é o responsável por introduzir
na profissão, (...), o Guggenheim de Bilbao está
adiante de seu tempo, como o estava em finais dos
anos cinqüenta a espetacular espiral de concreto de
Frank Lloyd Wright no Guggenheim nova-iorquino.
(STEELE, 2001, p.133).
E, continua Steele:
A importância da maioridade da aplicação Catia
por parte de Gehry e sua equipe de projetos e
produção em Bilbao, vai muito além da possibilidade
de manipular e documentar as formas complexas
dos primeiros desenhos e maquetes da proposta,
e habilitar finalmente sua construção. O diretor
do escritório de Gehry, Jim Glymph, [...] sustenta
que o que difere o Catia de outros sistemas é que
ele utiliza equações polinômicas, de modo que,
em lugar de definir só a situação dos pontos no
espaço, como fazem a maior parte dos sistemas, a
aplicação Catia é também capaz de definir com uma
equação qualquer superfície, o que implica que se
consulta um ponto concreto dessa superfície, com
Catia o pode conhecer. (STEELE, 2001, p.129).
DE MORAR:
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HARDWARE DE MORAR?
Figura 34 -Aplicação do CATIA no
projeto do Guggenheim de Bilbao.
Frank Gehry. Fonte: STEELE, J.
Architecture y Revoución Digital. p.132.
Figura 35 - Guggenheim, Bilbao. Frank
Gehry. Fonte:http://www.digischool.
nl/ckv1/architectuur/gehri1.htm
Acessado em 01 mar. 2005.
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HARDWARE DE MORAR?
Neste sentido, é patente a inflexão ocorrida na obra de Frank Gehry após a
apropriação dos meios computacionais em seu método projetual. Assim, quando
se comparam seus trabalhos e ensaios anteriores ao uso de tais ferramentas
com os atuais, nota-se com clareza um salto qualitativo impressionante,
pelo menos no que diz respeito aos aspectos formais que caracterizam a sua
produção arquitetônica.
Ainda que a experiência de Gehry se relacione a um software específico,
a que nem todos os arquitetos ou escritórios de arquitetura têm acesso, a
realidade virtual propriamente dita tornou-se, desde finais do século XX, um
instrumento de desenho bem familiar à profissão.
Uma das hipóteses para checarmos os possíveis caminhos da arquitetura
contemporânea é, portanto, compreendermos como se estruturam os
mecanismos da realidade virtual, analisarmos seu vocabulário. E, neste
sentido, pode-se dizer que existem duas técnicas principais de projetação, que
se denominam topologias operativas e proto-arquitetura.
Foi o arquiteto catalão Alejandro Zaera, sócio da iraniana Farshid Moussavi
no escritório londrino FOA (Foreign Office Architects), quem primeiro sugeriu a
denominação topologia operativa. Dentro de um esquema de representação de
superfícies através de malha de pontos conhecidos [tanto em termos de suas
propriedades materiais quanto de sua localização no espaço], denominada
wireframe, o que Zaera propõe é que a obtenção de resultados espaciais
deriva da manipulação de tais nós. Portanto, ao se manusear cada um dos nós
Figura 36 - Perspectiva Projeto Metz
Pompidou Merkezi - FOA. 1992. Fonte:
http://www.arkitera.com/proje/
pompidou/foa.htm. Acessado em 25
fev. 2005
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do wireframe, à exemplo de um escultor, determina-se o volume, as formas
arquitetônicas. Neste cenário, a geometria euclidiana dá lugar a uma geometria
flexível para a constituição da linguagem arquitetônica.
Já proto-arquitetura, ou seja, arquitetura de protótipos, é o nome do
procedimento que possibilita a experimentação de espaços virtuais através da
imersão, através de imagens em escala e resoluções reais, além de permitir
alterações no projeto durante o próprio processo de experimentação.
Neste sentido, conclui Piccoli dos Santos:
Podemos concluir que as ações programáticas, ou
seja, as relações que determinam a produção dos
espaços arquitetônicos a partir da utilização da
Realidade Virtual, refletem uma retomada de uma
ideologia que não se desenvolveu até meados da
década de noventa, em decorrência da ausência
de tecnologias de construção e de representação
capazes de traduzir ao mundo das percepções
humanas, todas as variáveis contidas nos processos
de projetação sugeridos por Gaudi, por Boccione e
por Kiesler.
[...] Assim, se na arquitetura moderna a forma
segue a função, podemos dizer que na Arquitetura
por Simulação, quer seja o suporte fios e saquinhos,
a malha de ferro das estruturas de concreto, a tela
de arame das maquetes de Kiesler, ou a utilização de
aparatos digitais, quer se voltem à materialização
concreta ou à materialidade experimental da mídia
digital, a ação é que acaba por gerar a forma
destes novos espaços arquitetônicos. (SANTOS,
2000, p.191).
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DE MORAR:
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HARDWARE DE MORAR?
Em qualquer dos casos, pode-se dizer que da realidade virtual, que
transformou a forma de experiência espacial do homem, é o traço distintivo da
nova era, telemática, informacional.
Ela decorre de um novo estágio evolutivo na história da humanidade,
ou seja, através da criação e aperfeiçoamento de uma nova tecnologia, a
computacional, o homem tornou possível o convívio e a apreensão dos espaços
denominados virtuais. Eles derivam da aplicação de algumas ferramentas
tecnológicas principais, que estão agrupadas principalmente no âmbito da
computação gráfica, da multimídia8 e hipermídia9.
Trata-se de uma nova interface de comunicação, assim como fora,
em menor escala e alcances, a criação do telefone e da televisão. Enquanto
ferramenta de comunicação, pode-se dizer que a realidade virtual é multidisciplinar, ou seja, diz respeito a diversas áreas, embora seu foco sejam as
novas possibilidades de desenvolvimento de ambientes virtuais.
