ESTUDO DA RESISTÊNCIA DE INTERFACE ENTRE SOLOS E GEOMEMBRANAS... 41 ESTUDO DA RESISTÊNCIA DE INTERFACE ENTRE SOLOS E GEOMEMBRANAS ATRAVÉS DO ENSAIO DE RING SHEAR Karla Maria Rebelo Wingler Engenheiro Civil, Depto. de Geotecnia, EESC-USP, Av. Trabalhador São-carlense, 400, CEP 13566-970, São Carlos, SP, e-mail: [email protected]. Orencio Monje Vilar Professor Titular do Depto. de Geotecnia, EESC-USP, Av. Trabalhador São-carlense, 400, CEP 13566-970, São Carlos, SP, e-mail: [email protected] Resumo Geomembranas são componentes importantes nos sistemas de barreiras impermeáveis e de coberturas em aterros de resíduos e lagoas de efluentes. A resistência de interface entre geomembranas e outros materiais, tais como solos e geotêxteis, pode ser relativamente baixa e condicionar a estabilidade do sistema de impermeabilização, principalmente quando dispostas em superfícies inclinadas. Investiga-se, neste artigo, a resistência ao cisalhamento de interface entre geomembranas e solos através do ensaio de ring shear modificado para tal estudo. Os resultados mostraram que o comportamento de interface é influenciado principalmente pelas características das geomembranas utilizadas, como textura e flexibilidade. Nas areias, a resistência ao cisalhamento na interface foi pouco influenciada pela densidade da areia e pela saturação. No solo argiloso, o grau de compactação apresentou pequena influência no ângulo de atrito nas amostras ensaiadas com umidade ótima; contudo, nas amostras saturadas observou-se decréscimo no ângulo de atrito com o decréscimo do grau de compactação. Palavras-chave: geomembrana, areia, argila, resistência ao cisalhamento de interface. Introdução O uso de geossintéticos em obras geotécnicas de proteção ambiental tem crescido muito nos últimos anos. Em especial, as geomembranas, que compõem uma classe de geossintéticos de reduzida permeabilidade, prestamse a compor sistemas de impermeabilização da base de aterros de resíduos e de lagoas de efluentes, bem como sistemas de impermeabilização de cobertura de aterros. Estes sistemas de impermeabilização combinam, além das geomembranas, diferentes materiais, como solos argilosos compactados, solos granulares e outros materiais sintéticos, como geotêxteis e geocompostos bentoníticos, formando as barreiras compostas. Neste particular, o uso de barreiras compostas em taludes de aterros e lagoas requer grande atenção na análise de estabilidade. O lançamento de resíduos nos aterros induz tensões de cisalhamento no sistema de impermeabilização, as quais são transmitidas por meio de atrito ao longo de seus componentes, como se esquematiza na Figura 1. Nessa figura, tem-se um sistema composto em que aparecem, de baixo para cima, o solo de fundação, a geomembrana (GM), uma georrede (GR) para detecção de vazamentos e retirada de efluentes que porventura tenham vazado, outra geomembrana (primária) e a areia da camada drenante. Entre esses componentes desenvolvem-se tensões de atrito, representadas pelas forças Fi. Dependendo das características de atrito entre estes materiais, pode ocorrer arraste de uma camada em relação à outra e conseqüente ruptura do sistema de impermeabilização. Dentre os casos retratados na literatura sobre ruptura do sistema de impermeabilização cita-se o do Aterro Kettleman Hills. Após a ruptura deste aterro, muitos estudos foram conduzidos com o intuito de entender o comportamento de resistência de interface e de quantificá-la adequadamente (Filz et al., 2001; Mitchell et al., 1990; Seed et al., 1990; Stark & Poeppel, 1994). Para determinação da resistência de interface em barreiras impermeáveis e o conhecimento dos fatores que podem influenciar seu comportamento