A conjugação entre realidade virtual e comunicação deriva de diversos
fatores, entre os quais do denominado design de interfaces, que conecta
diversos meios de comunicação, da criação de novos canais sensoriais para a
circulação da informação, assim como da própria midiatização da comunicação,
seja ela entre pessoas ou entre pessoas e máquinas.
Se o sistema de comunicação é definido através de funções combinadas
em uma interface dominante, assim como por seus canais de transmissão e
infra-estrutura organizacional, os elementos de design de mundos virtuais são
8
Multimídia: Combinação de diversos formatos de apresentação de informações, como textos, imagens, sons, vídeos, animações, etc.,
em um único sistema. (FERREIRA, 1999).
9
Hipermídia: Conjunto de informações apresentadas na forma de textos, gráficos, sons, vídeos e outros tipos de dados, e organizadas
segundo o modelo associativo e de remissões, próprio do hipertexto. (FERREIRA, 1999).
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por outro lado a plataforma, os dispositivos interativos, as ferramentas de
sistemas logicionários e, fundamentalmente, o próprio usuário.
Experiências com realidade virtual parecem dominadas por informações
arquitetônicas, embora sejam essencialmente imateriais. Portanto, qual seria
a natureza da utilização desse novo meio de comunicação pelos arquitetos?
A produção de espaços, simultaneamente habitados e transformáveis,
poderia revelar uma nova espacialidade? Por sua vez, a transmissão dessa
nova espacialidade configuraria uma forma inédita, particular à nossa era, de
intercâmbio de informações? E de que forma esses novos fatores transformariam
significativamente nosso modo de habitar?
Para boa parcela dos pesquisadores ligados ao estudo da informática, o
uso da expressão Realidade Virtual tem se limitado a designações de natureza
tecnológica, restringindo o conceito à combinação entre a noção de ambientes
eletronicamente simulados e a necessidade de dispositivos auxiliares que lhes
tornem acessíveis.
Assim, a realidade virtual pode ser definida enquanto simulações
eletrônicas de ambientes imateriais, experimentadas através de acessórios
especiais, como capacetes e roupas “plugadas”, que permitem ao usuário final
interagir em situações tridimensionais realísticas. Trata-se, portanto, de um
mundo alternativo, preenchido com imagens geradas por computador que
respondem aos movimentos humanos.
Melhor seria, talvez, definir a realidade virtual a partir de conceitos
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HARDWARE DE MORAR?
filosóficos, de forma a estabelecer como foco a experiência humana desses
espaços, em detrimento das particularidades tecnológicas do hardware que a
origina.
Assim, um breve olhar sobre os pioneiros da pesquisa de Realidade
Virtual aponta tendências diversas de desenvolvimento. Mas derivam de Jaron
Lanier (HEIM,1993, p.116), os cinco conceitos que têm guiado boa parte das
pesquisas sobre o assunto.
O primeiro deles é o da simulação, que indica a vontade de criar o mundo
virtual formalmente semelhante à realidade concreta. A simulação, obviamente,
demanda profundo conhecimento dos gráficos de computação e dos sistemas
de som tridimensionais, cada vez mais evoluídos, por parte do designer.
O segundo conceito é o da interação, que se refere ao grau em que os
usuários podem influenciar a forma ou o conteúdo do ambiente midiatizado.
Alguns vêem realidade virtual em qualquer representação eletrônica que lhes
permita certo grau de interação, como, por exemplo, limpar a lixeira de um
computador pessoal. Porém a interação, como a entendemos, pressupõe
obrigatoriamente a intervenção, a troca, e o envolvimento ativo do usuário. Isto
inclui, por exemplo, a relação possível entre pessoas desconhecidas através do
contato pelo telefone ou pela Internet.
O terceiro conceito, denominado imersão, permite a ilusão de habitar
mundos virtuais, e está relacionado à invenção de dispositivos específicos, como
capacetes, sistema de acústica tridimensional e luvas. A imersão completa,
Figuras 37, 38, 39 - Imagens imersivas da
CAVERNA Digital do Núcleo de Realidade
Virtual do LSI (Laboratório de Sistemas
Integráveis), vinculado à Escola Politécnica da
USP.Desenvolvido por pesquisadores do LSIEPUSP, esse sistema é conhecido nos Estados
Unidos como Cave (Cave Automatic Virtual
Environment) e na Europa como Cube.
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
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HARDWARE DE MORAR?
conhecida como imersão de corpo inteiro, demanda procedimentos mais
complexos, como a criação de um espaço em torno do corpo, uma cápsula, e
sensores capazes de reproduzir sensações de toque, peso, calor etc.
A
chamada “Telepresença”, o quarto conceito, pressupõe que estar
presente em um lugar, de forma remota, significa também estar nele
virtualmente. O atendimento médico à distância e a teleconferência são bons
exemplos de aplicação deste conceito.
E o quinto conceito refere-se à possibilidade de comunicações em redes,
através da conectividade entre diferentes mundos virtuais, em que pressupõese, portanto, a presença de ao menos duas pessoas. Auxiliada pelas técnicas
de realidade virtual, tal forma comunicação permite também aos usuários
compartilharem eventos e abstrações, que não necessariamente utilizam como
suporte palavras ou referências reais.
Mas afinal, o que podemos considerar como virtual? Pierre Lévy, importante
pesquisador das alterações sociais causadas pelo impacto das novas tecnologias,
lembra que a palavra virtual vem o latim vitualis, de virtus, que significa força,
poder. O que reforça a idéia de que o virtual não se contrapõe ao real, como o
falso ou imaginário, mas, como acredita Lévy, “é, ao contrário, uma maneira
de ser fecundo e poderoso, que enriquece os processos de criação, abre novos
futuros, cava poços de sentidos sob a planura da presença física imediata”
(LEVY, 1995).
O processo que visa efetivar a presença à distância, ou telepresença,
111
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
que é o conceito mais transcende dos referidos anteriormente, sob o ponto
de vista perceptivo, inicia-se com a ligação de órgãos sensoriais do usuário
aos dispositivos de saída do computador. Estes dispositivos são controlados e
guiados para um ou mais computadores com o fim de gerar uma simulação
convincente à visão, ao tato e à audição, de um outro ambiente, o virtual.
Neste sentido, efetivar a presença à distancia é mais uma destinação que um
objetivo. Uma destinação a um lugar psicológico, a uma locação virtual.
Já segundo Anja Pratschke (2002), os sistemas de realidade virtual podem
ser classificados em quatro tipos, dependendo dos níveis de telepresença que
eles viabilizem:
Sistema de janela; a tela do computador provê
uma janela ou um portal para um mundo virtual
tridimensional
e
interativo.
Computadores
pessoais são freqüentemente usados, e os usuários
equipam-se, às vezes, de óculos 3D para obter
efeitos estereoscópios.
Sistema de Espelho; os usuários olham para
uma tela de projeção e vêem uma imagem deles
mesmos movendo-se em um mundo virtual. Usa-se
um equipamento de vídeo para gravar as imagens
do corpo do usuário. Um computador sobrepõe
esta imagem em um fundo gráfico. A imagem
deles mesmos espelha, na tela, seus movimentos
concretos, fato que explica o nome Sistema de
Espelho.
Sistema auxiliado por Veículo; os usuários entram
no que viria a ser um veículo (por exemplo, tanque,
avião, cápsula espacial, etc) e opera controles que
simulam movimento no mundo virtual. O mundo
112
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
é freqüentemente projetado em telas. Os veículos
podem incluir plataformas móveis que ajudam a
simular movimento físico.
Sistema de “Caverna”; os usuários entram em
uma sala ou cômodo onde encontram-se rodeados
por grandes telas nas quais projeta-se uma cena
virtual quase contínua. Óculos 3D são usados, às
vezes, para potencializar o sentido de espaços.
Classificando-se os sistemas em função da relação
que mantêm com a realidade concreta, podemos
citar:
Sistemas Virtuais Imersivos; Os usuários equipamse com dispositivos que imergem completamente
um certo número de sentidos em estímulos gerados
por computador. Os capacetes estereoscópios
constituem um elemento central deste sistema.
Sistemas de realidade Aumentada; os usuários
equipam-se de capacetes que sobrepõe objetos
virtuais tridimensionais a cenas do mundo concreto.
(PRATSCHKE, 2002, p.62).
Do ponto de vista técnico, o desenvolvimento de um sistema de realidade
virtual é uma tarefa complexa que envolve, basicamente, um suporte de
comunicação em rede, a criação de ambientes virtuais, a consideração da possível
atuação dos usuários e a criação de personagens gerados por computador.
Seus elementos essenciais são os dispositivos de entrada, tais como
visuais, auriculares, táteis, nasais e orais, que, através da cinemática, traduzem
os movimentos corpóreos para a linguagem computacional, e, por outro lado,
o software de realidade virtual que cria ou recria o ambiente virtual.
113
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
A aplicação final do conceito de realidade virtual pode servir a um meio
de comunicação de múltiplos interesses, como uma combinação de televisão
e telefone, por exemplo, envolvendo suavemente nossos sentidos. Em livros
técnicos encontra-se a descrição de realidade virtual como a etapa seguinte
e lógica dentro da história dos meios de comunicação. Com isso, parece que
todas as aplicações no campo da realidade virtual podem ser consideradas
como eventos comunicativos, já que envolvem a comunicação entre usuário e
computador, assim como entre os próprios usuários.
Enfim, nota-se que a contribuição da arquitetura é fundamental à criação
dos mundos virtuais, sobretudo porque se faz necessária a criação de um
simulacro dos ambientes tangíveis.
Por outra análise, é possível também que a realidade virtual amplie a
compreensão tradicional da arquitetura, configurando novas formas de diálogo
entre a atividade profissional e o mundo concreto. Conseqüentemente, é provável
que se estabeleçam novos paradigmas referentes aos modos de se habitar com
o auxilio da realidade virtual, tais quais já propõem alguns arquitetos, como
Marcos Novak e o grupo NOX.
Figura 40 - A TransArquitetura de
Marcos NOvak.
114
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
6.7 O programa habitacional contemporâneo sob a
perspectiva das novas ferramentas arquitetônicas
digitais
Vimos, nos capítulos anteriores, que os enormes avanços das ferramentas
computacionais
arquitetônicas
criaram
a
completa
transformação
das
referências espaciais em voga há vinte e cinco séculos na arquitetura, ou seja,
desencadearam o questionamento ou relativização de parâmetros como a ação
da gravidade e a linha do horizonte, em detrimento de uma nova linguagem
espacial. Assim, a realidade virtual, que viria substituir a experiência real do
espaço edificado, seria estruturada por referências exclusivamente matemáticas,
imagéticas e simbólicas.
Neste cenário, as formas de interação entre usuário e máquina adquiriram
papel fundamental, e até transformador, das demandas humanas e profissionais
pela configuração de novos espaços e, em função do aumento irrestrito da
quantidade e diversidade de informações disponíveis, inclusive visuais, tornouse urgente pensar na qualidade de tais interfaces10.
Retomando, por outro lado, a especialização do programa habitacional
contemporâneo tal qual proposta por Ignasi de Solà-Morales, análise citada
anteriormente neste trabalho, definem-se dois grupos programáticos principais.
O primeiro deles pertence ao chamado mercado imobiliário, de que não
10
Conforme Pierre Lèvy, “em termos de interfaces há duas linhas paralelas de pesquisas e desenvolvimento em andamento. Uma delas visa a imersão através dos cinco sentidos
em mundos virtuais cada vez mais realistas (...). Nesta abordagem das interfaces, o humano é convidado a passar para o outro plano da tela e a interagir de forma sensório-motora
com modelos digitais. Em outra direção de pesquisa, chamada de realidade ampliada, nosso ambiente físico natural é coalhado de sensores, câmeras, projetores de vídeo, módulos115
inteligentes, que se comunicam e estão conectados a nosso serviço. Não estamos mais nos relacionando com um computador por meio de uma interface, e sim executamos diversas
tarefas em um ambi
, 2000: 38)
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
trataremos aqui, que, embora responsável por boa parte dos projetos atuais
no Brasil e exterior, se caracteriza pela grande homogeneidade das soluções
arquitetônicas.