recorre-se aos ensaios de resistência ao cisalhamento. Vários dispositivos têm sido utilizados para estudar e quantificar a resistência ao cisalhamento de interface, como, por exemplo, os ensaios de cisalhamento direto, de plano inclinado e de arrancamento. Minerva, 2(1): 41-51 42 WINGLER & VILAR W s co W. n se W. ia Are F1 F3 X X X X X F5 X X X X X GM GR F2 X X X F4 X GM F6 ila Arg F7 Figura 1 Esquema de barreiras impermeáveis em aterros. Outra possibilidade corresponde ao ensaio de ring shear. Apesar de pouco empregado, tem como atrativo a possibilidade de permitir a continuidade dos deslocamentos até que a condição residual seja atingida. Tendo em vista tal aspecto, investiga-se, neste trabalho, a resistência ao cisalhamento de interface entre geomembranas e solos através do ensaio de ring shear modificado. Ensaio de Ring Shear O ensaio consiste em uma amostra anelar de solo, que é confinada radialmente entre anéis concêntricos e verticalmente entre uma placa porosa e um anel superior, o qual transmite o carregamento vertical aplicado à amostra. Uma rotação é imposta ao anel inferior, enquanto o anel superior é impedido de girar através de um par de anéis dinamométricos, que permitem a determinação do torque transmitido à amostra. Durante o ensaio são medidos deslocamento angular, força e deslocamento vertical. Neste trabalho, modificaram-se as dimensões do anel proposto por Bromhead (1979), de forma a aumentar a área de interface e atender às relações práticas recomendadas entre a altura do anel e o diâmetro máximo das partículas do solo. O anel modificado apresenta diâmetro externo, 100 mm; diâmetro interno, 25 mm; e espessura, 12 mm. Para o estudo da resistência de interface entre solos e geomembranas, dispuseram-se o solo no anel inferior e a geomembrana no anel superior. Nas Figuras 3 e 4 são apresentados o equipamento, uma comparação entre os anéis originais e modificados e suas seções transversais. Figura 2 Ruptura do aterro de Kettleman Hills. Figura 3 Minerva, 2(1): 41-51 Ring shear: seção transversal dos anéis inferiores e superiores. ESTUDO DA RESISTÊNCIA DE INTERFACE ENTRE SOLOS E GEOMEMBRANAS... 43 162 8 16 Anel modificado Geomembrana Solo 5 12 23 6,5 Anel original 37,5 12 37,5 25 100 (a) Figura 4 Dimensões em mm (b) Ring shear: (a) comparação entre o anel original e o modificado; (b) seção transversal dos anéis superior e inferior. Materiais e Métodos Solos utilizados Foram utilizados dois diferentes solos, areia de granulometria média a grossa e um solo argiloso proveniente do Aterro Sanitário de Piracicaba, SP. As curvas granulométricas de ambos os solos são apresentadas na Figura 5, enquanto as características são apresentadas na Tabela 1. Em relação aos geossintéticos, foram analisados três tipos de geomembrana: PVC (polivinil clorado), 1,0 mm de espessura; PEAD (polietileno de alta densidade), 1,0 mm de espessura; e PEAD texturizada AR, 2,5 mm de espessura. Porcentagem que passa (%) 100 90 80 70 60 50 40 30 Argila Areia 20 10 0 0,001 0,01 0,1 1 10 Diâmetro dos grãos (mm) Figura 5 Curva granulométrica dos solos analisados. Tabela 1 Propriedades dos solos utilizados nos ensaios. Propriedades Classificação do solo γs γd Mínimo γd Máximo e min e max Proctor Normal γ d máx w ótima LL LP IP Areia SP 26,7 kN/m3 14,6 kN/m3 17,4 kN/m3 0,53 0,83 Argila CL 30,7 kN/m3 – – – – – – – – – 15,9 kN/m3 26,7% 55% 32% 22% Minerva, 2(1): 41-51 44 WINGLER & VILAR Execução do Ensaio Na areia, a moldagem foi realizada de forma a simular as seguintes condições de densidade: γd = 14,6 kN/m3 (e = 0,83); γd = 16,0 kN/m3 (e = 0,68); e γd = 17,4 kN/m3 (e = 0,53). Os materiais foram ensaiados em condição inundada e não inundada e realizados com