Em outro extremo, definem-se programas em que há maior grau
de interação entre a arquitetura e o usuário final, como as moradias para
grupos específicos, tais como terceira idade, temporários e imigrantes; assim
como as habitações de conotação artística, a exemplo das tão divulgadas
casas de arquiteto; ou ainda as moradias em que os componentes, tais como
equipamentos e peças de mobiliário, se tornam elementos articuladores do
programa e determinantes das características espaciais.
É importante salientar que, ao analisarmos a produção arquitetônica
residencial de Le Corbusier, especialmente as de sua primeira fase, como as
chamadas casas brancas, percebe-se que seu público alvo se restringia, neste
caso, a uma elite intelectual ou a uma burguesia emergente que se tentava se
afirmar como classe de um estamento velado no início do século XX.
Abordaremos esse segundo grupo programático, tal qual abordamos
na primeira parte do presente trabalho, quando tratamos do ideário moderno
representado pela produção de Le Corbusier, sobretudo porque ele é definido por
um aspecto central na arquitetura e na própria sociedade da era informacional,
ou seja, pela possibilidade de customização, de individualização. Assim, com
exceção aos edifícios ditos tecnológicos ou inteligentes, é nesse grupo que se
pode testar ao extremo as possibilidades de simulação virtual, conexão pela
116
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
web e interatividade do computador com o usuário.
Também ele corresponde à nova atmosfera tecnológica e social que
emergiu com a era informacional. Ou seja, passaram a integrar os projetos
arquitetônicos, tanto pelos arquitetos quanto por seus interlocutores, a
sensibilidade em relação a novos materiais, a diferentes padrões e organizações
sociais, processos relacionados por sua vez à irrestrita conectividade através
de computadores.
Assim, pode-se dizer que a característica principal da sociedade
contemporânea é sua enorme habilidade em manipular informações, o que
diferencia a relação entre os diversos agentes do espaço arquitetônico. Ou
seja, assim como os programas paramétricos de criação tridimensional e de
visualização virtual se tornaram poderosas ferramentas de trabalho para os
arquitetos, representaram também a ampliação da capacidade de compreensão e
de interação dos arquitetos e seus interlocutores com os espaços projetados.
Complementarmente a este fato, também as estruturas sociais e
familiares sofreram enormes transformações, tornaram-se mais complexas na
passagem para a era atual. De forma genérica, os casamentos são mais tardios
do que há alguns anos atrás, as famílias são menores, com menos filhos, sem
contar na grande parcela de habitações voltadas a solteiros, situações que
Figura 41- Torre BATC - HAMZAH
y YEANG. Fonte: STEELE, J.
Architectura y Revolución digital.
pág. 41.
demandam soluções diversas de habitação. Assim, solicitações mais complexas
e diversificadas de moradia exigem, conseqüentemente, um novo tipo de ação,
de atitude e projeto arquitetônicos.
117
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
Em sua tese de mestrado no Massachusetts Institute of Technology, em
2000, Gregory Demchak afirma que:
[...] a casa pós-industrial será um sistema de
partes que existem dentro de um sistema de
relacionamentos e de um complexo arranjo de
variáveis que são conectados através de dados
matriciais. A casa será o produto de uma linguagem
coerente: a expressão de relações arquitetônicas e
de variáveis definidas pelo usuário [...]. O desafio,
então é propor um vocabulário arquitetônico para a
construção de casas e, a partir desse vocabulário,
discernir um grupo de variáveis que possibilitem
ao cliente rapidamente customizar o seu meioambiente. (DEMCHAK, 2000, p.72).
Vale se ater por um instante à definição de dados matriciais acima citada.
Segundo Fábio Duarte, as matrizes são:
[...] entendidas como a organização de paradigmas
de várias disciplinas que formam uma predisposição
para a apreensão, compreensão e construção do
mundo. Elas não são o seu modelo, a sua fôrma:
são suas matrizes, que o constituem e por ele são
constituídos. (DUARTE, 2002, p.14).
Assim, o que Demchak aborda é a natureza e a diversidade dos elementos
integrantes da habitação virtual, ou seja aquela construída hipoteticamente
através dos softwares computacionais, de forma a questionar-se acerca de
seus elementos constitutivos e características de interação com o usuário. E
118
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
vale lembrar que, o meio-ambiente virtual, modelado pelo computador, passou
a ser organizado por um cenário de regras lógicas que definem os limites dos
ajustes possíveis.
Neste sentido, existem três elementos-chaves envolvidos no projeto de
residências com assistência virtual. São eles: a plataforma de comunicação com
o usuário; os modelos paramétricos, que podem ser editados; e um sistema
pré-fabricado de construção que comporte alterações customizadas ainda na
linha de montagem.
O primeiro deles é o terreno em que são lançadas as solicitações, os
desejos e as preferências do usuário, através de uma interface computacional
que priorize a interação intuitiva. Ou seja, embora os softwares de modelagem
3D e de realidade virtual derivem de um complexo sistema de conhecimento
matemático e arquitetônico, a única informação que o cliente deverá dominar
é o procedimento e a possibilidade de adicionar dados, de ajustar rápida e
facilmente as variáveis dos projetos ainda na fase de concepção.
Neste sentido, o que Demchak enfatiza é que:
[...] a interface corresponderá ao lado do cliente no
processo de desenho e o lugar aonde as variáveis
serão ajustadas e opções exploradas. O programa
de recepção usará essas definições do cliente para
definir vocabulários espaciais e estéticos que,
então, irão gerar modelos paramétricos [...]. Da
definição das alturas e larguras de um ambiente,
à especificação dos equipamentos do escritório, as
ferramentas de desenho atuarão como o mediador
119
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
primário de informações relativas ao desenho e à
construção de novas casas [...]. A classe emergente
de consumidores instruídos tem mais controle
sobre as formas como a tecnologia é manipulada e
desenhada. (DEMCHAK, 2000, p.72).