velocidade angular de 1,80 graus/min., o que corresponde a uma velocidade linear de 0,98 mm/min. (no centro da amostra). Os carregamentos verticais aplicados variaram entre 27 kPa e 154 kPa. O solo argiloso foi compactado estaticamente, com diferentes umidades e graus de compactação. Os ensaios também foram realizados sob as condições inundada e não inundada, com adensamento da amostra sob a tensão normal de interesse. A velocidade de cisalhamento aplicada foi de 3,0 graus/min. (1,64 mm/min.), no centro da amostra. Os carregamentos verticais aplicados foram 25 kPa, 100 kPa e 200 kPa. Para os ensaios inundados, concomitantemente à aplicação da tensão normal, realizou-se a inundação do corpo de prova com água destilada durante um período de aproximadamente 14 horas. Apresentação e Discussão dos Resultados Comportamento das curvas de tensão cisalhante – deslocamento a) Interfaces com solo argiloso A Figura 6 apresenta as curvas de tensão cisalhante versus deslocamento para interfaces com argila realizadas sob condição não inundada, material moldado na umidade ótima (wótima= 26,7%) e grau de compactação igual a 98% (γd = 15,6 kN/m3). Para cada interface foram realizados ensaios com no mínimo três diferentes tensões normais, e as curvas apresentadas, típicas dos comportamentos observados, se referem aos carregamentos verticais de 100 e 200 kPa, respectivamente. Constatou-se, em geral, crescimento acentuado de tensões para pequenos deslocamentos. Em grande parte das interfaces, após atingir-se um pico, notou-se decréscimo de tensão até atingir-se um valor praticamente constante que caracteriza a condição residual. As maiores reduções de resistência pós-pico ocorreram para a geomembrana lisa de PEAD, sendo as relações entre o valor residual e de pico iguais a 0,49 e 0,61 para os carregamentos de 100 kPa e 200 kPa. Para o PVC, os valores encontrados foram de 0,81 e 0,91 para os mesmos carregamentos; enquanto para o PEAD AR foram de 0,64 e 0,72. As geomembranas lisas de PEAD apresentaram menores deslocamentos para atingir a condição de pico do que as geomembranas de PVC. No entanto, apresentaram maiores valores de deslocamento para atingir a condição residual. Já as geomembranas texturizadas de PEAD AR apresentaram os maiores valores de deslocamentos para atingir a condição de pico e residual do que as geomembranas de PVC e PEAD lisa. b) Interfaces com areia As curvas apresentadas na Figura 7 mostram o comportamento tensão cisalhante versus deslocamento para interfaces com areia moldada com γd = 16,0 kN/m3 (e = 0,68) e em condição não inundada, referentes aos carregamentos de 54 kPa e 109 kPa, respectivamente. Como observado nas interfaces com solo argiloso, verificou-se crescimento acentuado de tensões para pequenos deslocamentos. Depois de atingido um valor de pico, a tensão cisalhante decresceu até atingir a condição residual. Entretanto, os deslocamentos residuais foram alcançados para deslocamentos bem pequenos quando comparados ao solo argiloso. Para o PVC, por exemplo, o deslocamento foi da ordem de 8 mm para a areia, enquanto para a argila foi de aproximadamente 40 mm. As maiores reduções de resistência pós-pico também ocorreram para a geomembrana lisa de PEAD. Tais geomembranas apresentaram menores valores de deslocamentos para atingir a condição de pico e maiores valores de deslocamento para atingir a condição residual do que as geomembranas de PVC. Como observado nas interfaces com solo argiloso, as geomembranas texturizadas de PEAD AR apresentaram os maiores valores de deslocamentos para atingir a condição de pico e residual do que as geomembranas de PVC e PEAD lisa. 160 = 100 kPa 100 80 60 40 20 Tensão cisalhante (kPa) Tensão cisalhante (kPa) 120 140 = 200 kPa 120 100 80 60 40 20 0 0 0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 Deslocamento (mm) PVC PEAD lisa PEAD AR 0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 Deslocamento (mm) PVC PEAD lisa PEAD AR Figura 6 Curvas tensão cisalhante–deslocamento: interface argila/geomembrana, tensões normais de 100 e 200 kPa. Minerva, 2(1): 41-51 ESTUDO DA RESISTÊNCIA DE INTERFACE ENTRE SOLOS E GEOMEMBRANAS... 50 80 Tensão cisalhante (kPa) Tensão cisalhante (kPa) = 54 kPa 40 30 20 10 0 45 = 109 kPa 60 40 20 0 0 2 0 6 8 10 12 14 16 18 20 22 Deslocamento (mm) 4 PEAD lisa PVC 2 PEAD AR 4 PVC 6 8 10 12 14 16 18 20 Deslocamento (mm) PEAD lisa PEAD AR Figura 7 Curvas tensão cisalhante–deslocamento: interface areia/geomembrana, tensões normais de 54 kPa e 109 kPa, areia com γd = 16 kN/m3. Envoltória de resistência Nas Figuras 8, 9 e 10 são apresentadas as envoltórias típicas de resistência respectivas às geomembranas de PVC, PEAD e PEAD texturizada AR, condição não inundada e com diferentes solos. Em geral, as envoltórias de resistência apresentaram comportamento linear, com intercepto de coesão nulo. Algumas interfaces, como, por exemplo, geomembrana texturizada de PEAD AR e argila, apresentaram pequeno intercepto de coesão. Os ângulos de atrito de pico e residual foram maiores nas interfaces com geomembrana de PVC e PEAD texturizada AR. Na interface argila/PVC, por exemplo, os ângulos de atrito variaram entre 22º e 30º, para a condição de pico, e entre 20º e 29º, para a condição residual. Na interface areia/PVC também foram obtidos elevados valores de ângulos de atrito, variando de 31º a 33º, para a condição de pico, e de 28º a 29º, para a condição residual. Na interface argila/PEAD texturizada AR, os ângulos de atrito situaramse entre 32º e 36º, para a condição de pico, e entre 26º e 28º, para a condição residual. Na interface areia/PEAD AR, os ângulos de atrito de pico e residual variaram de 120 70 = tg 30º Tensão cisalhante (kPa) Tensão cisalhante (kPa) 135 2 R = 0,999 105 90 75 60 = tg 27º 2 R = 0,997 45 31º a 33º e de 27º a 30º, respectivamente. No entanto, nas interfaces com geomembranas lisas de PEAD foram encontrados baixos valores de ângulos de atrito. Na interface com argila, os ângulos de atrito situaram-se entre 14º e 16º, para a condição de pico, e entre 7º e 11º, para a condição residual. Na interface com areia, os valores foram da ordem de 17º, para o ângulo de pico, e entre 13º e 15º, para o ângulo residual. Os ângulos de atrito medidos são coerentes com os valores divulgados na literatura. Para a areia, por exemplo, são sugeridos por Koerner (1998) valores entre 25º e 21º para geomembranas de PVC e areias locais “Concrete” e “Mica Schist”, respectivamente. Para geomembranas de PEAD são sugeridos valores de 18º para as mesmas areias. Ingold (1990) sugere ângulos de atrito para interface com geomembrana de PVC variando de 27º a 31º, e com geomembrana de PEAD são sugeridos valores entre 14º e 24º. No trabalho de O’Rourke et al. (1990) foram encontrados ângulos de atrito de pico de 30o para interface com geomembrana de PVC e de 19o para interface com geomembrana de PEAD lisa, ambas realizadas com areia padrão de Otawa. 30 15 60 = tg 30º 2 R = 0,999 50 40 30 = tg 28º 2 R = 0,998 20 10 0 0 0 40 80 120 160 200 Tensão normal (kPa) Resistência de pico Resistência residual (a) Argila Figura 8 240 0 20 40 60 80 100 Tensão normal (kPa) Resistência de pico 120 Resistência residual (b) Areia Envoltória típica de resistência para geomembrana de PVC: (a) argila; (b) areia. Minerva, 2(1): 41-51 46 WINGLER & VILAR 40 50 = tg 16º kPa Tensão cisalhante (kPa) Tensão cisalhante (kPa) 60 2 R = 0,97 40 30 20 10 = tg 9º kPa 2 R = 0,99 0 30 2 20 = tg 13º 2 10 R = 0,958 0 0 40 80 120 160 200 Tensão normal (kPa) Resistência de pico 0 240 Resistência residual 20 40 60 80 100 Tensão normal (kPa) Resistência de pico (a) Argila Figura 9 120 Resistência residual (b) Areia Envoltória típica de resistência para geomembrana de PEAD: (a) argila; (b) areia. 