Assim, inserida em uma sociedade em que tudo é passível de consumo,
também a casa, poderá ser, à exemplo de um carro ou da alta-costura,
comercializada como um símbolo de estilo de vida e, portanto, deverá ter
a habilidade de ser receptiva à várias conotações pessoais e estilísticas. Ou
seja, em substituição ao raciocínio extremamente funcionalista, a sociedade
informacional enfatiza o estilo pessoal, a imagem e a qualidade de vida.
Figura 42 - Maison T, Jakob +
Macfarlane, La Garenne-Colombes,
França. Fonte: KRAUEL, J. Casas
Inovação e Design. pág. 167.
Ou seja, as possibilidades da nova era demandariam ferramentas
de desenho baseadas na interatividade, na web, o que ampliaria o foco da
atividade do arquiteto à exponenciação do conceito de prestação de serviços
de arquitetura, no caso, à procura por uma nova casa.
No que diz respeito ao sistema construtivo e, portanto, às categorias ou
gramáticas formais que constituem os softwares de desenho arquitetônico,
Demchak identifica dois grupos principais. Ou seja, de um lado figuram os
elementos classificáveis entre internos ou externos e, de outro, aqueles que
podem ser considerados suportes [a estrutura ou o envoltório] ou elementos
destacáveis, periféricos [aqueles que podem ser modificados].
Em qualquer dos casos, o desafio imposto ao projeto da casa contemporânea
Figura 43 - Maison T, Jakob +
Macfarlane, La Garenne-Colombes,
França. Fonte: KRAUEL, J. Casas
Inovação e Design. pág.167.
120
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
é tornar os elementos industriais, fabricados em série, receptivos à solicitações
customizadas, individuais. A diferença estaria na conexão entre setores
da indústria, como acabamentos e tipos de cortes de peças, por exemplo,
diretamente ao software de desenho através da web.
Ou seja, a interação do arquiteto e do usuário dos serviços de arquitetura
com esses elementos materiais, industrializados, se daria ainda na etapa de
desenho, durante o processo de modelagem 3D. Através do que se denomina
gramática da forma, em síntese de um sistema de elementos que a definem e que
é baseado em parâmetros arquitetônicos, ambientais, tecnológicos, funcionais,
estéticos e econômicos, a arquitetura poderia influenciar e determinar variações
no próprio processo de fabricação de elementos construtivos.
Em síntese, o desafio produtivo da arquitetura residencial da era
informacional seria explorar ao máximo as potencialidades da pré-fabricação
customizada, o que corresponde não somente a uma nova forma de construção,
mas também da própria utilização dessas moradias. Embora a customização
não seja um atributo inerente ao processo industrial, deve sê-lo em um sistema
integrado ao contexto pós-industrial, no qual se delinearia, portanto, o que
podemos denominar de customização em massa.
Com isso, podemos traçar uma analogia, mesmo que superficial, entre
as idéias Corbusierianas de casas em série, construídas com elementos
estandardizados, tal qual a concepção produtiva da era da máquina, e a
discussão proposta por Demchak. Com ele, configuram-se novos condicionantes
121
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
que complementam os anseios do velho mestre.
Através de softwares, de sistemas integrados e interconectados, ou seja,
de suportes tecnológicos, seria otimizada, portanto, a relação entre arquiteto,
cliente e produção, sem, contudo, ocasionar a pasteurização produtiva da
arquitetura.
Trata-se da demanda por flexibilidade que, conforme vimos em capítulos
anteriores, identifica a passagem da sociedade e arquitetura modernas para as
atividades da era informacional. Ou seja, as novas casas teriam o desafio de
favorecer contínuas transformações, quer pela ação dos seus moradores atuais
ou pelas demandas de futuros habitantes.
A hipótese apontada por Demchak em sua tese refere-se aos já citados
conceitos de suporte e elementos periféricos enquanto sistemas materiais,
concretos, das habitações. Em sua análise:
Toda casa será dotada de um envelope estrutural
dentro do qual módulos internos conectáveis
serão organizados para criar quartos, depósitos,
divisões, escritórios e passagens de serviço.
Todas as paredes internas serão ao mesmo tempo
adaptáveis e flexíveis; aonde adaptabilidade
implica a habilidade de transformação espacial em
conjunto com mudanças fundamentais no modo
de vida, e flexibilidade implica a habilidade dos
objetos de serem movidos ou acomodados a novas
demandas. Um exemplo de uso flexível pode ser a
conversão de um local de trabalho em um ambiente
de entretenimento, através da rotação de uma
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
unidade modular [...]. Ao distinguirmos a casa
entre suportes e unidades destacáveis nós
estamos radicalmente nos afastando das práticas
convencionais de construção de moradias.
(DEMCHAK, 2000. p.89).
Assim, as unidades destacáveis de que trata Demchak referem-se à
unidades modulares independentes, plantas-tipo de pequenas dimensões que
são intercambiáveis e interconectáveis no interior da residência.
Em outro sentido, a flexibilidade pode incidir também na aparência das
superfícies que envolvem, interna e externamente as construções, o que nos
leva novamente à questão da interação entre os programas paramétricos de
desenho e a produção industrial customizada. Está idéia coloca em cheque
fundamentalmente um dos marcos do ideário Corbusieriano, preconizado na
célebre frase “A forma segue a função”.
Ou seja, com os conceitos de fluidez e flexibilidade aliados aos mecanismos
de realidade virtual, pode-se chegar a conclusão de que, através do domínio de
tais elementos e conceitos, “ A forma segue o momento” e “A função segue o
instante ou a necessidade”.
De qualquer forma, ainda que tais possibilidades e processos dependam
de um nível de desenvolvimento e aparato tecnológico compatíveis com sua
realização, o que se propõe aqui não é discutirmos as polaridades, distribuição
ou exemplos específicos de países ou de cidades, ou ainda de setores delas,
123
ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
habilitados a adotarem integralmente as novas possibilidades tecnológicas da
arquitetura da era informacional.