200 140 = 11,1 + tg 36º 2 R = 0,96 160 Tensão cisalhante (kPa) Tensão cisalhante (kPa) = tg 16º R = 0,961 120 80 = 3 + tg 28º 2 R = 0,99 40 0 120 = tg 33º 2 R = 0,999 100 80 60 = tg 29º 2 R = 0,997 40 20 0 0 40 80 120 160 200 Tensão normal (kPa) Resistência de pico 240 Resistência residual (a) Argila 0 40 80 120 160 200 Tensão normal (kPa) Resistência de pico 240 Resistência residual (b) Areia Figura 10 Envoltória típica de resistência para geomembrana de PEAD texturizada AR: (a) argila; (b) areia. Para interfaces com solo argiloso, Stark & Poeppel (1994) verificaram valores de ângulos de atrito de 17º e 10º, respectivos à condição de pico e residual, obtidos através de ensaios de ring shear em interfaces com geomembranas de PEAD lisa e argila. Mitchell et al. (1990) retratam valores de ângulos de atrito de pico e residual de aproximadamente 14º e 13º, respectivamente, para geomembranas de PEAD lisa, obtidos por ensaios de cisalhamento direto. Os resultados apresentados também permitem observar que a rugosidade da geomembrana contribuiu significativamente para o aumento de resistência de interface tanto para a condição de pico quanto residual. Analisando-se os resultados de interface com areia, constatou-se, na geomembrana texturizada, aumento de aproximadamente 130% para o coeficiente de atrito de pico (tg δp) e 140% para o coeficiente residual (tg δr) em relação aos coeficientes de atritos obtidos na geomembrana lisa de PEAD. Na interface com solo argiloso e geomembrana texturizada de PEAD AR, constataram-se aumentos de aproximadamente 150%, no coeficiente de atrito de pico, e de 240%, no coeficiente de atrito residual, em relação à geomembrana de PEAD lisa. Minerva, 2(1): 41-51 Na Figura 11 são apresentadas fotos da superfície do solo após cisalhamento com geomembranas de PEAD lisa e PEAD AR, respectivamente. Nota-se que a superfície do solo na interface com geomembrana de PEAD lisa permaneceu praticamente inalterada, com pequenos estriamentos. Ao contrário, a amostra cisalhada com geomembrana de PEAD AR apresenta sulcos em sua superfície atribuídos ao entrosamento da geomembrana e o solo. Também se observou que as geomembranas de PVC forneceram maiores valores de ângulos de atrito, tanto de pico quanto residual, dos que as geomembranas lisas de PEAD. Este comportamento pode ser explicado pelo mecanismo de transferência de atrito de acordo com a rigidez da geomembrana. Segundo O’Rourke et al. (1990), as partículas dos solos tendem a deslizar sobre a superfície das geomembranas relativamente rígidas, como as de PEAD, gerando baixa resistência ao atrito na interface. Nas geomembranas flexíveis, como as de PVC, as partículas tendem a rolar sobre a superfície, o que induz a concentrações de tensões, responsáveis por decidir maiores ângulos de atrito. Para verificar tal aspecto, na Figura 12 são apresentadas fotografias da superfície das geomembranas de PVC e PEAD, antes e após o cisalhamento das interfaces. ESTUDO DA RESISTÊNCIA DE INTERFACE ENTRE SOLOS E GEOMEMBRANAS... Nota-se, na geomembrana lisa de PEAD, que a superfície apresenta estriamentos após o cisalhamento, os quais são atribuídos ao mecanismo de deslizamento das partículas. Ao contrário, na geomembrana de PVC, a superfície permanece 47 a mesma, sem marcas ou danos permanentes, o que atesta um mecanismo de rolamento das partículas. Desta