O objetivo, ao contrário, é identificar nas hipóteses da moradia
contemporânea, elementos relacionados às mudanças tecnológicas, sociais e
culturais de que tratamos nas páginas anteriores do presente trabalho. Ou
seja, identificar em conceitos atuais de habitação, os lugares e elementos
da individuação, das atmosferas recriadas, da interação e superposição de
fenômenos informacionais, sejam eles de entretenimento, funcionais ou de
conforto ambiental.
Em suma, a intenção é traçarmos o paralelo entre as novas possibilidades
arquitetônicas para o programa habitacional e a nova sensibilidade do homem
da era informacional.
E, neste sentido, vale ressaltarmos que, tanto na visão do norte-americano
Gregory Demchak, quanto na classificação programática do catalão Ignasi de
Solà-Morales, assim como em manifestações esparsas de outros arquitetos em
todo o mundo, é a potencial capacidade de customização, de flexibilidade, de
individuação da moradia, o traço distintivo da era atual.
Ainda que as formas de efetivação de tal programa sejam ainda, em boa
parte, apenas possibilidades almejadas por todos os agentes envolvidos no
processo de criação e execução arquitetônicas.
Não podemos deixar de lado também, as possibilidades de automação do
Figura 44 - Eric Owen Moss: Umbrella,
Los Angeles. Fonte: STEELE, J.
Arquitectura y Revolución Digital, p.
184.
ambiente habitacional, sobretudo se imaginarmos que segundo muitos
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
o teletrabalho substituirá os escritórios e pode se tornar a saída para os
congestionamentos das grandes cidades contemporâneas. A renomada e quase
totalizadora dos mercados de softwares no mundo a Microsoft trabalha com um
projeto chamado Microsoft Home, também conhecida como Casa Bill Gates, o
que nada mais é do que um laboratório ou um protótipo de uma casa digital.
Segundo o jornalista Ethevaldo Siqueira que visitou o protótipo idealizado
pela Microsoft podemos ter um panorama das possibilidades já factíveis para
o emprego da telemática no cotidiano residencial e muito possivelmente
influenciando na concepção do projeto pelo arquiteto que deverá atentar para
tais possibilidades:
Logo à entrada, um painel com os meios de
identificação biométrica do visitante, que
utilizaremos na próxima década: leitor de íris,
monitor sensível ao toque dos dedos, decodificador
de impressões digitais e o mais sofisticado
desses recursos, o sistema de reconhecimento
de fisionomia. Um sistema de TV, embutido na
parede, quase invisível, com câmera e microfones,
possibilita o diálogo e a identificação, mostrando a
imagem do visitante.
(...) Tudo na casa se conecta e tem seu comando
central numa plataforma Windows, com rede
híbrida, isto é, associando uma infra-estrutura de
cabo com redes sem fio (Wi-Fi e Bluetooth). Essa
plataforma é, na realidade, um exemplo perfeito
de tecnologia de computação embutida. Com
ela, os equipamentos passam a ter capacidade
de processamento, armazenamento de dados e
comunicação. E tudo funciona como se fosse uma
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
rede de computadores, com software distribuído
por todos os cômodos e equipamentos.
Além da computação embutida que controla
as principais funções gerais da casa – como
comunicação,
segurança
e
monitoramento
de energia e temperatura – há computadores
espalhados em toda a residência, com destaque
para os Tablet PCs, ou seja, notebooks com
comunicação sem fio, iguais aos que nossos
senadores acabam de ganhar. Em cada cômodo há
câmeras e microfones, embora a privacidade possa
ser sempre garantida por que está no aposento.
Para acionar ou controlar cada equipamento ou
sistema, basta falar, dando-lhe a ordem. Por ser
mais fácil de usar, o comando de voz é o sistema
de controle mais adotado, embora não seja o único
na casa da Microsoft.
A comunicação integra todos os meios da forma
mais completa possível, interconectando telefone,
computador, Internet e televisão. Assim, a família
pode atender a chamadas telefônicas – internas,
externas ou celulares – em qualquer terminal,
esteja onde estiver, no quarto na sala, na cozinha,
no banheiro, na sala de lazer ou no escritório. E
cada morador pode fazer consultas a sistemas de
controle interno ou comunicar-se com o mundo em
busca da informação de que precisa, via internet
de banda larga.
A sala de lazer é uma festa. Nas paredes, as
maiores telas de cristal líquido e plasma. Tudo
que está nos computadores pode ser acessado e
projetado em qualquer dessas telas. Se o dono
gosta de artes plásticas ou quer enriquecer ainda
mais o visual, pode transformar qualquer sala numa
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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA
DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
galeria virtual de esculturas e quadros favoritos. E,
com a holografia, terá estátuas virtuais em cada
canto da sala. Num grande servidor, especial para
o entretenimento, estão armazenadas todas as
músicas, filmes, shows vídeos, fotos e programas
de televisão da família, que podem igualmente
ser acessado e exibidos em qualquer dos telões e
displays da casa. (SIQUEIRA, 2004, p.47/48).
Através desta descrição simplista e sem grandes especificações técnicas
tanto do ponto de vista informacional como arquitetural, pode-se imaginar as
incríveis possibilidades que se abrirão nos próximos anos para o emprego das
tecnologias telemáticas nos projetos arquitetônicos residenciais. No entanto
através das ilustrações e registros fotográficos deste ambicioso projeto da
Microsoft notamos que não há um rompimento brutal com o programa ou a
decoração da chamada Microsoft Home, segundo Siqueira “... há uma transição
suave entre o tradicional e o futurista”. (SIQUEIRA, 2004, p.50). Talvez por uma
resistência aos costumes antigos absorvidos dos períodos Renascentistas pelos
projetos de vanguarda moderna e que só mesmo as próximas gerações poderão
responder se conseguirão se desvencilhar de muitos hábitos antigos contidos no
cerne das sociedades ao longo do tempo. Na era medieval o homem se abrigou
para se proteger das intempéries e dos ataque de animais, hoje continuamos
usando a casa como abrigo e proteção das intempéries e da violência que
assola, especialmente as grandes cidades, com o chamado teletrabalho, e com
os problemas explícitos no ambiente externo e hostil das metrópoles, o homem
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DE MORAR:
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HARDWARE DE MORAR?
parece se voltar cada vez mais para talvez sua primeira invenção: a casa. Com
isso, devemos cada vez mais discutir as novas possibilidades para o programa
habitacional contemporâneo, de modo tal qual os modernos, traduzir através
do primeiro estabelecimento humano, a mudança social que ocorre em nossos
dias de forma implacável e voraz, onde o tempo parece ter se despregado
do espaço e parafraseando o mestre Le Corbusier parece que a sociedade
se encontra como em sua época de inquietação: “Ébria de velocidade e de
movimento, dir-se-ia que a sociedade toda se pôs, inconscientemente, a girar
em torno de si própria; tal qual avião em parafuso dentro de uma bruma cada
vez mais opaca”. (CORBUSIER, 1946, p.10).
Figura 45 - Ilustração Liquid
Architecture. Fonte: http://www.
liquidarchitecture.info/. Acessado em
18 set. 2004.
128
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7. Conclusão:
(A nova máquina de morar, um hardware de morar?)
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HARDWARE DE MORAR?
O presente trabalho é estruturado em duas partes distintas. Na primeira
delas, abordam-se as cidades, a sociedade, a cultura, e a tecnologia da era
industrial, de modo a entender em quais bases se estruturou a arquitetura
para o novo homem que emergia das conquistas tecnológicas nos campos da
mecânica e, posteriormente, da eletromecânica, exemplificada especialmente
pelas obras residenciais da primeira fase do provavelmente mais transcendente
dos arquitetos do século XX: Le Corbusier.
Na segunda, através dos mesmos elementos, o cenário delineado foi o
da chamada era informacional, ou pós-industrial, de que as tão alardeadas
habilidades de computadores e seus programas de desenho tornaram-se
elementos simbólicos na produção arquitetônica e nas demais áreas da vida
humana.
A questão que se propôs enfrentar foi investigar a herança do projeto
arquitetônico modernista na atuação profissional de nossos dias, ou seja, através
de um programa específico, no caso o habitacional, indagar se o estilo e as
conquistas modernas estariam fadados à superação ou ao completo triunfo.
Isso porque, como vimos na primeira parte, o argumento da vanguarda
moderna foi basicamente de natureza tecnológica. Ou seja, através da
manipulação criativa das novas possibilidades de construção industrial, propôsse um desenho universal para ordenar e projetar as edificações, assim como a
cidade e seus elementos constitutivos.
Por tal razão, para exemplificar tais argumentas de uma geração,
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HARDWARE DE MORAR?
discorreu-se sobre o arquiteto franco-suíço Le Corbusier como objeto da
primeira etapa do trabalho, ou seja, ateve-se a seus projetos e proposições
teóricas, especialmente do chamado momento purista de seu ideário, por ser
ele e, sobretudo nesta fase, um dos mais atuantes e partidários arquitetos do
estilo internacional moderno.
E o recorte habitacional, ou seja, a análise do que Le Corbusier viria a
denominar como a Máquina de Morar, foi estabelecido mediante os termos do
recorte que se teceria e na segunda etapa do trabalho.
Assim, na medida em que se compara universalismo e individuação, esta
última enquanto qualidade fundamental da era informacional em que vivemos,
nada mais apropriado do que testar um programa extremo, ou seja, o da
habitação. Isso porque, em última análise, ainda que em moradias coletivas,
multifamiliares, a casa é, em princípio, o lugar do indivíduo.
E o que se percebe, e que se pode concluir, é que embora aparentemente
divergentes, a relação entre os dois momentos estudados é paradoxal, pois a
arquitetura das eras industrial e pós-industrial guardam semelhanças conceituais
e lingüísticas de extrema relevância.
Ou seja, embora seus discursos sejam antagônicos, conforme exemplificam
as dicotomias universal versus individual, estável versus fugas, material versus
desmaterialização, entre outros, a arquitetura contemporânea se apoderou de
determinadas conquistas e conceitos originários do modernismo, dando a elas
novas possibilidades através das inéditas conquistas ferramentais nos processos
131
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UM
HARDWARE DE MORAR?
criativos arquitetônicos.
Abordou-se aqui, portanto, o quão relevante são as idéias de transparência,
desmaterialização, continuidade visual, entre outras, para a linguagem
tecnológica da arquitetura contemporânea.
Neste sentido, Demchak observa ainda que:
[...] muitas das intenções da arquitetura moderna
ainda estão na ordem do dia, embora tenha
emergido uma nova atmosfera social e tecnológica.
Sensibilidade a novos materiais, a padrões
sociais diversificados, e à nova tecnologia foram
fundamentais à linguagem modernista, e também
o serão para este novo contexto de conectividade
através dos computadores e do novo papel que
a residência pós-industrial deverá desempenhar.
(DEMCHAK, 2000, p.90).
Em certo sentido, portanto, as principais mudanças da era informacional
para a arquitetura referem-se à evolução e desdobramentos das tecnologias, no
caso computacionais, mas, seja na habitação ou em qualquer outro programa,
o que prevalece é a idéia de liberdade projetual instaurada pelo movimento
moderno.
Liberdade esta que, para os modernos, significou independência entre
estrutura e fechamentos, de dimensionamento dos espaços, através do
Modulor de Le Corbusier, de luminosidade e interação visual entre as partes da
edificação, assim como conectividade entre o interior e o exterior do ambiente
132
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construído. Os modernos reconheceram a liberdade inerente ao projeto tirando
vantagem de novos sistemas estruturais.