forma, constatou-se que o tipo de geomembrana interfere nas características de resistência de interface. Figura 11 Foto da superfície do solo após cisalhamento: (a) PEAD lisa; (b) PEAD texturizada AR. Figura 12 Mecanismo de transferência de tensões cisalhantes: (a) PVC virgem; (b) PVC cisalhada; (c) PEAD lisa virgem; (d) PEAD cisalhada. Minerva, 2(1): 41-51 48 WINGLER & VILAR Efeito da inundação na resistência de interface a) Interface com argila A Figura 13 apresenta o comportamento típico das curvas de tensão cisalhante para a interface com geomembrana de PVC e PEAD na condição inundada e não inundada, as quais se referem ao carregamento vertical de 200 kPa. Estes gráficos se referem à condição de material moldado com GC igual a 98% (γd = 15,6 kN/m3) e na umidade de 26,7% (wótima) Na interface com geomembrana de PVC, constatouse que a tensão cisalhante de pico na condição inundada foi mobilizada com menores deslocamentos do que na condição não inundada. Por sua vez, a condição residual foi mobilizada com a mesma magnitude de deslocamentos em ambas as condições, por volta de 50 mm. As tensões cisalhantes de pico e residual na condição inundada foram menores do que na condição não inundada, constatandose reduções de 17% e 21%, respectivamente. Na interface com geomembrana lisa de PEAD, os deslocamentos para atingir a condição de pico foram da mesma ordem de grandeza em ambas as condições de ensaio. A tensão residual foi mobilizada com menores deslocamentos na condição inundada. Ao contrário do comportamento observado nas geomembranas de PVC, observou-se que a tensão cisalhante de pico na condição inundada foi aproximadamente igual à da condição não inundada. Entretanto, na condição residual observou-se para o ensaio inundado uma redução de resistência de 20% em relação ao ensaio não inundado. A Figura 14 apresenta o comportamento típico das curvas de tensão cisalhante para a interface com geomembrana texturizada de PEAD AR na condição inundada e não inundada, referentes ao carregamento vertical de 200 kPa. Estes gráficos se referem à condição de material moldado com GC igual a 98% (γd = 15,6 kN/m3) e na umidade de 26,7% (wótima). Verificou-se que os deslocamentos necessários para atingir a condição de pico foram da mesma ordem de grandeza nos ensaios inundados e não inundados. A tensão residual foi alcançada com menores deslocamentos na condição inundada. Tanto a tensão cisalhante de pico quanto a tensão residual foram menores nos ensaios não inundados, constatando-se reduções de 17% e 11%, respectivamente, em relação aos ensaios não inundados. Na Tabela 2 são apresentados os valores dos ângulos de atrito referentes às interfaces com argila, com grau de compactação de 98% (γd = 15,6 kN/m3) e em diferentes umidades de compactação. O efeito da inundação refletiu-se numa ligeira queda dos ângulos de atrito para as interfaces com geomembrana de PVC e PEAD texturizada AR, sendo praticamente desprezível para a geomembrana lisa de PEAD. Tal comportamento foi verificado em ambas as umidades de moldagem do solo. No trabalho de Pasqualini et al. (1993) também foi verificado uma variação desprezível no ângulo de atrito com a inundação do corpo de prova, para interfaces envolvendo geomembranas lisas de PEAD e argila. Na Tabela 3 são apresentados os resultados referentes às interfaces com areia. 120 Tensão cisalhante (kPa) 100 80 60 40 20 0 0 10 PVC NI 20 30 40 50 Deslocamento (mm) PVC IN PEAD lisa NI 60 70 80 PEAD lisa IN Figura 13 Curvas tensão cisalhante versus deslocamento na condição inundada, PVC e PEAD lisa, GC = 98%, wótima = 26,7%. (NI: não inundado; IN: inundado.) Minerva, 2(1): 41-51 ESTUDO DA RESISTÊNCIA DE INTERFACE ENTRE SOLOS E GEOMEMBRANAS... 