Para
os
pós-industriais
ou
informacionais,
persiste
a
demanda
por liberdade, embora o conceito tenha se estendido para binômios que
extrapolam a nossa realidade imediata. Ou seja, o conceito de liberdade da era
informacional arquitetônica tem a ver com os domínios da realidade virtual e
do ciberespaço.
Portanto, as relações entre o moderno e a arquitetura hodierna são ao
mesmo tempo de ruptura e continuidade, de especialização, dependendo do
ponto de vista que se adote.
Com relação às casas propriamente ditas, consideramos que seja
relevante transcrever a seguinte observação de Gregory Demchak, que reforça
nossa conclusão do presente trabalho:
A casa pós-industrial irá incorporar conceitos
de arquitetura aberta tal qual pregados pelos
modernistas, mas entenderão essa idéia através
do desenvolvimento de sistemas adaptáveis e
flexíveis de componentes internos. Em contraste
com o Estilo Internacional, que favoreceu as
delgadas divisões entre espaços, suas propostas
pedem por unidades densas, ou seja, dos módulos
conectáveis, ainda que em princípio elas sejam
contrárias à arquitetura aberta. A extensão dos
princípios modernos é também estabelecida em
comparação ao sistema produtivo adotado, ou seja,
o uso do processo industrial não é só considerado
adequado, mas também essencial tanto ao projeto
133
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moderno quanto ao pós-industrial. (DEMCHAK,
2000, p.90).
O movimento moderno, e especialmente Le Corbusier, só são
reconhecidamente
revolucionários
pela
aproximação
das
disciplinas
arquitetônica, sociológica e artística com a técnica e as ciências exatas, através
da apropriação e do domínio das técnicas construtivas e das possibilidades
tecnológicas oriundas do desenvolvimento industrial.
Assim, aliando os fatores econômicos e sociais, a vanguarda moderna de
certa forma reinventou as formas de construir, de habitar e de se compreender
o espaço, o que correspondeu à nova postura epistemológica do homem
novo, emergente da era da máquina. No entanto, principalmente Corbusier
não se desvinculou do legado clássico, na medida em que “transcodificou” o
vocabulário formal e sintático das proporções e formas dos espaços tradicionais
através, basicamente, da apropriação dos conceitos da geometria euclidiana e
dos ensinamentos clássicos.
Com isso, a associação da ruptura social transformada em estilo com a
apropriação e o resgate do legado clássico e renascentista, fez da arquitetura
de vanguarda moderna uma revolução que ao mesmo tempo rompeu com
conceitos pré-estabelecidos e enraizados, como os excessos formais do barroco
e outros estilos vigentes à época, mas também resgatou os conceitos clássicos
da arquitetura, de forma a estabelecer, no caso de Le Corbusier, os chamados
traçados regularizadores e posteriormente o conceito do Modulor, baseados na
134
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DE MORAR:
UM
HARDWARE DE MORAR?
proporção áurea e na geometria euclidiana.
O mesmo pode-se dizer da arquitetura contemporânea, que enfrenta uma
mudança na sociedade em seus diversos modos de expressão e inter-relação
cultural, social e econômica, especialmente pelos avanços nos campos da
telemática, eletrônica e de outros disciplinas. A arquitetura de nossa época vive
em momento de reflexão, sobretudo acerca de sua condição epistemológica.
Há perguntas éticas, científicas, teológicas sendo formuladas e, na
medida em que a ciência avança com a ajuda dos computadores e demais
possibilidades telemáticas, novas questões se estabelecem, como no campo da
reprodução humana, da genética e da biotecnologia.
O homem parece estar em um momento de reflexão, principalmente por
haver uma dissociação no novo panorama mundial com o tradicional binômio
espaço-tempo, sobretudo em virtude dos novos meios de comunicação. Como
visto anteriormente no presente trabalho, abrem-se, no campo da arquitetura,
novas perspectivas através dos avanços tecnológicos, da realidade virtual e
dos novos programas computacionais, cada vez mais potentes e de simples
interface.
O horizonte da arquitetura hodierna é, portanto, marcado pela possibilidade
de criação de formas inusitadas, pela conectividade através da rede mundial de
computadores, assim como pelas possíveis interações da criação com os novos
meios de execução e de interface com o cliente.
Porém, alguns conceitos do ideário moderno devem ser tratados como
135
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HARDWARE DE MORAR?
um legado importante, de modo a tentar transformá-los para uma nova
realidade. Quando Le Corbusier afirmava que a casa deveria ser uma “Máquina
de Morar”, ele estava clamando por um aprimoramento das noções de se
conceber a arquitetura residencial, de modo a se apropriar das novas tecnologias
construtivas, das novas possibilidades representacionais, e principalmente
integrada aos novos costumes da sociedade que florescia da máquina.
A arquitetura moderna só atingiu seu estado revolucionário na medida
em que soube se apropriar das novas tecnologias de sua época, aproximandose, assim, das ciências exatas ao mesmo tempo em que impunha um estilo
novo, representativo por sua vez de uma nova sociedade, de uma nova forma
de ver o mundo.
O que houve, contudo,
principalmente após a década de 70, é que
ao mesmo tempo em que se configurava uma nova forma de concepção
arquitetônica, os projetos permaneciam baseados em métodos construtivos
arcaicos, dispendiosos, ou seja, defasados em relação às tecnologias imateriais
que lhes possibilitariam o arrojo formal e construtivo através de conceitos como
geometria topológica dentre outros aqui apresentados..
Contudo, será que devemos procurar uma nova arquitetura para nossa
sociedade, já que, conforme Le Corbusier: “Quando uma época possui a planta
de uma habitação, é sua evolução social que se fixou e existe um equilíbrio”
(CORBUSIER, 1923). Ou seja, os conceitos do ideário moderno não conquistariam
sua plenitude a partir dos vorazes progressos tecnológicos hodiernos? Em
136
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conseqüência, a casa contemporânea, parafraseando a célebre afirmação do
velho mestre, não deveria apenas se transformar em um “HARDWARE DE
MORAR”?
137
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