49 160 Tensão cisalhante (kPa) 140 120 100 80 60 40 20 0 0 10 20 30 40 50 60 70 Deslocamento (mm) wotima_NI 80 90 100 110 wotima_IN Figura 14 Curvas tensão cisalhante versus deslocamento na condição inundada, PEAD texturizada AR, GC = 98%, wótima = 26,7%. (NI: não inundado; IN: inundado.) Tabela 2 Influência da inundação nos ângulos de atrito obtidos nas interfaces com argila. Interface Umidade (%) 26,7 28,7 26,7 28,7 26,7 PVC PEAD lisa PEAD AR Ensaio não inundado δp 30º 24º 16º 14º 36º Ensaio inundado δr 27º 22º 9º 8º 28º δp 26º 22º 16º 13º 32º δr 23º 19º 8º 8º 26º Tabela 3 Influência da inundação nos ângulos de atrito obtidos nas interfaces com areia. Condição não inundada Condição inundada Interface pico residual pico residual GM PVC/areia 31o 29o 27o 26o GM PEAD lisa/areia 17o 15o 15o 14o GM PEAD AR/areia 31o 30o 30o 29o Na interface com geomembrana de PVC, verificouse, com a inundação do corpo de prova, diminuição de 15% no coeficiente de atrito de pico e de 12% no coeficiente residual. Para a geomembrana lisa de PEAD obteve-se redução de 10% para o coeficiente de atrito de pico, enquanto a variação residual pôde ser considerada desprezível. Na interface com geomembrana texturizada PEAD AR, verificou-se que a condição de inundação não diminuiu os valores dos ângulos de atrito obtidos. Em Ingold (1990) são sugeridos valores de ângulos de atrito de pico para interfaces com areia e geomembranas de PEAD e PVC, em condição seca e saturada. Para a geomembrana de PVC são indicados valores médios de ângulos de atrito iguais a 29º e 25º, respectivos à condição seca e saturada. Para a geomembrana de PEAD lisa são sugeridos valores de 19º e 17º, relativos à condição seca e saturada. Portanto, os resultados aqui mostrados indicam a mesma tendência apresentada por Ingold (1990). Minerva, 2(1): 41-51 50 WINGLER & VILAR Influência das condições de moldagem dos solos A Tabela 4 apresenta uma síntese dos resultados dos ensaios de interface realizados com areia em diferentes pesos específicos e sob condição não inundada. Nas interfaces com geomembranas de PVC obtevese pequeno aumento de dois graus entre o peso específico de 14,6 kN/m3 e 17,4 kN/m3. No entanto, para o peso específico intermediário (16,0 kN/m3), os ângulos de atrito obtidos foram praticamente iguais aos obtidos para o peso específico de 14,6 kN/m3. Nas interfaces com geomembranas lisas de PEAD, não se verificou variação nos ângulos de atrito de pico com a variação do peso específico da areia. Nas interfaces com geomembranas texturizadas de PEAD AR, verificouse aumento de dois graus entre os pesos específicos de 14,6 kN/m3 e 16,0 kN/m3 e diminuição de um grau do peso específico de 16,0 kN/m3 e 17,4 kN/m3. Em face das pequenas ou desprezíveis variações nos ângulos de atrito, isto sugere que, para o material granular estudado, o peso específico da areia não interferiu nas propriedades de resistência ao cisalhamento em interfaces. O sumário dos resultados dos ensaios realizados com argila moldada em diferentes graus de compactação e umidade de 26,7% (umidade ótima) são apresentados na Tabela 5. Em geral, verifica-se nos ensaios não inundados que a variação nos ângulos de atrito de pico e residual com o grau de compactação é pequena, tanto nas interfaces com geomembrana de PVC quanto de PEAD lisa, podendo ser considerada desprezível. Contudo, nos ensaios inundados verifica-se que o efeito do grau de compactação é mais pronunciado, sendo constatada diminuição nos ângulos de atrito de pico com a diminuição do grau de compactação. Na Tabela 6 são apresentados os resultados dos ensaios com variação das umidades iniciais de compactação. Quanto à influência da umidade inicial de compactação, pôde-se averiguar que, em ambas as interfaces e nas duas condições de ensaio (inundado e não inundado), os valores dos ângulos de atrito diminuíram com o aumento da umidade. Entretanto, este comportamento foi mais evidenciado na geomembrana de PVC, sendo que na geomembrana de PEAD a variação foi pequena para a condição de pico e desprezível para a condição residual. Tabela 4 Ângulos de atrito de interface em função do peso específico da areia. GM 14,6 kN/m pico PVC PEAD lisa PEAD AR Peso específico da areia ( d) 16,0 kN/m3 3 residual 31º (1,07) 17º (0,59) 31º (1,07) 29º (1,00) 15º (0,52) 30º (1,03) pico 30º (0,88) 17º (0,50) 33º (0,97) 17,4 kN/m3 residual 28º (0,82) 13º (0,38) 29º (0,85) pico residual 33º(0,89) 17º (0,46) 32º (0,86) 29º (0,78) 15º (0,41) 27º (0,73) Nota: Valores entre parênteses: eficiência (razão entre o ângulo de atrito de interface e o ângulo de atrito interno do solo). Tabela 5 Influência do grau de compactação na resistência de interface entre o solo argiloso e diferentes geomembranas. Interface GC = 85% PVC PEAD lisa δ pico 30º 16º Interface PVC PEAD lisa Minerva, 2(1): 41-51 δ pico 22º 14º δ residual 29º 11º Ensaios não inundados GC = 92% δ pico δ residual 30º 27º 14º 8º Ensaios inundados GC = 85% δ residual 20º 7º δ pico 26º 16º GC = 98% δ pico 30º 16º δ residual 27º 9º GC = 98% δ residual 23º 7º ESTUDO DA RESISTÊNCIA DE INTERFACE ENTRE SOLOS E GEOMEMBRANAS... 51 Tabela 6 Influência da umidade inicial de compactação na resistência de interface entre o solo argiloso e diferentes geomembranas. Umidade inicial de compactação w = 26,7% GM PVC PEAD NI δ pico 30º 16º w = 28,7% IN δ residual 27º 9º δ pico 26º 16º NI δ residual 23º 7º δ pico 24º 14º IN δ residual 22º 8º δ pico 22º 13º δ residual 19º 8º Legenda: NI: não inundado/IN: inundado. Conclusão Referências Bibliográficas Através dos resultados aqui apresentados, verificouse que o comportamento de resistência ao cisalhamento de interface depende principalmente das características da geomembrana, como flexibilidade e textura. A geomembrana de PVC, a mais flexível, apresentou maiores valores de ângulos de atrito do que a mais rígida, a de PEAD. No que diz respeito à rugosidade, verificou-se que os valores dos ângulos de atrito de pico e residual encontrados na membrana texturizada foram significativamente maiores do que nas geomembranas lisas. Observou-se efeito pouco acentuado na resistência de interface em ambos os solos devido à inundação, sendo que este efeito foi mais pronunciado na interface com geomembranas de PVC. Pôde-se observar ainda que o peso específico da areia estudada não influenciou a resistência ao cisalhamento de interface. Nas interfaces com argila, verificou-se, em geral, que nos ensaios não inundados a variação nos ângulos de atrito com o grau de compactação da amostra pôde ser considerada desprezível. Já nos ensaios inundados, verificou-se a diminuição dos ângulos de atrito com a diminuição do grau de compactação. Tanto nos ensaios inundados quanto nos não inundados, o aumento da umidade inicial de compactação da argila provocou redução dos ângulos de atrito. Por fim, pôde-se constatar que os ângulos de atrito de interface foram da mesma ordem de grandeza que os resultados típicos apresentados na literatura, determinados a partir de outros tipos de ensaios, o que comprova a aplicabilidade dos ensaios de ring shear para a medida de resistência de interface entre geomembranas e solos. BROMHEAD, E. N. A simple ring shear apparatus. Ground Engineering, v. 12, n. 5, p. 40-44, 1979. FILZ, G. M.; ESTERHUIZEN, J. J. B.; DUNCAN, J. M. Progressive failure of lined waste impoudments. 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